homenagens a frei tito de alencar

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10 de agosto Memória do martírio de Frei Tito de Alencar Lima Depoimentos Por Frei Xavier Plassat Xavier Plassat, frade dominicano, conheceu frei Tito nos últimos anos de sua vida, quando se estabeleceu no convento dos frades dominicanos em L‟Arbresle (França). Ao pisar no Brasil pela primeira vez em março de 1983, trazendo de volta o corpo do Tito, resolvi aqui ficar e aqui estou, vivendo as esperanças, as lutas e a fé do Tito com seu povo. Tenho convivido com Tito na comunidade dominicana de L‟Arbresle (França). Foram duas primaveras, dois verões, mas um só outono e um só inverno. Ele com seus 27 anos e eu, meus 23. Ali, surgiu entre nós, irmãos pela graça de São Domingos, uma relação feita de cumplicidade e de amizade, de sorrisos e de raivas, de luta e de fé, enfrentando o Fleury que, por dentro do Tito, continuava sua tortura destruidora, partindo-lhe a alma entre resistência e abandono. Resistência era quando Tito tocava violão, formava projetos, abraçava o amigo, brincava com a criança, ria, cantava, rezava. Abandono era quando obedecia cegamente à intimação alucinante do „papa‟ cuja voz atormentava-lhe a mente sem parar, fugindo para onde mandava que fosse, ou afundando-se em impenetráveis prantos ou desesperados silêncios. Juntos, cantamos, choramos, xingamos e desafiamos o Fleury. Partilhamos do melhor e do pior. O chão que vem e o chão que se vá. Até que um dia Tito resolvesse livrar-se definitivamente do torturador e da loucura que este pretendia infundir-lhe. Neste instante longamente preparado, num último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou-lhe a pretensão de poder continuar, dia após dia, roubando a sua vida. “Melhor morrer que perder a vida”. Minha vida, ninguém tira: eu que a estou entregando. Prova de fé, maior não há... Por Frei Beto Frade dominicano e escritor. Viveu junto com Tito no convento dos frades dominicanos em São Paulo. Autor de Batismo de Sangue em que relata a luta política de Frei Tito. Na terça-feira. 17 de fevereiro de 1970, oficiais do Exército retiraram Frei Tito de Alencar Lima do Presídio Tiradentes, onde se encontrava preso desde 1969, acusado de subversão. “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”, disse-lhe o capitão Maurício Lopes Lima. No quartel da rua Tutóia, um outro prisioneiro, Fernando Gabeira, testemunhou o calvário de frei Tito: durante três dias, dependurado no pau-de-arara ou sentado na cadeira-do-dragão - feita de chapas metálicas e fios-, recebeu choques elétricos na cabeça, nos tendões dos pés e nos ouvidos. Deram-lhe pauladas nas costas, no peito e nas pernas, incharam suas mãos com palmatória, revestiram-no de paramentos e o

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Depoimentos emocionantes sobre um verdadeiro mártir da historia do Brasil.

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Page 1: Homenagens a Frei Tito de Alencar

10 de agosto

Memória do martírio de Frei Tito de Alencar Lima

Depoimentos

Por Frei Xavier Plassat

Xavier Plassat, frade dominicano, conheceu frei Tito nos últimos anos de sua vida,

quando se estabeleceu no convento dos frades dominicanos em L‟Arbresle (França).

Ao pisar no Brasil pela primeira vez em março de 1983, trazendo de volta o corpo do

Tito, resolvi aqui ficar e aqui estou, vivendo as esperanças, as lutas e a fé do Tito com

seu povo. Tenho convivido com Tito na comunidade dominicana de L‟Arbresle

(França). Foram duas primaveras, dois verões, mas um só outono e um só inverno.

Ele com seus 27 anos e eu, meus 23. Ali, surgiu entre nós, irmãos pela graça de São

Domingos, uma relação feita de cumplicidade e de amizade, de sorrisos e de raivas,

de luta e de fé, enfrentando o Fleury que, por dentro do Tito, continuava sua tortura

destruidora, partindo-lhe a alma entre resistência e abandono.

Resistência era quando Tito tocava violão, formava projetos, abraçava o amigo,

brincava com a criança, ria, cantava, rezava. Abandono era quando obedecia

cegamente à intimação alucinante do „papa‟ cuja voz atormentava-lhe a mente sem

parar, fugindo para onde mandava que fosse, ou afundando-se em impenetráveis

prantos ou desesperados silêncios. Juntos, cantamos, choramos, xingamos e

desafiamos o Fleury. Partilhamos do melhor e do pior. O chão que vem e o chão que

se vá. Até que um dia Tito resolvesse livrar-se definitivamente do torturador e da

loucura que este pretendia infundir-lhe. Neste instante longamente preparado, num

último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou-lhe a pretensão de poder

continuar, dia após dia, roubando a sua vida. “Melhor morrer que perder a vida”. Minha

vida, ninguém tira: eu que a estou entregando. Prova de fé, maior não há...

Por Frei Beto

Frade dominicano e escritor. Viveu junto com Tito no convento dos frades dominicanos

em São Paulo. Autor de Batismo de Sangue em que relata a luta política de Frei Tito.

Na terça-feira. 17 de fevereiro de 1970, oficiais do Exército retiraram Frei Tito de

Alencar Lima do Presídio Tiradentes, onde se encontrava preso desde 1969, acusado

de subversão. “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”, disse-lhe o capitão

Maurício Lopes Lima.

No quartel da rua Tutóia, um outro prisioneiro, Fernando Gabeira, testemunhou o

calvário de frei Tito: durante três dias, dependurado no pau-de-arara ou sentado na

cadeira-do-dragão - feita de chapas metálicas e fios-, recebeu choques elétricos na

cabeça, nos tendões dos pés e nos ouvidos. Deram-lhe pauladas nas costas, no peito

e nas pernas, incharam suas mãos com palmatória, revestiram-no de paramentos e o

Page 2: Homenagens a Frei Tito de Alencar

fizeram abrir a boca “para receber a hóstia sagrada” - descargas elétricas na boca.

Queimaram pontas de cigarro em seu corpo e fizeram-no passar pelo “corredor

polonês”.

O capitão Beroni de Arruda Albernaz vaticinou: "Se não falar, será quebrado por

dentro. Sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais

esquecerá o preço de sua valentia". A ceder e viver, Tito preferiu morrer. “É preferível

morrer do que perder a vida", escreveu ele em sua Bíblia. Com uma gilete, cortou a

artéria do braço esquerdo. Socorrido a tempo, sobreviveu.

Foi libertado em dezembro de 1970, incluído entre os prisioneiros políticos trocados

pelo embaixador suíço, seqüestrado pela VPR. Ao desembarcarem em Santiago do

Chile, um companheiro comentou: “Tito, eis finalmente a liberdade!”. O frade

dominicano murmurou: “Não, não é esta a liberdade”.

Em Roma, as portas do Colégio Pio Brasileiro, seminário destinado a formar a elite do

nosso clero, fecharam-se para o religioso com fama de "terrorista". Em Paris, nossos

confrades o acolheram no convento de Saint Jacques, em cuja entrada uma placa

recorda a invasão da Gestapo, em 1943, e o assassinato de dois dominicanos.

O capitão Albernaz tinha razão: sufocado por seus fantasmas interiores, Tito tornou-se

ausente. Ouvia continuamente a voz rouca do delegado Fleury, que o prendera, e o

vislumbrava em cafés e bulevares. Transferido para o convento de I'Arbresle,

construído por Le Corbusier, nas proximidades de Lyon, as visões aterradoras

continuaram a minar sua estrutura psíquica. Escrevia poemas:

“Em luzes e trevas derrama o sangue de minha existência / Quem me

dirá como é o existir / Experiência do visível ou do invisível”.

Os médicos recomendaram-no suspender os estudos para dedicar-se a trabalhos

manuais. Empregou-se como horticultor em Villefranche-sur-Saône e alugou um

pequeno cômodo numa pensão de imigrantes, o Foyer Sonacotra, cujas despesas

pagava com o próprio salário. O patrão o percebeu indolente, ora alegre, ora triste,

sugado por um tormento interior. Em seu caderno de poemas, Tito registrou:

“São noites de silêncio / Vozes que clamam num espaço infinito / Um

silêncio do homem e um silêncio de Deus”.

No sábado, 10 de agosto de 1974, frei Roland Ducret foi visitá-lo. Bateu à porta de seu

quarto, na zona rural. Ninguém respondeu. Um estranho silêncio pairava sob o céu

azul do verão francês e envolvia folhas, vento, flores e pássaros. Nada se movia. Sob

a copa de um álamo, o corpo de Frei Tito dependurado por uma corda, balançava

entre o céu e a terra. Ele tinha 28 anos.

Em março de 1983, seus restos mortais retornaram ao Brasil. Acolhidos em solene

liturgia na Catedral da Sé, em São Paulo, encontram-se enterrados em Fortaleza, sua

terra natal. O cardeal Aros frisou que Tito afinal encontrara, do outro lado da vida, a

unidade perdida.

Page 3: Homenagens a Frei Tito de Alencar

Nos eventos que ocorreram em várias cidades do país, rezamos juntos o poema que

Tito escreveu em Paris, a 12 de outubro de 1972:

“Quando secar o rio da minha infância / secará toda dor. Quando os regatos límpidos

de meu ser secarem / minh'alma perderá sua força. Buscarei, então, pastagens

distantes / lá onde o ódio não tem teto para repousar. Ali erguerei uma tenda junto aos

bosques. Todas as tardes, me deitarei na relva / e nos dias silenciosos farei minha

oração. Meu eterno canto de amor: / expressão pura de minha mais profunda

angústia. Nos dias primaveris, colherei flores / para meu jardim da saudade. Assim,

exterminarei a lembrança de um passado sombrio”.

Por Helvécio Ratton

Helvécio Ratton, cineasta, diretor de “Batismo de Sangue”.

Conheci Frei Tito em Santiago do Chile, em janeiro de 71. Tito chegou no grupo de 70

presos políticos que foram trocados pelo embaixador suíço, seqüestrado por militantes

da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Eu estava exilado há poucos meses no

Chile e sabia o que havia acontecido com ele na prisão. Sua história era conhecida por

todos nós, militantes de esquerda, antes mesmo de sua divulgação pela revista Life,

nos Estados Unidos.

Tito foi um dos porta-vozes do grupo dos 70 e deu inúmeras entrevistas para órgãos

de imprensa de todo o mundo, sempre com muita firmeza e lucidez. Senti muita

admiração por ele nesse momento. Naquela época, já éramos um grupo grande de

exilados brasileiros no Chile. Havia uma sensação de insegurança causada pela

ameaça permanente de rompimento do quadro institucional chileno e pela presença de

militares e policiais brasileiros circulando por lá, até mesmo infiltrados entre nós. Acho

que foi essa percepção que levou Frei Tito a viajar para a Europa.

Passei muito tempo sem notícias dele até que fiquei sabendo de sua morte na França,

já depois do golpe militar no Chile. Fiquei muito comovido e marcado pelo desfecho de

sua curta história. Anos mais tarde, depois de ter retomado minha carreira de cineasta

no Brasil e após a redemocratização, Frei Betto me mandou uma nova edição do

“Batismo de Sangue” com uma dedicatória-desafio: “Helvécio, coragem, a realidade

extrapola a ficção”.

Quando li o livro, decidi adaptá-lo para o cinema. Apesar de todas as dificuldades para

se fazer um filme como esse, achei que era uma história a ser conhecida por todos,

em especial pelas gerações mais jovens. Assim nasceu o filme “Batismo de Sangue”,

que conta a participação dos frades dominicanos na luta armada contra a ditadura

militar. E conta, em especial, a história de Frei Tito, um jovem cearense que pagou

com a própria vida a ousadia de sonhar com um Brasil mais justo e fraterno.

http://www.adital.org.br/freitito