humberto de campos - reportagens de além túmulo.pdf

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    DO NOTICIARISTA DESENCARNADO .................................................................................3 1 - AMARGURAS DE UM SANTO.........................................................................................5 2 - O IRMO SEVERIANO .....................................................................................................8 3 - A VIDNCIA ESQUECIDA ..............................................................................................11 4 - ESPRITOS PROTETORES.............................................................................................14 5 - O NATAL DIFERENTE....................................................................................................17 6 - O DRAMA DE ANDR ......................................................................................................20 7 - O TRANSPORTE REVELADOR .....................................................................................24 8 - O LIVRE PENSADOR .....................................................................................................28 9 - DESAPONTAMENTO DE UM SUICIDA.........................................................................33 10 - O INVESTIGADOR INCONSCIENTE............................................................................38 11 - O APELO INESPERADO ..............................................................................................42 12 - A CURA COMPLEXA ....................................................................................................46 13 - O TRABALHADOR FRACASSADO ..............................................................................50 14 - INVOCAES DIRETAS ...............................................................................................54 15 - A GRANDE SURPRESA ...............................................................................................57 16 - CARIDADE E DESENVOLVIMENTO ............................................................................61 17 - A EXPERINCIA DE CATARINO.................................................................................65 18 - NARRADOR APENAS....................................................................................................70 19 - QUANDO FELISBERTO VOLTOU................................................................................74 20 - O VALOR DO TRABALHO ...........................................................................................78 21 - A MOLSTIA SALVADORA ..........................................................................................82 22 - O REMDIO PREGUIA ..........................................................................................86 23 - A SOLUO CARIDOSA ..............................................................................................90 24 - A ESTRANHA INDICAO...........................................................................................94 25 - TRAGDIA OCULTA......................................................................................................99 26 - ASSISTNCIA ESPIRITUAL ........................................................................................103 27 - DOIS COMPANHEIROS ..............................................................................................108 28 - A QUEIXOSA................................................................................................................111 29 - O DIAGNSTICO.........................................................................................................115 30 - MANIA DE ENFERMIDADE ........................................................................................119 31 - O DOUTRINADOR RIGORISTA..................................................................................123 32 - A CRENTE INTERESSADA ........................................................................................127 33 - OBSESSO DESCONHECIDA....................................................................................132 34 - A CONSELHEIRA INVIGILANTE ................................................................................135 35 - PROSELITISMO DE ARRASTAMENTO .....................................................................139

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    DO NOTICIARISTA DESENCARNADO A sepultura no a porta do cu, nem a passagem para o inferno. o bangal subterrneo das clulas cansadas - silencioso depsito do vesturio apodrecido. O homem no encontrar na morte mais do que vida e, no misterioso umbral, a grande surpresa o encontro si mesmo. Falar, pois, de homens e de espritos, como se fossem expoentes de duas raas antagnicas, vale por falsa concepo das realidades eternas. As criaturas terrenas so, igualmente, Espritos revestidos de expresses peculiares ao planeta. Eis a verdade que o Cristianismo restaurado difundir nos crculos da cultura religiosa. Quanta gente aguarda a grande transio para regenerar costumes e renovar pensamentos? Entretanto, adiar a realizao do bem , sempre, menosprezar patrimnios divinos, agravando dificuldades futuras. O deslumbramento que invadiu as zonas de intercmbio, entre as esferas visvel e invisvel, operou singulares atitudes nos aprendizes novos. Em crculos diversos, companheiros nossos, pelo simples fato de haverem transposto os umbrais do sepulcro, so convertidos, pelos que ficaram na Terra, em orculos supostamente infalveis; alguns amigos, porque encontraram benfeitores na zona espiritual, esquecem os servios que lhes competem no esforo comum; mdiuns necessitados de esclarecimentos so transformados em semi-deuses. A alegria da imortalidade embriagou a muitos estudiosos imprevidentes. Dorme-se ao longo de trabalhas valiosos e urgentes, espera de mundos celestiais, como se o orbe terrestre no integrasse a paisagem do Infinito. necessrio, portanto, recordar que a existncia humana oportunidade preciosa no aprendizado para a vida eterna. Ensina-se-nos, aqui, que Espritos protetores e perturbados, nobres e mesquinhos, podem ser encontrados nos planos visveis e invisveis. Cada criatura humana tem a sua cota de deveres e direitos, de compromissos e possibilidades. Zonas felizes e desventuradas permanecem nas conscincias, na multiplicidade de posies mentais dos Espritos eternos. Tanto na Terra como no Cu, a responsabilidade lei. Neste quadro de observaes, o Consolador a escola divina destinada ao levantamento das almas. Urge, pois, que os discpulos se despreocupem do Espiritismo dos mortos, para colocar acima de todas as demonstraes verbalistas o Espiritismo dos vivos na eternidade. Dentro de cada aprendiz h um mundo a desbravar.

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    A Terra tambm a grande universidade. Ningum despreze a luta, o sofrimento, a dificuldade, o testemunho prprio. A luz, o bem, a sabedoria e o amor, a compreenso e a fraternidade, o crebro esclarecido e as mos generosas dependem do esforo pessoal, antes de tudo. O Sol ilumina o mundo, a chuva fecunda ti terra, a rvore frutifica, as guas suavizam a aridez do deserto; mas o homem deve caminhar por si mesmo. As maravilhas e ddivas da Natureza superior no eximem a criatura da obrigao de seguir com o Cristo, para Deus. Quando tantos companheiros dormem esquecendo o servio, ou contendem por ninharias copiando impulsos infantis, trago-te, leitor amigo, estas reportagens despretensiosas - lembrana humilde de humilde noticiarista desencarnado. As experincias relacionadas, nestas pginas singelas, falam eloqentemente de nossas necessidades individuais. No devemos continuar na condio de meros beneficirios da Casa de Deus, reincidentes nas dvidas e falhas criminosas. A Providncia nos oferece tesouros imperecveis. O Pai repartiu a herana com magnanimidade e justia. No h filhos esquecidos e todos somos seus filhos. Trazendo-te, pois, meu esforo desvalioso, feito de corao para coraes, termino afirmando que todas estas reportagens so reais e que, se os nomes das personagens obedecem conveno da caridade fraternal, aqui no h fices nem coincidncias. Cada histria representa um caso individual, no imenso arquivo das experincias humanas, para compreenso da vida eterna.

    Pedro Leopoldo, 8 de dezembro de 1942.

    Humberto de Campos

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    1 - AMARGURAS DE UM SANTO Falava-se numa roda espiritual da melhor maneira de cultivar a prece, quando um amigo sentenciou: - Uma herana perigosa dos espiritistas a de transformar a memria de um companheiro desencarnado numa espcie de culto de falsa santidade. O bom trabalhador do Cristo no faz mais que cumprir um dever, e no justo se lhe perturbe a serenidade espiritual com a repetio de cenas mundanas, perfeitamente idnticas, s cerimnias cannicas. No raro, a morte arrebata do convvio terrestre um irmo consciencioso, dedicado, e imediatamente os amigos da Doutrina o transformam num tabu de fictcia inexpugnabilidade. verdade; - exclamou um dos presentes -, em todas as questes justo perguntarmos qual foi o procedimento de Jesus; e, no caso da prece, no se v, nos Evangelhos, um culto particular, a no ser a contnua comunho entre o Cristo e o Pai que est nos Cus. Um ex-padre catlico, com o sorriso da bonana que sempre surge depois das grandes desiluses, acrescentou em tom amistoso: - razovel que os homens do mundo no interrompam as tradies afetuosas com aqueles que os precedem na jornada silenciosa do tmulo, conservando nas almas a mesma disposio de ternura e de agradecimento, na recordao dos que partiram. Entretanto, no captulo das rogativas, das solicitaes, dos empenhos, convm que toda criatura se dirija a Deus, ciente de que a sua vontade soberana sempre justa e de que a sua inesgotvel bondade se manifestar, de um ou de outro modo, atravs dos mensageiros que julgue conveniente aos fins colimados. Em minhas experincias nas esferas mais prximas do Planeta, sempre reconheci que os Espritos mais homenageados na Terra so os que mais sofrem, em virtude da pouca prudncia dos seus amigos. Alis, neste particular, temos o exemplo doloroso dos santos. Sabemos que raros homens canonizados pela igreja humana chegaram, de fato, montanha alcantilada e luminosa da Virtude. E essas pobres criaturas pagam caro, na Espiritualidade, o incenso perfumoso das glorolas de um altar terrestre. A palestra tomava um carter dos mais interessantes, quando o mesmo amigo perguntou de repente, depois de uma pausa: - Vocs conhecem a histria de So Domingos Gonzlez? E enquanto os presentes se entreolhavam mudos, em intima interrogao, continuou: - Domingos Gonzlez era um padre insinuante, dotado de poderosa e aguada inteligncia. Sua carreira sacerdotal, dado o seu carter flexvel, foi um grande vo para as posies mais importantes e elevadas. Dominava todos os companheiros pelo poder de sua palavra quente

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    e persuasiva, cativava a ateno de todos os seus superiores pela: humildade exterior de que dava testemunho, embora a sua vida ntima estivesse cheia de penosos deslizes. A verdade que, l pelos fins do sculo XV, era ele o Inquisidor-Geral de Arago; mas, tal foi o seu mtodo condenvel de ao no elevado cargo que lhe fora conferido, que, por volta de 1485, os israelitas' o assassinaram na catedral de Saragossa, em momento de sagradas celebraes. O nosso biografado acordou, no alm-tmulo, com as suas chagas dolorosas, dentro das terrveis realidades que lhe aguardavam o Esprito imprevidente; mas, os eclesisticas concordaram em pleitear-lhe um lugar de destaque nos altares humanos e venceram a causa. Em breve tempo, a memria de Domingos transformava-se no culto de um santo. Mas, a,agravaram-se, no plano invisvel, os tormentos daquela alma desventurada. Envergonhado e oprimido, o ex padre influente do mundo sentia-se qual mendigo faminto e coberto de pstulas.. Ns, porm, sabemos que as recordaes pesadas do Planeta so como foras invencveis que nos prendem superfcie da Terra, e o infeliz companheiro foi obrigado a comparecer, embora invisvel aos olhos mortais, a todas as cerimnias religiosas que se verificaram na instituio de seu culto. Domingos Gonzlez, assombrado com as acusaes da prpria conscincia, assistiu a todas as solenidades da sua canonizao, sentindo-se o mais desgraado dos seres. As pompas de acontecimento eram como espadas intangveis que lhe atravessassem, de lado a lado, o corao vencido e sofredor. Os cnticos de glorificao terrena ecoavam-lhe no intimo como soluos- da sombra e da- amargura. E, desde essa hora, intensificaram-se-lhe os padecimentos. Sua angstia agravou-se, primeiramente em virtude da nova posio do crculo familiar. Os que lhe eram afins pelo sangue entenderam que no mais deviam o tributo comum de trabalho e realizao ao mundo. Como parentes de um santo, no mais quiseram trabalhar. E essa atitude se estendeu aos seus mais antigos companheiros de comunidade. Os poucos valores da agremiao religiosa, a que pertencera, desapareceram. Seus colegas de esforo estacionaram voluntariamente na preguia criminosa e no hbito das homenagens sucessivas. O grupo havia produzido um santo: devia ser o bastante para garantia de uma posio definitiva no Cu. O Esprito infeliz contemplava semelhante situao, banhado em lgrimas expiatrias. E o seu martrio continuou. Sabemos que um apelo da Terra recebido em nosso meio, to logo seja expedido por um corao que se debata nas lutas redentoras do mundo. Se o servio postal do orbe pode estar sujeito aos erros de administrao, ou m-vontade de um estafeta, desviando do seu destino uma mensagem, no plano espiritual no se verificam semelhantes perturbaes. A solicitao justa ou injusta dos homens vem ter conosco pelos fios do pensamento, na divina claridade do magnetismo universal. E Domingos comeou a receber os pedidos mais imprudentes dos seus numerosos devotos.

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    A alma desventurada ficou absolutamente presa Terra e, de instante a instante, era obrigada a atender aos apelos mais extravagantes e mais absurdos. Se um criminoso desejava fugir ao da justia no mundo, valia-se de Domingos, invocando-lhe a memria, entre receios e rogativas. As mes desassisadas, que no cogitaram da educao dos filhos, em pequeninos, lhe rogavam de joelhos a correo tardia desses filhos transviados em maus caminhos. Os velhacos lhe faziam promessas, a fim de realizarem um bom negcio. As moas casadouras lhe imploravam a aliana do noivo rebelde e arredio. Os sacerdotes pediam-lhe a ateno dos superiores. E, finalmente, todos os sofredores sem conscincia lhe suplicavam o afastamento da cruz de provaes que lhes era indispensvel. Chumbado ao mundo, Domingos, durante mais de um sculo, perambulou pelas casas dos devotos, pelas estradas desertas, pelos crculos de negcios, pelos covis dos bandidos. Seu aspecto fazia pena. Foi quando, ento, dirigiu a Jesus a splica mais fervorosa de sua vida espiritual, implorando que lhe permitisse voltar Terra, a fim de esconder no esquecimento da carne as suas enormes desditas. Queria fugir do plano invisvel, detestava o ttulo de santo, aborrecia todas as homenagens, atormentava-o o altar do mundo. Suas lgrimas eram amargas e comovedoras, e o Senhor, como sempre, no lhe faltou com a bondade infinita. Assim como um grupo de amigos influentes procura colocao para o homem desempregado e aflito no mundo, alguns companheiros dedicados vieram oferecer ao pobre Esprito sofredor uma reencarnao como escravo, no Brasil. Domingos Gonzlez ficou radiante. Chorou de jbilo, de agradecimento a Jesus e, em breve tempo, tomava a vestimenta escura dos cativos, sentindo-se ditoso e confortado, cheio de alegria e reconhecimento. O nosso amigo fizera uma pausa na sua narrativa. Estvamos, porm, altamente interessados e eu perguntei: - E o santo est hoje nos planos mais elevados da Espiritualidade? Seria extremamente curiosa a palavra direta de sua desiluso e de sua experincia valiosa... - No, ainda no - replicou o narrador, com ar discreto. - Domingos tem vivido sucessivamente no Brasil e ainda hoje, continua, a, a. esforar-se pela sua redeno espiritual, guardando instintivamente o mais terrvel receio de chegar s esferas invisveis com o ttulo de santidade. Mas, as obrigaes comuns dispersaram o grupo em palestra e, dentro de pouco tempo, estava eu novamente s, com o meu trabalho e com a. minha meditao. E nesse dia, impressionado com a histria daquela amarga experincia, no pude retirar da imaginao aquele santo que trocara os incensos do altar pela atmosfera nauseante de uma senzala do cativeiro.

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    2 - O IRMO SEVERIANO Severiano Fagundes era dos melhores doutrinadores do Espiritismo numa das grandes capitais brasileiras. Sua palavra vibrante era muito admirada nas tribunas doutrinrias; sua presena, um estmulo aos companheiros. Temperamento expansivo, era portador de expresses alegres e vivas. timo organizador dos servios de intercmbio com o Invisvel, tinha especial aptido para convencer as entidades recalcitrantes, embora no as convencesse de todo, relativamente aos deveres espirituais. Sabia elucidar os mdiuns, formar as sesses prticas, transmitir verbalmente os ensinamentos recebidos. Surgiam obsidiados? L estava o Severiano combatendo os agentes da discrdia, esclarecendo - obsessores infelizes. Entretanto, o poderoso doutrinador, alm de profundamente arbitrrio em seus modos de agir, parecia comprazer-se em certas irregularidades da vida. Se algum companheiro se aproximava, prudentemente, e lhe falava dos perigos que semelhante situao poderia acarretar, Severiano dava de ombros e interrogava: - Ora, mas que tem isso? So futilidades da existncia humana. A verdade que nunca me viram faltar aos deveres para com a Doutrina. Compareo pontualmente s reunies, no me furto ao trabalho de esclarecimento dos irmos perturbados, nem me nego ao concurso fraternal nas atividades mais pesadas do nosso grupo. E a vida passava. O nosso amigo tinha os seus casos tristes, suas situaes escabrosas, mas continuava impvido no arrojo da pregao. No faltava s sesses, mas esquecia a famlia; doutrinava os Espritos mais cruis, entretanto, alegava no tolerar a esposa que Deus lhe havia confiado, porque no pudera compreender o Espiritismo sua maneira; preparava bem os mdiuns; contudo, no se interessava pelos filhos, como devia. E era um companheiro valente o Severiano. Sabia animar, corrigir, resolver problemas difceis, lanar incentivos eficazes. Os anos passaram sobre o quadro, de seus servios, o ardoroso doutrinador foi chamado esfera espiritual. Em virtude de seus conhecimentos, relativamente Doutrina, Severiano percebeu que no mais pertencia ao nmero dos adormecidos na carne. Estava plenamente convencido da transio fenomnica da morte do corpo. No entanto, como no plano invisvel cada criatura somente poder ver atravs da luz que acendeu na prpria alma, o grande propagandista dos princpios doutrinrios, com imensa surpresa, no encontrou os amigos espirituais com que contava, no obstante o esforo de todos em seu favor. Viu-se sem rumo, entre sombras

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    e paisagens confusas. Ao contrrio de suas iluses no perodo de atividades que lhe antecedera ao desprendimento do mundo, comeou a refletir mais seriamente na vida particular que a esponja do tempo havia absorvido. Revia, agora, os mnimos detalhes das ocorrncias pequeninas. Ter-se-ia portado bem nessa ou naquela circunstncia? A conscincia dizia-lhe que no, que ficaram muitas tarefas por fazer, em virtude da deficincia de seu esforo, sempre to pronto para ensinar aos outros. medida que se escoavam os dias, observava a multiplicao dos remorsos e dores ntimas. O pobre amigo no sabia como explicar o seu mal-estar, qual o motivo da paisagem escura que o cercava. Certo dia, Severiano chorou como criana, nas splicas que procurou elevar a Deus. Lembrou as reunies em que ensinara austeras disciplinas, via-se frente das entidades perturbadas que se comunicavam, e recordava as exortaes que lhes dirigia corajosamente. Severiano chorou. verdade que, como homem, havia errado muito, fugindo aos trabalhos prprios de sua vida; no entanto, devotara-se doutrina dos Espritos, espalhara consolaes e conselhos. Nesse instante, uma sincera compuno parecia arrebat-lo a lugar diferente. Viu-se numa paisagem mais leve, frente de uma entidade de semblante divino, que o contemplava carinhosamente. - Irmo querido - perguntou o ex-doutrinador, sensibilizado -, por que sofro tanto, em caminhos sem luz? - que acendeste muita claridade nos outros, mas esqueceste de ti mesmo - esclareceu a nobre entidade com amoroso sorriso. Severiano comeou a explicar-se: lamentou a sua situao, falou longamente, mas o mensageiro de Jesus interrogou com solicitude fraternal: - Irmo Severiano, serviste de fato ao Evangelho? - Sim - replicou o msero, hesitante -, disciplinei muitos Espritos perturbadores, fazendo-lhes sentir os deveres que lhes competiam. A generosa entidade tomou ento de um grande volume e afirmou com bondade: - Temos aqui o Evangelho, tal como o estudaste no mundo. Observemos o que nos diz a lio de Jesus, com respeito tua primeira alegao. E o livro abriu-se, automaticamente, impulsionado por energias luminosas, apresentando o versculo 4 do captulo 23, de Mateus: Pois atam fardos pesados e difceis de suportar e os pem aos ombros dos homens; eles, porm, nem com o dedo querem mov-los. Severiano Fagundes ficou muito plido. Recordou, instintivamente, tudo o que deixara de fazer no crculo de suas obrigaes justas. Como o generoso amigo espiritual o contemplava em silncio, sorrindo com amor, o pobre irmo, que lembrava as lutas da Terra, murmurou:

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    - Sei que no cuidei de mim, como deveria; entretanto, tive muita f. Essas palavras foram proferidas com enorme desapontamento. Mas o emissrio do Cristo voltou a dizer: - Vejamos, ento, o que nos diz o Evangelho, relativamente tua segunda alegao. E surgiu o vrsculo17 do captulo 2 da Epstola universal de Tiago, em caracteres - radiosos: Assim tambm a f, se no tiver as obras, morta em si mesma. Severiano baixou os olhos e comeou a chorar amargamente, pois s agora reconhecia que ensinara muito Evangelho aos outros, lendo o com leviandade; todavia, no aplicara o cdigo divino prpria vida. Nada mais disse ao mentor carinhoso e justo qu, abraando-o fraternalmente, murmurou com bondade infinita: - Irmo Severiano, levanta os olhos para o Mestre e anima-te! Voltars Terra para o servio redentor; mas, no te esqueas de que, como encarnado, sers tambm Esprito em doutrinao. preciso escutar o dever, a luta e o sofrimento. .. So mensageiros de Jesus os que ensinam o Evangelho na Terra. Precisamos ser canal de verdade para os outros; mas no s isso, porque indispensvel sejamos canais e reservatrios ao mesmo tempo, a fim de que, como discpulos de um Mestre to rico de sabedoria e amor, no venhamos a sucumbir pela misria prpria. A generosa entidade continuou a exaltar a beleza das obrigaes cumpridas e, cheio de lgrimas e esperanas novas, Severiano Fagundes comeou a preparar-se para recomear a lio na vida humana.

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    3 - A VIDNCIA ESQUECIDA Bencio Fernandes era assduo freqentador de um grupo espiritista, mas, nunca se furtara enorme contrariedade por no participar da viso direta, dos quadros movimentados da esfera invisvel. Desejava, ardentemente, os dons medinicos mais avanados. Fazia inmeros exerccios para obt-los. Iniciavam-se os trabalhos habituais e l estava o nosso amigo em profunda concentrao, ansioso por surpreender as vises reveladoras. Tudo, porm, em torno do seu mundo sensorial, era expectao e silncio. Terminada a reunio, ouvia, velando a prpria mgoa, certas descries de alguns companheiros. Este observara a presena de Espritos amigos, aquele contemplara maravilhoso quadro simblico. Falava-se de mensagens, de painis, de luzes entre vistas. Dentre os visitantes comuns, de passagem pelo grupo, surgiam preciosos casos de fatos vividos. Havia sempre algum a comentar um acontecimento inesquecvel, de sabor doutrinrio, ocorrido no seio da famlia. Bencio no conseguia disfarar a inveja e o desgosto e despedia-se, quase bruscamente, nervoso, fisionomia estranha e taciturna, para entregar-se em casa a pensamentos angustiosos. Por que razo no conseguia perceber as manifestaes do plano espiritual? Seria justo acompanhar o esforo dos companheiros, quando, a seu ver, se sentia desatendido em suas necessidades? A coisa ia assumindo carter de terrvel obsesso. Nosso amigo no mais ocultava o mal-estar ntimo. Se algum, depois de uma prece, o interrogava sobre as observaes prprias, esclarecia em tom desabrido: Nada vi, nada sinto. Acredito que sou uma pedra! Aquelas atitudes revelavam profunda desesperao aos companheiros preocupados. A situao agravava se cada vez mais, quando, uma noite, Bencio sonhou que aportava ao mundo espiritual, convocado por um amigo desejoso de receber suas notcias diretas. Na paisagem de intraduzvel beleza, o desvelado mentor abraou-o e cogitou das suas amarguras. O pobre homem estava deslumbrado com o que via, sem encontrar meio de expressar a sensao de gozo que lhe ia na alma; toda via, respondeu - sem hesitao: - Meu grande benfeitor, no me posso queixar da minhas lutas terrenas, mas no devo ocultar minha grande_ mgoa. A respeitvel entidade fez um gesto interrogativo, enquanto Bencio continuava: -Desgraadamente, para mim, embora participe dos esforos de uma nobre agremiao de estudos evanglicos, nunca vi os Espritos!. . . -Mas no ests com a luta temporria da cegueira! Objetou o amigo venerando, afavelmente. - Esqueces, acaso, que teu plano de trabalho est ,igualmente povoado de

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    Espritos em diversos graus da ascenso evolutiva?!Crs, porventura, que, os habitantes da Terra sejam personalidades, estranhas comunidade universal? Bencio Fernandes experimentou imenso choque. Aquela interpretao inesperada lhe desnorteava os pensamentos. Como desejasse retificar o engano de suas cogitaes, acentuou com algum desapontamento: - Sinto nsia ardente de contemplar os Espritos protetores, beijar-lhes as mos todos os dias, manifestando-lhes meu reconhecimento. - Esqueceste tua velha mezinha? - perguntou o mentor solcito. - H quanto tempo no te recordas de orar com ela, osculando-lhe as mos carinhosas? Acreditas, talvez, que os cabelos brancos dispensam os carinhos? E teu tio; esgotado nos trabalhos mais grosseiros do mundo, por ajudar tua me, na viuvez? Olvidaste, Bencio, esses Espritos protetores de tua vida? O discpulo da Terra experimentou frio cortante na alma; no entanto, prosseguiu: - Compreendo... Mas no me posso furtar ao desejo de entrar em contacto com as nobres entidades que dirigem ali tarefas e conhecer-lhes os superiores desgnios. - No recordas teu chefe de trabalho dirio? - interrogou o benfeitor venervel. - Ele um bom Esprito dirigente. Supes que a tua oficina e a sua administrao estivessem no mundo, a esmo? No desdenhes a possibilidade de integrares elevados programas de ao do teu diretor de trabalhos terrestres. Auxilia-o com a boa-vontade sincera. Antes de examinar-lhe as decises com pruridos de crtica, -procura algum meio de contribuir com o teu esforo, honrando-lhe os propsitos. E como o interlocutor estivesse, agora, profundamente emocionado, o amoroso mensageiro continuou: - Olvidaste os diretores da instituio doutrinria onde buscas benefcios? Aqueles irmos muitas vezes so caluniados e incompreendidos. Considera-lhes os sacrifcios. Quase sempre sofrem os ataques da malcia humana e necessitam de companheiros abnegados para a obra generosa de suas fundaes fraternais. justo que no sejas apenas mero scio contribuinte de despesas, materiais, e sim participante ativo do trabalho evanglico, isto , sincero scio de Jesus-Cristo. O aprendiz da Terra sentia-se extremamente envergonhado. Suas idias modificavam-se em ritmo vertiginoso. Entretanto, na sua feio de homem do mundo, pouco inclinado a ceder das prprias opinies, redargiu em tom 'de mgoa: - Sim, meu bondoso amigo, reconheo a justia e a grandeza das vossas observaes; entretanto, nas minhas atividades terrenas, queria ver, pelo menos, algum Esprito sofredor, alguma entidade necessitada, ou ignorante. . . Valendo-se da pausa que se fizera espontnea com os derradeiros argumentos, o carinhoso emissrio voltou a dizer:

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    - Almas desalentadas, entre feridas e angstias? Seres necessitados de assistncia e de luz? No te lembras mais dos filhinhos que o Cu te concedeu? Penetras cegamente os portais da tua instituio, a ponto de no veres os enfermos e derrotados da sorte que ali procuram o socorro do Evangelho de Jesus-Cristo? Nunca viste os que se aproximam da fonte das bnos, tomados de intenes mesquinhas e criminosas, terrveis obsessores dos operrios fiis? Bencio estava agora exttico, demonstrando haver afinal compreendido. - Andas assim to esquecido da vidncia preciosa que Deus te confiou? - prosseguia o mentor espiritual, solicitamente. - Se ainda no pudeste contemplar os Espritos benfeitores, ou malfeitores, que te rodeiam na Terra, como queres conhecer e classificar as potncias do Cu? Volta para casa e procura ver!... Nesse instante, Bencio sentiu-se perturbado pela exploso de um rudo imenso. Era o relgio que o despertava. Acordou, esfregou os olhos e preparou-se para tomar o trem suburbano, dentro de alguns minutos. Nessa manh, Bencio Fernandes levantou-se, tomou o caf, abraou mais afetuosamente a esposa e os filhinhos. Cada coisa da sua modesta habitao apresentava, agora, aos seus olhos, uma expresso diferente e mais preciosa. Antes de sair foi beijar as mos de sua me paraltica, o que h muito no fazia; perguntou pelo velho tio que sara mais cedo, e, engolfado em grandiosos pensamentos, dirigiu-se para o trabalho, meditando na Providncia Divina que lhe havia permitido receber uma lio para o resto da vida.

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    4 - ESPRITOS PROTETORES Jehul, elevada entidade de uma das mais belas regies da vida espiritual, foi chamado pelo caricioso apelo de um nobre mensageiro da Verdade e do Bem, que lhe falou nestes termos: - Uma das almas a que te vens devotando particularmente, de h muitos sculos, vai agora ressurgir nas tarefas da reencarnao sobre a Terra. Seus destinos foram agravados de muito em virtude das quedas a que se condenou pela ausncia de qualquer vigilncia, mas o Senhor da Vida concedeu-lhe nova oportunidade de resgate e elevao. Jehul sorriu e exclamou, denunciando sublimes esperanas: - Laio? - Sim - replicou o generoso mentor -, ele mesmo, que noutras eras te foi to amado na Etrria. Atendendo s tuas rogativas, permite Jesus que lhe sejas o guardio desvelado, atravs de seus futuros caminhos. Ouve, Jehul ! - sers seu companheiro constante e invisvel, poders inspirar-lhe pensamentos retificadores, cooperar em suas realizaes proveitosas, auxiliando-o em nome de Deus; mas, no esqueas que tua tarefa de guardar e proteger, nunca de arrebatar o corao do teu tutelado das experincias prprias, dentro do livre-arbtrio espiritual, a fim de que construa suas estradas para o Altssimo com as prprias mos. Jehul agradeceu a ddiva, derramando lgrimas de reconhecimento. Com que enlevo pensou nas possibilidades de conchegar ao seio aquele ser amado que, havia tanto tempo, se lhe perdera do caminho!... Laio lhe fora filho idolatrado na paisagem longnqua. certo que no lhe compreendera a afeio, na recuada experincia. Desviara-se das sendas retas, quando ele mais esperava de sua mocidade e inteligncia; seu corao carinhoso, porm, preferira ver no fato um incidente que o tempo se encarregaria de eliminar. Agora, tom-lo-ia de novo nos braos fortes e o reconduziria Casa de Deus. Suportaria, corajosamente, por ele, a pesada atmosfera dos fluidos materiais. Toleraria, de bom grado, os contrastes da Terra. Todos os sofrimentos eventuais seriam poucos, pois acabava de alcanar a oportunidade de erguer, dentre as dores humanas, um irmo muito amado, que fora se\! filho inesquecvel. O generoso amigo espiritual atravessou as paisagens maravilhosas que o separavam do ambiente terrestre. Ficaram para trs de seus passos os jardins suspensos, repletos de flores e de luz. As melodias das regies venturosas distanciavam-se-lhe dos ouvidos. Esperanoso, desassombrado, o solcito emissrio penetrou a atmosfera terrestre e achou-se diante de um leito confortvel, onde se identificava um recm-nascido pelo seu brando choramingar. Os Espritos amigos, encarregados de velar pela transio daquele nascimento, entregaram-lhe o pequenino, que Jehul beijou, tomado de profunda emoo, apertando-o de encontro ao peito afetuoso.

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    E era de observar-se, da em diante, o devotamento com que o guardio se empenhou na tarefa de amparar a dbil criana. Sustentou, de instante a instante, o esprito maternal, solucionando, de maneira indireta, difceis problemas orgnicos, para que no faltassem os recursos da paz aos primeiros tempos do inocentinho humano. E Jehul ensinou-lhe a soletrar as primeiras palavras, reajustando-lhe as possibilidades de usar novamente a linguagem terrestre. Velou-lhe os sonos, colocou-o a salvo das vibraes perniciosas do invisvel, guiou-lhe os primeiros movimentos dos ps. O generoso protetor nada esqueceu, e foi com lgrimas de emoo que inspirou ao corao materno as necessidades da prece para a idolatrada criancinha. Depois das mos postas para pronunciar o nome de Beus, o amigo desvelado acompanhou-a a escola, a fim de restituir-lhe, sob as bnos do Cristo, a luz do raciocnio. Jehul no cabia em si de contentamento e esperana, quando Laio se abeirou da mocidade. Ento, a perspectiva dos sentimentos transformou-se. De alma aflita, observou que o tutelado regressava aos, mesmos erros de outros tempos, na, recapitulao das experincias necessrias. Subtraa-se, agora, vigilncia afetuosa dos pais, inventava pretextos desconcertantes e, por mais que ouvisse as advertncias preciosas e doces do mentor espiritual, no santurio da conscincia, entregava-se, vencido, aos conselheiros de rua, caindo miseravelmente nas estaes do vcio. Se Jehul lhe apontava o trabalho como recurso de elevao, Laio queria facilidades criminosas; se alvitrava providncias da virtude, o fraco rapaz desejava dinheiro com que se desvencilhasse dos esforos indispensveis e justos. Entre sacrifcios e dores speras, o prestimoso guardio viu-o gastar, em prazeres condenveis, todas as economias do suor paternal, assistindo aos derradeiros instantes de sua me, que partia, da Terra, ferida pela ingratido filial. Laio relegara todos os deveres santos ao abandono, entregando-se ociosidade destruidora. No obstante os cuidados do mentor carinhoso, procurou o lcool, o jogo e a sfilis, que lhe sitiaram ,a existncia consagrada por ele ao desperdcio. O dedicado amigo, entretanto, no desanimava. Aps o esgotamento dos recursos paternos, Jehul cooperou junto de companheiros prestigiosos, para que o tutelado alcanasse trabalho. Embora contrafeito e subtraindo-se, quanto possvel, ao cumprimento das obrigaes, Laio tornou-se auxiliar de urna empresa honesta, que, s ocultas, era objeto de suas crticas escarnecedoras. Quem se habitua ociosidade criminosa costuma caluniar os bens do esprito de servio. De nada valiam os conselhos do guardio, que lhe falava, solcito, nos quais profundos recessos do ser. Da a pouco tempo, menos por amor que por necessidade, Laio buscou uma companheira. Casou-se. Mas, no desregramento que se entregava de muito tempo, no encontrou matrimnio seno sensaes efmeras que terminavam em poucas semanas, como a potencialidade de um fsforo que se apaga em alguns segundos. Jehul, no entanto, alimentou a esperana de que talvez a unio conjugal lhe proporcionasse oportunidade para ser convenientemente ou no. Isso, todavia, no aconteceu. O tutelado no sabia tratar a esposa seno entre desconfianas e atitudes violentas. Sua casa era uma seo do mundo inferior a que havia confiado seus ideais.

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    Recebendo trs filhinhos para o jardim do lar, muito cedo lhes inoculava no corao as sementes do vcio, segregando-os num egosmo cruel. Quando viu o infeliz envenenando outras almas que chegavam pela bondade infinita de Deus para a santa oportunidade de servios novos, Jehul sentiu-se desolado e, reconhecendo que no poderia prosseguir sozinho naquela tarefa, solicitou o socorro dos Anjos das Necessidades. Esses mensageiros de educao espiritual lhe atenderam atenciosamente aos rogos, comeando por alijar o tutelado do emprego em que obtinha o po cotidiano. Entretanto, em lugar de melhorar-se com a experincia buscando meditar como convinha, Laio internou-se por uma rede de mentiras, fazendo-se de vtima para recorrer s leis humanas e ferir as mos de antigos benfeitores. Acusou pessoas inocentes, exigiu indenizaes descabidas, tornou-se odioso aos amigos de outros tempos. Jehul foi ento mais longe, pedindo providncias aos Anjos que se incumbem do Servio das Molstias teis, os quais o auxiliaram de pronto, conduzindo Laio ao aposento da enfermidade reparadora, a fim de que o msero pudesse refletir na indigncia da condio humana e na generosa paternidade do Altssimo; aquele homem rebelde, contudo, pareceu piorar cem por cento. Tornou-se irascvel e insolente, abominava o nome de Deus, sujava a boca com inmeras blasfmias. Foram necessrios verdadeiros prodgios de pacincia para que Jehul lhe lavasse do crebro esfogueado e caprichoso os propsitos de suicdio. Foi a que, desalentado quanto aos recursos postos em prtica, o bondoso guardio implorou os bons ofcios dos Anjos que se encarregam dos Trabalhos da Velhice Prematura. Os novos emissrios rodearam Laio com ateno, amoleceram-lhe. as clulas orgnicas, subtraram-lhe do rosto a expresso de firmeza e resistncia, alvejaram-lhe os cabelos e enrugaram-lhe o semblante. No entanto, o infeliz no cedeu. Preferia ser criana ridcula nas aparncias de um velho, a entrar em acordo com o programa da Sabedoria Divina, a favor de si mesmo. Enquanto blasfemava, seu amigo orava e desdobrava esforos incessantes; enquanto praticava loucuras, o guardio duplicava sacrifcios e esperanas. O tempo passava clere, mas, um dia, o Anjo da Morte veio espontaneamente ao grande duelo e falou com doura: - Jehul, chegou a ocasio da tua retirada!. . . O generoso mentor abafou as lgrimas de angustiosa surpresa. Fixou o mensageiro com olhos doridos e splices; o outro, no entanto, continuou: - No intercedas por mais tempo! Laio agora me pertence. Conduzi-lo-ei aos meus domnios, mas podes rogar a Deus que o teu tutelado recomece, mais tarde, outra vez... Terminara a grande partida. A Morte decidira no feito, pelos seus poderes transformadores, enquanto o guardio recolhia, entre lgrimas, o tesouro de suas esperanas imortais. . E, grafando esta histria, lembro-me que quase todos os Espritos encarnados tm algum trao do Laio, ao passo que todos os Espritos protetores tm consigo os desvelos e os sacrifcios de Jehul.

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    5 - O NATAL DIFERENTE Muito raro observar-se temperamento to apaixonado, quanto o de Emiliano Jardim. No fundo, criatura generosa e sincera, mas as noes materialistas estragavam-lhe os pensamentos. Debalde cooperavam os amigos em renovar-lhe as idias. O rapaz reportava-se a umas tantas teorias de negao, e a molstia espiritual prosseguia do mesmo jeito. O casamento, realizado entre pompas familiares, em nada melhorara a situao; quando, porm, Emiliano experimentou a primeira dor da paternidade, ao ver o filho arrebatado pela morte, esse golpe profundo lhe abalou o esprito personalista. Justamente por essa poca, generoso padre meteu-lhe nas mos um livro de consolao religiosa, guisa de socorro. Em semelhante fase do caminho, o contacto com os ensinamentos de Jesus lhe encheu a alma de serena doura. Estava deslumbrado. Como no compreendera antes a beleza da f? Fez-se catlico, sob aplausos gerais. Os afeioados se entreolhavam satisfeitos. Emiliano, contudo, embora seduzido pelas verdades luminosas do Mestre, trazia a sua lio atravs da vida, como lhe acontecera ao tempo dos antigos postulados negativistas. Acreditando servir ao ideal divino do Evangelho, terava armas cruis contra todos os que entendiam Jesus por prismas diferentes. Acusava os protestantes, malsinava os espritas. Os anos, porm, correram na sabedoria silenciosa do tempo. Ralado pelas desiluses de todo homem que procura a felicidade longe da redeno de si mesmo, o nosso amigo, certo dia, passou-se de armas e bagagens para o Protestantismo. Entretanto, por mais que se esforassem os companheiros, Emiliano no conseguia realizar a viso interna do Cristo, como Divino Amigo de cada instante, atravs de seus imperecveis ensinamentos. Tornou-se anticlerical violento e rude. Esquecera todos os bens que a Igreja Catlica lhe proporcionara, para recordar apenas suas deficincias, visveis na imperfeio da criatura. Alguns amigos menos vigilantes o felicitavam pelo desassombro; todavia, os mais experimentados reconheciam que o novo crente mudara a expresso religiosa exterior, mas no entregara o corao ao Cristo. Depois de longa luta, Emiliano sente-se insatisfeito e ingressa nos arraiais espiritistas. Emiliano, qual sucede maioria dos crentes, admite a verdade, mas no dispensa os benefcios imediatos; dedica-se a Jesus, anseia por v-lo nos outros homens, antes de senti-Lo em si prprio. Sua atividade geral transtorna-se. Enfrenta de armas na mo todos os companheiros antigos: Supe que deve levar a defesa da nova doutrina ao extremo. A

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    bondade dos guias espirituais, que se comunicam nas reunies, ele a toma por elogio s suas atitudes. Como, porm, a justia esclarecida sempre um credor generoso, que somente reclama pagamento depois de observar o devedor em condies de resgatar os antigos dbitos, Emiliano, na posse de numerosos conhecimentos e bafejado de tantas exortaes divinas, penetrou no caminho do resgate das velhas dvidas. Tempos difceis surgiram-lhe no horizonte individual. Enquanto se esforava para remover alguns obstculos, outras montanhas de dificuldade apareciam, inesperadamente. A molstia,a escassez de recursos e a ironia dos ingratos visitaram-lhe a casa honesta. A princpio resignado e forte, acabou desesperando-se. Dizia-se abandonado pelos amigos espirituais e acusava os mdiuns, cheios de obrigaes sagradas, to-s porque no podiam permanecer em longas concentraes, para soluo dos seus casos pessoais. Sentia-se perseguido por maus Espritos, e, na sua inconformao, magoava companheiros respeitveis. A dor, todavia, no interrompeu sua funo purificadora. Depois de penosa enfermidade, sua velha genitora partiu para a vida espiritual em condies amargas. No passou muito tempo e a esposa, perturbada nas faculdades mentais durante trs anos, seguia o mesmo caminho. Em seguida, os dois filhos que criara, com excessos de carinho, se voltaram contra o corao paternal, com injustas acusaes. Ao ensejo da calnia, os ltimos companheiros fugiram. O nosso amigo, outrora to discutidor e to violento, experimentou desnimo invencvel. Nunca mais foi visto em rodas doutrinrias, nas tertlias da inteligncia; comumente era encontrado, como vagabundo vulgar, escondendo lgrimas furtivas. Numa radiosa vspera de Natal, em que o ambiente festivo lhe falava da ventura destruda ao corao, Emiliano chorou mais que de costume e resolveu pr termo existncia. noite, encaminhou-se para a praia, alimentando o sinistro desgnio. Antes, porm, de consumar o erro extremo, pensou naquele Jesus que restitura a vista aos cegos, que curara os leprosos, que amara os pobres e os desvalidos. Tais lembranas lhe nevoaram os olhos de pranto doloroso, modificando-lhe as disposies mais ntimas. Foi a, nessa hora amargurada em que o msero se dispunha a agravar as prprias angstias, que uma voz suave se fez ouvir no recndito de seu esprito: - Emiliano, h quanto tempo eu buscava encontrar-te; mas sempre me chamavas atravs dos outros, sem jamais procurar-me em ti mesmo! D-me a tua dor, reclina a cabea cansada sobre o meu corao!... Muitas vezes, o meu poder opera na fraqueza humana. Raramente meus discpulos gozam o encontro divino, fora das cmaras do sofrimento. Quase sempre necessrio que percam tudo a fim de me acharem em si mesmos. Tenho um santurio em cada corao da Terra; mas o homem enche esse templo divino de detritos, ou levanta muralhas de incompreenso entre o seu trabalho e a minha influncia... Nessas circunstncias, em vo me procuram. . . Emiliano estava inebriado. No ouvia propriamente uma voz idntica do mundo, mas experimentava o corao tomado por poderosa vibrao, sentindo que as palavras lhe chegavam ao ntimo como aragem celestial.

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    Volta ao esforo dirio e no esqueas que estarei com os meus discpulos sinceros at ao fim dos sculos! Acaso poderias admitir que permaneo em beatitude inerte, quando meu amigos se dilaceram pela vitria de minha causa? No posso estacionar em vs disputas, nem nas estreis lamentaes, porque necessitamos cuidar do amoroso esclarecimento das almas. por isso que estou, mais freqentemente, onde estejam os coraes quebrantados e os que j tenham 'compreendido a grandeza do esprito de servio. No te rebeles contra o sofrimento que purifica, aprende a deixar os bonecos a quantos ainda no puderam atravessar as fronteiras da infncia. No analises nunca, sem amar. Lembra-te de que, quando criticares teu irmo, tambm e sou criticado. Ainda no terminei minha obra terrestre, Emiliano! Ajuda-me, compreendendo a grandeza do seu objetivo e entendendo a fragilidade dos teus irmos. D o bem pelo mal, perdoa sempre! Volta ao teu esforo! Em qualquer posto de trabalho honesto poders ouvir minha voz, desde que me procures no corao!... Emiliano Jardim sentiu que as lgrimas agora eram de jbilo e reconhecimento. Em breves instantes, experimentava radical transformao. sua frente via a imensidade do cu e a imensidade do oceano, sentindo-se como num mundo em que o Cristo houvera nascido. Recordou que no tinha seno escrias de misria para ofertar a Jesus, e que seus sentimentos rudes simbolizavam aqueles animais que foram as primeiras visitas da manjedoura singela. Deslumbrado, endereou um pensamento de paz a todos os companheiros do pretrito e comeou a compreender que cada um permanecia em sua posio de trabalho, na tarefa que o Senhor lhe designara. Poderosa vibrao de amor ligava-o Criao inteira. No se torturava em raciocnios. Compreendia e chorava de jbilo. Levantou-se, enxugou as lgrimas e retomou o caminho da cidade barulhenta. O nosso amigo conhecia de longos anos o Salvador, mas s agora encontrara o Mestre. Emiliano Jardim regressou, renovado, ao labor do Evangelho, depois do Natal diferente.

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    6 - O DRAMA DE ANDR Falava-se, entre ns, dos problemas da educao com liberdade irrestrita, quando um dedicado servo do Evangelho observou com justia : Crianas sem disciplina e jovens sem orientao sadia constituem o grmen dos imensos desastres humanos. A Civilizao e o Estado podem apresentar os seus prejuzos, visto serem organizaes perfectveis nas mos de homens imperfeitos ; contudo, sem a sua influncia, reverteriam animalidade anterior. Assim ocorre, quanto ao lar e educao domstica. A famlia tem o seu quadro de lutas speras; entretanto, se lhe retirarmos o aparelhamento, tudo voltar s tribos sanguinrias doa tempos primitivos. Todavia, h quem coloque esse problema em plano secundrio retrucou um amigo , a educao com os instintos emancipados tem os seus adeptos fervorosos, mesmo nos crculos do Espiritismo... Menos na esfera do Espiritismo cristo atalhou o mentor respeitvel ; nas atividades meramente fenomnicas, sem qualquer propsito religioso, encontram-se companheiros obcecados por essa iluso. Empolgados pela luz e pela liberalidade da doutrina consoladora, sem aderirem aos sentimentos de Jesus, costumam andar embriagados nos enganos brilhantes. No percebem os perigos amargos que lhes sitiam a vida. Desinteressam-se da educao dos filhos mais tenros, com grave dano para o futuro do grupo familiar. No entanto, bastariam ligeiras consideraes para o reconhecimento do erro clamoroso. Por que confiaria Deus determinados filhos a essas ou quelas organizaes paternas, se no fosse necessria semelhante cooperao no mecanismo da iluminao ou do resgate? O Eterno proporciona o doce licor do esquecimento s almas culpadas ou oprimidas, e mandou que se criassem os perodos da infncia e da juventude, na Terra, a fim de que os senhores do Lar se valham do ensejo para a divina semeadura da bondade e do amor, visando ao trabalho da conscincia retilnea do porvir. Para que serviriam, de outro modo, os pais humanos, se abdicassem a posio de sentinelas, entregando os filhos s tendncias inferiores de ontem? No seria condenar o instituto domstico a um reduto de prazer vicioso?! Tais interrogaes ficavam no ar. Ningum se atrevia a intervir no assunto, quando o nosso amigo tecia comentrios to fascinantes. Observando as nossas disposies mais ntimas, o generoso instrutor continuou : Aludindo cegueira de alguns dos nossos irmos do mundo, tenho um caso doloroso em minhas relaes pessoais. A pequena assemblia colocou-se escuta, evidenciando justificado interesse. No fim do sculo passado prosseguiu o devotado servo do Cristo , quando os ideais espiritistas se alastravam no pas, em modesto vilarejo do norte, um negociante honesto foi dos primeiros a demonstrar simpatia pelos princpios novos. Andr fora rubro seguidor do

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    Positivismo, e, ainda sob a sua influenciao, penetrou os umbrais da Doutrina, intoxicado por fortes iluses no terreno da Filosofia transcendente. Bom discutidor, comentava sempre a vasta situao do mundo, tecendo referncias encomisticas virtude, fraternidade e liberdade. Sua inteligncia no era um diamante lapidado nos bancos acadmicos ; entretanto, apresentava, em suas caractersticas, a espontaneidade e a sutileza que assinalam o caboclo brasileiro. No era rico, mas sua casa era farta e feliz. As remuneraes eventuais do comrcio ofereciam-lhe vantagens suficientes. Dois pequeninos enriqueciam-lhe o lar; no entanto, por mais que a esposa insistisse, a fim de que tivessem as necessidades espirituais atendidas, quanto ao problema religioso, Andr zombava, murmurando : Nada disso! meus filhos ho de crescer sem tais prejuzos. Quero v-los distante dos preconceitos dogmticos de todos os tempos. Problemas religiosos cheiram a catecismo. Acaso ignoras que esses enganos j foram relegados aos clrigos caducos? Sim explicava a companheira sem irritao , compreendo teus escrpulos, no sentido de preservar os meninos da explorao e do abuso do nome de Deus ; todavia, no podemos eliminar as necessidades justas da alma. J que no permitiremos a influncia dos padres junto dos nossos filhinhos, precisamos criar um ambiente de ensino domstico, onde aprendam conosco a cultivar o respeito e a obedincia ao Altssimo. Andr exibia um risinho vaidoso e asseverava: Esquece as velharias, mulher! A razo resolver isso. A mentalidade de agora reclama independncia. Nossos filhos no sero escravos das disciplinas impiedosas que nos torturaram a infncia. Mas voltava a esposa, sensatamente se Deus nos transformou em pais, neste mundo, para que sejamos orientadores dedicados de nossos filhos. Quando no vigiamos, Andr, a liberdade pode transformar-se em libertinagem. O marido parecia impressionar-se, momentaneamente, com as respostas; contudo, dava de ombros, sem maior considerao. E o tempo foi passando. Na obedincia ao regime paterno, os rapazelhos cresceram voluntariosos e rudes. Somente abandonaram o curso primrio aps os quinze anos, em razo da ociosidade e indisciplina. Empenhavam-se, comumente, em atritos speros, dos quais apenas se afastavam, em sangue, depois de longas splicas maternais. Odiavam os livros srios, mas estavam sempre atentos s anedotas deprimentes. Por essa poca o genitor comeou a entender as dificuldades da situao, lamentando a leviandade de outros tempos, quando descurara a educao religiosa e moral dos filhos que Deus lhe havia confiado. Era, porem, muito tarde. Lo e Oscar, os dois rapazes, guardavam uma observao revoltante para cada conselho paternal. O nosso amigo tentou a internao dos jovens rebeldes em estabelecimento disciplinar, mas foi em vo. Procurou localiz-los em servio honesto; entretanto, ambos eram admitidos para serem dispensados quase imediatamente. Ningum lhes tolerava os costumes e as palavras torpes.

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    Certa vez, quando o comerciante chegava ao lar, em noite sombria, percebeu acalorada discusso no interior domstico. Mais alguns passos e defrontou a cena humilhante. Em atitude ingrata, os filhos espancavam a prpria me. Na sua indignao, Andr buscou expuls-los, mas a esposa interveio com a ternura de sempre. Decorridos alguns meses, ambos os rapazes foram apanhados em flagrante de furto. Aps a priso vexa-tria, o genitor no conseguiu sofrear a revolta que lhe atormentava o corao e, no obstante as rogativas reiteradas da companheira, baniu os filhos do ninho familiar. Alma esfacelada por desiluses to amargas, providenciou a mudana de um Estado para outro. Vendeu a pequena propriedade comercial, as terras, os rebanhos e partiu. Entretanto, os cnjuges, apesar da unio afetiva, em afinidades profundas, embora a modificao da paisagem, nunca mais se avistaram com a tranquilidade primitiva. Ensaiavam o regresso ventura de outros tempos, mas debalde. A lembrana dos filhos ingratos apresentava-se com as imposies da velhice, multiplicando, porm, as preocupaes e as saudades. Numa noite tempestuosa, Andr despertou s primeiras horas da madrugada, ouvindo forte rudo no corredor. Tomando da arma de fogo, levantou-se cautelosamente. Encaminhou-se ao cofre de madeira localizado em aposento contguo, notando-o arrombado. Era um ladro o visitante imprevisto. Como sombra no seio das sombras, Andr acompanha os passos do malfeitor e, antes que pudesse escapar, prostra-o com um tiro, quase queima-roupa. Ergueu-se a esposa, assustada. Acendem a luz. E quando o comerciante, muito trmulo, aproxima a lanterna do rosto da vtima que se esvaia em sangue, cruzam ambos o olhar. Meu pai!... meu pai!... grita, em tom rouco, o malfeitor moribundo. Meu filho!... exclamam, a um s tempo, marido e mulher, entre lgrimas de desesperao. Era Oscar que, ignorando o novo stio da habitao paterna, atacara a residncia, nos seus velhos hbitos de pilhagem. O narrador fez uma pausa mais longa, reconhecendo o efeito de suas palavras no nimo geral e continuou : fcil imaginar a tragdia que se seguiu. O casal no teve coragem de revelar Polcia a verdadeira condio da vtima, entregando-se Andr ao judicial, quase imbecilizado na sua dor. Sua causa, porm, era simptica. A energia de que dera testemunho livrara o vilarejo de um bandido comum. Enquanto o povo o aplaudia, o negociante chorava, angustiado. E, antes de regressar do crcere, aconteceu o que seria de esperar. A pobre me, ralada pelo infortnio extremo, entregou a alma a Deus, assistida pelas dedicaes da vizinhana. O nosso amigo estava, agora, sem ningum.

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    Quanto maiores eram as esperanas de liberdade em futuro prximo, mais lastimava a prpria dor. Por fim saiu da cadeia pblica, ovacionado pela simpatia popular como heri. Andr, no entanto, permanecia inerte, derrotado. Vendeu quanto possua, a fim de pagar as custas da Justia que o absolvera e tornou a partir, sem destino. Velho, cansado, sozinho, no se sentiu bastante forte para recomear a luta. Noites ao relento, dias de fome, roupa em frangalhos e l se ia, de aldeia em aldeia, vivendo da caridade comum. Parecia idiota, incapaz de qualquer reao. O tempo incumbiu-se de completar-lhe a feio de mendigo. Larga bolsa de couro cintura, rosto hirsuto, grosseiro cajado para os caminhos speros, prosseguia, sem pousada certa, recorrendo generosidade popular. Os anos rolavam para o seu corao, em amargoso silncio, quando, num crepsculo de borrasca forte, o msero velhinho se aproximou de um rio transbordante. O desventurado necessitava ganhar a outra margem, tentando o abrigo na localidade mais prxima. Um homem corpulento, de traos rudes, convida-o com um gesto mudo a tomar a canoa frgil. O pedinte aceita. O barqueiro desconhecido no cessa de fixar a bolsa, onde Andr recolhe os vintena da piedade pblica. Enquanto isso, o desventurado ancio pousa os olhos nevoados pela velhice no seu benfeitor, que remava em silncio. A ternura paterna volve a pintar-se no semblante sulcado de rugas. Se Lo ainda existisse, devia parecer-se com aquele homem. Olvidando todas as preocupaes para recordar o filho, o desventurado no percebe os movimentos sutis do barqueiro annimo. Distante da margem, o remador lana um ltimo olhar aos matagais vizinhos, amortalhados na sombra do crepsculo e, sentindo-se sem testemunhas, avana para o mendigo miservel, arrebata-lhe a bolsa e atira-lhe o corpo na corrente tranqila, murmurando com ironia : As guas no falam!... Vamos, velho imundo, uma bolsa no te pode salvar a vida! Andr compreendeu, afinal : aquela voz era do filho desaparecido. No hesitou. O sentimento de paternidade no o havia enganado. Lo!... Lo! meu filho!... gritou angustiado. Entretanto, era tarde. Ambos trocaram o supremo olhar, com estranha sensao de sofrimento e pavor, mergulhando o velhinho para sempre. Como vem concluiu o narrador emocionado , Andr foi indiferente educao moral dos filhos, esquecendo-se de efetuar a semeadura da infncia, a fim de construir-lhes o carter na juventude. A experincia resultou-lhe em frutos bem amargos. Depois de eliminar, involuntariamente, um deles, acabou assassinado pelo outro. Compreenderam, agora, o que significa educao com liberdade irrestrita? A reduzida assemblia permanecia sob penosa comoo e ningum ousou responder.

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    7 - O TRANSPORTE REVELADOR Jovelino Soares, na sua vida calma de interior, desde algum tempo andava todo entregue s primeiras experincias medinicas. No desprezava a pequena oficina de mecnica, onde, com a colaborao de alguns auxiliares, era, mais ou menos, o patro de si mesmo. Entretanto, no se furtava s prosas longas com os amigos. Raro o cliente que, em trazendo mquinas a conserto, no lhe ouvisse extensas narrativas de casos pessoais. Andava impressionado, sobretudo, com os fenmenos de desdobramento. Colecionava aprecivel bagagem literria, nesse ramo dos conhecimentos espiritualistas, e lamentava que as suas faculdades incipientes lhe no proporcionassem os grandes vos. No entanto, dia e noite, procurava efetuar o tentmen. s vezes, enquanto os empregados iam e vinham, cata de chaves ou parafusos, l estava o Jovelino em concentraes reiteradas, no aposento ntimo. Queria, a qualquer preo, realizar os transportes de grande envergadura. noite, esquivava-se ao servio humilde do bem, porque no se contentava em confortar um doente, aplicando-lhe fluidos curadores ou reconfortantes, nem se conformava com o exame dos ensinamentos morais que as reunies evanglicas ofereciam. Dava preferncia a tentativas mais vastas. No se haviam verificado importantes desdobramentos com sensitivos diversos? Os livros cientficos estavam repletos de relatrios, nesse particular. Seus estudos e investigaes prolongavam-se noite a dentro. Por vezes, a esposa dedicada chamava-o a melhores raciocnios. Jovelino, no ser mais razovel que te consagres ao trabalho profissional com assiduidade e devotamento?! Chego a afligir-me por tua sade. Creio que muito justa a tua aspirao de maiores edificaes espirituais; contudo, suponho que deves metodizar os teus esforos nesse plano, sem descurar os deveres que condizem com a paz de nosso lar. O marido, com expresso quase rude nos olhos frios, murmurava com tdio: Ora essa! que falta nossa casa? E conclua, resmungando : Como sempre acontece, no me podes compreender. A companheira voltava, humilde, a novos argumentos, evidenciando enorme ternura : No me refiro s tuas experincias, no sentido de conden-las. Conheo o valor da Espiritualidade e no me internaria em consideraes descabidas. No posso, porm, aprovar os excessos a que te vens entregando, desde algum tempo. No nos falta po mesa ; todavia, escasseia a nossa tranquilidade domstica. Teus hbitos esto fundamente alterados pelas demasiadas concentraes, sem qualquer observao de tempo ou convenincia... Jovelino, todavia, no a deixara terminar :

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    Ignoras, acaso, meus propsitos? perguntou irritado. Desconhecer os poderes do homem que se torna senhor dos dons superiores da Natureza psquica? Espero obter os grandes transportes, em breves dias. E, numa anteviso das experincias gloriosas, exclamava de olhos parados, fixos na imensidade azul que se podia divisar alm da janela aberta: Desdobrar-me! ver os cus ilimitados... conhecer a intimidade dos outros seres!... Oh! que ventura poder ser igualada a essa?! como tudo ser ento mesquinho, neste mundo, aos meus olhos!... A esposa afastava-se do visionrio, procurando disfarar as torturantes preocupaes que lhe ralavam a alma sensvel. E, por muito tempo, Jovelino Soares prosseguiu em suas prticas exaustivas, indiferente aos prejuzos domsticos. Mantinha-se nas atitudes de recolhimento, num esforo incessante. Entregava-se s frmulas verbais, multiplicava os jejuns, onde havia muitos compromissos palavrosos, mas nenhuma espontaneidade. A situao permanecia nessa altura, quando, em noite de enorme esgotamento das energias fsicas, o nosso amigo foi arrebatado a um sonho deslumbrante. Sentia-se afinal em prodigioso desdobramento. A regio a que aportara, em vo clere, coroava-se de infinita beleza. Palcios de neblina dourada fulgiam a seus olhos; extasiado, no cume de um monte adornado de luz, contemplava a cena, admirando a maravilha, em humilde genuflexo. Leve rudo denunciou a presena de algum que parecia procur-lo com interesse. O generoso benfeitor espiritual, que se adiantava, mostrou-lhe um sorriso bondoso e interrogou com doura fraternal: Jovelino, a caridade augusta do Cristo permitiu que viesses at aqui e estou pronto a atender-te. Que desejas do Senhor, com impulso to forte? Sentindo-se vitorioso, o interpelado redarguiu : Valoroso emissrio, desejo receber os dons do desdobramento espiritual l no mundo. O mensageiro tomou uma atitude benevolente e esclareceu: Mas j fizeste as experincias que a Terra te oferece nesse sentido? s um Esprito desdobrado nas obrigaes diversas? Podes ser pai, filho, irmo, amigo, servo ou mordomo ao mesmo tempo, sem inclinaes prejudiciais, sabendo amar, corrigir, orientar, administrar, obedecer ou servir, simultaneamente? Jovelino experimentou um choque intraduzvel. Entendeu, de relance, a complexidade dos deveres que lhe eram exigidos e obtemperou : Conheo, porm, pessoas que se desdobram sem to grandes preocupaes.

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    Em geral respondeu-lhe o emissrio, com solicitude , nem todos os frutos so colhidos na poca adequada e, quase sempre, os frutos verdes so presa de crianas que os inutilizam desastradamente. Ante a observao justa, que consubstanciava um feixe de ensinamentos felizes, o visitante da esfera espiritual voltou a dizer, tentando explicar-se: Talvez no tenha sido bastante claro. O que desejo a permisso para os transportes sublimes da alma!... J efetuaste, porm, o aprendizado dessa natureza que o mundo te proporciona? Encontras-te senhor de semelhante aquisio? Como te transportas da alegria para a dor, da sade para a enfermidade, da unio para a separao, do conforto para as dificuldades? Guardas, em tudo, o mesmo padro de confiana em Deus, portando-te, em todas as circunstncias, como em servio de sua vontade e de seu amor? O Esprito terrestre no conhecer os transportes sublimes, sem essa preparao justa. Jovelino Soares ficou atnito. Francamente, no havia pensado nisso. Embora se esforasse, no encontrava recursos, a fim de responder. O generoso mensageiro, percebendo-lhe a confuso natural, acariciou-lhe a fronte com inexcedvel bondade e falou brandamente : Teus servios, entretanto, no esto perdidos. Fixa a ateno, porque te conduzirei, neste momento, melhor regio em que te podes manter com benefcios. Mais tarde, poders atravessar os vastos domnios de outros mundos, o sistema solar expor aos teus olhos maravilhas indescritveis ; mas, a soluo do problema igual ao da escada ou da montanha preciso equilibrar-se ao subir. O lugar a que sers agora conduzido no to luminoso e todavia possui a sua beleza peculiar. a zona compatvel com a tua posio atual, mesmo porque, bem sabes que no se pode trair a classificao gradual da Natureza. No entanto, se conseguires ver, como se torna necessrio, encontrars ai numerosas maneiras de enriqueceres as tuas faculdades. Reconhecers as diversas potncias que permanecem a servio de tua iluminao. Jovelino exultava. A seu ver, ia, enfim, descortinar os segredos do cu. No seria naturalmente arrebatado s constelaes mais altas, contudo seria levado a regies de sublime surpresa. O bondoso mensageiro estendeu-lhe a mo e disse em voz firme : Vamos! O mecnico experimentou indefinvel sensao de deslocamento. Guardava a impresso de que tombava sobre um abismo de luz. Da a momentos acordou violentamente, no leito.

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    Como interpretar a viso inesquecvel? Qual se fora auxiliado por benfeitores intangveis, comeou a fixar a ateno em si mesmo. Contemplou os ps e meditou nos benefcios que deles poderia auferir, caminhando exclusivamente para a bondade ; deteve-se no exame das mos e refletiu na imensidade de tarefas generosas que lhe era possvel cumprir. E os olhos? No conseguiria com eles realizar o trabalho de seleo perfeita da verdade e do , de modo a se afastar de todo o mal? E os ouvidos? No seria justo convert-los em arquivos de prudncia e sabedoria? Jovelino passou revista s faculdades comuns, identificando-lhes o valor que, at ento, desconhecera. No seriam elas as potncias preciosas concedidas por Deus para o bem de sua iluminao? Extremamente reconhecido, parecia tocado de uma vibrao nova. No conseguiu permanecer no leito por mais tempo. Enquanto a esposa e os filhinhos repousavam, levantou-se e abriu uma janela. Os sopros da madrugada penetraram a habitao em baforadas frescas. As ltimas estrelas tornavam-se mais plidas. O cntico repetido dos galos chamava os seres atividade cotidiana e toda a Natureza figurou-se-lhe em marcha jubilosa. O nosso amigo, experimentando intraduzvel emotividade, sentiu estranha atrao para a vida e para o trabalho. Seu corao descobrira uma revelao pode-rosa. Compreendeu que a regio divina, compatvel com a sua posio espiritual, a que fora conduzido por um emissrio do Cristo, era o seu prprio corpo terrestre. Era a mesmo que poderia descortinar belezas sem conta e infinitas possibilidades de iluminao.

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    8 - O LIVRE PENSADOR Raimundo da Anunciao viera do materialismo para o conhecimento da doutrina dos Espritos ; entretanto, por maiores que fossem as advertncias dos amigos sinceros, no se furtava ao vicio das discusses sem propsito definido. Desde cedo, transformara-se em polemista contumaz, rebelde a qualquer idia de humildade, ou de compreenso das necessidades alheias. Havia um ponto obscuro em alguma questo intrincada da vida? No encontrava dificuldade para completar os casos e esclarecer o assunto, a seu modo. Essa mania de julgar precipitadamente e de terar armas pela imposio de suas idias, fora transportada s suas atividades espirituais, com enorme prejuzo para a sua edificao interior. Parecia uma pilha humana em permanente irritao contra as demais confisses religiosas. Funcionrio com responsabilidade definida, levava repartio suas polmicas interminveis. Enquanto o diretor despachava processos no gabinete, ele permanecia em trabalho ativo, atendendo a papis que lhe requisitavam esmerada ateno. Contudo, logo que se afastava o chefe imediato, acendia um charuto distinto e tocava a explanar a situao do prximo ou dos companheiros. E voc, Renato dizia a um colega, em tom de zombaria , ainda no se decidiu pelo Espiritismo? Em virtude de o rapaz revelar-se confuso, mastigando um monosslabo, guisa de resposta, o valente polemista continuava: Ah! esses padres! voc anda seduzido pelos latinrios, perdendo tempo. um absurdo entregar-se uma inteligncia como a sua explorao clerical; mas espero que, mais cedo ou mais tarde, toda essa organizao detestvel venha abaixo. Era a incio de longa perlenga. O companheiro idoso, da frente, catlico romano fervoroso, vinha em socorro do jovem tmido: Mas, Raimundo, que tem voc com os padres? Creio que a nossa Igreja to respeitvel quanto as outras. Alm disso, no podemos ignorar que a maioria est conosco. O interpelado enrubescia e, atalhando, de pronto, exclamava colrico : Alto l! Deus nos livre da influncia do clero! Declaremos guerra aos traficantes do altar. O progresso humano h de afugent-los como a luz da manh expulsa os morcegos sugadores! Nada de transigncia com os falsos sacerdotes. Odeio essa gente de roupa negra, que anda em servio do interesse mesquinho, abusando da ignorncia popular. Esses biltres ho de ser derrubados mais cedo do que se julga! E um rosrio de injrias era desfiado ali, ante os companheiros assombrados.

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    Quando se oferecia a pausa natural, o antagonista revidava : Desconheo com que autoridade pode voc movimentar tamanhas acusaes. No sabe? dizia Raimundo, neurastnico. E depois de mastigar a ponta do charuto : Eu sou livre-pensador! A discusso prosseguia acesa, at que um colega vinha pedir calma aos contendores, a fim de que o trabalho no fosse excessivamente perturbado. Semelhantes caractersticas seriam facilmente compreensveis, como ndice de fanatismo individual, se fossem limitadas anlise das outras escolas religiosas ; mas a situao era mais grave. Raimundo da Anunciao vivia em controvrsias constantes com os irmos de ideal. Depois de algum tempo de frequncia a esta ou quela instituio espiritista, voltava-se contra os amigos da vspera, numa atoarda de alegaes injustas. Aludindo aos diretores da casa, de cujas realizaes havia participado, comentava, levianamente : So intolerantes e arbitrrios, no lhes tolero o fingimento. Referindo-se assistncia, rematava irnico : Jamais vi no mundo tamanha turma de ignorantes e basbaques. Um companheiro mais sensato chamava-lhe a ateno, com carinho : Mas, Raimundo, afinal de contas, ainda somos criaturas em aprendizado num mundo imperfeito. Se tivssemos as qualidades superiores, exigidas pela existncia nas esferas elevadas, por certo que no permaneceramos na Terra. razovel que os anjos no povoem os abismos da sombra. Ento, por que olvidar o dever da tolerncia recproca? Nossos companheiros no so maus e sim Espritos incompletos nas virtudes divinas, maneira de ns outros. No acredita voc que estejamos num processo de aproximao afetiva, em que os defeitos de todos vo desaparecendo pelo concurso amoroso de cada um? O interlocutor no se dava ao esforo de maior exame e retrucava, intempestivamente : Detesto a hipocrisia!... No se trata, porm, de hipocrisia ponderava o irmo na f , mas de compreender uma situao generalizada, de que no poderemos fugir, sem o testemunho individual, construindo a nossa parte. No tolero confuses, nem subterfgios exclamava Raimundo, irado.

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    Todavia, por que alimentar semelhante estado dalma? Sou livre-pensador! explicava, repetindo o velho estribilho. Era assim que a rebeldia se lhe assenhoreava, integralmente, do esprito. Antes de entregar terra o corpo abatido, sua generosa genitora chamou-o, um dia, preocupada : Raimundo, meu filho, sei que estou a me despedir do mundo; no entanto, desejaria que a morte me surpreendesse somente quando me fosse possvel guardar a certeza de sua renovao. E com um olhar amoroso e triste, continuava : No discuta esterilmente. Aprenda a reconhecer nos outros necessidades diferentes das nossas. Nem todos os homens podero partilhar de suas crenas. No vemos que a idade assinala as criaturas? Entre a meninice, a mocidade e a decrepitude, h numerosos graus de posio fsica. No considera voc que o mesmo ocorre quanto situao espiritual das pessoas? Abstenha-se da imposio. A romagem terrestre to curta!... Por que lutar, improficuamente, quando se pode semear simpatias para a colheita do amor? Se Deus no tiraniza os seus filhos, que argumento justificaria nossa intransigncia com os irmos? Modifique o seu temperamento, meu filho! O tempo um patrimnio sagrado que ningum malbarata sem graves reparaes... O discutidor renitente estava comovido, mais pela humildade maternal, que pelas reflexes judiciosas. Agradeo-lhe, mame disse ele, depois de um sculo na destra encarquilhada da anci , reconheo a delicadeza de suas preocupaes ; mas a senhora sabe que sou um homem sincero e que devo pensar livremente. A velhinha enferma esboou um olhar de desnimo e murmurou com ternura, desejosa de evitar as contendas habituais : Deus o abenoe sempre. Foram inteis todos os conselhos. Raimundo da Anunciao chegou ao fim da experincia terrestre, discutindo irremediavelmente. Cultivou antagonismos ferozes e procurou impor suas convices pessoais, no prprio leito de morteespantando os que o visitavam por mera cortesia. Novamente na esfera espiritual, o nosso amigo, aps lutas enormes no circulo das surpresas que o esperavam, foi admitido ao local mais prximo, onde os recm-chegados do mundo recebiam soluo de certos problemas de natureza imediata.

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    Conduzido presena do iluminado diretor da instituio de esclarecimento aos desencarnados, Raimundo rogou, humilde, os informes necessrios, com referncia ao seu caso. Queixou-se em tom amargo. Sentia-se em abandono, sem ningum. Em geral esclareceu o mentor com generosidade fraternal os que permanecem aqui, neste estado, so os homens que no cogitaram de um esforo srio. Como assim? perguntou, contrafeito fui na Terra um batalhador das idias novas. O instrutor encaminhou-se a um mvel de vastas propores, de contornos indescritveis pelo lpis humano e, retirando de seu interior uma folha luminosa, exclamou com bondade : Tenho a cpia de suas notas, vejamos. Qu? interrogou Raimundo, desapontado as fichas individuais existem aqui? Por que no? respondeu o interpelado serenamente. Acaso ter esquecido que sua repartio fichava processos comuns, preservando-lhes a integridade? Supe que os Espritos imortais sejam inferiores aos papis terrenos? O recm-chegado, observando a mudana da situao, entrou em profundo silncio. Leiamos os dados informativos de sua ltima experincia no planeta terrestre prosseguiu o diretor da casa espiritual, com generosidade. Voc esteve cinqenta e trs anos e cinco dias na Terra, excetuado o perodo da infncia e da juventude, que constam de outras anotaes, num total de quatrocentas e sessenta mil horas. Um tero voc gastou em repouso, sono e distraes, nos quais fixaremos a ateno para exames mais complexos, em seguida anlise desta ficha de tempo. Restam trezentas e nove mil e seiscentas horas, das quais cinqenta e oito mil e cinqenta foram utilizadas em servio mecnico de escritrio, cinqenta e uma mil e quinhentas e cinqenta em atividades de alimentao do corpo, sobrando duzentas mil horas que voc empregou em discusses improdutivas, mentais ou verbais, diretas e indiretas. Raimundo estava quase sufocado na atitude de doloroso assombro. No fui um preguioso protestou. O mentor voltou a dizer, serenamente : No se condena um homem que discute edificando. O esclarecimento justo, a seu tempo, constitui coluna poderosa no edifcio do Reino de Deus. Entretanto, no seu caso, as circunstncias so altamente desfavorveis, porque o esmagador coeficiente de atritos apenas serviu para agravar as suas vaidades, sem nenhuma construo espiritual definitiva, em si mesmo, ou no Planeta, dignificando sua passagem. O interlocutor hesitava, surpreendido. Desapontado, quase em pranto, tentava esclarecer :

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    Mas eu... eu... J sei murmurou o instrutor , j sei que voc vai referir-se sua condio de livre-pensador. Enquanto o recm-chegado se recolhia em penosa amargura, o benfeitor continuava : Quando se julgou livre no mundo, no passava voc de servo das mesmas paixes que amesquinhavam os outros homens. Em geral, na Terra, os livres-pensadores so livres dominadores. Por que no se sups, na experincia humana, um livre servidor do Cristo? Com Jesus, toda independncia enriquecimento de responsabilidade salvadora. Por que no se sentiu liberto do egosmo inferior para auxiliar, em vez de atacar acerbamente? S podemos analisar uma obra, Raimundo, depois de a conhecermos intimamente. Todos aqueles a quem voc condenou em criticas gratuitas podem alegar que voc no lhes conhecia o esforo individual. No sabe que s aquele que trabalhou tem direito a comentar a tarefa? Alm disso, quando consultarmos as demais anotaes, h de observar o nmero extenso de pessoas que se afastaram da verdade, adiando momentos de alegria divina, por influenciao de seus atritos inoportunos ; conhecer as faltas de omisso cometidas por seu esprito, no desprezo aos patrimnios do tempo e das alheias realizaes. Se voc preferir, podemos examinar a.gora as demais fichas de sua passagem pela Terra. Se possvel, desejaria esse conhecimento depois... respondeu Raimundo, em lgrimas. E o nosso amigo, por anos consecutivos, entrou em vastas meditaes da verdade e da vida, auxiliado por generosos benfeitores espirituais. Quando dois lustras haviam passado, voltou presena do instrutor que o tornara sua conta e suplicou uma nova experincia na Terra. Voc j escolheu o gnero de trabalho? perguntou ele bondosamente. Sim explicou o antigo discutidor, hesitante , desejo ser mudo entre os meus adversrios de outros tempos. Muito bem exclamou o mentor, abraando-o , a tarefa compatvel com as suas necessidades atuais. Voc renascer mudo e com timos ouvidos, porque, segundo sua ficha de tempo, no lhe ser possvel entregar-se a qualquer realizao mais elevada, enquanto no permanecer em silncio por vinte e doa anos e alguns meses, escutando para aprender e impossibilitado de falar coisa alguma.

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    9 - DESAPONTAMENTO DE UM SUICIDA O generoso Rogrio, excelente amigo do plano espiritual, que, desde muitos anos, vem consagrando as melhores energias ao servio das entidades sofredoras, procurou-me para um convite. Queres acompanhar-me no trabalho de socorrer um desventurado suicida que sofre nas regies inferiores, h trinta anos? Trinta anos? interroguei, admirado. Outros existem, nos crculos de padecimentos atrozes, com mais dilatado tempo que esse respondeu serenamente. Por minha parte, no conseguia dissimular o assombro justo. Semelhantes angstias retorqui devem ser conseqncias de romance bem doloroso. No tanto. No presente caso, ao lado do infortnio, no podemos esquecer a irreflexo e a rebeldia. A observao de Rogrio espicaa-me a curiosidade. Gostaria de acompanhar-te, mas no me posso furtar ao desejo de conhecer alguma coisa da histria dessa personagem que iremos visitar. interessante replicou-me , entretanto, no incomum. Homens numerosos se encontram, atualmente, em suas antigas condies. E, depois de tomar posio como narrador engraado e otimista, comeou atencioso: H cerca de trinta anos, Tomasino Pereira era empregado de uma tipografia no Rio de Janeiro. Temperamento singular e atrabilirio, jamais pudera evadir-se do circulo das lamentaes estreis. No se fazia ouvir seno para comover os interlocutores com queixas acerbas. Lastimava-se incessantemente. Acusava o mundo, o pas, o trabalho, os amigos. Em vo procuravam os companheiros injetar-lhe coragem e otimismo. O msero estava sempre excessivamente nervoso ou irremediavelmente desalentado. A famlia numerosa, os deveres cotidianos, as contas mensais do armazm, aougueiro e padeiro, amedrontavam-lhe o esprito. Entretanto, a maior tragdia de Tomasino, na apreciao de si prprio, era o problema conjugal. A esposa ignorante no o compreendia. E em vez de melhorar-lhe as condies espirituais com carinho e pacincia, levantando-lhe as concepes em busca dos horizontes superiores da vida, o infeliz gastava o tempo em promessas de pancada, ameaas de separao, gestos violentos e rudes. A situao enchia os filhinhos do casal de espanto e amargura, pois o chefe da casa, em desespero, dava a impresso de um louco, sem esperana de cura. Quando no esmurrava as mesas, em fria doentia, mantinha-se em

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    atitude de extrema desolao, aptico, em prantos angustiosos. No quadro de seus afeioados, estava o Oscar Fraga, amigo de infncia e de luta diria, que se valia das fases de desnimo do amigo para mais aproximar-se, tentando arrancar-lhe a alma das tempestades da incompreenso. O caso, porm, tornava-se mais complicado, dia a dia. Tomasino andava possudo de idia sinistra. Alimentava o propsito de suicdio com preocupao crescente. No ntimo, sempre considerara os que fogem s tormentas da vida humana como criaturas privilegiadas e corajosas. No era a melhor maneira de protestar contra o destino, retirar-se do mundo, em silncio? No lhe parecia a existncia terrestre enorme banquete, onde alguns se serviam dos manjares, reservando-se a outros as ervas amargosas? Depor o fardo a meio do caminho, em seu modo de ver, constitua a atitude mais consentnea com a dignidade pessoal. No fundo, acreditava na existncia de Deus, mas a cegueira de esprito no lhe deixava entrever o menor vislumbre das verdades essenciais, que o induziriam coragem indispensvel no combate comum. medida que lhe crescia nalma a inteno de escapar luta, mais se sentia heri. Percebendo-lhe to perigosas disposies, o Fraga, que era espiritista convicto, aproximou-se com mais vigor, trazendo-lhe a cooperao fraternal de que dispunha. Eram mensagens de suicidas desventurados, exortaes evanglicas, pginas de consolao e reerguimento moral. Tudo isso fumo de iluso exclamava Tomasino, desalentado , ningum pode regressar da poeira do tmulo. Creio em Deus e estou certo de que Ele, mais que ningum, compreende minha dor. Tambm eu murmurava o companheiro, pacientemente no ponho em dvida o interesse amoroso do Altssimo em nosso favor. Naturalmente entender nossas mgoas, mas no poder tolerar nossas rebeldias. isso! gritava mais fortemente o infeliz estou abandonado, tudo para mim est perdido! a desgraa colheu minha sorte, preciso morrer. Tudo apodreceu, tudo caiu!... E, enquanto o desventurado enxugava os olhos com o leno, o companheiro retrucava com larga dose de bom humor: O nervosismo costuma tambm fugir verdade. No ests sendo reto. E ainda me acusas? perguntava Tomasino, desgrenhado. Nem todas as coisas permanecem derrubadas esclarecia o Fraga, calmamente , pelo menos esta casa, que Deus transformou em ninho de teus filhos e onde encontramos refgio para a conversao afetuosa, ainda est de p. A resposta parecia suavizar os abafamentos do interlocutor, pela nota de humorismo. Depois de alguns minutos pesados de meditao, Tomasino voltava em desalento: Mas... e Olinda?! se minha mulher compreendesse as necessidades justas, talvez que a vida se equilibrasse...

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    Por que no lhe auxilias a alma inculta, empenhando nisso as melhores foras do corao? inquiria o companheiro sensatamente. Olinda no m. Como sabes, a ignorncia tem arestas que necessrio desgastar. Alm disso, nunca deverias esquecer que se trata da me de teus filhinhos. Deus no vos teria unido sem razes fortes, na estrada da vida imortal. Vejo, em tudo isso, a representao de teus dbitos espirituais no passado e que se torna imprescindvel resgatar. Tomasino atalhava em tom irado : No tens outro argumento seno esta histria de reencarnaes? Tenho, sim... murmurava o Fraga, sem se perturbar. enquanto o outro o contemplava espantado : E indispensvel que cada um saiba carregar a sua cruz redentora. s sempre fecundo nos conselhos! clamava o msero, desesperado. O amigo, porm, sem qualquer irritao, prosseguia de bom humor : Ests enganado. Este conselho no meu, de Jesus - Cristo. No me sinto devidamente iluminado para orientar a quem quer que seja ; no entanto, creio que concordars comigo quanto competncia do Salvador. A verdade, contudo, que o Fraga sempre se retirava sem obter nenhum resultado satisfatrio. Irascvel, teimoso, impermevel aos benefcios da f religiosa, Tomasino Pereira manteve-se inacessvel a todos os processos de socorro espiritual. E na idia orgulhosa de que poderia enfrentar o prprio Deus, a fim de inquirir o Criador, quanto aos enigmas do destino, uma noite tranqila, sem que ningum esperasse, estourou os miolos irrefletidamente. A, narrao movimentada levou-me a recordar alguns companheiros das tarefas humanas, impressionando-me, vivamente. Esse o Esprito que encontraremos daqui a alguns instantes concluiu Rogrio com um sorriso generoso. De fato, sem despender maior esforo, descemos a uma regio de sombras muito espessas. Assemelhava-se, antes de tudo, a uma grande caverna pestilenta e mida, como deveriam ser os calabouos da Idade Mdia. Viam-se ali criaturas estiradas, em gemidos lancinantes. Conservando-se a distncia, Rogrio exortou-me a permanecer em sua companhia e enviou alguns auxiliares em busca do desventurado Tomasino.

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    O infeliz aproximou-se, de rastros. Parecia um monstro, tal a desfigurao pelo sofrimento. Observando os fluidos luminosos que envolviam Rogrio a esper-la, msero sups que defrontava um dos mais altos emissrios de Deus. Enganado ainda pelas falsas concepes da Terra, comeou a chorar, convulsivamente, acreditando que o Altssimo lhe dispensava honrosas deferncias, como se fora um heri esquecido, em reviso de processo. Anjo celeste murmurou prostrando-se ante Rogrio , eu sabia que Deus me faria justia. Fui um infortunado na Terra, vaguei como co sem dono entre aqueles que desfrutavam o banquete da vida humana ; atravessei a existncia incompreendido e aqui estou, em abandono, em pavorosa caverna de martrios, aguardando a Providncia Divina... As lgrimas caiam-lhe em suprema desesperao. O interpelado, porm, mantinha-se em serenidade impassvel e disse-lhe com firmeza : Tomasino, esquece o vcio da queixa. No sou um anjo celestial, sou teu irmo no mesmo caminho evolutivo. No vim at aqui para arquivar as tuas lamentaes, mas para sugerir-te calma e boa-vontade, atendendo a muitas rogativas dos que se interessam por ti. No consta, no plano espiritual mais elevado, que hajas sido to infeliz e sim que sempre foste rebelde aos alvitres divinos, quanto preguioso nas realizaes para a vida eterna. O suicida experimentou indisfarvel surpresa. Esperava que todos os emissrios do mundo superior fossem portadores de uma doura de mel. Viciado como criana caprichosa e exigente, no entendia a bondade fora dos prismas da ternura. Assustado, Tomasino assumiu atitude diversa. Venho para ser til s tuas necessidades presentes continuou Rogrio sem emoo , prestando-te este ou aquele informe que julgues necessrio ao soerguimento do teu esprito. Via-se que o choque fora benfico a Tomasino. Comeando a compreender que a responsabilidade no dispensa a energia, fazia esforos para esquecer as velhas lamrias e enveredar por expresses srias, condizentes com a sua posio espiritual. Desejaria receber notcias de meus filhos! disse num gesto mais digno. Todos realizam as suas tarefas satisfatoriamente esclareceu Rogrio, delicado. Como deves saber, as obras de Deus no sofrem soluo de continuidade, porque este ou aquele dos trabalhadores delibere escapar aos compromissos assumidos. Teus filhos so homens de bem, teis sociedade de que so parte integrante e ativa; tuas filhas, nos dias que correm, so mes devotadas e generosas. Eles confiavam em ti, quando no possuas nenhuma parcela de confiana em ti mesmo. E porque hajas fugido ao lar, desamparando-os, nunca te esqueceram nas intercesses amorosas. Infeliz que fui! exclamou o suicida com acento amarguroso. Devias afirmar, antes de tudo, que foste tolo!

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    Extremamente desapontado, Tomasino quis desviar o assunto e interrogou : Creio que tendes poder para auxiliar-me. Que devo fazer para melhorar esta situao? Sinto a cabea tonta, sem direo... Desejaria, pelo menos, alcanar um tantinho de sade... Perguntaste bem disse-lhe o meu amigo , esse desejo evidencia as tuas melhoras espirituais. O que te poder restaurar a sade e o equilbrio a nova aplicao de terra. Aplicao de terra? revidou Tomasino assombrado. Sim, ters de ser revestido, novamente, de um corpo terrestre. No Planeta encontrars o remdio para teus males. Despedaaste o crnio e voltars a exibir, no mundo, o crnio despedaado. No te faltar a medicao... Medicao? Perfeitamente esclareceu Rogrio , o idiotismo, a loucura, o desequilbrio nervoso... So doenas atalhou o suicida prontamente. verdade, Tomasino, os seres terrenos ainda no compreenderam ; mas, enquanto curam as enfermidades, acabam curados por elas. Aceitas, pois, o remdio do porvir? Reconhecia-se o pavor do infeliz, em face da indicao, mas, ao cabo de longos minutos de meditao, murmurou humilhado: Aceito... Quando deverei voltar? Quando nossa irm Olinda estiver em condies de te receber nos braos maternos. O suicida compreendeu e entrou em profundo silncio. Da a instantes, era novamente recolhido ao seu crcere de dor. Acerquei-me, ento, de Rogrio, admirado. Meu amigo trazia agora os olhos midos, revelando enorme piedade e comoo. Antes que lhe fizesse qualquer pergunta, tomou-me delicadamente o brao e murmurou compungido: Imensa a tragdia dos Espritos sofredores. Mas, no auxlio efetivo, indispensvel considerar que cada doente reclama o seu remdio. A maioria dos suicidas requisita a dureza