homossexualidade e preconceito a maldição do mito de uma natureza humana

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   Homossexualidade e Preconceito Homossexualidade e Preconceito: a maldição do mito de uma natureza humana Marco Antônio Gambôa 12  Resumo Este ensaio se propõe a trazer algumas reflexões sobre a questão do  preconceito, priorizando, contudo, a homofobia, especialmente naquilo que diz respeito a eventuais reflexos negativos na constituição da identidade do homossexual. Coloca-se em questão a pertinência das noções de diferença e tolerância, geralmente utilizadas no enfrentamento dos preconceitos em geral e em defesa das minorias. Coloca-se em discussão, igualmente, a noção de liberdade de expressão e seus limites, sobretudo quando considerada em uma sociedade notadamente preconceituosa como é a do Brasil, e, sobretudo, com uma enorme deficiência de leis que coíbam os atos de homofobia. O  pensamento de Michel Foucault aparece no ensaio muito antes como norteador e fonte inspiradora de reflexão do que com a pretensão de uma abordagem conceitual que envolva noções que lhe são próprias, sobretudo na segunda metade do texto. Palavras-chave: Preconceito. Homossexualidade. Natureza Humana. Liberdade de Expressão. Diferença e Tolerância. Mi chel Foucault. Résumé Cet essais se propose d'apporter quelques réflexions sur la question du  préjugé, en priorisant cependant l'homophobie, et tout particulièrement ce qui a trait aux éventuels effets négatifs sur la constitution de l'identité de l’homosexuel. Au long du texte on remet en question la pertinence des notions de différence et de tolérance, couramment très employées dans la lutte contre les pr éjugés en général ainsi qu’en faveur des minorités. Il y est question également de proposer un débat sur l’idée de liberté d'expression et ses limites dans une société manifestement riche de préjugés comme celle du Brésil, d’autant plus lorsque l’on considère la précarité de lois susceptibles de restreindre les actes d'homophobie. Avant tout, plutôt qu’aspirer à faire une approche conceptuelle des notions foucaldiennes, l’auteur se sert de la pensée de Michel Foucault à 1  Doutorando em Filosofia na UERJ com Bolsa FAPERJ. E- mail: [email protected]

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Homossexualidade e Preconceito a Maldição Do Mito de Uma Natureza Humana

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  • Homossexualidade e Preconceito

    Homossexualidade e Preconceito:

    a maldio do mito de uma natureza humana

    Marco Antnio Gamba12

    Resumo

    Este ensaio se prope a trazer algumas reflexes sobre a questo do

    preconceito, priorizando, contudo, a homofobia, especialmente naquilo

    que diz respeito a eventuais reflexos negativos na constituio da

    identidade do homossexual. Coloca-se em questo a pertinncia das

    noes de diferena e tolerncia, geralmente utilizadas no

    enfrentamento dos preconceitos em geral e em defesa das minorias.

    Coloca-se em discusso, igualmente, a noo de liberdade de expresso

    e seus limites, sobretudo quando considerada em uma sociedade

    notadamente preconceituosa como a do Brasil, e, sobretudo, com uma

    enorme deficincia de leis que cobam os atos de homofobia. O

    pensamento de Michel Foucault aparece no ensaio muito antes como

    norteador e fonte inspiradora de reflexo do que com a pretenso de

    uma abordagem conceitual que envolva noes que lhe so prprias,

    sobretudo na segunda metade do texto.

    Palavras-chave: Preconceito. Homossexualidade. Natureza Humana.

    Liberdade de Expresso. Diferena e Tolerncia. Michel Foucault.

    Rsum

    Cet essais se propose d'apporter quelques rflexions sur la question du

    prjug, en priorisant cependant l'homophobie, et tout particulirement

    ce qui a trait aux ventuels effets ngatifs sur la constitution de l'identit

    de lhomosexuel. Au long du texte on remet en question la pertinence

    des notions de diffrence et de tolrance, couramment trs employes

    dans la lutte contre les prjugs en gnral ainsi quen faveur des

    minorits. Il y est question galement de proposer un dbat sur lide de

    libert d'expression et ses limites dans une socit manifestement riche

    de prjugs comme celle du Brsil, dautant plus lorsque lon considre

    la prcarit de lois susceptibles de restreindre les actes d'homophobie.

    Avant tout, plutt quaspirer faire une approche conceptuelle des

    notions foucaldiennes, lauteur se sert de la pense de Michel Foucault

    1 Doutorando em Filosofia na UERJ com Bolsa FAPERJ. E-mail: [email protected]

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    la fois comme axe vecteur et source d'inspiration, notamment dans la

    seconde moiti du texte.

    Mots-cls: Prjug. Homosexualit. Nature Humaine. Libert

    d'expression. Diffrence et Tolrance. Michel Foucault.

    Certo me parece ser que existem vrios tipos de filosofia, vrias maneiras de

    conceb-la, de entend-la, e mesmo de utiliz-la. Contudo, retenho que o pensamento de

    Michel Foucault seja uma ferramenta eficaz para o enfrentamento de muitas questes

    que se encontram presentes em nossa atualidade. Entendo que sua originalidade consista

    em traar uma histria das problematizaes a fim de mostrar a no-evidncia de

    determinadas verdades dogmaticamente enraizadas na cultura ocidental em geral,

    figurando em nossas sociedades como sendo necessrias e universais, especialmente

    naquilo que diz respeito ao ser do homem, ao ser humano.

    Assim, a ttulo introdutrio, recorro a algumas passagens da obra de Foucault

    que me parecem bastante significativas quanto a colocarem em relevo seus objetivos

    centrais enquanto filsofo.

    Em entrevista a Roger-Pol Dorit, em 1975, afirma o seguinte:

    O que me interessa compreender em que consiste este limiar da

    modernidade que pode ser localizado entre o sculo XVIII e o sculo XIX. A

    partir deste limiar, o discurso europeu desenvolveu poderes gigantescos de

    universalizao. [...] No fundo, eu tenho apenas um objeto de estudo

    histrico, o limiar da modernidade. Quem somos ns que falamos esta

    linguagem de tal modo, que tem poderes que so impostos a ns mesmos em

    nossa sociedade, e a outras sociedades? Qual esta linguagem que pode ser

    voltada contra ns, e que ns podemos voltar contra ns mesmos? Qual este

    formidvel entusiasmo da passagem universalidade do discurso ocidental?

    Eis meu problema histrico.3 [grifos nossos]

    Deste modo, para a realizao de suas pesquisas histricas, Foucault toma como

    fio condutor de anlise as relaes entre sujeito e verdade4, e o faz sempre no sentido de

    3 FOUCAULT, Michel. Entrevistas (com Roger Pol-Droit). Traduo Vera Portocarrero e Gilda Gomes

    Carneiro. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 91. 4 Para Foucault, a prpria verdade tem uma histria, e sua concepo de sujeito no a de um sujeito

    dado definitivamente, [...] no a aquilo partir do que a verdade se d na histria, mas [...] um sujeito que se constitui no interior mesmo da histria, e que a cada instante fundado e refundado pela histria. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Traduo Roberto Cabral de Melo Machado e

    Eduardo Jardim Morais. 3 ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008, p. 8 e 10).

  • Homossexualidade e Preconceito

    se posicionar contra a idia de necessidades universais na existncia humana, isto ,

    contra o que nos proposto em nosso saber como sendo de validade universal, quanto

    natureza humana ou s categorias que se podem aplicar ao sujeito.5 [grifos nossos]

    Portanto, ao se referir a discursos com pretenses universais, Foucault o faz nica e

    exclusivamente no sentido daqueles que dizem respeito ao sujeito, ao ser humano, em

    suas relaes com a verdade, e no em sentido amplo, isto , em abrangncia que

    incluiria os seres ou entes em geral. Assim, ao se debruar sobre o passado, procura

    localizar a gnese de discursos sobre o homem com enormes poderes de universalizao

    e ainda hoje praticados nas sociedades ocidentais. Coloc-los em questo de maneira

    crtica significa, para Foucault, mostrar que no esto fundados em verdades universais,

    necessrias, absolutas, atemporais ou a-histricas, mas que, ao contrrio, no passam de

    discursos meramente contingentes, ou seja, de invenes histricas com uma data mais

    ou menos precisa de nascimento. Deste modo, ao expor tais discursos fragilidade de

    suas prprias contingncias histricas, procurando demov-los das zonas seguras e

    confortveis nas quais se enrazam e de onde irradiam verdadeiros preconceitos

    antropolgicos, suas pesquisas objetivam abrir eventuais espaos de liberdade atravs

    dos quais possamos passar a pensar, ser e agir diversamente daquilo que estamos

    pensando, sendo e agindo em nossa prpria atualidade. No por outro responde, quando

    indagado sobre o papel que teria na qualidade de intelectual, da seguinte maneira:

    Meu papel e este um termo por demais pomposo consiste em mostrar s pessoas que elas so muito mais livres do que pensam; que elas tomam

    por verdade, por evidncia alguns temas que foram fabricados em um

    momento particular da histria; e que essa pretensa evidncia pode ser

    criticada e destruda. Mudar algo no esprito das pessoas, este, o papel de

    um intelectual.

    E, assim, completa adiante:

    Um dos meus objetivos mostrar s pessoas que um bom nmero de coisas

    que fazem parte dessa paisagem familiar que as pessoas consideram como universais no so seno resultados de algumas mudanas histricas muito precisas. Todas as minhas anlises vo contra a ideia de necessidades

    5 FOUCAULT, Michel. Foucault. In: Ditos e escritos V: tica, Sexualidade, Poltica. Traduo: Elisa

    Monteiro e Ins Autran Dourado da Motta. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitria, 2011, pp. 234-237.

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    universais na existncia humana. Elas sublinham o carter arbitrrio das

    instituies e nos mostram qual espao de liberdade que ainda dispomos e

    que mudanas podemos ainda efetuar.6 (negritos nossos)

    Em Michel Foucault a filosofia antes uma atitude, um thos filosfico, que

    podemos caracterizar como uma crtica permanente de nosso ser histrico.7 No se trata

    de uma filosofia em sentido tradicional aquelas em que os filsofos se do como tarefa

    a investigao das mais cristalinas verdades sobre os seres em geral para deit-las nas

    pginas de um tratado que toma a forma ordenada de um corpo

    doutrinrio de ensinamentos, versem eles sobre a conduta dos homens; sejam eles

    teorias sobre como melhor pensar, agir, ser; ou ainda uma cartilha ou manual com regras

    sobre os verdadeiros valores tico-morais, revelando, assim, a maneira a partir da qual

    devemos governar a ns mesmos e aos outros. No, Foucault no nos prope nada disso.

    Acredito que o legado que nos deixou com suas obras o de um pensamento que

    , antes de tudo, uma ferramenta, uma maneira de fazer, um modus operandi que

    possibilita, de maneira que entendo assaz eficaz, o enfrentamento de srias e

    gravssimas questes insistentemente presentes no cerne de nossas sociedades e que

    deveriam ser erradicadas, uma vez que agem diretamente e de modo muitas vezes

    desastroso sobre a existncia dos indivduos atravs dos mais variados dispositivos

    disciplinares de normalizao que se encontram apoiados sobre a indissocivel

    imbricao saber-poder8. Tais questes se veiculam capilarmente em todo o corpo social

    atravs de prticas discursivas e tambm no-discursivas que se alastram e se ramificam

    em todas as relaes, sejam elas de trabalho, afetivas, familiares, etc., revelando um

    modo de pensar culturalmente sedimentado e que traz consigo, como sintoma mais

    6 FOUCAULT, Michel. Dits et crits, Tome II (1976-1988). Paris: Quatro / Gallimard, 2001, pp. 1597-

    1598. 7 FOUCAULT, Michel. O que so as Luzes? [What is Enlightenment?, 1984]. In: Ditos e Escritos II:

    Arqueologia das Cincias e Histria dos Sistemas de Pensamento, traduo: Elisa Monteiro. Rio de

    Janeiro, RJ: Forense Universitria, 2008, p. 344.

    8 Para Foucault, saber e poder esto forosamente imbricados entre si, porquanto se trata de uma relao

    necessria, o que significa dizer, portanto, que no so noes absolutas em si mesmas e, por

    conseguinte, tampouco independentes uma da outra. Neste sentido, no h de se falar em saber sem poder

    e vice-versa, ou seja, onde h um, h outro. Como afirma Foucault, o saber aparece ligado, em profundidade, a toda uma srie de efeitos de poder (cf. FOUCAULT, Michel. Entrevistas. Traduo Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 94). Assim, saber-poder ,

    segundo Foucault, uma entidade unificada, perspectiva que retenho paradigmtica no campo filosfico, a

    meu ver tanto quanto , no campo da fsica, aquela assentada por Einstein em 1905 ao formular sua

    Teoria da Relatividade, segundo a qual, contrariamente ao que apregoava a mecnica clssica, espao e

    tempo no so grandezas absolutas e independentes entre si, mas, antes, grandezas necessariamente

    relativas uma outra.

  • Homossexualidade e Preconceito

    evidente, a pretenso de ser o portador de verdades sobre o homem e a convico de que

    a imposio das mesmas se faz necessria enquanto capazes de orient-los e conduzi-

    los, qual um rebanho de dceis ovelhas, ao den, terra prometida, melhor Repblica,

    sociedade ideal, onde, em qualquer desses lugares ou outras idealizadas ilhas da

    fantasia, encontraro definitivamente e de uma vez por todas a to cobiada paz de

    esprito. E como num campo de batalha, tais discursos sobre o homem brigam entre si

    pela posse mesma dos rebanhos, certos, cada qual deles sua maneira, de que so os

    detentores da verdade, do caminho e da vida, manifestando-se culturalmente, sobretudo,

    atravs de discursos cientficos, religiosos, filosficos, polticos, etc. Quer isolada ou

    mancomunadamente, encontram-se todos eles animados por um mesmo mito, que o

    mito de uma natureza humana, materializado no interior da sociedade sob a forma de

    prticas de excluso, as quais podem variar segundo os pressupostos dos discursos de

    verdade que pregam. De uma maneira ou de outra, o que se constata a excluso

    daquelas que so as ovelhas negras, que no apenas destoam dos dceis rebanhos de

    ovelhinhas bem comportadas, como, sobretudo, so vistas como perigosas,

    ameaadoras, nocivas, devendo, portando, ser excludas. Como laranjas podres que

    devem ser retiradas do cesto para no apodrecerem as outras, a excluso de

    determinados seres humanos se impe para que no contaminem os demais pela suposta

    deformao que portam, seja sob a forma de doena psquica, de manifestao

    demonaca, de ato de rebeldia, de desvios morais, ou, to simplesmente, por pensarem,

    agirem e serem de outra maneira que no aquela instituda, permitida, aceita e entendida

    como padro cultural. Tais prticas de excluso terminam por reservar a determinadas

    pessoas ou grupos de pessoas espaos marginais que se configuram como efetivas zonas

    de exterioridade no interior mesmo do corpo social, contradio que gera conflitos de

    identidade a partir da percepo simultnea de pertencimento e no-pertencimento a tais

    espaos, seja daqueles internos dos quais se sentem excludos, seja dos externos nos

    quais no se reconhecem.

    Conforme mencionado acima, Foucault enfrentou tais questes recorrendo

    histria por entend-la indispensvel enquanto procedimento crtico capaz de fazer

    emergir dos prprios discursos a fragilidade dos fundamentos sobre os quais se apoiam.

    Assim, escreveu a histria do que denominou de focos de experincia, para ele

    importantes em nossa cultura ocidental: experincia da loucura, experincia da doena,

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    experincia da criminalidade e experincia da sexualidade. Sustentando a tese de que

    haveria uma medicalizao de nossa cultura ocidental e de que o homem enquanto

    problema de ordem cientfica uma inveno recente, que data mais ou menos do incio

    do sculo XIX, procurou mostrar de que maneira o pensamento ocidental permanece

    ainda hoje debruado, insistente e obstinadamente, sobre a pergunta O que o

    homem? 9, adormecendo, deste modo, em um sono antropolgico, inebriado que se

    encontra nas quimeras de dar uma resposta verdadeira e inabalvel a esta questo que

    pergunta pelo ser do homem em termos cientficos, ou seja, sempre em busca de revelar

    as verdades supostamente escondidas no mito de uma natureza humana. assim,

    portanto, que vemos nascerem as cincias humanas, as cincias do homem: a psicologia,

    a antropologia, a historiografia, a sociologia e, sobretudo, a medicina moderna,

    matriarca poderosa de todas as cincias do homem. esta ideia, a de uma natureza

    humana e a possibilidade de se conhecer suas leis, o que ainda hoje vemos animando a

    maioria dos discursos sobre o homem e resultando nas mais diversas prticas de

    excluso. Entenda-se bem que o sentido do termo natureza em natureza humana aparece

    aqui cristalinamente enquanto vinculado ideia de lei, tal qual o concebemos quando

    nos referimos s leis da fsica, das cincias da natureza, como, por exemplo, a lei da

    gravidade universal. Lei aqui enquanto aquilo que tem que ser de um determinado modo

    e no pode ser de outro; como aquilo que imperiosamente necessrio, como coisa

    universalmente vlida para todas as coisas (homens) em qualquer lugar (espao) ou

    poca (tempo). Portanto, aquilo que absoluto e que, por definio, no se relativiza:

    vale para todas as culturas, todas as eras; vale para todos os povos, todos os tempos;

    vale para todas as sociedades, todas as pocas, vale para todos os indivduos, todos os

    dias, agora e sempre por todos os sculos dos sculos ... Portanto, vem acoplada ideia

    de uma natureza humana a pressuposio de que h no humano caractersticas

    comportamentais que so necessariamente comuns a todos os homens,

    independentemente de qualquer coisa. Deste modo, a partir da inveno do mito mesmo

    de uma natureza humana, a busca de tais caractersticas aparece como possibilidade de

    se compreender o humano e classific-lo segundo ntidas linhas divisoras a partir de

    suas funes e disfunes, formaes e deformaes, normalidades e anormalidades,

    ajustes e desajustes, enfim, enquanto categorias causais que possam dar conta, dentre

    9 Cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Traduo Salma Tannus Muchail. 9 ed. So Paulo:

    Martins Fontes, 2007, pp. 471-472.

  • Homossexualidade e Preconceito

    outros, do anatmico, quando se trata do neural, ou do psquico, naquilo que se refere ao

    mental, invenes que se fundam no saber cientfico enquanto capaz de identificar e

    controlar eventuais distrbios comportamentais. Sem dvida, h tambm neste espao,

    e a lutar por ele, como j dito acima, a presena da fundamentao religiosa, uma vez

    que ela tambm disputa o lugar de soberania com seu discurso enquanto sendo o

    legtimo portador das mais puras verdades sobre o homem. De uma maneira ou de outra,

    estaramos sempre na seara dos mitos. Ora, pergunta-se: o que se constata quando se

    trata de pensar as consequncias prticas sobre os indivduos ao se perceberem inseridos

    neste obscuro contexto discursivo de verdades que pretendem dizer a eles quem so e

    como devem ser, e, sobretudo, quem no podem ser? Certamente que as consequncias

    so muitas e desastrosas. a prpria crena cega em uma natureza humana como lei que

    se v materializada no corpo social atravs de prticas discursivas detentoras das

    verdades sobre o comportamento humano, pressupondo obstinadamente que h algo de

    necessariamente idntico em todos e que deve reger uniformemente a maneira de falar,

    de sentir, de pensar, de agir, de interagir, etc. Para ns, herdeiros de uma lgica binria e

    ainda seus fiis praticantes, restam ento duas opes: ou somos iguais aos outros ou

    somos diferentes. Se formos diferentes, pois bem, somos estranhos, estamos de fora,

    margem, em uma zona de desconforto. Pior ainda talvez seja perceber os bem

    intencionados, sobretudo acadmicos, que insistem em discursos sobre a necessidade

    de incluso dos diferentes. Reafirmam o discurso do reconhecimento das diferenas e

    fazem apelo s prticas de tolerncia, sem talvez se darem conta, todavia, de que mais

    no fazem seno a repetio de discursos que pretendem erradicar. Tolerncia tem a ver

    com favor, com pena, com benevolncia; quer dizer aturar, ter pacincia com;

    concesso de benefcios que na prtica cotidiana podem parar de existir a qualquer

    momento se o tolerado extrapolar os limites que lhe foram reconhecidos e cedidos por

    aquele que generosamente o tolera: perde-se a pacincia, no mais se atura, no mais se

    tolera, e ponto final. Por outro lado, vemos o discurso da diferena, palavra de ordem

    atualmente. Que diferena pode haver entre dois seres humanos se quisermos v-los

    apenas e to-somente como seres humanos? Nenhuma, certamente. Mas se quisermos

    levar em conta categorias inventadas, como a de que poderia haver outro tipo de raa

    humana por debaixo da cor da pele, como a opo sexual, a f religiosa, a afinidade

    poltica, etc., a sim, poderemos discursar tranquila e soberanamente sobre diferena e

    tolerncia, mas no sem admitirmos que elas implicam, tambm, indiferena e

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    intolerncia. Isso tudo termina por dar no mesmo, j que tolerar no fundo uma atitude

    de indiferena que se deve manter em relao ao que se pressupe diferente. Assim,

    quando se trata de afirmar a existncia de algo como uma natureza humana comum a

    todos os seres humanos, o que se est a fazer a delimitao entre eles a partir de

    identidades e diferenas, de modo que o diferente passa a ser entendido como no

    pertencente ordem de tal natureza humana, j que nela esto contidas apenas as

    identidades, ainda que do outro lado, os diferentes sejam diferenciados e agrupados

    entre si a partir de identidades especficas, e assim adiante numa esquisita regresso ao

    infinito. Importa que, na prtica, se algum se mostra diferente disto que vem a ser

    caracterizado miticamente como a identidade humana como coisa ideal, a concluso

    clara no campo real: trata-se de uma aberrao, de um defeito, de uma anormalidade, de

    algo que est fora dos padres do humano, que est margem, que marginal, e

    marginal aqui em todos os sentidos negativos que o termo pode abrigar. Duas

    possibilidades da decorrem: por um lado, se o defeito no for to grave, significa dizer

    que pode ser corrigido, e, neste caso, a soluo encaminhar este algum a casas de

    correo moral, mental, educacional, psquica, etc., segundo o desvio certamente

    oriundo de uma m formao, e menos, talvez, de uma m fabricao, qual a pea

    defeituosa de uma mquina que apenas um recall resolveria. A liberdade em tais

    situaes tolhida provisoriamente, at que uma junta de sbios, vinda provavelmente

    de algum orculo, decida que a pessoa j foi consertada e est agora apta a retornar ao

    convvio social, mas com a condio de se portar, de se comportar, de se conduzir de

    maneira idntica aos demais, ou seja, sendo tolerada novamente desde que esteja em

    plena conformidade com as leis mticas da natureza humana e no se comporte mais

    como diferente disso. Quando no tem jeito, interna-se definitivamente, enclausura-se,

    exclui-se do convvio social, tolhe-se a liberdade definitivamente, lobotomiza-se, ou

    mesmo executa-se, retirando-lhe no apenas a liberdade, mas a prpria vida. Enfim, o

    que importa dar um jeito de se evitar, de uma maneira ou de outra, o risco nocivo que

    pessoas com defeitos to graves e muitas vezes tidos como irrecuperveis oferecem aos

    demais. O que est em jogo o tipo de punio (soluo) que se pratica em funo do

    fator de risco que tais degenerados (problemticos) trazem quanto a desvirtuarem os

    demais, como a velha laranja podre.

  • Homossexualidade e Preconceito

    Ora, uma coisa certa quando se afirma o mito de uma natureza humana:

    preconceitos antropolgicos! Sim, preconceitos antropolgicos, pois na medida em que

    se conceitua o homem como tendo que ser isso ou aquilo, todos que no se enquadrem

    neste modelo pr-determinado sero vistos, forosamente, como estando em uma

    condio ou estgio que poderamos chamar de pr-humano, inferior, abaixo, menor,

    fora, ao lado, mas no dentro. Conceituar definir, delimitar, determinar, criar um

    espao bem preciso com claras margens dentro das quais deve estar contido o ser. Um

    espao conceitual certamente imaginrio que contm um fim (definir), um limite

    (delimitar), um trmico (determinar), isto , um espao que possui uma linha divisria

    ntida dentro da qual se encerra o ser e a partir da qual, para o lado de fora, comea o

    no-ser. Conceituar o ser humano a partir da ideia de uma natureza humana fazer com

    ele exatamente a mesma coisa. Contudo, se considerarmos que todos os discursos que

    assim o fazem tendem, em ltima instncia, ao tico-poltico, parece ntido que isso

    significa trancafi-lo dentro de um espao comportamental que o do ser do homem, do

    ser humano natural, deixando de fora o que no do ser do homem, o que no natural,

    o que no-ser humano sendo humano. Curiosamente, o espao de fora, que o da

    excluso, parece ser muito maior do que o de dentro que enclausura, ilimitadamente

    maior, livre, e mesmo tentadoramente mais atrativo, se que a liberdade de fato pulsa

    em ns. O espao de dentro, ainda que possa figurar como uma zona de conforto, de

    segurana, parece conter tambm em grmen o medo diante do risco do ser vir a ser

    no-ser, de se tornar idntico ao diferente que se exclui, que est de fora, que

    marginal. O medo de perder a razo, a sanidade, e se tornar o homem da desrazo, o

    insano, j que a desrazo tambm pode habitar em ns em potncia. O medo de se tornar

    animal furioso, porque o predador tambm pode estar adormecido em ns. E o que

    poderamos dizer quanto ao medo de se tornar homossexual? Ser que a homofobia no

    o medo de ver despertar em si mesmo a homossexualidade? Seja como for, parece que

    ser e no-ser coabitam no humano, onde ser tambm no-ser. Talvez no por outro se

    diga diante de um comportamento que se reprova: voc no est sendo humano!

    Em todo caso, a obsesso cientfica qual me refiro apenas um dos sintomas

    em que preconceitos antropolgicos se manifestam e so alimentados em nossas

    sociedades ocidentais; apenas uma das formas discursivas dentre as tantas manifestaes

    preconceituosas que se encontram profundamente enraizadas em nossa cultura, todas

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    reivindicando para si as regras de um mesmo modo de ser, de pensar e de agir como

    sendo o modo correto, verdadeiro. O que a histria nos mostra, como to bem

    demonstrou Michel Foucault, que todos estes preconceitos antropolgicos foram

    inventados em um determinado momento do passado e que muitos deles continuam

    ainda vivamente presentes em nosso presente. So estes os focos de experincia, de

    experincias humanas vividas por indivduos que se defrontam consigo mesmos e com

    os demais, atravs da experincia da loucura, da criminalidade, da homossexualidade,

    do racismo, enfim, de todas essas manifestaes da experincia humana e que so

    transformadas em problemas por alguns outros humanos que alimentam em si mesmos o

    direito a discriminaes, marginalizaes, excluses, escravizaes, perseguies,

    linchamentos, espancamentos, (in)diferenas, (in)tolerncias, execues. A histria

    vergonhosamente nos mostra que podem chegar ao ponto mais extremo e sombrio onde

    habita a monstruosidade do mito de uma natureza humana, materializando-se atravs do

    extermnio dos diferentes nos campos de concentrao da ariana Alemanha nazista.

    A cultura, atravs de muitas invenes histricas, j nos diz a priori qual

    figurino devemos vestir antes mesmo de nascermos. Uma pessoa negra, por exemplo,

    em uma cultura vergonhosamente racista como a nossa, j tem uma histria, j tem um

    lugar pr-determinado, j tem sua espera pr-conceitos sobre quem ela , sem nem

    mesmo ter comeado a existir enquanto indivduo. Assim se d tambm com a mulher:

    ela j tem seu papel social e as regras para sua conduta antes de aportar numa sociedade

    inescrupulosamente machista como a nossa. O mesmo se pode dizer sobre os

    homossexuais, que se compreende e se reconhece como sendo de uma maneira que a

    sociedade diz que no podem ser, que proibido ser. Experimentam todos na pele, no

    corpo e na alma o que significa viver sob a intimidao constante do preconceito. Antes

    mesmo de nascerem, de existirem, de estarem aqui, so j marginalizados,

    desqualificados, desprezados, reprovados, desrespeitados, perseguidos, vigiados,

    culpados e punidos: j nascem com seus pecados originais. Os preconceitos so todos

    pecados originais. Um mito que se perpetua e se esconde disfaradamente nos saberes

    sobre o homem que se valem da concepo de uma natureza humana como coisa inata,

    seja porque assim reza a bblia ou a gentica, ambos frutos de crenas culturais,

    entendida aqui a cultura em toda a abrangncia dos saberes que ela mesma abriga.

    ***

  • Homossexualidade e Preconceito

    Apenas em 1973 a homossexualidade deixou de ser considerada pelas principais

    organizaes mundiais de psicologia como doena, distrbio ou perverso, passando a

    no mais ser vista como um problema para o qual at ento era preciso encontrar cura,

    tratamento, regenerao. No Brasil, somente em 1985 o Conselho Federal de Psicologia

    passou a adotar tal entendimento em relao homossexualidade. estarrecedor que

    no antes de 1990 a Organizao Mundial de Sade tenha decidido retirar a

    homossexualidade do rol de doenas mentais. Portanto, o que se v, com efeito, que a

    homossexualidade, enquanto problema mental, algo que deixou de ser um problema h

    pouco mais de vinte anos. Noutro dia. Ontem praticamente.

    Recentemente alguns pases tm reconhecido legalmente a unio matrimonial

    entre pessoas do mesmo sexo. Por outro lado, contudo, a homofobia se manifesta das

    maneiras mais assustadoras em nossa sociedade atravs de crimes contra homossexuais

    e mesmo pela tentativa de se impedir a aprovao de leis que no mais manteriam os

    homossexuais fora de muitos dos benefcios cidados que gozam os casais

    heterossexuais.

    Tais dados estatsticos ilustram suficientemente bem o quo recente , em termos

    concretos, porquanto histricos, a concepo, a conceitualizao, o conceito mesmo que

    no mais aprisiona os homossexuais dentro da categoria de doena mental, como uma

    anomalia, uma degenerao psquica, ou ainda como crime (em alguns pases estejam

    sujeitos pena de morte). Isso no significa dizer, todavia, que a homossexualidade

    tenha passado a ser aceita pelas sociedades com naturalidade por fora da lei que no

    mais criminaliza ou da cincia que no mais a diagnostica como enfermidade.

    importante salientar que mesmo diante de mudanas de perspectivas por parte da lei e da

    cincia, o que se tem na verdade so apenas dois dos muitos sintomas de um modo de

    pensar tiranicamente preconceituoso que se encontra agarradamente enraizado em nossa

    cultura ocidental e que apenas agora passam a ser revistos. Tomemos como exemplo a

    Frana, terra de la libert, de lgalit, de la fraternit, palavras to retumbantemente

    bradadas no sculo XVIII e que, no entanto, no foram as que ouvimos na numerosa

    marcha de preconceituosos que h pouco vimos naquele pas em manifestaes,

    felizmente fracassadas, contrrias legalizao do casamento entre pessoas do mesmo

    sexo. Mais espantoso ainda ver que a defensora incansvel pela aprovao da unio

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    estvel entre pessoas do mesmo sexo, a ministra da justia da Frana, Christiane

    Taubira, que negra, vem sendo vtima, ela mesma, dos mais ferozes ataques racistas

    por parte dos franceses. Ademais, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos,

    avanou-se, tambm muito recentemente, na questo do reconhecimento legal de casais

    homoafetivos, pases que, percebamos, esto dentre aqueles considerados os mais

    democrticos do mundo. Talvez seja mesmo preciso rever nosso conceito de

    democracia, modelo que deita bero na machista cultura grega arcaica. No por outro

    que em alguns importantes pases ocidentais ditos democrticos as mulheres vieram a

    ter direito a votar, a participar da plis, do gora, apenas no sculo XX, ou seja,

    levamos mais de dois milnios para concluirmos que deveramos nos desembaraar

    desta obtusa herana helnica. H certamente inmeras outras malditas heranas gregas

    to retrgradas quanto, as quais ainda as exaltamos, como a ideia de bem, por exemplo,

    que por fora deve implicar seu no-ser, isto , a ideia de mal. Alis, Nietsche j alertou

    quanto a isso com suas marteladas: desembaraar-se destas ideias ir Para alm do bem

    e do mal. Mas deixemos a Grcia quieta, embora ainda hoje seus ecos repercutam

    fortemente entre ns, ocidentais.

    Importa que os preconceitos, seja de onde quer que se originem, existem como

    coisa real e interferem maciamente na maneira como os indivduos se constroem, como

    se veem e se reconhecem como sujeitos, como seres no mundo, um mundo onde h as

    mais diversas formas de discriminao. Pode fazer, e faz na maioria das vezes, com que

    no apenas se sintam marginalizados, desqualificados, inferiorizados, apequenados,

    como tambm pode levar a se convencerem de que de fato so tudo isso, ou melhor, que

    nada so aos olhos dos que os discriminam. Isto pode gerar insegurana, medo,

    desconfiana, culpa, complexos e outros tantos sentimentos negativos que podem levar a

    um desconforto existencial se transportados para dentro de si, interiorizados at que

    passem a fazer parte constitutiva da prpria personalidade, uma espcie de adulterao

    que pode impedir, de alguma maneira, que relaes afetivas livres e saudveis sejam

    estabelecidas com o mundo, com as pessoas, e, sobretudo, com aquelas com as quais se

    entra em relaes mais ntimas de amor e sexo. No caso dos homossexuais, cresce-se

    sendo ensinado que se trata de um amor proibido e que no se tem o direito de viv-lo

    como coisa real. Ensinam que o sexo depravado e no passa de indecncia, algo que

    deve ser controlado e sufocado dentro de si mesmo para no se cair em tentao e se

  • Homossexualidade e Preconceito

    livrar do mal de um desejo socialmente indesejvel. At que ponto tais coisas so

    aprendidas e assimiladas como verdades por aqueles discriminados? Afinal e, sobretudo,

    no em nada desprezvel a fora que as palavras e atitudes de um pai e de uma me

    tm na formao da personalidade, seja em que sentido for. E o que fazer diante da

    contradio entre o desejo que pulsa naturalmente no mundo interno em face do mundo

    externo que o repulsa? Para muitos, uma possvel soluo se encontra no caminho que

    leva ao claustro, que pode ser o dos monastrios, por exemplo. L ou no, o pior dos

    claustros est na escolha do caminho que conduz a esconder-se dentro de si mesmo, no

    voto ao silncio do que proibido expressar, no sufocamento de si mesmo e do desejo

    de amar. Creio que seja possvel cogitar que a represso do desejo de amar termine se

    manifestando e saindo por uma vlvula de escape que leva ao individualismo, ao

    egosmo, ao narcisismo, j que parece sobrar s o espelho como possibilidade de se ver

    no mundo, amando a si mesmo e sendo amado por seu prprio reflexo, vivendo em si

    mesmo e sem culpa um amor que pecado original para alm da cumplicidade do

    espelho.

    Como aceitar a homossexualidade e conviver com ela como coisa natural se a

    sociedade em geral diz que no o , que no faz parte da natureza humana? certo que

    cada um tem sua prpria percepo de mundo e reage s coisas de maneira prpria, e

    embora para muitos homossexuais a homossexualidade no se apresente diretamente

    como sendo um problema para eles mesmos, isto no os faz estarem livres de

    preconceitos, humilhaes, agresses. Como em todo preconceito, uma coisa a

    percepo que algum tem de si mesmo, outra a que este algum percebe que a

    sociedade tem de si atravs dos muitos aterrorizadores olhos algozes que o espreitam.

    Seja como for, se naquele que se percebe homossexual h, em seu mais ntimo

    ser, a informao interna que lhe diz a si mesmo que sua homossexualidade coisa

    natural, que no doena, no distrbio, nem perverso, mas, ao mesmo tempo,

    percebe tambm que a sociedade o contradiz lhe informando que no coisa natural,

    que ele sim um doente, um disturbado, um pervertido, que precisa de tratamento,

    ento, parece haver a um conflito de identidade, uma contradio propriamente dita. Ou

    ele se identifica com uma coisa ou com a outra. Ou ele constitui e constri sua

    identidade fundando-a no princpio do reconhecimento de si mesmo como sendo uma

    pessoa como as outras, ou se aceita e se reconhece na condio do patolgico. Ou ele se

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    formula como sujeito livre para ser o que , o que deseja ser, o que quer ser, ou fica

    sujeito ao que determinam que deva ser, desejar e querer. Evidentemente, h entre os

    extremos infinitos caminhos a seguir, mas no extremo onde reside o sem preconceito

    que ele deveria inexoravelmente se colocar, mas a preciso muita coragem, muita luta,

    muitas batalhas, tantas guerras, se de fato quiser ocupar o espao legtimo que sabe ter

    direito dentro de uma cultura onde, na verdade, haver sempre algum que jamais

    admitir tal legitimidade, e isto ele mesmo nunca poder esquecer, porque dever estar

    sempre atento s emboscadas, aos ataques, pois embora tudo possa parecer bem

    solucionado, normalizado, h sempre o risco de manifestar sua homossexualidade na

    hora e no lugar errados. Haver sempre um estado de alerta permanente, estado de

    sobrevivncia mesmo, que no o deixar jamais esquecer que ele homossexual e vive

    em uma sociedade perigosamente preconceituosa. Ele no pode se esquecer do que o

    preconceito e de onde so capazes de chegar as aes dos homofbicos, o que significa

    dizer que o preconceito tem que habitar para sempre dentro dele, ou seja, que ele jamais

    poder apenas ser e estar no mundo como uma outra pessoa qualquer.

    Discute-se tanto sobre os limites da liberdade de expresso como sendo um dos

    pilares fundamentais de um estado democrtico de direito, que ento cabe aqui

    perguntar: como entender que no h fragilidade nos discursos que acreditam que a

    nica maneira que o ser humano se expressa pela palavra? Ora, se a questo da

    liberdade de expresso no fundo uma questo de comunicao, e se isto implica a

    veiculao de uma informao, ento os homossexuais em geral se encontram privados

    de tal direito dito fundamental, o que quer dizer, tambm por este vrtice, pois h

    inmeros outros, que nosso estado no , de maneira alguma, um estado democrtico de

    direito, at porque direito e dever so indissociveis em um estado que se pretenda como

    tal. O homofbico s manifestar sua animalidade perversa ao se sentir provocado,

    ameaado, acuado, com medo mesmo, como etimologicamente significa o termo fobia;

    um medo que d ensejo agresso quando diante de si percebe a presena, para ele

    ameaadora, de um homossexual. Para que isso no ocorra, para que seja evitado, deve

    o homossexual se esconder, calar-se, no expressar, no comunicar, de modo algum, sua

    condio de fcil e indefesa presa dos preconceitos homofbicos. Fcil e indefesa

    porque o tal do estado dito de direito democrtico no impe ao homofbico e a todos

    os preconceituosos, na forma punitiva da lei, a obrigao inegocivel, o dever em seu

  • Homossexualidade e Preconceito

    sentido mais pura e cristalinamente democrtico do necessrio respeito liberdade de

    expresso, da expresso de se poder ser o que se . Os homofbicos s se sentem livres

    para ameaar a liberdade de expresso dos homossexuais porque no h leis que os

    ameacem em sua prpria liberdade, que os obriguem a guardar dentro de si seus

    pensamentos e no os expressar de modo algum. Toda forma de preconceito

    intimidadora, interfere na intimidade do outro e o fora a estar timidamente recolhido

    dentro de si.

    Penso que as pessoas tm feito muita confuso quando defendem que a liberdade

    de expresso deve ser coisa ilimitada e no pode ser censurada. Tomemos o prprio

    exemplo do preconceito racial e percebamos que a liberdade de expresso no coisa

    assim to irrestrita na forma da prpria lei, ao menos em nosso pas. Que o

    preconceituoso se sinta livre para pensar o que bem quiser pensar sobre uma pessoa

    negra, pois bem, isso diz respeito liberdade de pensamento dentro do limite de sua

    prpria conscincia. Todavia, que ele no ouse imaginar que livre para retirar da

    caixinha de sua conscincia seus pensamentos ftidos para express-los na forma que

    for, seja verbalizando-os por palavras ou demonstrando-os por aes, porque se o fizer,

    estar cometendo um crime inafianvel na forma da lei, e, portanto, perder de

    imediato sua liberdade no sentido mais pleno: ser colocado atrs das grades por ter

    atentado contra o ntimo de outra pessoa ao supor que no tinha a obrigao de respeit-

    la, o dever mesmo de manter seus pensamentos preconceituosos enjaulados dentro de

    seu prprio ntimo, no silncio mesmo da caixinha de sua conscincia defeituosa.

    Percebamos, portanto, que no h liberdade de expresso neste sentido, e ainda que o

    preconceito racial no seja varrido de nossa sociedade por fora da lei que criminaliza a

    discriminao racial, ela ao menos intima os racistas e os faz pensar duas ou mais vezes

    antes de se manifestarem. Assim tambm protege hoje as mulheres a Lei Maria da

    Penha. Contudo, quando se trata de homofobia, a situao ainda, lamentavelmente,

    outra.

    Vemos escorrer da boca de bolsonaros e felicianos uma quantidade assustadora

    de pensamentos podres e fedorentos sem que nada lhes acontea. Por qu? Porque no

    h leis que os intimidem e obriguem a guardar dentro de si mesmos as verdades que

    acreditam possuir, oriundas certamente da alucinao que lhes faz crer serem profetas

    com a misso de zelar sobre a tal da natureza humana, permitindo, assim, que impune e

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    livremente as expressem atravs de seus discursos maledicentes. Certamente, mais do

    que as ofensas, agresses e desrespeitos impostos por essa corja de seres macabros, o

    que mais aterroriza constatar o quanto se est desprotegido e desamparado por lei

    diante das ameaas concretas que podem resultar dos discursos destes facnoras em

    potencial e da matilha de lobos vorazes que alimentam e adestram contra as ovelhas

    para eles negras. Inimaginvel o estrago que fazem na formao da identidade de uma

    criana que se percebe homossexual e ouve tais discursos esprios: no mnimo o risco

    de deformao da personalidade ante o terror que pregam. Em um estado de direito

    democrtico que se preza enquanto tal, no pode haver nenhuma liberdade de expresso

    para pensamentos to injuriosos em detrimento da liberdade de expresso de algum

    poder ser o que , de manifestar sua identidade, porque tais pensamentos ultrajantes no

    se sustentam seno no mito de uma natureza humana e na prepotncia de alguns

    fanticos que resolveram ser os senhores do caminho, da verdade e da vida dos outros.

    A verdade que pregam a partir do saber que dizem possuir tem efeitos de poder

    desastrosos. Vo to longe, que chegam mesmo a interferir nos Poderes da Repblica.

    Ainda hoje se fala em tratamento contra a homossexualidade dentro do Congresso

    Nacional, com projetos que tentam impor a cura gay e derrubar a resoluo 01/99 do

    Conselho Nacional de Psicologia, que probe que se prometa tal tratamento por parte

    dos psiclogos. Apenas em um pas que passa ao largo da noo de estado democrtico

    de direito, ignora a Declarao Universal dos Direitos Humanos e despreza sua prpria

    Constituio, que um deputado homofbico fundamentalista consegue ser eleito por

    seus pares como presidente da Comisso de Direitos Humanos e Minorias da Cmara

    dos Deputados, de onde profere os mais inescrupulosos discursos.

    Diante de tal quadro, que pode ser infinitamente mais aterrorizante do que estas

    parcas palavras conseguem representar em face da realidade cotidiana da homofobia, h

    toda uma enorme srie de efeitos que da decorrem e que, objetivamente, terminam por

    afetar todo o processo de constituio e construo da identidade, da personalidade, do

    Eu, ou seja, a prpria subjetivao daquele que vive a experincia de ser homossexual

    em uma sociedade como a nossa. Fazem com que a percepo que muitos homossexuais

    tm de si mesmos interfira de maneira danosa na prpria psique a partir da

    interiorizao do mantra do preconceito social que expressa cruelmente o entendimento

    da homossexualidade enquanto anomalia, perverso, doena, distrbio, possesso

  • Homossexualidade e Preconceito

    demonaca, etc.. Creio que muitos, ainda hoje, em pleno alvorecer do sculo XXI, e

    mesmo apesar de alguns avanos no sentido de um respeito aos homossexuais por parte

    de algumas parcelas da sociedade, ainda assim, muitos so aqueles, sobretudo os jovens,

    que se encontram em permanente conflito de identidade, na dificuldade mesma do

    reconhecimento de si na condio de homossexual, sem que isto no seja percebido por

    eles como um grave problema. Por mais que observemos mudanas positivas neste

    sentido, no devemos nos enganar achando que esta realidade esteja presente tambm

    para alm de pequenas ilhas, de alguma maneira livres de preconceitos, que podemos

    encontrar em alguns bairros de algumas grandes cidades. Com efeito, de um modo geral,

    a escola, a famlia, o ambiente de trabalho, o bairro, o nibus, o bar, a praia e outros

    tantos espaos de necessrio convvio social, independentemente dos nveis

    socioeconmicos, continuam sendo extremamente inspitos quanto atitude de algum

    que resolve se assumir e se expressar homossexual. O que quer dizer a expresso sair

    de dentro do armrio seno sair de dentro de si mesmo e mostrar a cara ao mundo para

    poder ser o que se ? O armrio a armadura em que se protegem e onde devem estar

    por imposio de uma cultura predominantemente preconceituosa que os intimida.

    Certamente no por outro se percebe a existncia de guetos gays nas cidades. Segundo o

    Dicionrio Houaiss, gueto , por extenso de sentido, todo estilo de vida ou tipo de

    existncia resultante de tratamento discriminativo.10 Neste sentido, equivale dizer que

    so espaos prprios nos quais alguns homossexuais podem enfim fazer valer o

    exerccio da liberdade de expresso de suas existncias como elas so, de seus prprios

    estilos de vida, de suas identidades sem contradio, e certamente com a percepo de

    estarem longe de riscos possveis, livres de medos. Todavia, no deixam de ser espaos

    de excluso, de auto excluso forada.

    O preconceito est muito mais estranhado culturalmente em nossa sociedade do

    que talvez parea. Em nossa sociedade machista, o jovem macho, se desde cedo no

    provar aos outros sua virilidade, seu ser garanho, comedor de garotinhas, corre o risco

    de virar motivo de chacota. Seu desempenho como macho colocado prova a cada

    instante, inclusive em famlia, atravs de diversas cobranas sutis neste sentido.

    Ademais, curioso notar tambm o quanto o preconceito est sub-repticiamente

    presente, de maneira contraditria, em sentenas politicamente corretas, como eu

    10

    HOUAISS, Antnio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionrio Houaiss de Lngua Portuguesa. Rio de

    Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1496.

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    respeito a opo sexual de cada um, que muitos verbalizam no sentido de afirmar que

    no nutrem preconceitos contra os homossexuais. Contudo, e ainda que a inteno seja

    esta, dizer que se trata de uma opo denota uma falcia, porquanto implica admitir que

    uma escolha foi feita segundo a livre vontade individual, ou seja, a escolha pela

    preferncia de ser homossexual. Donde, somos levados a concluir que devemos admitir

    tambm que a escolha poderia ter sido no sentido de ser um heterossexual, mas, sabe-se

    l o motivo, diro alguns, resolveu ser homossexual. Ora, se de fato se trata de uma

    opo sexual, ento devemos esperar, com toda legitimidade, que um heterossexual

    possa e deva responder seguinte pergunta: em que momento de sua vida voc resolveu

    fazer a opo por ser um heterossexual? Imagino que isto nunca tenha sido um

    problema, uma questo propriamente dita, para um heterossexual, ao passo que para

    alguns homossexuais, sim, pois imagino que muitos deles talvez tenham desejado ou

    ainda desejem poder fazer a opo pela heterossexualidade, e isto no porque terem

    nascido com esta questo, com este problema, mas apenas porque aprenderam com a

    sociedade que ser homossexual um problema, e dele, seguramente, muitos desejariam

    se livrar. Contudo, colocada a questo nos termos acima, no me parece nada evidente

    que algum heterossexual admita que sua heterossexualidade se trate de uma escolha

    feita por ele em algum momento de sua vida, como tampouco o admitiria, creio,

    qualquer homossexual. No temos sobre nossa vontade nenhuma possibilidade de alterar

    o que acredito ser totalmente natural, no sentido mesmo de lei, daquilo que no pode ser

    de outro modo, alm de acreditar tambm que qualquer tentativa de reprimir o que

    natural resulte naturalmente em algo desastroso para o prprio indivduo, a menos que

    faamos eco com aqueles que acreditam na cura. Trata-se da natureza individual de

    cada um, e no da natureza humana em geral; trata-se de singularidade, de

    individualidade. Assim, se possvel fazer algo em relao homossexualidade no

    sentido de uma opo, isto no reside em absoluto na questo de ser ou no ser

    homossexual, mas de se assumir ou no como sendo homossexual face ao preconceito

    construdo socialmente em relao homossexualidade.

    Fato que por conta do preconceito muitos homossexuais no se sentem

    naturalmente aceitos como pessoas normais no ambiente familiar, escolar, social em

    geral, o que os leva a no se aceitarem a si mesmos, provocando enormes conflitos

    existenciais durante a construo da prpria personalidade a partir de contradies de

  • Homossexualidade e Preconceito

    identidade advindas da encruzilhada entre o no querer assumir sua sexualidade e o fato

    de perceber que nada poder fazer contra isso. Certamente apenas os homossexuais

    experimentam o que ser criana nestas condies, e ainda que talvez nem todas as

    crianas homossexuais passem por isso, acredito que muitos se viram ou se veem ainda

    hoje s voltas com toda uma gama de questes e conflitos dos quais crianas

    heterossexuais esto livres. Crescem de maneira completamente diversa. Assim, a

    impossibilidade de dar fim a esta contradio que as acomete, que pode vir carregada de

    muita solido, de medos, de inseguranas, de desconfiana, no deixa de ser uma

    verdadeira tortura vivencial que pode vir a gerar todo um esgotamento psquico e o

    esvaziamento da alma, um efetivo desnimo que pode torn-las seres frios, distantes,

    escondidos, enigmticos, eternamente fugindo dos desejos, das emoes e dos

    sentimentos, talvez carregando para sempre dentro de si mesmos a punio por terem

    nascido com o pecado original que lhes diz que seu amor um amor proibido e seu sexo

    depravado. Creio que isto possa conduzir a um isolamento dentro de si mesmo e o

    consequente afastamento do mundo e das tantas belas maravilhas que nele existem,

    especialmente a de poder viver a experincia indizvel de amar e ser amado. Se o amor

    algo necessrio, talvez a nica forma de amor que lhes sobre seja a de se amarem a si

    mesmos, mas tambm de forma contraditria e correndo o risco de que a saudvel e

    imprescindvel autoestima extrapole e se transfigure em narcisismo, individualismo,

    egosmo.

    Qualquer lgica formal parece ir para o espao se o que se tem pela frente de si

    so preconceitos. O Princpio da Identidade, por exemplo, vira piada de salo, conversa

    fiada, papo furado. Afirmar que aquilo que , ; aquilo que no , no , no daria certo

    nem se fosse receita de bolo, porque no faz o menor sentido em termos existenciais, em

    termos de uma realidade concreta, quando se trata de sofrer a manifestao de

    preconceitos que s existem porque se fundam na pressuposio absurda e mtica da

    concepo de algo como uma natureza humana, presente em diversas formas de saberes

    e se referindo, precisamente, quilo que diz respeito conduta, ao comportamento

    humano, e no nos enganemos quanto a poder se tratar de algo diferente. Portanto, a

    questo que se coloca a seguinte: como algum que se entende e se percebe como

    sendo homossexual, ou seja, como tendo o desejo de se relacionar sexualmente com

    pessoas do mesmo sexo que o seu, deve se conduzir dentro de uma cultura que no

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    reconhece o seu desejo como coisa natural, legtima? Ora, o que temos, ento, segundo

    o princpio da identidade, parece ser: aquilo que natural, ; aquilo que no natural,

    no . Donde se conclui, sem muito esforo, que parece haver uma contradio,

    contradio que deve ser enfrentada pelo homossexual de alguma maneira. Vale a

    ressalva de que no enfrentar tambm pode ser uma das maneiras de enfrentamento,

    bastando para tal que se abra mo de si mesmo e que se deixe conduzir sem se

    comportar como uma ovelha negra. Pode convencer-se e decidir-se a casar, ter filhos,

    virar seminarista, enfim, ludibriar-se de inmeras maneiras por no se aceitar enquanto

    homossexual. Se isto possvel ou no, se alcanar ou no o desejo de no-ser, isto no

    significa dizer que o conflito entre ser e no-ser no possa estar ainda habitando em seu

    prprio ser. Creio que esta postura, esta atitude que leva algum a inventar e criar

    diversos modos de existncia no sentido de uma no aceitao de si, todas

    originariamente advindas da problemtica experincia de se viver sob a tortura

    constante de preconceitos, creio que sejam, no fim das contas, modos de vida, modos de

    existncia, em que h, da maneira que for, a tentativa de vir a ser normal, ainda que isto

    implique se tornar algo diferente do que se , mas aqui, diga-se bem, em sentido

    totalmente negativo, na medida em que a escolha que se faz pela transformao de si

    advm de uma imposio exterior, e, portanto, em sentido contrrio quele que me

    parece ser o da liberdade individual. Se ser homossexual algo natural, parece que a

    opo por qualquer caminho que leve ao no-ser homossexual, no deixa de ser uma

    violao de si mesmo, um autoflagelo, uma autotortura, um atentado, um movimento

    antinatural contra si mesmo; no deixa de ser, sob as mais variadas formas, uma pseudo-

    existncia no-homossexual, porque este caminho o do mundo ideal, inventado, e no

    o do mundo real, o que existe, mas, para muitos, infelizmente, a inverso clara por

    fora dos preconceitos.

    Sejam quais forem os caminhos tomados no sentido da afirmao de si, indo

    pelas vias da aceitao ou no de si, creio que preciso ter em mente o princpio de que

    nossa liberdade e continuar sempre nossa; que sempre possvel alterar o rumo

    tomado; dar uma nova forma a nossa prpria existncia e lutar para que os demais

    tambm gozem de um direito que em si mesmo inalienvel. Somos ns mesmos os

    responsveis pelo rumo que damos nossa vida, pela estrada e caminhos que trilhamos

    e os rastros que deixamos enquanto escrevemos nossa prpria histria de vida. Somos

  • Homossexualidade e Preconceito

    autores deste livro-vida e cabe somente a ns mesmos, imperiosamente a ns mesmos,

    escrev-lo, invent-lo, cri-lo, alter-lo, mud-lo, desde que assim desejemos e

    reconheamos que preciso faz-lo. Todavia, sem a proteo da prpria sociedade, tal

    realidade para muitos inexiste e continuar inexistindo. preciso que a luta contra os

    preconceitos seja uma luta de todos aqueles que acreditam na liberdade e na

    possibilidade de uma sociedade menos cruel, por que poucos no so os lares em nosso

    pas destroados pela perda de entes queridos por causa da homofobia, algo que tem

    passar a estar urgentemente enquadrado no rol de crimes hediondos e inafianveis.

    Os preconceitos por si s intimidam e podem empurrar uma vida inteira para

    dentro do armrio; podem gerar neuroses e conflitos psicolgicos irreversveis; podem

    mutilar existncias e enquanto este quadro macabro no for alterado, deveramos nos

    sentir envergonhados ao pronunciarmos a palavra liberdade, que condio de

    possibilidade de algum se reinventar a si mesmo a cada instante, de tirar as roupas mal

    vestidas e escolher o figurino que no quer usar. Nus talvez seja como mais

    confortavelmente nos sentiramos se no nos dissessem desde cedo como devemos nos

    portar, nos vestir, nos conduzir.

    Concluo com um pequeno trecho do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, o

    qual dispensa comentrios quanto ao que se pode fazer de si mesmo.

    Fiz de mim o que no soube,

    E o que podia fazer de mim no o fiz.

    O domin que vesti era errado.

    Conheceram-me logo por quem no era e no desmenti, e perdi-me.

    Quando quis tirar a mscara,

    Estava pegada cara.

    Quando a tirei e me vi ao espelho, J tinha envelhecido.

    Estava bbado, j no sabia vestir o domin que no tinha tirado.

    Deitei fora a mscara e dormi no vestirio

    Como um co tolerado pela gerncia por ser inofensivo

    E vou escrever esta histria para provar que sou sublime.

    ***

    Bibliografia:

  • GAMBA, M. Ensaios Filosficos, Volume VIII Dezembro/2013

    FOUCAULT, Michel. Dits et crits, Tome II (1976-1988). Paris: Quatro / Gallimard,

    2001, pp. 1597-1598.

    _____. Entrevistas (com Roger Pol-Droit). Traduo Vera Portocarrero e Gilda Gomes

    Carneiro. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

    _____. As palavras e as coisas. Traduo Salma Tannus Muchail. 9 ed. So Paulo:

    Martins Fontes, 2007.

    _____. A verdade e as formas jurdicas. Traduo Roberto Cabral de Melo Machado e

    Eduardo Jardim Morais. 3 ed. Rio de Janeiro: Nau, 2008.

    _____. O que so as Luzes? [What is Enlightenment?, 1984]. In: Ditos e Escritos II: Arqueologia das Cincias e Histria dos Sistemas de Pensamento, traduo: Elisa

    Monteiro. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitria, 2008.

    _____. Foucault. In: Ditos e escritos V: tica, Sexualidade, Poltica. Traduo: Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado da Motta. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitria,

    2011.

    HOUAISS, Antnio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionrio Houaiss de Lngua

    Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001