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-1- HOMENS DE CÁ E DE LÁ Por Sandra Pinheiro

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Page 1: Homens de cá e de lá · Dimitri está sentado na mesa mais próxima do balcão. ... Começa a tocar música russa no ... 4 Sim. Portugal sim. Aqui vamos ter sorte. 5 Não ouço

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HOMENS DE CÁ E DE LÁ

Por

Sandra Pinheiro

Page 2: Homens de cá e de lá · Dimitri está sentado na mesa mais próxima do balcão. ... Começa a tocar música russa no ... 4 Sim. Portugal sim. Aqui vamos ter sorte. 5 Não ouço

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PERSONAGENS

DIMITRI – um homem com cerca de 40 anos de nacionalidade russa

IVAN – um homem com cerca de 50 anos de nacionalidade russa

MANUEL – um emigrante português em França com cerca de 55 anos

ALZIRA – uma mulher de perto de 55 anos, mulher de Manuel

NOTA – Devido ao facto de esta peça ter pessoas que falam de uma maneira muito

específica, algumas palavras no texto estão escritas da maneira que devem ler-se e

não na sua ortografia correcta. As expressões em francês estão escritas da forma

correcta em francês. No caso das expressões em russo, a forma como está escrita é

para que os actores pronunciem as palavras da maneira como são ditas em russo.

Em rodapé estão os significados, para perceber o contexto.

Page 3: Homens de cá e de lá · Dimitri está sentado na mesa mais próxima do balcão. ... Começa a tocar música russa no ... 4 Sim. Portugal sim. Aqui vamos ter sorte. 5 Não ouço

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CENA I

Café de uma vila no norte de Portugal. O balcão fica à direita, e vai da direita baixa

até perto do centro alto. Por detrás do balcão estão bebidas e copos. No centro

estão três mesas de café, cada uma com três cadeiras. O fundo do palco está

decorado com cartazes de festas da região e com anúncios de compra e venda de

casas e de carros. Na esquerda, a meio, uma porta de entrada para o café.

Dimitri está sentado na mesa mais próxima do balcão. Está de frente para a porta de

entrada do café. Tem um jornal escrito em português, um bloco e uma caneta. Lê o

jornal em voz alta. Fala com pronúncia russa e lê os títulos das notícias devagar. (As

notícias devem ser diferentes todos os dias. O jornal que estará na mesa deve ser o

jornal diário. As notícias escritas nesta peça são apenas indicativas.)

DIMITRI “Regras de aposentação agravadas para todos”

DIMITRI Complicado. Portugueses vida complicada.

DIMITRI “Scolari garante que não será seleccionador de

Inglaterra”

DIMITRI Humm. Muito bonito.

A notícia que se segue não deverá ser lida do jornal, mas faz parte da peça.

DIMITRI “Governo dá mais oportunidades a imigrantes”

DIMITRI Hah! Interessni! Otchnem interessni.1

Dimitri levanta a cabeça e grita para dentro do balcão.

1 Interessante. Muito Interessante.

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DIMITRI Natacha! Te znaiech u Portugalia yect programa

imigratchniá?2

Ouve-se a voz de Natacha a resmungar:

NATACHA Ne sluchaio.3

Dimitri olha entusiasmado para o jornal. Bate várias vezes com a mão na página do

jornal e olha em volta. Sorri de contente. Pega no lápis e no bloco e começa a

rabiscar qualquer coisa. Fala com entusiasmo à medida que rabisca no papel.

DIMITRI Da. Portugalia da. Zdess u nass yect utchás.4

Ouve-se a voz de Natacha no interior do balcão.

NATACHA Nie sluchaiu. Kak te scazal?5

DIMITRI Niktô. Patom, patom...6

Dimitri continua a escrever no bloco. Levanta-se, vai até ao fundo do café. Olha

várias vezes para os cartazes que estão afixados e para os anúncios de compra e

venda de terrenos. Enquanto olha para os anúncios, vai dizendo diversos Niet7, até

que por fim, exclama fortemente.

DIMITRI Da8! Viva Portugalia.

Arranca o papel da parede.

Grita para o interior do café.

DIMITRI Natacha. Russki músiku, pajalusta9.

Volta para a mesa. Senta-se, agora de costas para a porta de entrada do café.

Continua a fazer cálculos e rabiscos no bloco. Começa a tocar música russa no café.

2 Natacha. Sabes que Portugal tem um programa de apoio para imigrantes? 3 Não ouço. 4 Sim. Portugal sim. Aqui vamos ter sorte. 5 Não ouço. O que é que estás a dizer? 6 Nada. Depois, depois 7 Não 8 Sim! 9 Natacha. Música russa, por favor!

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Música ambiente. Dimitri está entusiasmado e começa a cantar, enquanto lê e

escreve.

Manuel entra no café. Dá passos firmes e caminha de cabeça muito levantada. Dá

uma olhadela em volta, e senta-se. Dimitri continua a cantar. Manuel tenta espreitar

para dentro do balcão. Não vê nada. Começa a ficar impaciente. Levanta-se e vai

até à boca de cena à procura de alguém, depois até ao fundo do café, onde estão os

cartazes e os anúncios, e depois até ao balcão. Espreita. Dimitri continua absorto

nos seus projectos. Manuel olha para ele com interesse. Aproxima-se devagar, cada

vez mais próximo de Dimitri. Vai muito devagar, de tal forma que só quando está

quase a chegar junto de Dimitri é que este se apercebe da presença de Manuel.

Dimitri assusta-se e dá um pequeno grito. Manuel, ao ouvir Dimitri também se

assusta e recua.

DIMITRI Oh! Senhor susto grande.

MANUEL Ah, pois, desculpa lá. Não estava cá ninguém;

ainda fui espreitar ao balcão para ver se via

alguém. Como não vi, ia perguntar... (pausa) Olha

lá: tu é que é o russo do café?

DIMITRI (Estendendo a mão a Manuel) Dimitri Ivanov, o

russo do café, em português. Muito prazer senhor.

MANUEL (Aperta-lhe a mão) Muito prazer. Manuel dos

Santos.

Dimitri puxa uma cadeira para Manuel se sentar à mesa em que Dimitri estava

sentado.

MANUEL Que raio de música é esta?

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DIMITRI Musica da minha terra. Como não estavam

clientes. Se senhor não gostar, nós tirar música.

Sem esperar que Manuel responda, Dimitri grita para dentro do café.

DIMITRI Natacha. Prekratiesh músiku10. (vira-se para

Manuel e fala num tom completamente diferente.)

O que é que senhor vai tomar?

MANUEL Não era preciso parar a música! (pausa) Olha, uma

cerveja fresquinha. Que cervejas é que tem?

DIMITRI Olhe... pois. Cervejas. Não temos. Acabaram e só

vêm amanhã.

MANUEL Acabaram as cervejas? Como é que é possível!

DIMITRI Oh! História muito comprida. Mulher... (bate três

vezes com o punho no balcão) Mulher muito

distraída. Muito linda, mas muito distraída.

Esqueceu de encomendar cerveja. Eh! Ontem jogo

de Benfica... café cheio... Benfica ganhou, cerveja

acabou. Eh! Desculpa senhor, mas cerveja hoje

não.

MANUEL Pois… é que com este calor, o que me apetece é

mesmo uma cerveja. (Pensa) Olha, se calhar...

vinho tens?

DIMITRI Sim. Vinho sim.

MANUEL Que vinho é que tens?

DIMITRI Vinho português do Minho.

10 Natacha. Pára a música.

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MANUEL Vinho português do Minho? Vinho verde!

DIMITRI Não. Vinho verde não.

MANUEL Então, se é vinho português do Minho, tem de ser

vinho verde.

DIMITRI Não, vinho verde não. Vinho branco e vinho tinto, e

vinho assim assim. Vinho verde não.

MANUEL Mas se é vinho do Minho é verde!

DIMITRI Não senhor. Garrafa verde, mas vinho branco,

vermelho ou cor de rosa… Verde não temos.

MANUEL Está bem, já percebi. Traz-me lá um copo de verde

tinto, bem fresco.

DIMITRI (Começa a ficar aborrecido com a conversa)

Senhor. Verde tinto não. Ou verde ou tinto. Já

disse… temos vinho branco, vinho tinto...

MANUEL Sim, sim... já percebi. Traz-me um copo de vinho

tinto bem fresco.

DIMITRI Vinho tinto não está fresco. Vinho fresco só branco.

MANUEL Não está fresco? Então tu não sabes que o vinho

verde deve estar sempre fresco. Traz-me lá o vinho

branco fresco.

DIMITRI Senhor Manuel. Eu conheço muito vinho, e vinho

tinto não deve beber fresco. Vinho branco deve

fresco. Vinho verde já disse que não temos.

MANUEL Está bem, homem, não te enerves. Olha dá-me lá

um copo de vinho, senão quem se enerva sou eu.

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Dimitri dirige-se para dentro do balcão. Enquanto se afasta, Manuel resmunga

sozinho.

MANUEL Maldito russo. Diz que a mulher é distraída, mas

ele é burro.

Dimitri abre uma garrafa de vinho branco. Enquanto pega no copo e examina para

ver se está bem limpo, Manuel olha para o bloco de Dimitri, que ficou em cima da

mesa. Manuel pega no bloco e examina-o de vários ângulos, vira-o de pernas para o

ar e depois volta a pousá-lo quando Dimitri se aproxima da mesa. Dimitri repara que

Manuel tinha o bloco na mão e não fica nada agradado. Pousa o copo na mesa e

serve o vinho até meio do copo.

MANUEL Então e o resto?

DIMITRI Resto?

MANUEL O resto do vinho. Só me puseste meio copo... olha,

é melhor deixares a garrafa que vem aí um amigo

meu.

DIMITRI Sim senhor.

Dimitri vai para detrás do balcão. Manuel acompanha-o com o olhar e começa a

beber. Depois olha novamente para o caderno que tinha pousado em cima da mesa,

intrigado. Roda-o de vários ângulos para tentar perceber o que está escrito.

MANUEL Oh craniano!

DIMITRI Dimitri

MANUEL O quê?

DIMITRI Eu chamo Dimitri

MANUEL Então chama.

DIMITRI Chamo quem?

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MANUEL O Dimitri. Disseste que chamavas o Dimitri. Chama

lá, que eu não tenho medo dele.

DIMITRI Não, senhor não perceber. Eu chamo Dimitri.

Dimitri é o meu nome. Já disse ao senhor.

MANUEL Ah bom... Olha que eu pensava que o teu nome era

craniano. (Riso de gozo).

DIMITRI Eu não sou ucraniano. Sou russo. Sou de

Novosibirsk, na Sibéria.

Manuel levanta-se e vai até ao balcão. Leva o copo do vinho e a garrafa.

MANUEL Uh la la... Atão mas é na Sibéria ou na Rússia?

DIMITRI A Sibéria é Rússia. Sítio muito frio.

MANUEL Va bien. Olha o meu nome é Manuel. Mas podes

chamar-me português.

DIMITRI Manuel dos Santos ou Manuel Português?

MANUEL O quê?

DIMITRI Quando chegou senhor Manuel disse que chamava

Manuel dos Santos, agora disse que chama

Manuel Português... não entendo.

MANUEL Não. Eu sou o Manuel dos Santos. Português é o

que me chamam lá na França. Pega aí num copo e

bebe um bocado de verde...

DIMITRI Vinho...

MANUEL Já sei, já sei a teoria do vinho.

DIMITRI Amigo do Sr. não vem?

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MANUEL Deve vir. Aqui são todos meus amigos. Toda a

gente me conhece.

DIMITRI A mim também. Toda a gente conhece o russo do

café.

MANUEL Ai és mesmo russo! Pensei que fosses craniano. E

o que é que vieste cá fazer? Isto não é país para

ninguém. Devias era ter ido para a França ou para

a Alemanha. Isso sim, são países em condições,

agora isto. Isto... olha, só o vinho é que é bom.

Vamos brindar.

DIMITRI Vamos brindar a quê?

MANUEL Sei lá... escolhe tu. A que é que queres brindar?

DIMITRI Ao futuro.

MANUEL Ao futuro? Ao teu?

DIMITRI Não. Ao futuro de Portugal. Às oportunidades.

Manuel pega no copo e vai até junto da boca de cena e fica a olhar para o público

como se estivesse a olhar para fora do café.

MANUEL Oportunidades... aqui nesta terra? Oh meu amigo...

Oh pá, Portugal não traz oportunidades para

ninguém. Isto quem tiver oportunidade para ir

embora é ir logo.

Manuel espreita para fora e chama Dimitri.

MANUEL Oh Demitre. É Demitre que se chama não é?

DIMITRI Da11. Dimitri Ivanov.

11 Sim

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MANUEL Demitre quê?

DIMITRI Ivanov. Quer dizer filho do Ivan.

MANUEL Ah! Oh Demitre... anda cá que eu vou-te mostrar

uma coisa.

Dimitri vai até junto de Manuel. Leva um pano de limpar a loiça na mão.

MANUEL (Aponta para a plateia e fala cheio de orgulho)

Estás a ver aquela casa, lá ao fundo.

DIMITRI Qual casa? Vejo muitas casas.

MANUEL Ah bien, aquela lá ao fundo. A maior de todas.

DIMITRI A casa grande. Sim, estou a ver. Casa muito

bonita.

MANUEL É minha, ah oui. Minha.

DIMITRI Casa muito bonita, senhor Manuel. Muito grande.

MANUEL Uh la la! É a casa maior da aldeia. E é a mais

bonita. Fizia toda com o meu trabalho.

DIMITRI Senhor Manuel construtor?

MANUEL Eu? Não. Eu sou maçom.

DIMITRI Não compreendo.

MANUEL Sou pedreiro.

DIMITRI Trolha?

MANUEL Sim. Trolha. Mas não fui eu que fiz a minha casa.

Mandei-a fazer. Trouxe aí uns ouvriers e só

mandava neles, eu sei da construção. Mas agora

tenho aqui uma casa que se veja. É tipo maison

com janelas à la fenètre!

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DIMITRI Tipo maison. É.

MANUEL Pois é. E em França tenho outra.

DIMITRI Outra casa como esta?

MANUEL Como esta não, maior que esta. É lá que eu moro.

Manuel continua a falar enquanto vai até ao balcão, pega na garrafa e volta a encher

o copo. Oferece a Dimitri, que recusa.

MANUEL Vai outro copo?

DIMITRI Não senhor, obrigado.

MANUEL Bebe homem. Sou eu que ofereço. Olha que aqui

não é toda a gente que oferece. É o que eu te digo,

isto está mais para quem pode, mais oui. Onde é

que está o teu copo? Olha. Hoje sou eu que te vou

servir.

DINITRI Obrigado senhor... (Pausa breve) Senhor Manuel,

onde o senhor trabalha?

MANUEL Eu? Então homem, já te disse. Trabalho na França.

Achas que se trabalhasse cá tinha aquela casa?

Mais Non. Olha foi preciso trabalhar no duro... lá na

França. Cá em Portugal trabalha-se mas nunca se

vai a lado nenhum. Pensa bem o que é que vieste

cá fazer.

Manuel dá o copo a Dimitri e senta-se à mesa do meio, voltado para o público.

Estica as pernas e fala com pompa da sua vida em França. Dimitri vai para detrás do

balcão limpar copos e arrumá-los. As luzes baixam no palco e iluminam apenas

Manuel.

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MANUEL Fui para a França quando tinha 19 anos. Eu tinha

um problema de saúde e não tive de ir para a

guerra. Se tivesse ido, se calhar não tinha ido para

a França. Se calhar tinha ido para Angola, como o

meu primo. Sabes... ainda bem que não fui para lá.

Eles lá viviam todos muito alegres a comer marisco

e a beber cervejas, mas quando voltaram ficaram

todos na miséria. Eram os retornados... eu fui antes

para a França. Mas olha que não foi fácil!

Manuel levanta-se e começa a andar de um lado para o outro, contando a história

com as mãos, com muita expressividade.

MANUEL Ia muita gente para a França, naquela altura. O

tempo do Salazar. Sabes que era o Salazar? Cá

em Portugal vivia-se muito mal. Trabalho... só no

campo e nas fábricas, mas nas fábricas os patrões

não pagavam nada. Quando eu era miúdo e fui

para uma fábrica, como tecelão, até tinha de pagar

ao patrão, só para poder aprender o ofício. Só para

aprender... e ainda por cima trabalhava para aí

umas 12 horas por dia. Era uma exploração!

Depois lá fomos para a França. Eu e uns rapazes

da minha idade arranjamos um passador de

confiança que já tinha levado para lá umas pessoas

aí da terra ao lado, e fomos. Naquela altura já

tivemos de lhe pagar 10 contos, isso era muito

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dinheiro. Eu não tinha o dinheiro, tive de pedir

emprestado ao meu tio... mas depois paguei-lhe o

dinheiro todo, até ao último tostão.

Depois fomos de caminéte até perto da fronteira;

uma caminéte de um amigo do passador, que

estava feito com ele, e passámos a fronteira ali

pelo Gerês, pelo meio dos montes. Não foi nada

fácil. Para passar da Espanha para a França já foi

mais fácil, mas foi uma aventura...

A porta do café abre-se e entra Alzira, a mulher de Manuel. As luzes acendem-se

abruptamente e Alzira vai ter com ele. Fala muito alto e troca os Vs pelos Bs.

ALZIRA Ai home, estás a aqui. Já corri o pobo todo para

saber onde é que andabas, e tu estás a aqui. O

que é que andas a fazer? Temos de ir matar a

galinha da tua irmã, para fazer a cabidela de

amanhã. Tens de ser tu a matar a galinha, que eu

não tenho corage.

MANUEL Oh mulher! Eu estava para aqui a lembrar-me da

nossa viagem para a França.

ALZIRA Qual biage?

MANUEL A primeira. Quando fomos a salto.

ALZIRA E o que é que te deu para te lembrares disso

agora? Bá, alez-zi bamos que temos muito que

fazer em casa.

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MANUEL Estava a contar ali ao Demitre. Oh Demitre anda

cá, que eu quero apresentar-te à minha senhora.

Esta é a Alzira, a minha esposa.

Dimitri aproxima-se da mulher para a cumprimentar com um aperto de mão. A

mulher estica a mão e dá-lhe um aperto de mão muito frouxo.

DIMITRI Muito prazer senhora Alzira.

Alzira volta-se para Manuel e fala-lhe perto do ouvido.

ALZIRA Olha lá, este home não é português. O que é que

ele está aqui a fazer na terra?

MANUEL O Demitre é da Sibéria. Veio trabalhar cá para

Portugal, coitado.

Alzira está de braços cruzados a observar descaradamente Dimitri, que se sente um

pouco intimidado com os olhares da mulher. Durante os próximos diálogos, Alzira

fala apenas com Manuel, apesar de este falar alto e virado para Dimitri e para a

mulher.

ALZIRA Ah bom! Da Sibéria... onde é que fica a Sibéria?

MANUEL Ele disse que fica na Rússia, mas eu acho que é

noutro sítio qualquer.

ALZIRA Ah bom, na Rússia. Sabes quem é que tem dois

meninos russos?

MANUEL Não.

ALZIRA A mandame Blanchard, do sétimo andar.

MANUEL Ah oui? A do teu prédio.

ALZIRA Sim. São adaptados. Olha são tão bonitos. Todos

russinhos.

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MANUEL Pois, se são russos!

ALZIRA Sim, mas são russinhos. Têm o cabelo todo

amarelo, todo russo. Mesmo bonitos.

MANUEL E ela adaptou-os a quê?

ALZIRA Olha, adaptou-os.

MANUEL Sim, mas a quê?

ALZIRA Estás-te a armar é? Ela é velha, adaptou os

russinhos. Foi buscá-los à Rússia e tudo.

MANUEL Ah bom. C’est bien.

ALZIRA Pois é. Olha são todos tão educadinhos. Mas não

falam rien de francês. Só bonjours e merci

madame. Chamam-me madame, sabias?

MANUEL Oui? Ó Demitre. Lá no prédio da minha mulher uma

madame tem dois russinhos lá da tua terra.

DIMITRI Senhor?

Manuel fala mais alto e mais devagar para Dimitri perceber melhor.

MANUEL Eu estava a dizer que lá no prédio da minha mulher

uma madame tem dois russinhos adaptados lá da

tua terra.

DIMITRI Ah. Sim?

MANUEL Lá na Rússia vós adaptais muitas crianças?

DIMITRI Não percebe senhor. Adaptar crianças a quê?

MANUEL Adaptar. Pessoas que não têm filhos e querem ter

crianças. Os russos são crianças muito bonitas.

DIMITRI Algumas famílias... pais muito pobres!

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ALZIRA (Para Manuel) Afinal o que é que ele beio para cá

fazer?

DIMITRI Eu vim trabalhar para Portugal senhora Alzira.

Portugal terra de muita oportunidade; país tem

muito futuro.

ALZIRA (Ri-se) Portugal? Oh senhor... Portugal é um país

muito atrasado. Isto só é bom é para férias. Sabe.

Nós todos os anos tiramos o Agosto só para vir a

Portugal. Mas para trabalhar isto não é bom. Não

há trabalho.

DIMITRI Senhora enganada. Em Portugal muito trabalho.

Amigos nossos em Portugal ganhar mais dinheiro

num mês cá do que na Rússia ou na Ucrânia em

meio ano. (Levanta os polegares das mãos como

se estivesse a pedir boleia). Portugal país bom

bom. Portugueses muito simpáticos.

MANUEL Oh Demitre. Tu deves achar que conheces

Portugal melhor do que eu. Olha que eu sou

português! Eu sei muito bem como é Portugal.

Olha. Aqui não há nada. Lá na França as pessoas

têm tudo. Tu vais ao supermercado e vês tudo.

Olha, só o fromage... lá na França é fromage a toda

a hora. Há mais de 400 qualidades. E os iourtes e

os gateaux... cá tu vais ao supermercado e não

encontras nada disso. E nos restaurantes?! A

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comida francesa é muito melhor... olha, só nas

entradas… Aquilo é que é comer! Na França tudo é

bonito, até o comer.

ALZIRA Lá é tudo melhor. As lojas. Nas cidades há lojas tão

grandes, com roupas de todos os feitios. E roupas

muito bonitas. Cá não há nada. Já biu estas

aldeias?... não há nada!

DIMITRI Mas Portugal tem supermercados grandes e

fábricas grandes. Portugal país muito moderno.

Alzira vira-se para Manuel e fala de maneira a tentar que Dimitri não a ouça.

ALZIRA Coitados. Lá na terra deles debem ser muito

pobres.

MANUEL Pois é. Imagina. Para dizerem que isto é moderno.

Imagina se fossem para a França!

DIMITRI Portugal muito bom para imigrantes da Rússia.

Língua muito fácil aprender. Em Portugal há tudo.

Muito trabalho na construção e na limpeza das

casas. Mulher Natacha trabalha no café um

bocadinho, e trabalha na casa de pessoas na vila.

Ganha muito dinheiro, mais dinheiro do que na

Rússia a trabalhar na escola.

ALZIRA A Natacha é a sua mulher? Ela trabalha nas

ménages?

DIMITRI Não. Natacha trabalha na limpeza. Natacha é

mulher-a-dias.

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ALZIRA Ah bom, é a mesma coisa. E na bossa terra

trabalhava numa escola? Na ménage, também?

DIMITRI Não. Natacha professora de física. Na Sibéria não

tinha mais escola para trabalhar. Poucos meninos

para ensinar e escolas fecharam. Professores sem

emprego. Eu também professor na mesma escola.

Em Portugal trabalho no café e pinto casas.

Ouve-se a voz de Natacha chamar por Dimitri.

NATACHA Dimitri – paidiech zdec pajausta.12

Dimitri olha para o interior do balcão, depois para Alzira e para Manuel.

DIMITRI Senhores, desculpa. Mulher está a chamar.

Manuel e Alzira acompanham Dimitri com o olhar. Alzira vai espreitar atrás do balcão

e volta novamente para junto do marido.

ALZIRA O que é que achas deste russo?

MANUEL Coitado, ainda não sabe bem onde é que se meteu.

ALZIRA Há quanto tempo é que ele está cá?

MANUEL Não sei. Um ano e tal.

ALZIRA Ah, bom! Já fala bem português!

MANUEL Pois é. Não ouviste. Ele disse que era professor.

Um professor aprende bem.

ALZIRA Bahh! Achas que ele é professor? Acreditaste? Oh

home. Vê-se mesmo que acreditas em tudo. Então

tu achas que se ele fosse professor binha para aqui

trabalhar para um café, serbir às mesas e pintar

12 Dimitri, vem cá por favor

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casas. E a mulher professora binha para cá para a

ménage... tem juízo.

MANUEL Então, mas ele disse...

ALZIRA Isso é para se armar. Então tu não sabes que lá na

Rússia eles são muito pobres. Eles são

comunistas!

MANUEL E depois.

ALZIRA E depois? Tu não te lembras do que dizia o padre

João? Na Rússia eles bibem muito mal. Não têm

nada. Lá matam os padres, biolam as mulheres e

comem as crianças ao pequeno-almoço. Olha, os

meninos adaptados da madame Blanchard

escaparam por pouco!

MANUEL Isso são histórias. Não acredites nisso mulher. Tu é

que acreditas em tudo o que te dizem.

ALZIRA Não é nada home. Então tu dubidas do senhor

padre? Ele disse que na Rússia incendiaram as

igrejas todas e ninguém pode ir à missa! Já biste!

Aquele pobo não tem fé nenhuma.

MANUEL Pois é. E lá na França há muitos russos também.

Eles estão todos a fugir de lá por alguma coisa é.

ALZIRA Pois é. E acreditas que são os professores que

fogem? Não são nada. Os professores ganham

bem. Têm estudos e tudo. Achas que iam mesmo ir

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para o estrangeiro trabalhar na ménage. Ganha

juízo. O russo está aqui a inbentar.

Entra Ivan. Vem com roupa suja de estar a trabalhar nas obras. Ao entrar olha para

Alzira e Manuel que estão junto à mesa do centro.

IVAN Boa tarde.

Manuel responde. Alzira fica a olhar para Ivan com curiosidade, sempre com os

braços cruzados.

IVAN Dimitri. Ia Zdess.13

ALZIRA Este também é russo! Afinal quantos é que cá

estão?!

Ivan fica junto do balcão. Olha para vários sítios e depois repara que o jornal está

pousado na mesa ao lado. Vai até à mesa onde está o jornal e o bloco de Dimitri.

Senta-se à mesa. Pega no jornal e começa a ler as notícias. De vez em quando

parece surpreendido com as notícias.

Alzira e Manuel continuam a observar, muito curiosos. Falam em surdina, um para o

outro. Alzira está de pé e não se senta. Observa por cima da cabeça de Manuel.

Mantém os braços sempre cruzados.

ALZIRA O que é que ele está a fazer?

MANUEL O que é achas? Está a ler jornal.

ALZIRA Bahhh! Non. C’est pas possible. Ils ne saient pas

lire em portugais. Ele está a pretender.

MANUEL Porque é que estás a falar em francês?

ALZIRA Ora, para ele não perceber.

13 Dimitri. Já estou aqui.

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MANUEL Ai mulher... e porque é que tu não queres que ele

perceba?

ALZIRA Não gosto deles. Não gosto de russos. O que é que

eles bêm para cá fazer?

MANUEL Bahh. Vêm para cá trabalhar. O que é que tu foste

fazer para a França?

ALZIRA Eu fui ter contigo. Fui trabalhar porque cá não havia

nada. É diferente.

MANUEL É diferente porquê? É exactamente a mesma coisa.

ALZIRA Não é nada a mesma coisa. É muito diferente.

Dimitri vem detrás do balcão e vê Ivan na mesa. Grita com voz animada.

DIMITRI Ivan!

Dimitri pega em dois cálices. Enche com vodka em cima do balcão. Depois dirige-se

até junto da mesa onde estão Alzira e Manuel.

DIMITRI Se senhores querem mais alguma coisa, chama

Dimitri.

MANUEL Está bem Demitri. Obrigado. Enquanto tiver aqui a

minha garrafa de verde... desculpa de vinho

branco, eu estou bem. (Vira-se para a mulher que

continua de pé.) Vais rester aí? Assim de pé?

Dimitri leva os dois copos para a mesa onde está Ivan. Os dois brindam e bebem a

vodka de uma só vez, soltando exclamações no final. Depois começam a falar muito

baixinho (em russo) sobre o jornal e sobre as notas que estão escritas no bloco de

Dimitri. Não se consegue ouvir o que dizem. Dimitri fala mais do que Ivan. Está a

mostrar-lhe a ideia. Ivan vai acrescentando umas ideias que são escritas no bloco.

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Ivan pega depois num telemóvel, na folha que Dimitri tinha retirado da parede e

marca um número e fala ao telefone em português. Diz o seguinte “Boa tarde

senhor. Estou interessado em comprar casa no centro da aldeia. Sim. (pausa) sim,

podemos marcar um encontro. O senhor diz quando? (pausa) Ah vai falar com o

dono para ver quando pode ser. (pausa). Sim, senhor. No café. Sim, obrigado. Muito

obrigado.”

Isto decorre durante o diálogo entre Alzira e Manuel e quando Alzira fica sozinha na

mesa a observá-los.

ALZIRA Estou-te a atrapalhar a bista? Laisse-moi que eu

estou muito bem assim.

MANUEL Va bien! Tu é que sabes. Olha, eu vou ver o que é

que se anuncia ali na parede… ver se já alguém se

interessou em levar o papel da casa da tua mãe.

ALZIRA Era bom bendermos isso enquanto cá estibermos,

mas também já bamos embora para a semana. Bai

ser difícil.

MANUEL Pois vai!

Manuel levanta-se e vai até ao fundo do palco para junto da parede e fica a olhar

para os cartazes e para os anúncios, de mãos nos bolsos. De vez em quando

aproxima-se mais para ler melhor alguma coisa que esteja lá escrita. Alzira continua

a olhar para os dois russos que estão animados a conversar. De vez em quando

aproxima-se para tentar ouvir o que estão a dizer. Aproxima-se por detrás deles para

não a verem. Ao ver que não entende o que estão a dizer, vai ter com o marido ao

fundo.

ALZIRA Manel, oh Manel! Oh home, estou a falar contigo.

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MANUEL O que é que foi? Não me apetece ir embora.

ALZIRA Quem é que falou em ir embora? São os russos.

MANUEL O que é que têm os russos?

ALZIRA Estão a falar.

MANUEL É porque têm boca.

ALZIRA Estão a falar na língua deles. Não percebo o que

estão a dizer.

MANUEL Se calhar é mesmo para não perceberes. Oh

mulher o que é que te deu para implicares com

eles?

ALZIRA Eu não estou a implicar com eles. Mas não confio

neles. São estrangeiros. Não sei o que é que

bieram cá fazer. Já biste, que eles podem ir roubar

a nossa casa quando formos embora?

MANUEL Ganha Juízo. Tu alguma vez roubaste alguém na

França?

ALZIRA Não, mas lá habia muita coisa boa para aprobeitar

na pubela. Aqui não há nada. Eles podem ir roubar

as casas. E não está cá ninguém para bigiar a

nossa.

MANUEL Nem é preciso. Estas pessoas são honestas. Não

vieram cá para roubar ninguém.

ALZIRA Não sei... é melhor estar atento.

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Alzira volta para junto da mesa e coloca-se novamente de braços cruzados, cada

vez mais próxima da mesa de Ivan e Dimitri. Ivan acaba por reparar que ela está a

espreitar para o que eles estão a fazer. Quando nota isso vira-se para Dimitri.

IVAN Dimitri, smatrit.14

DIMITRI Senhora Alzira quer alguma coisa?

Alzira percebe que foi apanhada e fica atrapalhada. Balbucia.

ALZIRA Ah, sim. Sim. Traga-me um café au lait.

DIMITRI Café com leite?

ALZIRA (Impaciente) Bahh... sim, café com leite. Vite, vite,

que eu tenho pressa. Tenho muito traivail a fazer.

Na França estamos habituados a travailher com

vitesse.

Dimitri levanta-se e vai até ao balcão para preparar um café com leite para Alzira.

Alzira senta-se na mesa do meio e fica a olhar para Ivan, que também está a olhar

para ela. Depois de uma hesitação ela pede o jornal a Ivan.

ALZIRA Olhe lá. Passe-me ai o jornal, está a precisar dele?

Ivan abana negativamente com a cabeça. Levanta-se e leva-lhe o jornal. Quando

chega junto dela abre um grande sorriso que intimida Alzira.

IVAN Jornal muito bom. Notícias boas para imigrantes.

Senhora imigrante da casa grande não é? Casa

muito bonita. Notícias boas para imigrantes em

Portugal.

ALZIRA Obrigada. Que boas notícias são essas?

14 Dimitri, olha.

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IVAN Portugal vai permitir entrada de mais imigrantes,

que queiram vir trabalhar para interior de Portugal.

Notícia muito boa. Imigrantes trabalham bem e

querem vir para Potugal. Dimitri e Ivan, e

imigrantes podem trazer filhos e família. Notícia

muito boa.

ALZIRA Pois, muito boa.

IVAN Dimitri vai comprar uma casa em Portugal. Senhora

tem casa na França?

ALZIRA Tenho. Uma casa muito grande.

IVAN Maior do que a casa grande da senhora na aldeia.

ALZIRA Tenho uma casa muito grande. Tipo maison, como

esta.

IVAN Dimitri vai comprar casa pequenina. Mas depois

casa vai crescer até ficar grande. Eu contente.

Dimitri meu irmão mais novo.

ALZIRA Ah bom. E com que dinheiro bai comprar?

IVAN Nós trabalha muito em Portugal. Pessoas amigas

ajudar com roupa e com comida. Mas nós trabalhar

muito e juntar dinheiro.

ALZIRA Mas as casas são caras. Não querem antes fazer

uma casa na bossa terra?

IVAN Sibéria é muito frio. Muita neve. Portugal muito

bonito. Sol quentinho, praia, mar. Tudo verde.

Comida muito boa. Vinho bom. Pessoas

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simpáticas. Tudo bom em Portugal. Na Sibéria tudo

gelado. Senhora não quer viver em Portugal?

Dimitri volta com o café com leite e pousa em cima da mesa do centro onde está

sentada Alzira.

ALZIRA A gente sente sempre saudades, mas aqui a bida é

muito diferente. As pessoas de cá também já não

são as mesmas que eram quando nos fomos

embora.

Manuel que estava no fundo do café volta de novo para junto da mulher e continua a

conversa.

MANUEL Oh Demitre. Já foste à tua terra desde que vieste

para Portugal?

DIMITRI Não senhor. Bilhete de avião muito caro. Nós

mandar dinheiro para Rússia. Natacha e Dimitri ter

dois filhos pequenos na Rússia...

IVAN E mama.

DIMITRI E a avó. Nossa mãe com crianças na Rússia.

Preciso mandar dinheiro para crianças comer, para

ir escola, roupa... Nós poupar para fazer um

negócio.

MANUEL Vai fazer um negócio lá na Rússia? O que é que

vai fazer?

DIMITRI Na Rússia não. Em Portugal. Eu Natacha e Ivan

vamos abrir negócio cá em Portugal. Boas notícias

para imigrantes no jornal.

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MANUEL Isso de abrir um negócio, não sei... se fosse na

França dava, agora cá... olha lá no que te metes.

DIMITRI Não. Negócio seguro. Nós pensar muito em

negócio e descobrir o negócio mais importante para

imigrantes. Ideia muito boa.

ALZIRA Então e que negócio tão importante é esse?

Dimitri quase começa a falar, mas Ivan faz um gesto que o detém.

DIMITRI Negócio é...

IVAN Mitia, niet15.

DIMITRI (Para Ivan) Patchému16?

IVAN Patamuchta17...

(Ivan faz um sinal de que não confia em Manuel e Alzira e que é melhor manter o

negócio em segredo.)

DIMITRI Eh! Ideia ainda muito pequena. Primeiro ideia

cresce, depois nós conta. Melhor assim.

Alzira prepara-se para insistir, mas logo que Dimitri acaba de falar, o telemóvel de

Manuel toca. Todos se calam. Manuel começa à procura do telemóvel de um modo

espalhafatoso. Alzira fica a olhar para ele de braços cruzados. Os russos

entreolham-se enquanto Manuel atende o telefone, e comunicam através do olhar.

Ivan dá a entender a Dimitri que não confia nos outros dois, Dimitri responde que

não, que até confia em Manuel, mas Ivan aponta para Alzira. Dimitri concorda.

Enquanto isso Manuel é o único que fala em voz alta (ao telefone fala ainda mais

alto do que quando fala com as pessoas) perante o olhar curioso da mulher que

tenta entender de que é que ele está a falar. 15 Mitia (Diminutivo de Dimitri), não. 16 Porquê? 17 Porque...

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MANUEL Alô. Oui, oui, sou eu mesmo. Ora diga. (Pausa)

Quem? Ah oui, bien. (Pausa) Ah sim? Arranjou um

interessado? Já? (Pausa) Pois eu bem vi que

faltavam uns papéis aí nuns sítios. (Pausa) Ah

bom? Sim, pode ser. Quando? (pausa) Eh pá,

tenho de ver lá em casa com a mulher, é que

temos de ir aí visitar a família... olhe, depois eu

ligo-lhe. Sim, sim, trés bien, merci obrigado.

Manuel desliga o telefone e vira-se para a mulher que está curiosa.

MANUEL O que é que foi?

ALZIRA Eu é que te pergunto? Quem é que era?

MANUEL O homem da tua prima. Tem um interessado que

se quer encontrar connosco para discutirmos umas

coisas.

ALZIRA Ah bom! E vai ser quando?

Alzira olha para o relógio e fica alarmada.

ALZIRA Ai home! Viens que estamos atrasados... temos de

ir matar a galinha da tua irmã… e se não estamos

lá agora, a mulher nunca mais me deixa de chatear

o juízo. Viens, vite, vite!

MANUEL Não fales assim, que a minha irmã não é nenhuma

galinha, ouviste… mania a tua! Às vezes não sei o

que é que me deu para casar contigo… rais parta!

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Saem os dois, apressados pela porta, sem pagarem a conta. Manuel vai à frente e

nem se lembra que não pagou a conta a Dimitri. À saída Manuel despede-se com

um grito, que já só se ouve quando os dois já estão fora de cena.

MANUEL Adeusinho... ó russo. Até logo.

Dimitri e Ivan ficam a olhar um para o outro. Dimitri vai sentar-se na mesa junto do

balcão onde estão o jornal, o bloco e a folha que arrancaram da parede. Ivan vai

atrás do balcão e traz a garrafa de vodka para a mesa. Serve os dois copos que

tinham ficado na mesa. Os dois bebem e falam do projecto em russo.

O palco vai a negro.

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CENA II

Ivan e Dimitri estão no café. Dimitri está do outro lado do balcão. Ivan está de pé

junto do balcão do lado da sala do café. Ivan tem à frente um cálice de bagaço. Ivan

olha para o relógio de pulso, depois olha para o copo e bebe um bocadinho. Não

bebe tudo. Dimitri está a arrumar as coisas atrás do balcão. Os dois russos estão

vestidos com a mesma roupa da cena anterior.

Entra Manuel. Vem com uma camisa muito garrida, aberta quase até ao umbigo,

com um fio de ouro ao pescoço e com uns calções de Verão. Nos pés traz umas

sapatilhas e meias brancas.

Quando entra, saúda os dois russos com a mão e senta-se na mesa da esquerda, a

mais afastada do balcão.

Dimitri sai detrás do balcão e dirige-se até junto de Manuel. Ivan acompanha-os com

o olhar, observador e em silêncio. Continua a bebericar do bagaço, e quando o copo

fica mais vazio levanta-se, vai atrás do balcão e serve-se voltando a sentar-se no

mesmo sítio.

DIMITRI Boa tarde senhor Manuel. Senhor está bom?

MANUEL Olá Demitre. Estou bom. Olha, vou-me embora

amanhã.

DIMITRI Amanhã? Para França?

MANUEL Sim... temos de ir trabalhar. Isto, o trabalho não

perdoa. Mas para o ano, se deus quiser estamos

cá outra vez, em Agosto. Todos os anos.

DIMITRI Senhor vai tomar alguma coisa?

MANUEL Tens cerveja?

Dimitri sorri e acena que sim com a cabeça.

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DIMITRI Cerveja portuguesa fresquinha. Cerveja portuguesa

muito boa. Muito boa paladar.

MANUEL Então traz-me lá uma cerveja e traz outra para ti.

Sou eu que ofereço. Isto os emigrantes têm de ser

uns para os outros, que a vida não é fácil. Não é

nada fácil, mesmo!

Dimitri vai buscar duas cervejas até ao balcão. Ivan vira-se para ele.

IVAN Vou trabalhar. Pácá!18

DIMITRI Pácá.19

Dimitri traz as duas cervejas e um copo até junto de Manuel. Manuel agarra-se logo

a uma das garrafas e bebe directamente do gargalo.

MANUEL Eu não preciso disso! Gosto da cerveja

directamente da botelha. Ouve lá ó Demitre, tu eras

mesmo professor lá na tua terra?

DIMITRI (Bebe a cerveja também directamente do gargalo).

Sim, eu sou professor lá na Rússia. Minha mulher

professora também. Professora de física.

MANUEL Professor!?

DIMITRI Da20

MANUEL Dá? Dou o quê carago?

DIMITRI Da é sim, na Rússia.

MANUEL Ah bom?! Dá? Já sei mais umas palavras em

estrangeiro. É sempre bom saber. Sabes... (Manuel

hesita ao aperceber-se de que está a tratar Dimitri 18 Adeus! 19 Adeus. 20 Sim.

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por tu) Oh Demitre, você não se importe... é que a

gente habituamos-nos a tratar os outros por tu...

sabe como é. Lá na França era a mesma coisa.

Quando nós chegámos toda a gente nos tratava

por tu também. Você não repare. E ainda por cima

é professor... eu não lhe quero faltar ao respeito!

DIMITRI Não há problema, senhor Manuel. Em Portugal

toda a gente nos tratar por tu. Na Rússia

tratamento é diferente. Há mais... como se diz esta

palavra... há mais... língua portuguesa tem muitas

palavras... na Rússia mais cerimónia.

MANUEL Na França não. Dantes ainda havia mais

cerimónia... mas agora as coisas também mudaram

muito, desde que nós fomos para lá.

DIMITRI França é um país muito rico.

Manuel fala cheio de orgulho.

MANUEL Ah pois, muito rico. Quem for para lá, se trabalhar

tem de tudo, lá na França não falta nada a

ninguém.

DIMITRI Em Portugal também há tudo. Tudo muito bom.

País tem muito sol. Na Rússia não há nada. Não há

trabalho, não há dinheiro... não dinheiro, não há

coisas boas.

MANUEL Mas a Rússia é um país muito rico não é? Então

não é lá que tudo é de todos?

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DIMITRI Isso era no passado. Depois de Perestroika, tudo

muito diferente. Muita máfia; dinheiro todo nos

homens da máfia. Quem trabalha, não tem

dinheiro. Pouco trabalho e muita gente. Muito difícil.

Salários baixos, não dar para viver e manter

família. Eh, situação muito difícil em todos países

da antiga SSSR.

MANUEL É a corrupção. Olha cá em Portugal no tempo do

Salazar era a mesma coisa. Quem se queria safar

tinha de ir para fora. Foi o que eu fiz. Já te contei

como é que saí do país, pois já? Olha que não foi

nada fácil. E depois tanto tempo sem falar com a

família… Os novos de agora é que têm a vida

facilitada. (Pausa... olha para o relógio e começa a

ficar impaciente. À medida que Dimitri vai falando

vai-se notando uma impaciência crescente em

Manuel). Então e tu, porque é que vieste para

Portugal?

Dimitri começa a contar a história da vinda para Portugal com entusiasmo. Vai

fazendo pausas no discurso e diminuindo e aumentando a intensidade dramática.

DIMITRI Portugal tem gente simpática e muito trabalho. Vim

primeiro porque um homem da Rússia disse que

havia muito trabalho para construção, que dava

muito dinheiro para pessoas que queriam trabalhar

muito. Eu queria muito dinheiro e não ter medo de

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trabalhar. Um dia falei com Ivan, tu conheces

Ivan?, é meu irmão, e vimos os dois para Portugal.

No início muito difícil. Não estava legal, mas patrão

descontava dinheiro para seguro. Um dia aleijei a

mão na betoneira e patrão mandou-me embora

sem seguro e sem pagar o que devia. Passei muito

mal, mas pessoas da vila muito simpáticas. Ajudam

muito. Quando cheguei com Ivan, deram móveis

velhos e roupas velhas para ajudar. Algumas

pessoas davam comida, fruta, galinhas, coelhos.

Depois há também outros imigrantes que estavam

mais tempo em Portugal. Também ajudaram. Um

dia conheci senhor Pinheiro, dono do café que me

perguntou se queria trabalhar no café dele.

MANUEL Esse gajo. O Pinheiro é bom homem. Ele foi para a

França comigo, sabias? Passámos a fronteira

juntos. O que é feito dele que desde que cheguei

ainda não o vi? (Manuel olha para um lado e para o

outro a ver se encontra o Pinheiro no café).

DIMITRI Senhor Pinheiro está de férias, nas termas, com a

mulher. Têm problemas de ossos. Lá na Rússia

termas são muito usadas para curar problemas de

ossos. O Senhor Pinheiro foi experimentar as

termas.

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MANUEL Ah! C’est bien. A minha sogra também foi para as

termas, mas ela diz que veio na mesma. O raio da

mulher também anda sempre na mesma. Desde

que lhe morreu o homem que está cada vez pior.

Agora meteu-se-lhe na cabeça que o homem anda

lá a assombrar-lhe a casa, de modo que foi lá para

minha casa morar. Pelo menos a casa também não

fica vazia.

Como se Manuel não tivesse dito nada, Dimitri continua a recordar a vinda para

Portugal.

DIMITRI Pois o senhor Pinheiro perguntou-me se queria

trabalhar com ele no café e eu aceitei. Tenho um

quarto e uma cozinha, lá no fundo do café, e ganho

600 euros por mês. Na Rússia muito dinheiro.

MANUEL Ah pois!

Manuel está impaciente. Olha cada vez mais para o relógio.

DIMITRI Depois Natacha veio para trabalhar, também. E

agora as coisas melhores. Passeamos no Verão.

Portugal país muito, muito bonito. Muito verde... e o

mar. O mar de Portugal é mais azul do que mar na

Rússia. As cores de Portugal muito bonitas.

MANUEL Já conheces muito de Portugal?

DIMITRI Um bocadinho. Portugal país muito pequeno.

Conheço Porto, cidade muito bonita, casas... como

se diz... arquitectura bonita, parece pintura. Lisboa

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tem luz... gostei muito de Lisboa. Cidade muito

moderna. Pequena.

MANUEL Ah pois, Lisboa é muito pequena. Aquilo

comparado com Paris não tem nada a ver. Eu

também gosto muito de Lisboa. Já lá fui umas três

ou quatro vezes, mas é muito pequeno, aquilo... a

gente vê num instante e depois vai-se embora.

DIMITRI Monumentos muito bonitos, dos descobrimentos.

Torre de Belém, Jerónimos, Parque das nações

muito moderno.

MANUEL C’est vrai. Já me falaram muito do Parque das

Nações, mas nunca fui lá. A ver se vou lá um dia. O

meu compadre esteve lá no ano passado e disse

que está lá uma coisa muito importante.

DIMITRI Alentejo também muito bonito... e Algarve parece

paisagem das revistas. Água quente, muito turistas.

Muitos imigrantes também no Algarve: russos,

ucranianos, moldavos, bielorrusos. Quando

viajamos em Portugal ouvimos sempre a nossa

língua.

MANUEL Ah isso... c’est merveileux. Parece que estamos em

casa, não é? Lá na França, também, quando

encontramos um português noutra cidade fazemos

logo uma festa. Parece que estamos em Portugal.

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DIMITRI Eh! Portugueses têm uma palavra muito bonita.

Saudades! (Repete duas ou três vezes esta

palavra, acentuando o som dos Ss para vincar a

musicalidade.)

Manuel olha mais uma vez para o relógio. Dimitri também olha para o relógio e

levanta-se. Pega nas garrafas de cerveja que entretanto estão vazias.

DIMITRI Desculpa. Quer mais uma cerveja? Tenho de ir

limpar as mesas.

MANUEL Quero, quero. Estou à espera de uma pessoa que

nunca mais chega. Com o calor que está, só

mesmo molhando a goela.

Dimitri vai buscar mais uma cerveja. Manuel consulta o relógio, levanta-se e anda

pelo café. Dimitri traz-lhe a cerveja e um pano húmido para limpar as mesas. Dimitri

entrega a cerveja a Manuel.

MANUEL (De si para si) Alors, onde é que anda o gajo. Ficou

de estar aqui no café às duas e meia e já passa

meia hora e não aparece.

Fala para Dimitri que está a limpar as mesas.

MANUEL Oh Demitre. Não veio cá um homem à minha

procura?

DIMITRI Não. Só se esteve com Natacha.

MANUEL A ver se o homem aparece! Não gosto nada de

esperar. Tenho um jogo de sueca combinado ali na

casa do meu cunhado, um que também está na

França... isto agora de ter cá a família toda… (Faz

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uma pequena pausa, mas depois diz em tom de

constatação e desabafo.) Isto nós estamos sempre

a falar mal de Portugal, que na França é que é

bom, mas quem nos tira estas semanas cá... tira-

nos tudo.

Mas também muito tempo cá, depois também não

sei como é. Já pensei que quando for para a

retraite não sei se venho para cá ou se fico lá.

Olhe, houve um ano, que eu estive doente e vim

para cá meio ano, mais a Alzira. Não sei como era,

parece que já não nos sentíamos em casa. Agora

as pessoas olham para nós de maneira diferente

do que olhavam quando vínhamos há uns anos.

Dantes os miúdos vinham, e toda a canalha queria

ser amiga deles, porque vinham da França. Era

uma animação. E mesmo com nós era assim. Os

meus cunhados e as minhas cunhadas que

estavam cá queriam ver sempre o que é que nós

trazíamos da França. Os nossos carros eram mais

grandes e mais caros. As pessoas parece que

olhavam para os imigrantes com mais respeito.

Agora não. As coisas já não são o que eram. Os

netos do meu irmão, que são pequenitos, têm para

aí 5 ou 6 anos, não querem vir para cá, porque

dizem que os portugueses não brincam com eles. A

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jeunesse está muito diferente, também. Isto...

Portugal agora já não é o que era.

DIMITRI Portugal agora está melhor, não é?

MANUEL Não! Melhor não, isto não melhora. Isto agora já

não há respeito nenhum por nada. Dantes é que

era bom.

DIMITRI Não acho. Portugal é um país moderno, pessoas

educadas, muitas oportunidades.

Manuel esquece-se de que Dimitri é estrangeiro e imigrante e começa a dar a

opinião sobre o trabalho em Portugal.

MANUEL Isso, oportunidades... isso é só para os ricos e para

os doutores. Olha, para os imigrantes, as

oportunidades é trabalhar no duro. Mas agora cá

em Portugal as pessoas não querem fazer o

trabalho... em vez disso, vêm para aí os

estrangeiros. Agora os portugueses andam

armados em gente fina e deixam o trabalho para os

outros. Agora são todos muito importantes para

fazerem alguns tipos de trabalho.

DIMITRI Isso é normal. Em França não é assim?

MANUEL Na França é, mas lá são franceses.

DIMITRI Portugueses têm mesmo direito.

Manuel fica chateado por Dimitri o ter chamado a atenção. Nesta altura já está

completamente impaciente e farto de esperar. Faz-se um silêncio entre os dois

homens. Passados uns momentos entra Ivan. Dimitri está atrás do balcão a

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escrevinhar no bloco. Quando Ivan entra, olha para Manuel, que está de pé no fundo

entretido ora a olhar para os cartazes, ora a olhar para a plateia como se estivesse à

espera de ver quem é que chegava ao café. Ivan dirige-se para junto do balcão.

IVAN Boa tarde!

Manuel grunhe um cumprimento. Está mal disposto ainda com a resposta de Dimitri.

MANUEL ...Tarde.

Ivan chega junto de Dimitri e acena com a cabeça na direcção de Manuel.

IVAN Kak délá?21

Dimitri abana a cabeça.

DIMITRI Nichtô!22

Dimitri e Ivan começam a falar em surdina, quando entra Alzira esbaforida pelo café.

Ao entrar vê as três mesas vazias e percorre o café com o olhar, até que encontra o

marido ao fundo. Fala com ele muito alto.

ALZIRA Ah bien, tu és ici, ehn!

MANUEL Oui. Combinei com o homem aqui, mas ainda não

apareceu. Vou acabar a cerveja e vou-me embora.

Se ele quiser falar comigo, que me vá procurar,

então não é?

ALZIRA Ah oui!

Começa a franzir o nariz e cruza os braços. Encontrou um cheiro esquisito e vai na

direcção dos russos que estão ao balcão.

ALZIRA Cheira mal, aqui. São eles! Estes estrangeiros...

bêm para aqui e nem tomem banho.

21 O que se passa? 22 Nada.

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MANUEL Então, o homem chegou agora do trabalho, o que é

que queres. Eu quando chego a casa lá do chantier

também venho a cheirar mal. C’est normal, non?!

ALZIRA É diferente. Tu é porque estibeste a trabalhar...

MANUEL E eles também. Tu às vezes tens umas coisas!

Parece que te incomodam estas pessoas cá. Eles

estão cá como nós fomos para lá... têm menos

humildade do que nós, mas é a mesma coisa.

ALZIRA Ahhhh! Estás a ber. Também achas que têm pouca

humildade. Olha, eu não gosto deles. Não gosto de

ber estrangeiros na minha terra e pronto. Pelo

menos digo o que penso. Andam para aí, é só

homens, andam sempre com sacos de plástico,

sabe-se lá que coisas é que eles metem lá dentro...

tudo o que apanham se calhar. E ainda por cima

não tomam banho. Achas que eu não sei. A minha

cunhada esteve-me a dizer. Os homens andam

sempre bêbados. Trabalham muito, mas tudo o que

ganham é para o bagaço e para a cerveja... e as

mulheres. Tu sabes muito bem que as russas que

bêm para cá são todas putains, é como as

brasileiras. Os imigrantes cá em Portugal não

servem para nada, é só para a desgraça. Então tu

não vês em Lisboa, que é só pretos... são eles que

roubam toda a gente.

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MANUEL Oh mulher, deixa-me em paz. Tu não digas mais

nada, que eles ainda te ouvem. Não digas

disparates, que tu não sabes o que estás a dizer.

ALZIRA Ah pois não. Um dia ainda me bão dar razão. O

goberno está para aí a deixar entrar gente e mais

gente... espera que bais ver onde é que isto bai

dar.

MANUEL Olha... deixa-me que não quero ouvir mais. Tu

pensas que és melhor do que os outros? Tu és tão

emigrante como eles. Também andas lá na França

a limpar o que os franceses sujam. Gostavas que

os franceses dissessem que as portuguesas são

umas putas e que os portugueses são ladrões?

Não gostavas, pois não, então não digas

disparates.

ALZIRA Mas as portuguesas são muito diferentes das

russas.

MANUEL Ah pois são, são mais burras, mais feias e mais

ignorantes.

ALZIRA Estás a ver o que deu meteres-te com esses

russos? Já estás a discutir comigo. Mas tu vais

pagá-las, não perdes pela demora. (pausa.)

Manuel vai sentar-se à mesa onde estava sentado com Dimitri, amuado com a

mulher e aborrecido com a espera. Alzira fica de pé, ao fundo, de braços cruzados a

olhar ora para o marido ora para os dois russos.

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IVAN Gavarich po telefonu23.

Dimitri pega num telemóvel e vem para junto de Ivan, do outro lado do balcão. Pega

na folha que tinha tirado da parede na cena I e marca o número do telefone. Fala

com a mínima pronúncia russa possível, muito pausadamente. Enquanto espera que

lhe respondam olha para Ivan, com ansiedade.

Enquanto o telefone chama, Manuel levanta-se da cadeira e começa a apalpar os

bolsos, ouve-se um toque de telemóvel que vai crescendo de intensidade até que

Manuel encontra o telemóvel num dos bolsos dos calções. Manuel atende. Manuel e

Dimitri vão estar a falar ao telefone. Ambos falam muito alto, mas como estão

concentrados no que estão a dizer não se apercebem que falam um com o outro.

Ivan olha atentamente para Dimitri, enquanto Alzira se vai aproximando, aos poucos,

de Manuel para ouvir o que ele diz. Depois quando finalmente está junto dele

começa a interferir com a conversa do marido. Tanto Alzira como Ivan, só se

apercebem que Manuel e Dimitri estão a falar um com o outro quando os mesmos

chocam de costas ao telefone.

MANUEL Alô! Sim, fala o dono da casa do adro.

DIMITRI Daqui fala o homem que quer comprar a casa.

Falei com um amigo do senhor ontem.

MANUEL Sim, sim. Pois então o senhor quer comprar a casa,

não é?

DIMITRI Sim. Tenho muito interesse. Casa muito bem

localizada. Quero abrir um negócio com a minha

mulher.

MANUEL Ai sim! Um negócio?

23 Telefona.

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A partir deste ponto Alzira começa a interromper, puxando pela ponta da camisa do

marido para lhe chamar a atenção.

ALZIRA Um negócio? Pergunta que tipo de negócio,

oubiste. Olha que a casa é da minha mãe.

DIMITRI Sim um negócio. Minha mulher é professora e quer

abrir uma escola para meninos estrangeiros. A

casa tem um jardim grande, é bonita para isso.

MANUEL Uma escola? Olhe que engraçado. Os meus filhos

também andaram numa escola para estrangeiros.

ALZIRA Uma escola? Olha lá, e é possíbel abrir uma escola

assim sem mais nem menos?

MANUEL (para Alzira, apenas) Larga-me para eu falar com o

homem.

Dimitri e Manuel caminham agora de costas um para o outro, na mesma direcção,

distraídos com a conversa ao telefone.

DIMITRI Queria encontrar o senhor, mas já estou à espera

há muito tempo e o senhor ainda não apareceu.

Combinámos no café da igreja não foi?

MANUEL Ahhh! Mais... eu estou no café há mais de uma

hora....

Nesse momento batem de costas um contra o outro e ficam a olhar em silêncio.

Alzira apercebe-se de tudo e começa a aproximar-se deles muito exaltada e coloca-

se entre Dimitri e Manuel.

ALZIRA Ah! Non, mais non... nem penses que bamos

bender a casa da minha mãe, da minha santa

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mãezinha que está doente desde que o meu pai,

que Deus o tenha, se foi, a estes russos. Nem

penses!

Dimitri e Ivan estão espantados. Dimitri fica a olhar para Manuel com um ar meio

contente, meio assustado pela reacção da mulher.

DIMITRI A casa é do senhor Manuel?! Mas porque é que

não me disse nada.

IVAN Mitia... Senhor Manuel não sabia que querias

comprar casa.

MANUEL Pois, não sabia. Estava aqui há tanto tempo à

espera e o homem não chegava porque já estava

cá dentro. Pois é!

DIMITRI Agora podemos fazer negócio. (Começa a falar

muito depressa, entusiasmado com o projecto que

tem em mente). Senhor Manuel. Só nesta vila e

nas aldeias somos perto de mil imigrantes eslavos.

Muita gente com muitas saudades dos países.

Queremos que nossas crianças venham para

Portugal para ter futuro melhor, mas educação em

Portugal... é complicado, pouca disciplina,

professores pouco exigentes, crianças aprendem

menos do que nas nossas escolas. Aqui, na nossa

comunidade, muitos professores e engenheiros que

podem ensinar nossas crianças nossos costumes,

nossa educação e nossa língua... senão elas

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esquecem e não querem voltar para país de

origem.

ALZIRA Uma escola... diz-lhe que sim, e bais ber que tipo

de escola. Olha que eu...

MANUEL Cala-te mulher, e ouve. Bom, mas eu pensava que

ia fazer um negócio. Isso parece mais uma

associação, como a nossa, lá em Limoges.

DIMITRI É um bocadinho as duas coisas. Há muitas coisas

que os imigrantes eslavos não encontram em

Portugal, principalmente comida e livros. Eu quero

importar esses produtos e vender aos imigrantes...

mas a minha mulher quer ter espaço para crianças

ficarem quando saem da escola portuguesa. Os

imigrantes pagam um pouco e toda a gente

ganha... e crianças aprendem.

ALZIRA Olhe, a casa já não está à benda. A minha mãe

sente-se muito melhor e decidiu que bai boltar para

a casa dela. Sabe... ela não quer estar lá a

atrapalhar na nossa casa, que é muito grande para

ela.

MANUEL ehhhh mulher... ne fait pas comme ça! Porque é

que estás com essas coisas? (Vira-se para Dimitri)

Oh Demitre a minha mulher está cá com umas

dúvidas... olhe, eu vou falar com ela e depois a

gente fala melhor sobre este vosso projecto.

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ALZIRA Bais falar bais... mas a casa é mais minha do que

tua... é da minha mãe. E eu não quero bender a

casa a imigrantes.

(Quando está a dizer imigrantes baixa a voz, envergonhada, em grande parte devido

ao olhar reprovador do marido)

MANUEL Oh Demitre, vou falar com a minha sogra e com os

meus cunhados que moram cá e que vos

conhecem e ver o que é que se pode fazer. É que

isto é uma coisa importante para as vossas

crianças e para a vossa comunidade. Sabes uma

coisa? Eu também estive envolvido lá numa

associação de imigrantes portugueses lá na

França... esses sítios são importantes para a gente

nos lembrarmos do nosso país.

DIMITRI Sim... senhor, mas qual é o preço? É o que está no

folheto que estava pendurado?

MANUEL Sim. O preço é esse, mas olha que aquilo precisa

de muitas obras. Aquilo está a cair de podre...

afinal foste tu que tiraste o papel dali da parede...

IVAN Obras não são problema. Fizemos um peditório nos

patrões para materiais e pessoas vão ajudar no

trabalho, se conseguirmos comprar casa. Trabalho

não é problema.

Alzira está chateada com a situação, olha para o marido com ar ameaçador, olha

para os russos e depois começa a dirigir-se para a porta.

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Manuel segue-a, acenando com a mão a Dimitri e a Ivan. À saída ainda grita:

MANUEL Veja lá a minha conta, as cervejas e o vinho do

outro dia que eu saí sem pagar. Veja lá quanto é,

que depois mando-lhe cá um garçon para pagar.

Dimitri e Ivan ficam a ver Manuel sair. O palco vai a negro.

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CENA III

As luzes acendem. O cenário tem agora uma sala quase vazia, num outro espaço.

Três mesas estão colocadas ao fundo na parte alta do palco, cobertas com panos.

Do lado direito, um móvel alto coberto com um lençol. Dimitri entra pela porta, na

esquerda, a meio, carregado de sacos de plástico cheios de coisas. Logo de seguida

entra Ivan, com balões coloridos, cheios de ar. Vêm amarrados uns aos outros com

um cordel. Quando chegam, Dimitri pousa os sacos e dirige-se ao fundo, onde está

um aparelho de música, com música popular russa. A música começa a tocar e os

dois homens cantam. Trazem duas cadeiras que estão ao fundo junto das mesas e

começam a colocar os balões para decorarem a sala. Depois dos balões tiram os

lençóis de cima das mesas do fundo e colocam em cima copos de plástico, bebidas

e pratos de plástico. Trazem cartazes escritos em russo e colocam nas paredes. De

vez em quando vão parando, colocam as mãos na cintura e apreciam o estado da

sala. Ivan sai para ir buscar mais sacos.

IVAN Vou buscar o resto.

DIMITRI Ok!

Dimitri começa a cantar ainda mais alto, colocando algumas flores, que trouxe

dentro do saco, soltas em cima do móvel e das mesas. Tem um ar satisfeito. Anda

tão entretido que nem dá pela entrada de Manuel. Este entra de mansinho, olha para

todos os lados e aprecia as mudanças no local. Vem com uma roupa semelhante à

que trazia na cena anterior.

MANUEL Pode-se entrar? Uh la la... sim senhor, isto está

uma coisa que se veja. Quem viu este barraco, e

quem o vê agora.

Dimitri continua a cantar e a arranjar a sala. Manuel tem de se aproximar e gritar.

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MANUEL Então Demitre... já não me conheces?

DIMITRI Eh... Senhor Manuel.... meu amigo! Dê cá um

abraço!

MANUEL Senhor não. O ano passado quando te vendi a

casa foi com o acordo de que ias tratar-me como

amigo...

DIMITRI Pois é. Gostas da casa? Hoje é inauguração.

MANUEL Vocês fizeram aqui um bom trabalho. Sim senhor!

Isto está muito diferente. Bem dizia a minha sogra!

Tenho de trazer cá a minha mulher para ela ver

isto.

DIMITRI Senhora Alzira não ficou chateada por vender a

casa a imigrantes?

MANUEL Ah, bom... sabes, no início ficou. É o medo, sabes,

ela ainda não se habituou a ter pessoas diferentes

no país dela.... sabes como é. Quando uma pessoa

vem a Portugal em Agosto está à espera que as

coisas estejam como dantes, quando saímos, et...

bien, as coisas têm mudado muito por cá... E esta

mudança também, outras pessoas, de outros

países, com hábitos que ela não conhece. Sabes

como é. A cachopa ficou com medo. Mas olha que

ela é muito boa pessoa e agora que sabe que isto

vai ser mesmo uma escola e um supermercado,

não é? Vai gostar de ver como as coisas ficaram. E

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para além do mais, ela sabe bem que a mãe dela

está muito melhor em nossa casa do que estava

aqui.

DIMITRI Vens para a festa? Quero que vejas meus filhos.

MANUEL Ah mon Dieu! Eh pá deves estar trés content. Eu

ainda me lembro quando os meus filhos foram para

lá morar de vez. Eles nasceram lá, mas a mulher

quis que eles viessem para cá por causa da escola.

Mas depois a Zira ficou com tantas saudades que

um ano, quando viemos de férias eles foram

connosco. Os teus filhos gostam de estar cá?

DIMITRI Mais ou menos. Enquanto não aprendem a falar

mais difícil, mas depois gostam. Portugal país de

futuro.

MANUEL Sabes uma coisa? No ano passado depois de ir

embora, pelo caminho pensei nas coisas que

disseste sobre Portugal. Nós fomos embora há

tanto tempo que já nem conhecemos o nosso país

e quando voltamos, só vemos aquilo que nos

interessa. C’est vrai. Eu já nem sei se sou

português, nem se sou francês... se calhar não sou

nada. E fiquei a pensar. Se há tantos imigrantes a

quererem vir para Portugal, e ainda por cima

pessoas com estudos como vós, é porque isto tem

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ainda muito que se aproveite, muita coisa para

explorar.

DIMITRI (Levanta o polegar). Portugueses queixam-se muito

de Portugal mas fazem pouco para mudar. Mas

país muito bom para tudo, só é preciso insistir um

bocadinho. Portugal tem muitos muitos imigrantes

com esperança no país. Se todos portugueses

terem também esperança no país, o país é melhor

da Europa. Mas portugueses desanimados com a

crise. É preciso reagir.

MANUEL Pois é. Insistir um bocadinho. E voilá... tu insististe

e cá está... que bela obra que aqui ficou. O que é

se vai fazer aqui?

DIMITRI Mulher vai ensinar e cuidar de filhos de imigrantes

eslavos. É uma escola para crianças pequenas e

grandes. Vai estar aberto todos os dias e crianças

aprenderem mais sobre Rússia e sobre Portugal e

sobre outros países. Sabe senhor Manuel... em

Portugal tudo muito bom, mas educação...

educação não é bom. Crianças lá na nossa terra

aprenderem mais coisas e professores mais

exigentes. Nós criar agora escola à nossa maneira.

Meninos vão para escola portuguesa e depois vêm

para nossa escola.

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MANUEL Ah... isso é importante. Os meus filhos... eu e a

Alzira não falávamos com eles em português para

eles falarem melhor francês, mas foi um erro!

Agora é que eu vejo. Bem... nós também sempre

achámos que falar português em França não servia

para nada. Até tínhamos vergonha, sabes... e não

queríamos que os miúdos tivessem vergonha por

seremos imigrantes... sabes como é. A gente

éramos novos. (Manuel suspira e Dimitri acena

com a cabeça concordando com o que Manuel diz).

DIMITRI Tak. Nós sentir o mesmo, mas insistir com crianças

para aprender russo e a nossa cultura. Cultura do

nosso país muito importante para nós.

Ficam os dois em silêncio por uns momentos, reflectindo. Manuel admira mais uma

vez a obra. Entretanto a música pára. Dimitri vai procurar outro CD para trocar a

música. Entra Alzira, que fica espantada com as mudanças na velha casa.

ALZIRA Oh lala! C’est trés jolie!

MANUEL A tua mãe bem disse...

ALZIRA Eu nunca pensei que isto ficasse assim. Nunca

pensei mesmo. Estes russos trabalham bem.

(Pausa. Alzira fala meio envergonhada) Olá Sr.

Demitre. Como está? (Dimitri acena com a cabeça

e Alzira olha em redor). Estou a gostar muito. E por

fora também está muito bonito!

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DIMITRI Para nós é muito bom estar aqui. A minha

mercearia abre amanhã. Os nossos amigos estão

contentes. Agora produtos da nossa terra em

Portugal. Tudo é bom.

Alzira fica a olhar. Ivan entra com mais sacos. Vem todo contente e tem um ar limpo.

IVAN Viva!

DIMITRI Ivan, senhor Manuel e mulher vieram ver as obras

da Nascha Dom!

MANUEL Nascha Dom?! O que é isso? Ainda não vimos,

onde é?

DIMITRI É russo, significa A Nossa Casa, foi o nome que

demos à casa.

MANUEL Muito bem... isso merece um brinde. (Olha em

volta, e para a mesa, onde só vê sumos e outras

bebidas, procura com o olhar.) Não há aí nada que

se beba?

Dimitri ri-se e aponta com a mão para o móvel coberto com o lençol...

DIMITRI Senhor Manuel... tenho aqui uma garrafa para

brinde da casa... uma garrafa especial.

Dimitri vai atrás do balcão procurar a garrafa e os copos. Manuel, lembra-se de uma

coisa e exclama.

MANUEL C’est vrai... Oh mulher, vai lá ao carro buscar aquilo

para o Demitre.

ALZIRA Aquilo, o quê?

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MANUEL A cassete, a que está no carro, que eu gravei para

o Demitre, eu disse-te.

Alzira sai. Dimitri tira detrás do móvel alto uma garrafa de vinho branco e acena para

Manuel, muito sorridente.

DIMITRI Uma garrafa de vinho verde!

Manuel lembra-se da forma como se conheceram e da conversa do vinho. Começa

a rir-se e vai ter com Dimitri, pegando nos copos. Imita Dimitri a falar.

MANUEL Vinho verde não. Vinho branco, ou vinho cor-de-

rosa ou vinho tinto. Vinho não verde. Garrafa verde,

mas vinho de outra cor.

DIMITRI Não, senhor não percebe de vinho. Vinho verde

muito bom. Vinho verde existe... mas só em

Portugal.

IVAN (Chama Alzira que entra com uma cassete de

áudio). Senhora Alzira. Vamos brindar à Nascha

Dom.

Enchem os copos e levantam os copos.

IVAN E DIMITRI Nasdrovie24!

MANUEL Arréte! Estamos em Portugal. Vamos brindar à

maneira portuguesa.

Manuel pega na cassete que Alzira tem na mão e vai até ao aparelhos de música

que está no fundo. Põe a tocar a música Verde Vinho de Paulo Alexandre e começa

a cantar. A meio da música Alzira também começa a cantar. Quando chega o refrão,

24 Saúde!

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os russos também cantam. Todos têm copos na mão e embalam-nos ao som da

música.

MANUEL Ninguém na rua na noite fria, só eu e o luar

Voltava a casa quando via que havia luz num velho

bar

Não hesitei, fazia frio e nele entrei.

Estando tão longe da minha terra tive a sensação

De ter entrado numa taberna de Braga ou Monção

E um homem velho, se acercou e assim falou...

REFRÃO Vamos brindar,

Com o vinho verde que é do meu Portugal

O vinho verde me fará recordar

A aldeia branca que deixei, para lá do mar

Vamos brindar

Com o verde vinho para que eu possa cantar

Canções do Minho, que me fazem sonhar

Com o momento de voltar... ao lar.

Cantam a música até ao fim e cai o pano.

FIM