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Terry Eagleton. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo: Editora UNESP. Editora Boitempo, 1997.

Hans Peter Wieser Universidade Federal do Ceará (UFC)

No seu livro “Ideologia”, Terry Eagleton, professor de Literatura Inglesa e

Teoria Crítica em Manchester, elucida uma série de definições, em parte contraditórias, da ideologia que, desde a Época das Luzes até o Pós-Modernismo, foram apresentadas por autores como Marx, Engels, Lukacs, Gramsci, Adorno, Althusser entre outros. No seu percurso histórico-conceitual, o autor, que é considerado um dos últimos sinceros intelectuais esquerdistas da Grã-bretanha, rejeita tanto as interpretações que reduzem a ideologia a uma questão de (falsa) consciência quanto as explicações que a consideram, exclusivamente, como uma prática social. De fato, Eagleton argumenta, de modo convincente, que o conceito deve ser entendido, antes de tudo, como um conjunto complexo de efeitos discursivos.

O subtítulo do livro é “uma introdução”, mas é duvidoso que o típico estudante da graduação pode aproveitar esse livro como um texto introdutório, pois, antes de ser um compêndio das diferentes interpretações da ideologia, a obra representa um debate vivo e, às vezes, até um pouco rancoroso com a longa linha de intelectuais que tentaram conceituar a ideologia. Na essência, a trajetória percorrida pelo livro forma uma defesa da tradição crítica marxista contra o relativismo pós-moderno. Dito em outros termos: o autor quer resgatar a noção da ideologia como uma ferramenta crítica a serviço da emancipação das pessoas. Ele quer encorajar seus leitores para defender-se de idéias enganadoras que os impedem de reconhecer como determinados processos sócio-cognitivos contribuem para a opressão social. Desse modo, depois dos dois capítulos iniciais que discorrem sobre o uso do termo “ideologia” na linguagem cotidiana e sobre as maneiras como as estratégias ideológicas se manifestam na sociedade, a maior parte da discussão é ocupada pelo debate minucioso das principais e mais influentes idéias de vários grupos de autores consagrados. Eagleton expõe com clareza uma lista impressionante de nomes que, como diz Ricardo Musse na sua apresentação, “chega quase a esgotar a integralidade dos autores relevantes que abordaram essa questão”. Nas páginas finais, nota-se, claramente, a intenção de rebater as erosões pós-modernistas e neo-marxistas que corroem a viabilidade do conceito da ideologia.

Sobressai, nos sete capítulos deste livro conciso de 200 páginas, que o autor se aproxima do seu assunto polêmico sem dogmatismo e de uma maneira bastante pessoal. Escrito num tom espirituoso, extremamente informativo e com uma língua afiada, o livro representa um ataque veemente contra o Pós-modernismo que o autor considera ser a ideologia dominante da nossa época. Seu indiscutível talento para a ironia e a sátira estimula o prazer do leitor, assim como seu compromisso com a ética e uma sociedade justa inspira engajamento e uma recusa em aquiescer com a desordem pavorosa em que se encontra o mundo atual. Portanto, todos que, nesses tempos incessantemente marcados por fortes conflitos ideológicos, estão fartos de escutar os históricos regozijarem-se sobre o suposto fim da ideologia devem se armar com essa obra seminal.

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O mérito da obra não é apenas passar revista à história do conceito da ideologia desde a sua origem nos círculos dos materialistas franceses do século XVII (Destutt de Tracy) até o fim do século passado, mas Eagleton demonstra também que a ilusão pós-modernista do “fim da ideologia” (Daniel Bell, The End of Ideology, 1960) é apenas a expressão de uma nova ideologia política e econômica que caracteriza o Neoliberalismo global no qual, atualmente, vivemos. Aliás, o público fiel de Eagleton, que conhece suas obras sobre “A Ideologia da Estética” (1990), “A Ilusão do Pós-modernismo” (1996), “A Teoria Literária” (1996) ou “A Idéia da Cultura” (2000) entre outros, sabe muito bem que, na opinião desse marxista polêmico, o pensamento acrítico e as tendências niilistas do Pós-modernismo não oferecem soluções, mas, pelo contrário, fazem parte dos problemas atuais de uma sociedade rumo a uma nova forma de capitalismo. De fato, a mensagem central do crítico inglês é que, em nosso mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural, as indústrias de serviços, finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política de classes cede terreno a uma série difusa de ‘políticas de identidades’.

Logo de início, o autor levanta a questão se todas as nossas crenças são ideológicas ou se existe um reduto da verdade? Eagleton distingue, nesse caso, entre a verdade empírica e a falsidade implícita (pág. 27-29), argumentando que muitas elocuções possam ser verdadeiras empiricamente, mas “são falsas em algum aspecto mais profundo, mais fundamental”. O autor defende uma posição, descrita como “realismo moral”, na qual a verdade empírica e as suposições normativas implícitas podem ser vistas como os dois lados da mesma moeda. O realismo moral defende a opinião de que podemos e devemos questionar a veracidade ou falsidade das crenças e suposições tacitamente envolvidas em nossas relações vivenciadas com o mundo (pág. 32). Nessa perspectiva, as ideologias “podem, de fato, ser basicamente uma questão de elocuções performativas”, mas, sendo assim, não são essencialmente cognitivas, pois encerram “uma espécie de conhecimento [que é] menos teórico [...] do que pragmático, orientando o sujeito em suas tarefas práticas na sociedade” (id.ibid.).

De certo, o conceito da ideologia, nunca na história do Ocidente, foi tão evidente como no debate intelectual contemporâneo. Pela política esquerda ela é vista, muitas vezes, como uma propriedade exclusiva da classe dominante e, pela direita, é considerada como um descomedimento árido e totalitário do bom senso comum. Para alguns o conceito parece ser tão onipresente que perdeu qualquer significado particular; para outros, ele é restritivo demais para um mundo de infinitas diferenças. Com efeito, a ideologia parece ser um termo tão sobrecarregado e contrariado que, possivelmente, muitas pessoas, ao lançar mão de um livro sobre esse tópico, sentem-se seduzidas a seguir o conselho famoso de Hume1:

“Será que ele contém qualquer raciocínio abstrato sobre fatos e números? Será que ele contém um raciocínio fundado na experiência que diz respeito aos fatos reais e à existência? Não. Então, entrega-o às chamas, pois nada mais pode conter que sofismos e ilusões” (op. cit.: seção xii, parte III).

1 HUME, David. Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral. São

Paulo: UNESP, 2004.

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Contudo, os anúncios do fim da ideologia são prematuros e, embora as perspectivas possam ser tentadoras de entregar um trabalho sobre esse conceito às chamas, o certo é que esse termo tão ambíguo ainda pode prestar bons serviços num trabalho conceitual, como enfatiza e demonstra, de modo concludente, o livro provocante de Eagleton.

Além disso, neste mundo pós-nietzscheano, o próprio raciocínio experimental é rotulado, freqüentemente, como sofismo e ilusão, já que os fatos, como todo mundo sabe, são sempre uma questão de interpretação. Com efeito, um lugar onde um sistema de interpretações feitas por interesse se disfarça como um sistema de fatos desinteressados, onde é costume, de um lado, invocar a natureza e a essência universal e, do outro, ofuscar a história e o aspecto social da vida, onde as idéias aparecem desligadas das condições materiais nas quais surgiram, – um tal lugar é onde a ideologia floresce e esse lugar, sem dúvida nenhuma, circunscreve qualquer sociedade humana.

Todavia, se a ideologia representa um fenômeno tão onipresente e se até os potenciais desmistificadores ocupam uma determinada posição dentro da sociedade, é preciso perguntar como as pessoas poderiam, algum dia, tomar consciência plena do seu próprio condicionamento ideológico? Como eles poderiam encontrar um espaço livre e não contaminado onde escapariam dos efeitos ideológicos? Como eles poderiam transcender a situacionalidade do seu próprio discurso? Claramente: não podem e nunca poderão! Eis a conseqüência desconfortável para quem assume os dogmas pós-modernistas que, entre outras coisas, dizem respeito a três crenças fundamentais: primeiramente, que não há fatos empíricos ou idéias racionais nos quais o conhecimento poderia ser fundado; segundo, que as proposições sobre o mundo podem ser verdadeiras apenas no que diz respeito à coerência interna porque não há correspondência com algum enquadre externo de referência; e terceiro, que tudo é relativo à linguagem e à perspectiva do observador cuja inevitável situacionalidade impede qualquer objetividade.

Mesmo que, na prática, somos bastante hábeis em fazer uma distinção entre nossas razões e suas racionalizações e entre nossas idéias e suas ideologias, os mais esclarecidos sabem, muito bem, que essas táticas são exemplos de auto-engano e da arte de dissimular. É que as palavras, quando são enunciados, nos obrigam inevitavelmente fazer certas escolhas dentro da ordem do discurso; pois, há metalinguagens, no plural, mas não há uma metalinguagem, no singular, que confira aos seus usuários o privilégio de esquivar-se da “pesada e temível materialidade” do discurso2. Contudo, se é verdade que acreditamos o que enunciamos mais ou menos mecanicamente, como poderíamos atrever-nos, ainda, a escrever sobre, por exemplo, a ideologia? Qual é o status que as afirmações ideológicas sobre a ideologia poderiam manter? Como elas poderiam evitar sua lógica autofágica e autodestruidora? Será que as interpretações nietzscheanas que desmistificam a filosofia e as ciências positivistas e empíricistas possuem alguma base real ou uma autoridade metalingüística? Essas questões nos soam familiares e já conhecemos o giro do turbilhão cada vez mais amplo, já sabemos que o logocentrismo não pode resistir a esse pensamento, que o significado é indeterminado, que o jogo livre dos signos é ilimitado, que a retórica arrasa o referente e que uma verdadeira anarquia rege o uso da língua e, por meio dessa, o mundo.

2 FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola. Pág. 9, 2000.

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O fato que essas idéias - junto com outras, sobre a hegemonia, a legitimação, o poder, o discurso, a raça, o gênero, etc. – podem se espalhar tão facilmente já indica sua natureza ideológica. Esses conceitos são nos dados como evidentes e, por causa de todo o comportamento rotineiro que acompanha sua articulação, é de se pressupor que representam quase um tipo de inconsciente teórico, mas, como ressalta Eagleton, esse fato, por si mesmo, não significa que esse inconsciente teórico seja necessariamente falso (pág. 24). A ideologia, no sentido de Althusser, inclui, também, as maneiras como vivemos nossas relações com a sociedade como um todo (pág. 29-30). Portanto, ela pode ser vista como um estilo habitual de percepção que contém tanto componentes afetivos e inconscientes quanto cognitivos e conscientes. Uma coisa é expor as contradições entre o que um texto diz e o que ele faz; outra coisa, porém, é reconhecer que nós mesmos nos acostumamos às contradições entre o que estamos dizendo e o que estamos fazendo. As contradições que expomos, de maneira alguma, erradicam as contradições que vivemos, mas, como conclui Eagleton no seu capítulo inicial: “negar que a ideologia seja fundamentalmente uma questão de razão não significa concluir que ela é totalmente imune a considerações racionais” (pág.: 40).

No que se segue, o autor desenreda as diferentes definições da ideologia, explora a história do conceito desde o Iluminismo ate o Pós-Modernismo e interpreta os maiores filósofos que trataram do assunto. O resultado é, sobretudo, uma crítica política e teórica que desmistifica os clichês oferecidos sob a rótula de “ideologia”. Seguindo esse percurso histórico, surge no leitor atento, repetidamente, um problema conceitual com respeito à noção da ideologia. Parece ser um ponto pacífico que, na sua essência, o conceito da ideologia implica que haja uma verdade objetiva no mundo; uma verdade que, para ser precisa, não pode depender da idéia que nós temos dela. Num ponto de vista mais extremo, isso significa que existem verdades absolutas que são invariantes em relação a qualquer pessoa, grupo ou época, i. e., que assumem o mesmo aspecto em relação a qualquer referencial. Também não há dúvidas que as ciências naturais, durante muito tempo, foram consideradas nossas únicas fontes confiáveis para essas verdades objetivas. Desse modo, os adeptos iniciais da idéia da ideologia acreditaram que pelo uso dos métodos científicos, as crenças falsas da ideologia poderiam ser reveladas e expostas. Todavia, desde os tempos dos gregos antigos, sempre houve pensadores também, que desafiaram a idéia de uma verdade absoluta. A verdade, segundo esses céticos, está no olho do seu portador. Logo, a ciência não revela nenhuma verdade absoluta sobre o mundo; ela simplesmente nos ajuda em fazer as coisas de uma maneira que satisfaz as necessidades dos mais poderosos entre nós. O problema, então, que os não-céticos, como Eagleton, precisam enfrentar, é que sem um conceito claro sobre o que seja uma verdade absoluta toda a idéia da ideologia parece ser fundada numa base muito insegura.

O problema do nosso período histórico é justamente que o clima intelectual é dominado por céticos que questionam a possibilidade de uma verdade absoluta. Assim sendo, o conceito da ideologia, de um lado, corre perigo de tornar-se bastante antiquado; do outro lado, porém, é certo que, ao marxista Eagleton, ele dá uma ótima oportunidade de salvar seu público da falsa consciência provocada pela versão atual do ceticismo, o já citado Pós-modernismo. Conseqüentemente, o autor examina as várias posições que os defensores do conceito (Marx, Lukasz, Althusser) e seus críticos (Nietzsche, Rorty, Derrida, entre outros) assumiram no decorrer da história da filosofia. Em nossa opinião, Eagleton não apresenta

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nenhuma teoria nova ou de sua própria autoria, mas, em vez disso, recorre a exemplos convincentes para ilustrar o valor prático que a idéia da ideologia ainda pode ter nos tempos pós-modernos.

Infelizmente, Eagleton não expressa um interesse maior em explorar as possibilidades das obras dos pós-modernistas e pós-estruturalistas que, com exceção de Michel Foucault, são seus adversários declarados. Mais concretamente, ele não se engaja muito numa leitura de Lyotard ou Baudrillard. Desse modo, dizer que as idéias políticas desses autores sejam enfadonhas ou sem imaginação, num certo sentido, é verdade, mas, num outro, erra o alvo da investigação (op. cit.: 149). Além disso, algumas das suas leituras (por exemplo, de Nietzsche) são delimitadas e ignoram tudo o que não diz respeito, explicitamente, ao assunto da ideologia; o que, às vezes, enfraquece a força dos argumentos do autor.

Em resumo, trata-se de uma introdução exigente no conceito da ideologia e como ela foi interpretada, diferentemente, desde a sua formação no século XVII. Ao leitor que ainda não concebeu o Marxismo como uma escola de pensamento que quer resgatar a noção da ideologia, a leitura desse livro, certamente, sugerirá o contrário. Eagleton tem um incrível talento de transmitir seus argumentos de uma maneira lúcida e convincente e, além disso, sabe, muito bem, apresentar as posições dos diversos autores com os quais interage. Dessa maneira, não se mostra apenas como um excelente escritor, mas também como um leitor extraordinário. “Ideologia” é um livro difícil, mas gratificante para os leitores que se interessam pela questão da ideologia num contexto pós-modernista. Certamente, é preciso ter alguns conhecimentos prévios3 para navegar as rotas nem sempre fáceis do autor, mas se o leitor concorda que muitos das nossas crenças mais enraizadas servem ao interesse dos outros, em vez de promover nossos próprios, e se ele é convencido que as pessoas não adquirem essas crenças aleatoriamente, é certo que ele terá muito prazer em ler “Ideologia”.

3 Recomenda-se como leitura complementar: ALTHUSSER, Louis. Essays on Ideology. London: Verso, 1984 (reprint: 1993). ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx.2a edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. BELL, Daniel. O Fim da Ideologia. Brasília: Editora da UnB, 1980. GEERTZ, Clifford. A Ideologia como Sistema Cultural. In: GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. GERAS, Norman. Marxism and the Critique of Political Economy. In. BLACKBURN, Robin. (ed.) Ideology in the Social Sciences. New York: Vintage Books, 1973. LACLAU, Ernesto. Hegemony and Socialist Strategy. London: Verso, 1985. MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. 4a edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 6a edição. São Paulo: Hucitec, 1987. MCLELLAN, David. Ideology. 2a ed. Buckingham: Open University Press, 1995. MOUFFE, Chantal. Hegemony and Ideology in Gramsci. In: MOUFFE, Chantal. (ed.) Gramsci and Marxist Theory. London: Routledge and Kegan Paul, 1979. THOMPSON, John. Studies in the Theory of Ideology. Berkley, CA: Univ. of Calif. Press, 1984.

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