homenagem ao povo que viveu os temas e aos personagens aqui … · 2015. 11. 22. · mario tessari

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Fabricação da Erva-mate

Canoinhas (SC), 1926. Acervo de Fernando Tokarski.

O agricultor Antonio Gurzinski, da localidade de Salto do Água Verde, Canoinhas (SC), trabalhando no

sapeco de erva-mate pelo antigo sistema de desidratação das folhas.

A foto é de Fernando Tokarski (1991).

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – A Erva-mate e o Chimarrão

Na pródiga e verdejante paisagem da Região do Contestado, absolutos reinam os pinheirais, as araucárias. Nas invernias, os ventos trazem as noites de geada e as manhãs brilhantes sob os sóis de julho. É nesse tempo que essa paisagem se alegra pela abundância do pinhão alimentando homens, animais terrestres e voadores. Nesse quadro de faxinais, silenciosas árvores de erva-mate compõem o sub-bosque como um tecido de veludo que cobre e emoldura a mesa farta.

A luta com a erva-mate torna os homens mais alegres e mais homens! A história da Região do Contestado é a História da Erva-mate. O Contestado nasceu e cresceu assim. A rusticidade dos processos artesanais de coleta e transformação estendeu divisas e fronteiras, plantou sociedades, forjou usos e costumes, teceu falares, rendeu tradições. Do lendário de Yari, dos modos indígenas de produção até a exploração mercantil, a erva-mate desenhou na paisagem dos pinheirais a presença do homem dos ervais. O facão lapeano abriu veredas; o mate solidificou a condição humana no mapa ilexiano.

Quando um andante chega, conhecido ou nunca dantes visto, vizinho ou aparentado, autoridade ou paisano, abonado ou pé-descalço, padre ou incréu, correligionário ou adversário, branco, índio ou retinto, o chimarrão dá as boas-vindas. A erva cevada, rodando de mão em mão, garante as

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – A Erva-mate e o Chimarrão

prosas, as proezas, a sabença das últimas notícias, o tirar-saber, os informes do comércio e da política, os causos das coisas do outro mundo, das relembranças de outros tempos ou de quem já se foi. A roda de chimarrão gira os mundos individuais e coletivos, avivando-os ao sabor adocicado do amargo.

A roda de chimarrão concilia linguagens, jeitos e viventes, tecendo a cidadania e a convivência dos iguais e desiguais. A roda de chimarrão, rodopiando o calor das identidades nos faz frutos de uma brasilidade convergente, cumprindo um papel que filosofias, ideologias e credos são incapazes de transpor.

Fernando Tokarski, historiador e escritor, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e da Academia de Letras Vale do Iguaçu (União da

Vitória-PR).

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Ao povo que viveu os temas e

aos personagens aqui retratados.

Agradeço aos que

me contaram os causos,

podaram os excessos,

preencheram as lacunas,

escreveram os introitos,

ajudaram nos serviços de carpintaria ou

leram os originais, apontando melhorias.

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© Mario Tessari, 2012. Mario Tessari escreveu os textos. Egon Thiem fotografou chaleira e cuia. Mario Tessari formatou a capa. Gilvan Tessari e Maria Elisa Ghisi incentivaram, apoiaram e revisaram o texto. Anderson Mateus e Mateus Teixeira diagramaram e cuidaram das artes gráficas. Mario Tessari revisou, atualizou e diagramou essa edição eletrônica, em 2013.

FICHA CATALOGRÁFICA

Tessari, Mario. Roda de Chimarrão / Mario Tessari. – Jaguaruna : Edição do Autor, 2012. 278p. 1. Contos catarinenses. l I. Título.

CDD 869.9301

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Sumário

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APRESENTAÇÃO

MAIS UM ELO

RODA DE CHIMARRÃO

DO TEMPO DE GUERRAS

MORTE NA ALDEIA

MEMÓRIA VIVA DA GUERRA DO

CONTESTADO

NOITE SINISTRA

E A VIDA CONTINUA

DOS BONS TEMPOS DE PAZ

NEGÓCIO DE OCASIÃO

TOURO ENGATADO

JUNTA DE BOIS

CAUSO DO JUCA

A VOLTA DO TOMÉ

O CHÁ DO BISPO

FANTASMA DA IMBUIA

O MILAGRE

O SUMIÇO DO TAVICO

DELEGADO APARÍCIO

O LAGARTO VOADOR

O CASCUDO DO ORÁCIO

CADEIA VAZIA

UM HOMEM DE CORAGEM

ÓIA O LADRÃO!

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Sumário

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DO TEMPO DE IMAGINAR

O HOMEM QUE MORREU DE FOME

COMER OU SAIR

IMPOTÊNCIA

O CASAMENTO DO FERNANDO

DEFUNTO DESCONHECIDO

EM DEFESA DA HONRA

INSUFICIÊNCIA CONJUGAL

FILOSOFIA DE PESCADOR

CONSULTA MÉDICA

LOBISOMEM

FUTEBOL AMADOR

FUTEBOL COM CHUVA

O CORTE DA LINHA

MORTE CIRÚRGICA

CAIXA NEGRA

O DESTINO DO ABENÇOADO

TRANSPORTANDO MADEIRA

DOENÇA MENTAL

LEI É LEI

APOSENTADO POR INVALIDEZ

MORTE FELIZ

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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MAIS UM ELO

Fazia tempo que uma preocupação me acompanhava com insistência. Tratava-se do receio de que o regionalismo serrano de nosso Estado desaparecesse com seus expoentes mais antigos. É que corriam os anos e não surgia nenhum novo autor regionalista que viesse dar continuidade à corrente iniciada por Tito Carvalho. Aliás, o próprio Tito não parecia colocar muita fé em nosso regionalismo, tanto que, já em 1923, declarava de forma solene seu rompimento com ele. Por ironia do destino, foi a faceta regionalista de sua obra que lhe garantiu a sobrevivência no mundo literário. Com toda certeza ele ficaria muito surpreso se pudesse ver o desenvolvimento que teve a corrente, apesar dos longos hiatos, no passar do tempo. Creio mesmo que foi a única corrente literária que se estruturou em Santa Catarina. Outros regionalismos aconteceram, mas não tiveram continuidade, não encontraram seguidores. Foi o caso de Othon D'Eça, por exemplo.

Agora, porém, MARIO TESSARI vem acrescentar um novo elo à corrente com seu livro "Roda de Chimarrão", reunindo um punhado de contos ambientados no Planalto. Tudo indica que esse gênero literário continuará predominante em nosso regionalismo.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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Nesses contos, frutos da vivência na região, das observações atentas e de uma memória aguda, o autor flagra o Planalto na sua vida cotidiana, em plena atividade, em sua movimentação normal do dia-a-dia. E assim exibe a região de maneira mais autêntica e completa do que poderiam realizar historiadores convencionais baseados em documentos, nem sempre muito confiáveis, fatos e datas às vezes incertas. Aqui a região planaltina aparece em acão, na labuta diária, com sua paisagem tão característica, seu peculiar modo de vida, seus usos e costumes e, acima de tudo, com seu linguajar pitoresco, ao mesmo tempo conservador e criativo.

Através da ficção regionalista, partindo do Fundador e percorrendo a obra dos demais, são visíveis as alterações que o progresso foi impondo à região e que foram sendo absorvidas pelos autores em suas respectivas épocas. Houve no decorrer do tempo um processo modernizador, inclusive na linguagem, mas creio que cada um dos nossos autores a registrou da forma autêntica em que foi falada quando produziram suas obras. As cidades, por sua vez, cresceram e se desenvolveram, ainda que mantendo aquele caráter "rurbano" de que falava Gilberto Freyre, ou seja, continuam vivendo em função do que acontece no interior de seus municípios, na pecuária, na agricultura e na indústria, quase sempre de pequeno porte.

Todo o Planalto me parece agora representado na ficção, desde o latifúndio e a vida

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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campeira, incluindo a lida com o gado e o ciclo do couro, o cultivo e a extração da erva-mate, a exploração intensiva do pinheiro, sem faltarem as serrarias, as balsas e os caminhões de reboque, a vida nas pequenas cidades e nas vilas esquecidas pelo mundo, com seus dramas e suas comédias. Toda a região, enfim, está retratada na obra fíccional desses autores, permitindo a reconstituição do que foi nos tempos de dantes e do que é ainda hoje, e marcando presença no mapa literário do Estado.

Os contos de MARIO TESSARI são fiapos da vida local e por isso autênticos e vívidos. Neles transparece o "clima" regional através de relatos que parecem extraídos da história oral, embora na verdade sejam apenas inspirados nela, quando não inteiramente imaginários. Os termos e expressões regionais são aplicados com moderação e de maneira precisa, não buscando o pitoresco por si só mas retratando com exatidão a realidade. Por tudo isso, o livro de MARIO TESSARI constitui um reforço importante de nosso regionalismo, merecendo a atenção dos leitores e as nossas efusivas saudações.

ENÉAS ATHANÁZIO

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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RODA DE CHIMARRÃO

Vai te achegando e toma assento que a

água já chia. Puxa aquele toco, que o banco é do Demétrio, mais do Gervásio e do Calistro, que calejaram as ripas, de modos que só a eles cabe sentar ali. O cepo? O cepo é angico do legítimo. Cortei assim especial pro prefeito, pra que se sente acomodado e possa ouvir nosso choro de todo dia. Se bem que

ele nem vem todos os dias.

Ô Ademir, chega mais pra perto. O Tonico não morde e, mesmo que mordesse, não tem perigo, já que foi vacinado. Luis, faça o favor de limpar a cuia, já que tu tens mais prática com a

colher. Êi, peonada, pára o serviço que é hora do chimarrão. E o Lachinski esclarece:

-Como eu ia dizendo, seo Tavico, aqui bebe gente de tudo quanto é raça, pelagem ou cor; distribuídos por vários partidos e rezando na religião que bem

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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entender. Inda há pouco, se comentou a guerra e previu-se um vencedor, com alguns votos contra, entre eles o do turco, que é do lado de lá. Agora, veja aí o professor defendendo os pobres e, daqui a nada, vamos saber dos mortos do dia, marcando enterro e fazendo um

balanço das vidas deles, com uma exatidão de causar inveja ao santo porteiro celeste. Mortos são todos bons, são todos santos.

-Enche a cuia aí, seo Ernesto, que tá na mão. Ô Juca, requenta um pouco essa água.

-Mas, vocês viram a batida que tinha ali na esquina da igreja? Devem de ter visto. O Fernando também viu. Que confirme.

E assim segue o papo, regado a mate, com o Fernando arrematando:

-Pô que paulada! Os dois corriam pra burro e estavam os dois errados.

Alguém, do outro lado da cuia, concluiu:

-Nenhum morto, bastante falação, lavagem de roupa suja e, como todo

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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mundo era do coronel Duarte, ficaram no deixe-disso e levaram seus amassados pra casa. Ah! Se fossem adversários políticos...

-Que erva ruim, João! Donde é essa? A de ontem tava bem melhor.

-Tão acabando com os ervais. O destoque da erva-mate pra plantar batata e soja é um crime. Com tanta capoeira à disposição...

-Tiram a erveira, que nem carece de adubo ou herbicida, pra lavar a terra com venenos e produtos químicos,

nessas lavouras mecanizadas.

-Existe uma lei que, pra cada erveira derrubada, o sujeito deve plantar quatro novas mudas.

-Lei brasileira? Então, não vai acontecer nunca.

-Não senhor. O cumprimento dessa lei depende da consciência da pessoa. O Tavico aqui, ele já plantava cinco erveiras novas pra cada tronco que secasse. E continua plantando até hoje. A gente é que tem de reclamar, falar

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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pro dono, protestar, chamar a polícia, denunciar e contar pra todo mundo.

E o Tavico, todo prosa com o elogio, promete doar um saco de erva-mate da boa, pra provar que erval plantado produz um chimarrão melhor.

Nessa roda e nessa hora é que se conhece a vida de fulana, o endereço da outra e mais o pai Ditinho, que nasceu apenas anteontem e ninguém sabe ao certo de quem é a culpa. Foi ali que se celebrizou a Doralice, a ponto de fazer mais fama que a Rose, que, na

prática, é insuperável. E, entre uma cuia e outra, surge uma nova estrela, bisca de alguém ausente, porque entre si não se atacam... de frente.

Foi numa quinta-feira que descobriram o causo do vigário, que não era tão escandaloso assim, mas, estando o

padre mais para o céu que para a terra, nele tudo é muito mais visível, mesmo porque é ele que classifica os pecados em públicos e privados. E ainda se saiu melhor que o pastor, obrigado a abandonar o pasto e a ovelha, ameaçado pelo próprio rebanho.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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Afinal, um dia vão embora e os filhos nascem desconhecidos. Assim, a vida continua e outro padre e mais um pastor chegam para alimentar a prosa nas duas sessões diárias desse fórum nada jurídico.

-Mas, o Zico tava impedido. Só assim

pro Flamengo ganhar! – atalha o Bastião.

E começa o debate esportivo na roda de chimarrão, representativa equipe de comentaristas e de analistas pouco coerente. Ali se escala o time, se

dispensa o treinador e se elege o novo presidente do clube; cada atleta e cada lance são estudados sob vários aspectos, analisando-se as probabilidades positivas e negativas do “se ele tivesse...”

Ali se fica sabendo onde é que tem um

bom latoeiro, quem foi que pintou o Ford do comandante, quem foi que derrubou o muro da escola quando estava de porre, por que o Jeep do padre ronca grosso, qual foi o picareta que vendeu o Maverick ao Ubaldo, dizendo uma economia formidável...

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Apresentação

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-Por que o João deu dois tirinhos no caboclo?

Ninguém sabe... Ninguém sabe, até porque pode o mesmo repetir a dose sobre o dono da língua. Dizem, à meia-boca, que foi por causa de mulher, outros dizem que é rixa antiga e,

juntos, formam um júri sem sentença, sempre transferida para data indeterminada, pois começa outro assunto, mesmo porque o Orácio alembrou de um peixe de pescaria antiga, bem de antes do isopor.

E disso, com a permissão de vocês, me retiro, para contar com mais tempo, que cada causo merece um título.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO

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DO TEMPO DE GUERRAS

MEDOS E DESTRUIÇÕES

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Morte na Aldeia

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MORTE NA ALDEIA A madrugada findava sem pressa.

Ao leste, uma auréola marcava o contorno das montanhas. Intenso alarido era provocado pela passarada, ainda invisível. Os papagaios pediam comida e os patos namoravam, ainda sonolentos. Pecó dormitava, prestando ouvido a tudo, mentalizando o dia e

suas perspectivas. O velho índio levava a vida sedentária de quem já passou.

De dentro do mato, olhos atentos observavam a aldeia, duzentos metros à frente. Eram olhos de pessoas que tinham caminhado boa parte da noite, por espinhos e umidades, fazendo,

contudo, um silêncio forçado. Durante meses armaram aquilo: foram visitas, bombeando os índios, um tal de conta e reconta, olha aqui, repara aquilo, até se decidirem por esse dia.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Morte na Aldeia

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Escolhido porque os índios Xokleng estão além do rio, em território Kaingang, na caça ao ovoro. Na aldeia, permaneceram mulheres e crianças, mais alguns adultos impossibilitados de andar. Souberam disso por um mestiço e esperaram num lugar não muito

distante, mesmo assim, em segurança, pois, nesses dias, os índios ficam envolvidos no afã de preparar a invasão dos campos para além do Goio Xim.

Ontem, finalmente, eles partiram no rumo contrário ao acampamento dos „brancos‟. A aldeia ficou calma e

inconsciente do perigo. O velho Pecó, responsável pela tribo na ausência dos caçadores, mal dominava a si mesmo. Atacariam à primeira luz. Se a sorte ajudasse, voltariam para a Colônia sem ferimentos e teriam garantido mais uma conquista da colonização.

II

O toldo era uma imensa melancia pardacenta, com pequenas aberturas nas extremidades. Foi construído

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montando-se um esqueleto de madeira, amarrado com cipós, entrelaçado com tabocas e coberto por folhas de palmeira, cuidadosamente dispostas e trançadas. O abrigo estava bem conservado e não havia pulgas e piolhos. O espaço interno era ocupado

por grupos familiares, dispostos lado a lado. Olhando das aberturas externas, mais parecia um par de varais de redes.

É difícil descrever o pavor que, aos primeiros tiros, tomou conta daqueles velhos, mulheres e crianças. Foi uma

gritaria infernal. Uns poucos tentaram resistir, outros corriam para o mato, em busca de esconderijo. A maioria, porém, ficou estática: mulheres abraçando bebês; crianças mudas e paralisadas.

A princípio, atacaram com tiros de

mosquetes, em linha, como tinham planejado. Mas logo, surpresos com a fraca resistência das vítimas e horrorizados com a própria violência, se lançaram a uma confusa chacina, desordenada e sem direção, atingindo,

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Morte na Aldeia

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muitas vezes, os próprios companheiros de ataque. Descarregadas as armas de fogo, usaram espadas, facas, facões, paus, pedras e tudo o mais que alcançavam com as mãos. Já não matavam mais por ordem dos coronéis e dos colonizadores; matavam de nojo,

remorso e de medo da vingança dos guerreiros, quando retornassem. Pois, ao saber da tragédia, reagiriam com uma energia fatal.

Os bugreiros, frios e raivosos, sedentos de sangue, cortavam e batiam com fúria incontida, matando crianças

deitadas, mulheres paralisadas, velhos cegos e tudo com uma determinação invejável. Afinal, eram „civilizados‟ e não uns „bugres sujos‟, que impediam a conquista da terra, o avanço do progresso. Muitos chegaram a vomitar, ao ver ventres cortados à faca e os

fetos caídos sendo arrastados pelas grávidas, até que caíssem mortas, elas também.

Os únicos obstáculos ao avanço dos assassinos, eram os corpos mutilados, que os faziam tropeçar e sujar as

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Morte na Aldeia

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roupas de sangue. Mas valia a pena: a missão era cumprida com prazer. Além de descarregar o ódio sobre os índios – ódios que traziam consigo e não ódio a índios que nem conheciam –, havia boa recompensa esperando pela volta, proporcional ao número de índios

mortos, não importando se guerreiros, anciões, mulheres, crianças ou bebês: cada qual valia um índio abatido. Diversos bugreiros estavam ali para vingar ferimentos recebidos em ataques anteriores.

As mulheres índias usavam uma

espécie de saia cobertor, tecida com fios de fibra de urtiga. Essa vestimenta, além de aquecer o corpo durante a noite, era usada presa à cintura, para „esconder as vergonhas‟. Na confusão da chacina, algumas mulheres feridas ou até agonizantes ficaram caídas com

o sexo a descoberto. Quando os gritos silenciaram e só se ouviam gemidos, um caboclo miúdo sentou no chão e ficou a olhar fixamente os movimentos genitais de uma índia ferida. Isso o deixou intensamente excitado. Fungou

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Morte na Aldeia

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as ventas e violentou a mulher, com um furor contagiante. Logo, foi acompanhado por outros.

III

Quando se aproximavam da aldeia, os

caçadores Xokleng sentiram o cheiro de sangue no ar e, não ouvindo vozes nem vendo crianças correndo, perceberam a tragédia, antes que ela fosse vista por entre lágrimas. Cada qual abraçava seus familiares, tentando reanimar os que ainda mantinham o calor do corpo.

Cada dor individual era uma voz na grande orquestra fúnebre.

Quando reconheceu seus parentes, um menino índio saiu de dentro do cesto de taquara em que ficou escondido, quieto e atento. Foi ele o narrador da chacina, vista pelas frestas do esconderijo.

Falava como se fosse um expectador imparcial, como se não estivesse com medo, mas sim possuído de uma coragem vital que o impulsionava para o futuro, fosse ele onde e como fosse.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Morte na Aldeia

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Normalmente, os índios queimavam seus toldos quando se tornavam fracos para suportar o vento e a chuva ou quando escasseiam as fontes de alimentos ou quando os insetos começam proliferar. Queimavam também o corpo de seus mortos, pois,

sendo nômades, não poderiam cuidar de sepulturas. Nesse caso, mesmo que a choça estivesse em boas condições, resolveram queimar tudo, numa imensa cremação coletiva.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO

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MEMÓRIA VIVA DA GUERRA DO CONTESTADO

O dia amanheceu enfarruscado; o céu vestido com umas nuvens escuras, baixas. Nem bem a claridade afastou a escuridão, a garoa começou cair sem pressa, gotejando nas folhas ainda sonolentas. O fogo demorou crepitar e

a lenha chiava, cheirando a molhada, mas, com calma e jeito, o calor foi se espalhando pelo galpão. Que fazer, além de cevar um mate?

Quente a água, o pessoal foi se achegando, com reclamações do clima, do tempo perdido, dos reumatismos,

das mazelas, ... Parecia que a chuva miúda e quieta tinha penetrado no espírito da indiada e pouco se falava; o silêncio andava pelos olhos, remendando segredos.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Memória Viva da Guerra do Contestado

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Um „Bom Dia!‟ dos fortes sacudiu os pensamentos e virou as cabeças para o lado da porta: por ela entrava o João Lourenço Preto, com chapéu pingando sobre a capa gaúcha, que, por sua vez, pingava no chão ressequido galpão, deixando uma trilha ondulada. Parou

por um instante, esperando escorrer a água mais ligeira. Depois, pendurou a capa num caibro e sentou-se sobre um cepo de bracatinga, bem no ponto de vez da cuia que rodava de mão em mão.

Logo recebeu o mate e foi sugando o

caldo amargo, que ia esquentando suas entranhas. Mergulhou no silêncio coletivo. Depois que o fundo da cuia roncou, ergueu-se, segurou a chaleira com mão firme e entornou vagarosamente a água fumegante. Passou o mate e sentou-se novamente,

com olhos nas chamas.

Quebrou o silêncio uma pergunta sobre as reses nativas, de como estavam, se valiam à pena, se davam lucro... E o Taviano foi tecendo comentários, com a segurança de quem tem conhecimento

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Memória Viva da Guerra do Contestado

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antigo e experiência longa. Pois, desde que havia acabado a Guerra do Contestado, só lidava com gado crioulo. Inclusive a cavalada. Era apaixonado pelas raças antigas e cultivava as tradições crioulas, até no modo de domar potros. A boiada só recebia sal à

vontade, sem modernidades. Remédio então, só de ervas, benzeduras e atenção para com o animal adoecido.

Essas conversas sobre coisas antigas regrediram no tempo, chegando às origens da raça crioula, época de muita mata virgem, de imensos faxinais, com

seus pinheiros seculares, imbuias imensas e ervais vigorosos. Lembranças emendadas no sofrimento dos sertanejos com a violência dos tempos de guerra. Muitos dos ali presentes eram filhos de estancieiros da época e os demais tinham

agregados que viveram a tragédia ou eram filhos de coronéis ou de jagunços do início no século XX.

Sentado ali estava o João Lourenço Preto que morava e ainda mora por aquelas bandas do entrevero entre

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Memória Viva da Guerra do Contestado

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fanáticos e militares. Se bem que, dos dois lados, tinha muito guerreador por profissão e gosto. Tava ali pra ganhar dinheiro ou pra se divertir, pouco interessado no resultado da luta. Gente que gostava mesmo é de pelear.

Quando a conversa parecia aquietar, o

velho João Lourenço começou desfiar lembranças da guerra catarinense.

“Saímos de Rio d´Areia num tropel danado. Meu pai e outros parentes tinham participado da Revolução Maragata e sabiam muito bem como o

governo acaba com uma guerra.

A revolução é sempre criada por uma região, ou seja, pelo povo do lugar: homens, mulheres e crianças; famílias inteiras. Gente simples que já não suporta os desmandos e luta com o nada que tem. Pensa vencer, mas vem

o exército, com arma nova, homem novo e nada de velhos, mulheres e crianças para proteger e carregar em debandada. Os militares são gente moça que ganha até dinheiro para lutar.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Memória Viva da Guerra do Contestado

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Foi só chegar o exército em Canoinhas que todo mundo ficou sabendo que precisava correr das balas. Lutar é só no começo. De que adianta ganhar umas batalhas e por fim perder a vida? Milico é como gafanhoto: não dá pra matar todos só com uma espingarda

pica-pau. Sempre vem mais soldado e general e, não demora, eles acabam com os revoltados.

Naquele tempo, não se fazia cercas; os animais viviam soltos no pasto, ao deus-dará. Por isso, só conseguimos juntar umas poucas vacas e mulas. Foi

tudo com muita pressa: jogamos em cima das carroças o que deu e saímos.

No começo, andamos devagar, descansando, parando para comer e para dormir. Mas, quando começamos a escutar a bulha dos trabucos, corremos como deu. Até Encruzilhada,

arrastamos duas mulas e alguma tralha; dali para frente, só salvamos a pele.

Em Canoinhas, arranchamos na casa de um parente, vivendo meio de favor, durante uns quatro anos. Quase sem

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proveito nenhum. Eu matava o tempo vendo os soldados limpando os canhões, engraxando as armas e treinando pontaria. Tinha também a cavalaria; cavalada bonita, lustrosa, arreame novo ... Cada soldado lidando com seu cavalo.

A gente ficava sabendo das batalhas pelo exército, depois chegava outra gente contando diferente... Muita gente morria sem saber por quê. Se conseguia anistia do exército, os jagunços desconfiavam e matavam sem dó; se conseguia a piedade dos

jagunços, o exército matava, por medida de segurança.

Quando a cadeia ficava cheia de jagunços presos, os soldados levavam um grupo para fora da cidade, quase sempre ali para o lado do Rio Água Verde, e matavam tudo. Se alguém

indagava, respondiam que os presos tentaram fugir... Pior é que nem todos eram jagunços. Junto ia muito desafeto. Quem tinha poder ia se livrando dos desafetos.

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Terminada a guerra, quando o exército foi embora da região, nós voltamos para Rio d´Areia. Como em outros lugares, muitas casas tinham sido queimadas e o gado levado embora. Nossa casa não foi saqueada, nem queimada, mas quando chegamos tinha

virado tapera. Nas roças, a capoeira estava grossa e as estradas estavam fechadas pelo mato. Menos as que iam no rumo da guerra.

Aí começou uma mortandade sem razão. Começou uma onda de vinganças, porque um tinha denunciado

fulano, porque outro tinha roubado madeiras ou porque tinha sido invadida uma terra de posse anterior à guerra. Cada morte tinha a sua vingança e assim tinha velório quase todo dia. Famílias inteiras se exterminaram; só ficava vivo quem fugia pra longe.”

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NOITE SINISTRA

Em 1914, os trens com destino a São Francisco do Sul e a Porto União não só se encontravam em Marcílio Dias, como ali também pernoitavam.

Naqueles despoluídos tempos, tinha-se medo da viagem noturna, perigo exemplificado em trêmulos e faiscantes

filmes americanos; histórias do oeste bravio... Havia ainda a possibilidade do boitatá e do lobisomem...

Bons tempos aqueles em que o maquinista, cansado do duro sacolejo, amarrava o cavalo-de-ferro a um dormente e adentrava ao faxinal na busca do mate quente, da mesa amiga, do bate-papo e, quiçá, da caçada com um velho compadre. Deixavam os passageiros na linha, à espera, nem sempre paciente, nem sempre breve. Mas, só de dia, porque à noite era

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muito perigoso. A escuridão esconde muita maldade...

Além de tudo isso, ali em Marcílio Dias, ao lado da estação, ficava o restaurante da Dona Nêna, com variada e farta comida italiana. Era um regalo... As locomotivas chegavam puxando uma

fileira de vagões de carga e dois ou três vagões de passageiros e o povo todo se assentava para comer sem pressa, antes de prosseguir viagem.

Porém, nem tudo era festa. Em tempo de guerra, todo medo é pouco.

Naquele entardecer, as minhocas mecânicas chegaram chorando, receberam muita água em suas caldeiras e muita lenha para a fornalha; abastecidas, foram descansar em frente à estação ferroviária. Funcionários e passageiros mataram a fome,

prosearam e, depois, providenciaram o pernoite. Em alguns quartos, tensos hóspedes caçavam graúdas pulgas, habitantes permanentes dos colchões de palha de milho e, no terreiro, ao redor do fogo, formou-se uma roda de chimarrão, onde os mais corajosos

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proseavam sobre jagunços, fanáticos e nacionalistas.

Diferença entre eles era muita, mas poucos sabiam identificar uns e outros, nem mesmo o exército. O único a perceber as diferenças entre caboclos, nacionalistas, fanáticos e jagunços foi o

infeliz do Capitão Matos Costa, cuja morte deixou muita tristeza na região. Chamavam a todos de „pelados‟, pelo corte rente do cabelo, quase raspado. Mas, nem todos cortavam assim o cabelo. Muitos deles eram místicos, a sonhar com arcanjos e gabriéis, sem

nada desejar de terreno e nem de terras. Outros, mais instruídos, sabedores do mal ali enraizado, combatiam a Lumber e suas serrarias que iam destruindo as florestas milenares. Os restantes eram ladrões, bandidos, desertores e toda sorte de

foragidos, gente de má índole a espalhar terror. Obrigavam os crentes a combater e matavam os desobedientes. Usavam a superstição como rédeas.

Os nacionalistas pactuavam com todos eles, na esperança de varrer os

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usurpadores da madeira e, principalmente, de suas terras. Enfim, armas e munições cobriam a região de Canoinhas, na época um povoado mais ao norte, debruçado sobre a rocha basáltica, a olhar o lago morto dos campos do Rio Água Verde. Para

proteger a população e os coronéis, assentou-se, na Praça Lauro Müller, uma companhia do exército brasileiro, com a finalidade de liquidar qualquer jagunço que invadisse a „cidade‟.

Era domingo; muita chuva, outro tanto de frio. Depois que as brasas

desfaleceram debaixo da cinza, os últimos proseadores procuraram camas e tudo silenciou. A chuva deu uma trégua. Mas, poucos chegaram a adormecer, pois, antes da meia-noite, estourou chumbo grosso pelos lados da Colina Sagrada. Todas as camas

estremeceram. Houve um corre-corre. Olhos assustados procuravam olhos arregalados. Seriam os jagunços??? Os maquinistas e chefes-de-trem faziam de conta que estava tudo calmo, sem perigo. Mas, os passageiros estavam

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assustados: um sinistro clarão de medo lambia a alma deles. De repente, rompeu-se o silêncio e juntos gritaram em uma só voz:

-Vamos pra Três Barras e já.

Loucura total. Cada qual juntando seus

pertences, correndo para o trem, com malas babando roupas, com sapatos na mão, para serem calçados quando desse. O estampido aumentava, abrindo lampejos na noite. Aos maquinistas, além do medo comum, ainda sofriam o risco de linchamento,

se imediatamente a locomotiva maria-fumaça não arrancasse dali. Estavam decididos:

-Vamos pra Três Barras e já.

Foi uma correria confusa. A população aderiu à fuga; o trem superlotou. Alguns estavam de pijama, outros de

pijama e paletó. Tinha gente meio vestida e gente carregando a roupa nos braços. Pessoas calçadas, descalças ou meio calçadas. Isto é, com um pé descalço e outro de bota. Até velho paralítico andou pra dentro dos vagões.

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Só ficaram os descrentes e os que se julgavam pobres demais para ter o que perder. Foram animais de estimação, cacarecos e alguns acolchoados. Urgia partir. Foi num relâmpago. Dona Chica ficou para cuidar e proteger a boa vaquinha em ponto de cria. Ficou com a

vaca, na estrebaria.

E o trem partiu. Silêncio ofegante. Tram-tram, tram-tram, trem-trem ... passa ponte, passa campo ... Pelos lados da Colina Sagrada, relampejavam estouros.

Foi aí que o Zé lembrou:

-Paguêmo a lúis, que sinão, de lá, elis inxerga.

E sufocaram a luz. Agora, no escuro, todos pensavam. No escuro é mais fácil pensar. Quase só pensar. Quem ficou? E, se os jagunços chegam... e, se os

jagunços alcançam o trem? Onde dormir lá em Três Barras? E lá, os jagunços não chegam?

E o trem correu tanto que chegou num já. O tiroteio aumentava; era cerrado. Um aqui... outro ali... todos deitaram.

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Qualquer pé sujo servia de travesseiro. E... ninguém dormiu: era muito tiro. Madrugada ainda, o trem seguiu pra Serra-abaixo, deslizando quieto e ligeiro. Foi quem quis. Muitos foram e ficaram por lá mesmo, deixando plantações, animais e casa. Não eram

loucos!

Clareou o dia. Narizes nervosos bombeavam pelas frestas. Tudo calmo. Será que acabou a munição? Ou morreram todos... Pensavam na carnificina; com certeza muita gente estava morta... e os feridos? Quantas

viúvas teriam feito?

Alguém, vindo de Canoinhas, contou os detalhes da batalha.

A sentinela percebeu vultos andando sorrateiramente sobre a Colina Sagrada. Dado o alarme, a soldadesca

se pôs em alerta. Em minutos, todas as armas (inclusive as espirituais...) miravam as proximidades da capelinha. Escuridão total. Ficaram, também eles, pensando: Que merda!

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Certamente, os jagunços – esses atrevidos – vieram buscar a Cruz do Monge; era a vez de acabar com eles. Vingariam os amigos mortos, feridos ou capados. Ah! Vingariam também o próprio medo e a vergonha por terem medo de „uns pelados‟. Vingariam

finalmente, a raiva de ter que acordar numa noite úmida e fria, para ficar ao relento, esperando inimigos.

Um movimento brusco e barulhento moveu a capoeira. Era mais à direita deles. Todos viraram os trabucos em direção ao „inimigo‟ e abriram fogo.

Pararam de atirar; silêncio apavorante. Depois, a barulheira aumentou: parecia uma tropa correndo em direção a eles... Atiraram até amanhecer, sem sofrer uma baixa sequer.

A luz da segunda-feira começava a mostrar detalhes da encosta, mas ainda

não dava pra ver direito; tinha um pouco de neblina. Colina abaixo, ainda alguns passos, de quando em quando, quebravam os galhos dos arbustos.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Noite Sinistra

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-Maldição! Ô diabada ruim pra morrer. Devem de estar sem munição, pois não atiram mais...

Finalmente, a luz devolveu-lhes o dia. Incrédulos, todos viram, perau abaixo, uma mula branca que passara a noite tentando sair do taquaral. Como caíra

numa grota, o estalido da taquara rompida ecoava na capelinha; donde o equívoco militar...

Com a claridade, ela descobriu um caminho e saiu para um lugar mais alto, onde a capoeira fora totalmente

cortada pelas balas. Sacudiu violentamente o corpo para livrar das folhas que ficaram presas na pelagem. E bocejou longamente para espantar a canseira daquela noite.

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E A VIDA CONTINUA

Durante a Guerra do contestado, cada rancho era um poço de angústia, uma eterna espera pelo pior. Os fanáticos, impelidos pela fome e pelo medo, tudo atacavam e tudo levavam. Entre eles, muitos não eram crentes, mas bandidos de toda espécie, que chegaram à região

em busca de liberdade, foragidos da prisão e da lei.

Soldados, coronéis, vaqueanos e anônimos tinham mais que medo e fome; tinham sádicos desejos sexuais e sede de sangue. Estava, portanto, o caboclo indefeso e vulnerável, isolado

naquele sertão sem lei, sujeito a toda ordem de agressões. Por isso, o de melhor enterravam e se escondiam no mato para fugir das frequentes chacinas, que depois no tempo foram encobertas, esquecidas, e, hoje,

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – E a Vida Continua

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quando delas se fala, muita gente se mostra ofendida, como se fosse vergonha atual.

Quanta “Ana Terra” envelheceu chorando nesta Região do Contestado?

Pouca gente lembra que contra os

jagunços, na sua maioria mulheres e crianças, lutavam soldados que jogavam bebês para o alto, aparando-os, na volta, na ponta das baionetas. Só isso já bastaria para que se calassem eternamente e para o todo sempre lembrassem das sonoras

gargalhadas dos coronéis, na suprema humilhação de serem roubados e, depois, vencidos.

Foi assim que numa família pobre, em que as crianças eram treinadas para lutar e morrer, um guri de sete anos a todos salvou. Um desses destemidos

“defensores da pátria”, conhecido bandidão, a serviço do exército brasileiro, assaltou a casa e, num ritual macabro, comum naquela guerra, amarrou o chefe da família e passou a abusar de mulheres e de meninas.

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O guri estava no chiqueiro, tratando os porcos, quando percebeu a tragédia. Sempre consciente do perigo que todos corriam, conferiu a carga da espingarda e, sem alarme, pé ante pé, veio para casa, entrou cautelosamente e aguardou o momento ideal, para aplicar

os ensinamentos paternos: alvejou e derrubou o asqueroso animal sobre o corpo da mãe, que se defendia com unhas e dentes.

Desta vez, mesmo que traumatizados, saíram vivos. Mas, continuavam expostos ao perigo constante. A espera

não havia terminado, pois, por muitos e muitos anos, continuaram a esperar tarados, aproveitadores e coronéis que, além de suas terras e do seu trabalho, sugaram suas vidas, seus sexos, suas mães, irmãs e filhas. Ainda muitas vezes foram violentados impunemente.

Dos vinte mil mortos na Campanha do Contestado, metade morreu rezando, desarmada e indefesa, diante de um terço do exército nacional, que dizia defender o Brasil, ameaçado que estava por meia dúzia de famintos despejados

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – E a Vida Continua

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de suas terras. Esse chão “reconquistado” foi gloriosamente entregue às multinacionais, que até hoje continuam a nos escravizar.

Como em Canudos, como no Contestado, continuam sendo sacrificados diariamente centenas de

homens, mulheres e crianças; nas fábricas, nas fazendas e nas ruas. Nossos índios foram mortos como troféus de caça. Estamos matando a nós mesmos.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO

DOS BONS TEMPOS DE PAZ

SEM TELEVISÃO...

E MUITA FANTASIA.

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NEGÓCIO DE OCASIÃO

-Boas tarde, seo Arnesto!

-Boas tarde! Mais o sinhô se achegue e se assente...

E o Prates, todo risonho, foi inspecionando o banco, como se certeza tivesse de restos galináceos ou

miúdos de peixe, espalhados sobre a tábua. Por certo haveria sebo, gordura de mãos, mas limpo o banco estava. Além de amassar, poderia só de leve manchar o brim claro da fatiota dominical. Coisas de somenos, perfeitamente necessárias para cativar o dono da vaca.

-Mais... comé qui tá o tempo?

O Ernesto olhou longamente o céu, franzindo o nariz, na certeza que o visitante nem pra cima olhou e que a pergunta era somente motivo de prosa

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e que o tempo não lhe interessava em nada. A única nuvem era produto do fumo macaio, debruçado no canudo de palha de milho, que balança irregularmente, por movimento inconstante dos últimos e encardidos dentes.

-É... tá brabo. Vem mais seca... as vaca tão sentindo...

Prates agradeceu ao céu, aquele da fumaça do palheiro, pela propícia introdução no assunto da cerimoniosa visita, que o arrancava da eterna

rotina. Mexeu-se ruidosamente no banco e atacou:

-Puis... meus pasto tão arrisistindo i teim lugá pra mais vaca.

Ernesto fez que não entendeu, cuspiu comprido e ajeitou o pito que apagara. Queimou a ponta do palheiro com a

enorme chama do isqueiro amarelo e, depois, apertou a brasa com o mesmo instrumento. As baforadas vestiam sua cara seca e de barbas por cortar.

-O pasto é seu e a vaca é minha. Logo, num carece abri o petite da Meca...

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-Cumpadre, pra tudo se dá um jeito... Vaca bunita não se dexa magrecê. Quantu vancê qué pela bichinha?

O Ernesto encheu a cuia devagar, fingindo preocupação. Fazia contas.

-Déis mil cruzêro... pode levá.

-É muito, cumpadre. Pense bem, tá duro de arrumá trato, tá uma carestia.

-Bom... ela é véia. Lhe faço por nove.

-Inda é muito...

-Bom... ela tá seca e inda demora cria. Tá bom: faço por oito.

-Uma vaca véia e sem leite... não vale isso.

-Bom... ela dá um coice... das veis im quando... Fizemo por sete.

-Assim tá difici de negocia.

-Intão por seis...

-É muito dinheiro...

-Bom... levando im conta as birruga das teta, lhe dexo por cinco.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Negócio de Ocasião

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-Óia, cumpadre, que a vaca num vale tanto; faça um úrtimo preço pra que eu leve a bichinha enchê a barriga...

-Bom... ela é meio dura de leite, qué dizê: durinha... mais meno qui treis... num posso fazê.

-Cumpadre. Oje tá difici memo de negocia cum vancê...

-Puis... já qui o sinhô sinteressa, leve por dois. Inda nem garrô cria...

Prates pensou longamente, chupando o mate amargo que subia da cuia. Adicionou e subtraiu, chegando à

conclusão:

-Qui morra di fome... Vaca magra, véia, feia, guampuda, coicera e faiada eu num vó levá. Qui morra di fome!

Notas:

Consequência desse causo: no dia da sua publicação (25.05.90), o inventador de estórias foi procurado por alguém que se sentiu ofendido e que exigiu a publicação de uma „reparação‟. Ri dele, pois isso só colocaria em maior

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Negócio de Ocasião

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evidência o „agravo‟. Na edição seguinte, publiquei a seguinte nota:

“A PEDIDO

O nome Prates de um dos personagens do texto “Negócio de Ocasião” foi escolhido ao acaso, não se referindo,

portanto, ao senhor Erotides Pacheco Prates.

O escritor precisa de liberdade para criar. As palavras são seu material de construção. Se minhas palavras são capazes de ofender e os outros se voltarem contra minha pessoa, é

melhor que não as escreva.

Assim, me despeço do jornalismo.

Mario Tessari”

Como de fato foi mesmo o último texto que mandei aos jornais.

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TOURO ENGATADO

O Teonilo foi um menino travesso; meio levado à breca. Estudava o suficiente para passar de ano e aprontava o resto do tempo. Quando saia com uma turma de amigos, então...

Nasceu e cresceu na roça e sempre precisou ajudar na lida. Ajudar,

ajudava... porque era obrigado. Gostar não gostava, por isso fazia os trabalhos de má vontade e judiava dos bichos.

Dentre os animais domésticos, um dos poucos que escapava à perseguição juvenil era o gato Guaru, de pelagem amarelo-mourisca. É que o bichano era pior que ele. Dormia de unha de fora e quando atacava, então... virava o diabo. A vó insistia em dizer que era uma jaguatirica e que deveria ser morto antes que matasse alguém.

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Daí nasceu a primeira raiva cega do Teonilo. Mataria o gato, mesmo que precisasse matá-lo sete vezes. Porém, o bichano era ótimo caçador; com ele não havia ratos pelas redondezas. Paióis, milho, arroz e arreios; tudo estava a salvo dos roedores. Se

matasse o gato, certamente o fariam caçar no lugar dele.

Ainda, mais odiava um outro animal do sítio: era o touro Bisão. O ódio começou como medo e cresceu como sede de vingança. De certa feita, voltava muito chateado de uma

pescaria solitária e sem nenhum proveito: além de não fisgar peixes, deixou dois anzóis presos no fundo do rio. Atravessava a invernada, assobiando uma musiquinha marota, batendo com o caniço aqui e ali, lançando pedras nos passarinhos e nas

outras pedras. Lá pelas tantas, passou pela boiada que pastava. Podia ter passado quieto, mas não: o bicho-carpinteiro soprou no ouvido dele para atucanar vacas e bezerros.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Touro Engatado

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O touro não gostou. Claro que não ia gostar. Afinal, carregava os bagos por isso: era o responsável pela segurança da manada.

No começo, o Teonilo corria e o touro só ficava reparando. Mas, quando o piá riu alto, com superioridade, o bicho

ficou furioso e, por mais que corresse, a fera não desistia. Foi salvo por uma aroeira solitária no meio do descampado. Subiu na árvore sem nem pensar como subir. A sorte dele é que o dito cujo não trepava em árvore... mas ficou ao pé dela, ameaçando,

cabeceando o tronco e roendo a casca com a ponta dos chifres. Chegava a balançar a árvore e o Teonilo pensando que seria só aquilo; pensava que ele logo ia embora.

Mas não foi. O Bisão nem ligou que a vaqueada se afastou e sumiu no

horizonte. Ficou e mais queria era rasgar o bucho do guri. E o tempo passava e ele cansava e o bicho paciente, na espera. Até aprendeu a mijar trepado. Aprendeu e praticou. Também choveu um aguaceiro de verão

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Touro Engatado

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e a roupa pingava e passou a chuva e a roupa secou e a situação não se resolvia.

Só bem perto da noite é que o touro abandonou a caça e o Teonilo pôde voltar pra casa, jurando vingança, trucidar o tal; capá-lo a unha, bem

devagar.

Contudo, era só papo.

No fim daquele ano, casava uma tia solteirona, de virgindade consagrada, e a família toda, em ação de graças, ia ao festório. Quer dizer: quase todos.

Alguém tinha que ficar de plantão, cuidando da casa e da criação, pois a tia morava longe e era festa de semana inteira.

O escalado foi o Teonilo. Mesmo resmungando, teve que ficar. O pai recomendou e insistiu: o touro deveria

ser recolhido todas as noites e ganhar, como todas as vacas, pasto fresco e uma porção de ração no cocho. Ele, o pai, conhecia bem o Bisão e na volta saberia, no golpe de vista, avaliar se o

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Touro Engatado

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touro tinha sido bem tratado. Disse e repetiu.

E a família foi pro casório.

No primeiro dia, fez tudo certinho: tratou a bicharada, como de costume. Mas, à noite... À noite, a cabeça pensa

muita besteira. Disso saiu a idéia maligna de uma dupla vingança.

Durante todo o dia, tratou o gato amarelo a peixe e bife, leite e agrados. Amansou o tal. No final da tarde, encheu os cochos de capim verde, bem macio, mais a dose de ração e outro

tanto de agrado. Recolheu o gado com todo o cuidado. Então, buscou o Guaru com muita conversa falsa, muito cafuné. Com ele no colo, foi se achegando ao Bisão, disfarçando maneiro, andando com cuidado... De repente, jogou o gato no lombo do

touro.

Minha nossa senhora! Foi um pandemônio. O Guaru cravou as unhas venenosas no cupim do Bisão e os dois berravam desesperados, cada qual com medo e ódio do outro. Fizeram

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Touro Engatado

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tamanha estripulia, que pouca coisa ficou no lugar. O debaixo pulava o mais poder para derrubar o de cima, que não sabia se segurava ainda mais firme para não cair ou se recolhia as unhas para poder desembarcar e se por a salvo. Esse impasse durou até que o

couro bovino rasgou pela torquês de cada unha felina. O gato escafedeu-se pra debaixo do paiol, enquanto o touro, que continuava sentindo as garras, corria de um lado para outro, arrancando terra e coiceando o ar.

Não adiantou pedir desculpas para o

touro, nem jogar bife ao gato. Quando o pessoal retornou da festança, os dois continuavam arredios. Ninguém notou o sumiço do Guaru, mas o touro estava ali... muito estranho. E arranhado. O pai cevava o bicho e ele só olhava de longe, cismado. E o Teonilo, todo

inocência, exclamava:

-Veja só que jaguara! Estranhar o pai por causa de tão poucos dias...

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Junta de Bois

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JUNTA DE BOIS

Não sei se você se lembra do Jardim e do Parecido? Não lembra... deve de lembrar. O Jardim é malhado, mais branco que preto, com chifres médios, curvados pra cima e, mais nas pontas, um pouco pra frente. O Parecido foi

touro metade de sua vida, preto com ralos lagos brancos, chifres curtos e grossos, pros lados, muito pouco curvos... é holandês quase puro. Em comum, os dois têm um triângulo branco na testa. Pois vi essa junta de bois, inda essa semana. Continuam por lá, porém, bem mais gordos e atarracados.

Esses dois eu conheci ainda terneiros, no tempo da minha infância. Acho até que dei leite no balde pra eles. Cresceram na beirada do cocho e

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acostumaram com a corda que mandava neles. Por isso, o Vitorino teve pouco trabalho na doma. Foi na época que amansou a égua sarnenta do Gildo Martini. Lembra daquela égua descascando de tanta sarna, que ele curou dando banho de sabão preto? Ele

amarrava a tordilha dentro do açude, num toco de aroeira, e dele baldada d‟água. Mas, se não lembra, estou alembrando...

Pois bem, ali depois do açude, na estrada pro Binotto, quando ele voltava com os bois num galope, arrastando

um tronco, com a ligeira comprida pra trás da tora, os dois se jogaram naquela cerca, de cinco fios novinhos em folha, e, o que é pior, bem em cima de um moirão mestre, de bugreiro velho, de respeito. Olha que o homem era forte e segurou a ligeira de cortar

as orelhas dos bois... mas, mesmo assim, eles atravessaram a cerca e tudo, com ele na rabeira. Olha que ele levou muito corte...

Porém, isso só foi no começo. Depois, os bois ficaram mansos de todo.

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Domados como só o Vitorino sabia domar. Quando mataram o domador, que era também dono dos bois, pra ficar com o dinheiro dele, essa junta, mais o Pintado e o Estrelo – os quatro – foram parar lá e ainda trabalham pesado. Esses dois últimos, grandes e

chifrudos, eram bois de campo, bichos ariscos e traiçoeiros. No fim das contas, foram também domados em regra e ficaram bem mansos. O pintado é pintado de branco e vermelho – um vermelho desbotado – e o outro, de preto e branco mesmo.

Mas, como eu ia dizendo, quando o Vitorino morreu, as duas juntas passaram para o Nelso, que as tem até hoje. Devem ter bem seus dezoito ou vinte anos, os chifres roídos das correntes da canga. Por falar em canga, são as mesmas cangas de angico que o

Vitorino talhou manobrando o enxó.

Pois olha, com esses bois, bati muita estrada, puxando a carroça carregada ou vazia. Lembro de uma vez, em que voltávamos do Binotto, onde a gente cultivava arroz, numa turma de uns dez

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ou mais. Já era noite e todo mundo com cansaço e fome, pois não era mole passar o dia arrancando carrapicho preto, quase tudo na unha... Bem, trazíamos meia carrada de pasto, caruru, aveia e azevém cortado atrás daquele chiqueiro velho. Naquele dia, a

gente trazia também um arado de cabeçalho comprido. Todo mundo deitado no pasto, meio dormindo, a ligeira presa no breque e ninguém atendendo.

Aí é que estava o engraçado da situação: pra fazer graça dependurei o

balde de latão no gancho do cabeçalho, de modos que ele vinha balançando, cheio de talheres e cacarecos, lá na ponta do arado, dois metros atrás da carroça, o que fez o Mulita dar uma daquelas risadas sensacionais, com os olhinhos espremidos e, como sempre,

acabar chorando de tanto rir.

Pois subia e descia sem breque, o Jardim e o Parecido segurando tudo nos chifres, arjorjo justo, canzil de tiradeira esticada, coisa de bater com os pinos na canga e, de volta, fazer cantar as

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tiradeiras. Recordo aquela viagem com um risinho feliz...

Também eram o Jardim e o Parecido no dia em que buscamos aquela baita carrada de mandioca do chapadão. Embaixo ia a raiz; depois as ramas e a macacada estendida por riba.

- Óia boi... vai Parecido... vem cá Jardim...

Foram bem... até o topinho. Ali empacaram. Descemos para ajudar empurrando, que cepo1 não orgulha ninguém. E foi um vira pra cá, empurra

pra lá, e subimos a lomba. Aí outra vez, era morro abaixo.

Ao pular pra cima da carga é que deu-se o infortúnio: o machado ficava guardado atrás do banco, com o fio virado para fora. E, naquele dia, escondido no meio das ramas de

mandioca... Meu pé passou com força pela lâmina e cortou fundo. O sangue

1 * Termo usado para designar a parada em subida por

falta de forças. “Foi pro cepo”; ficou preso pela

impotência.

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borbulhava e os mais velhos, sabedores de como estancar o sangue, não davam conta... Cheguei pálido em casa. E até hoje, sinto um calafrio só da lembrança do sangue jorrando...

É para ver como algumas coisas permanecem inalteradas: voltei a andar

no carretão que foi de meu pai, puxado pelos bois que ele criou e domou, há quase duas décadas.

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CAUSO DO JUCA

Estávamos vindo do chiqueiro, da ala

das criadeiras. Eram umas quinze, rodeadas de leitões, com idades entre um dia e um mês de vida. Outros quinhentos porcos de engorda esperavam pelo pasto verde do meio-dia. O grosso da turma tinha ido ao Paraná, buscar milho.

Foi quando chegou um de camioneta, perguntando pelo patrão, interessado na compra de leitoas prenhes. Sabíamos que essas leitoas custavam o olho da cara, eram certificadas e a salvação da granja. Privilegiadas, recebiam tratamento especial,

enquanto os capados viravam linguiça e costelinha defumada.

-Ele saiu com o caminhão, levando os homens. Talvez volte tarde...

-É... Posso ver as porcas?

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Dissemos que não. Era ordem. Era só com ele mesmo. Apesar de ser o Juca do Tavico, nós não sabíamos quem era, de modos que só se quisesse esperar pelo patrão.

Desceu gordo, de botas e esporas, bombachas, camisa de xadrezinho

miúdo, lenço encarnado e, cobrindo tudo, um chapelão de barbicacho. Puxou os apetrechos e começou a trabalhar num palheiro, calma e metodicamente. Sem avisar, deu um suspiro, sentou numa pedra e começou a falar, com um ar de muita

importância, como se uma grande plateia escutasse com atenção.

O outro ficou dentro da condução, espichando os olhos pra todo lado. A princípio, enquanto proseavam sobre futilidades reais, seu companheiro pouco interferia, mas ao chegar a fase

dos causos, só o Juca, grandalhão e de barbas por fazer, desfiava estórias, as mais pitorescas. Trouxe, ali para o pátio, onças, tatus, mulheres, ... todos dignos de registro; mas, o melhor mesmo foi o causo da cadelinha.

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Peço licença ao Juca do Tavico para passar adiante a narrativa.

“Tinha uns doutores, desses da cidade, cheios de mania, com diploma e tudo, que gostavam de caçar, sendo, no mais de tudo, só farol. Criavam uma cachorrada bundinha, na base da papa

e do filé, ensinada por treinador, porém eram só uns vira-latas que mal diferenciavam um rato de uma cobra.

O que de fato eles sabiam era que, na beira do mato, vivia um caboclo, dono de uma cadelinha, guaipeca-puro-

sangue, capaz de levantar uma paca em qualquer chão. E foram até lá. Encontraram o homem sentado num trono deitado em frente à casinha humilde. A pretendida tava enrolada aos pés dele, ora cochilando ora espiando com um dos olhos. Conversaram, ofereceram, justificaram

e o caboclo nada; nem respondia.

-Homem, ninguém vai machucar a sua cadela.

-Eu sei, eu sei...

-É só por um dia e ainda te pagamos.

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-Eu sei, eu sei...

-Então fale o que é.

-É que tenho muita estima pelo bichinho; mais que pra muié...

-Bem, a mulher não serve pra caçar; queremos mesmo é a cadela

emprestada para caçar paca.

-Moço, não leve a mal. Eu não empresto a cadelinha por nada neste mundo – e alisava a preciosidade, que, de olhos semicerrados, parecia entender a conversa.

-Bem, já que o senhor não empresta, que tal caçar conosco?

E se envolveram numa barganha embaraçada, onde entravam bijuterias, utilidades e concessões. O caboclo seria o chefe, o que decidia. Conversados e certos, partiram para a caçada. Coube a cada um determinado ponto de espera, todos estipulados pelo caboclo que, sem tirar o palheiro da boca, matraqueava ordens, entremeadas de um sorriso falso, como a dizer:

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-Como doto é bicho burro! Não saber nem onde é carrero de paca...

Vocês devem de estar sabendo que paca a gente caça com um facão bem grande e sem fio, especial para isso. Ora, cada um ficou no lugar indicado, facão na mão, na espera da infeliz

vivente.

Acontece que um doutorzinho, desses recém-formados, ficou encarregado de vigiar a beirada de um toco de imbuia, onde a trilha do bicho era bem visível e, por isso, tornava impossível de se

perder uma corrida. Ele foi ficando, a mosquitera zunindo de atordoar, a samambaia molhada não dava fogo e o bichedo sugando o sangue do coitado, que ia mais cansando, até que, em dado momento, ficou só. Os mosquitos foram embora levando seu precioso sangue; o sol já declinava e nem sinal

dos outros. Fuçando o chão, tinha construído uma cidade em miniatura, com cavacos de maria-mole, lembrando os tempos de criança. E o tempo não passava.. e nem a paca. Cadelinha

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mentirosa! Deitou no chão e pegou no sono.

Sonhou com um trem que vinha de longe, o qual, de quando em quando, apitava. Acordou e percebeu que não era bem um trem apitando; era a cadelinha que ganiçava morro acima,

atrás de uma paca e os companheiros tocavam o berrante para avisar. Pulou de pé, coçou os olhos, ergueu o facão e viu um vulto passar feito uma bala. Baixou rápido o facão, mas deu azar. Barbaridade! Atrás da paca vinha a cadelinha, em tamanha velocidade que,

mirou na da frente e acertou na detrás. E agora?

O homem havia dito que gostava mais da cadela do que da própria mulher e, agora, estava ali o bichinho olhando para ele, com uns olhinhos de cortar o coração, implorando para não morrer.

Um pouco atrás, a outra metade do corpo ainda chacoalhava o rabo.

Foi como um relâmpago; idéia genial... Juntou as duas partes e lá se foi a bichinha, feliz da vida. Suspirou

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aliviado e só então notou a tremedeira e os suores frios.

Quando os outros chegaram, mentiu de todo jeito... Só que ninguém é bobo, o chão amassado, o capim deitado, a cara dele ainda dormindo...

Um erro aqui, uma burrada ali... pouco se caçou. Quando o sol baixou de vez, ouviu o chamado dos companheiros e, jurando nunca mais caçar pacas, foi ao encontro deles. Saíram num carreador, já noite, e, por um atalho, chegaram à estrada geral. Todos cansados e

desbudegados, as calças rasgadas, as botinas descascadas e os braços embolotados de picadas de insetos.

Passava um cachorro, passava outro e nada da cadelinha. O caboclo não dizia nada, mas dava pra ver, estava ficando brabo. Olhava para trás e chamava.

Quis voltar, mas a turma nem queria pensar em andar no mato naquela escuridão.

O doutorzinho tremia e suava a bicas; estava a ponto de chorar, quando, no meio da cachorrada, a cadelinha passou

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pelo grupo. Sentiu um vazio na barriga, só de alívio. Graças a Deus! Estava salvo.

Mas que diabo! Aí é que reparou o descuido. A bichinha andava um pouco nas pernas da frente, até cansar. Depois, virava, fuça pro céu, orelha pra

baixo, corria nos pés detrás.

Virgem Maria! Na hora do apuro, não reparou direito e colou a cadela invertida, com as pernas detrás pra riba!!!”

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A VOLTA DO TOMÉ

Tomé era um bom rapaz; corajoso

principalmente, briguento talvez. Jogava um futebol violento, mas decepcionou a todos quando começou a namorar uma alemoazinha, habitante de viloca próxima.

Substituiu o jogo por atividades mais calmas, ao menos aparentemente.

Se era domingo, lá subia o morro o Tomé, besuntado e cheiroso. Comprara roupas, lavara outras, aprendera modos, estava mudado, para vergonha e ira dos ex-companheiros de equipe. O valente goleiro abraçava outras bolas.

Porém, no mais era fofoca e despeito. Continuou o time, cresceu substituto e esqueceu-se o Tomé: goleiro, zagueiro e, muitas vezes, até atacante. Ele, completamente embevecido, mais não via que a pretendida; doce, macia, e

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(por que não?) distante meladinha. Melada na cor e no sabor.

Ocorreu não estar só na paixão e, estando de plantão, motivou ódios e vinganças. Num frio domingo de junho, festejava aniversário. Como presente, se fez presente ao almoço e à janta.

Descansou os trabalhos da semana no olhar da moça, enquanto brilhava a lua, prateando o céu como um reflexo da geada. Por estar frio, mais ficou no humano berço e mais se aqueceu no fogão a lenha. Foi-se a noite e a lua já marcava madrugada.

Despediu-se, abatido por não poder ficar, pois o lar estava quente e aconchegante. Que fazer... O jeito era descer a serra. A princípio, animado por doces lembranças, desprezou o frio e andou jovialmente, alheio ao vento, subiu a lomba da pedreira, com rápidas

olhadelas para as casas da direita, umas cinco ao todo, sendo duas munidas de cachorros, magros e barulhentos.

Pensou em assobiar uma musiquinha qualquer e tirou as mãos dos bolsos.

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Era mais quente mantê-las; chegaria antes tirando-as. Decidiu pela primeira posição.

Ao percorrer a curva à esquerda, longa e lanceada, percebeu algo anormal. Pensou seria melhor não notar e lembrou novamente os aconchegos da

amada, suaves como um bálsamo.

Impossível... alguém andava no taquaral coleante, em passos largos e pesados. Lembrou das ameaças:

-Bicho, gruda muié da tua terra; as daqui não chega nem pra nóis...

Correr... ? Não. Faltavam seis quilômetros e há tempo não treinava... Gritar... seria covardia.

Indagar pelo motivo... inútil: sabia ser a namorada em terra estranha. Conservou o passo e a calma; talvez desistissem.

Latejam fortemente as têmporas e havia suor em suas mãos.

No local em que a estrada abaixa numa curva à direita, contornando a mata

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virgem, os passos no taquaral já eram um pipocar infernal.

Correu e os passos do invisível junto correram.

Desandou numa investida bravia, esquecendo o frio e não mais prestava

atenção na estrada. Só corria... desabaladamente. No tabocal que margeia a estrada, um exército inteiro corria.

Jurou deixar a namorada, nunca mais aparecer e correr sempre mais. Era morro abaixo e avançava aos saltos e

não sentia as pernas e só o vento cortando o rosto.

Quando chegou ao primeiro bar, entrou branco, espavorido e suado. Lívido e sem voz. Olhou para todos e nada disse e todos entenderam. Socorreram com cachaça e vermute ... goela abaixo,

esfregando nos pulsos, no peito, ...

Toda jogatina parou, as mesas se esvaziaram, até bêbado ficou bom. Ninguém atinava pelo motivo do susto. Depois de meia hora de massagens e pinga, o Tomé respirou mais

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regularmente e contou numa enxurrada: Eram muitos... milhares. Tentaram agarrá-lo, mas suas pernas corresponderam na hora certa; safara-se. Voltaria ao futebol. A indiada que ficasse com a alemoazinha.

Graças ao eco dos próprios passos...

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O CHÁ DO BISPO

Dom Daniel Hostin2 pastoreava

assiduamente as suas ovelhas e com elas ceava de bom grado.

De algum modo, mesmo que por uma única vez na vida, sua benção alcançava os paroquianos. Chegava acompanhado de padres, de seminaristas e de algum amigo. Sorria,

estendia mão para o beijo dos devotos, persignava, discursava muito bem e sentava-se alegremente à mesa.

Em muitas ocasiões, fui seu coroinha e o acompanhei nas visitas diocesanas. Visitávamos paróquias, paroquianos, capelas e capeleiros, geralmente nessa

ordem. A visita pastoral culminava nos

2 Bispo de Lages (SC), em meados do Século XX.

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lares, pois era neles que o pastor avaliava a ração de suas ovelhas.

E era farta, variada e muito palatável. Por ocasião da visita, morriam muitos patos, galinhas, pombos, leitões e, esporadicamente, algum vitelo. Era oferecido do mesmo vinho que, na

missa, era consagrado e bebido como sangue de Cristo. Assim, estaria a refeição ainda mais abençoada.

Dom Daniel era um homem simples, bondoso e sábio. Para cada pergunta, encontrava uma resposta sóbria e

concludente. Gostava de crianças e alisava suas cabeças com mãos gorduchas e quentes. Acima de tudo, amava e convivia com seu rebanho.

Numa quinta-feira-santa, me senti indigno, ao ver o venerável ancião lavar meu pé direito. Foi uma mostra final

dos contrastes da condição humana. Suprema lição de humildade.

De certa feita, o diocesano pastor visitou de surpresa um colégio de freiras, tradicional e elegante. Foi um alvoroço. Repentinamente, sobre uma

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mesa, apareceram chás, tortas, bolachas, geleias, biscoitos e bombons. Elas sabiam que ele adorava um desjejum farto, com guloseimas. Sentou na cabeceira da mesa, sorridente, na espera do sinal verde.

Para fazer as honras da casa,

acompanhavam na refeição, seis alunos escolhidos a dedo pela madre superiora, a própria madre superiora, outras madres e freiras. Pretendiam tornam mais jovial a já tão agradável refeição. Vasculharam, portanto, com cuidado as episcopais companhias.

E o chá foi servido. A princípio, seminaristas e alunos permaneciam tensos e trapalhões, porém, aos poucos, foram beliscando aqui e ali. Somente um dos alunos, o mais tímido, se mantinha nervoso e trêmulo. Tentava imitar os mais desenvoltos,

mas com grande dificuldade.

Sentiu, porém, uma aversão muito grande pelas coisas macias que os outros fisgavam com os garfos. Afinal, sendo diferente em tudo, se sentia no direito de escolher o ainda não tocado.

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E teve a ingrata decisão de gostar de bolachas. Iniciou a laboriosa tarefa de espetar o garfo em uma delas. Que dificuldade! Escapuliam do talher como se quisessem ridicularizá-lo. Em silêncio, a maioria dos convivas assistia o esforço e os mais bondosos

desviavam o olhar, fingindo não ver.

Agora não poderia mais desistir... Suava, sem que nenhum dos presentes acudisse. Fugiu-lhe a calma. Maldita bolacha... Cravou-lhe o garfo... Desastre total!

Na tigela só ficou deitado o garfo. Havia bolachas nas outras tigelas, pratos e xícaras; toalha, assoalho, mãos e colos. Uma delas resolveu acharissar na xícara bispal, respingando a sagrada túnica com manchas quentes e morenas.

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FANTASMA DA IMBUIA

Foi numa noite fria, inverno entrante,

com um ar ventoso, desses de prender em casa qualquer vivente. Nastácia, mulher do Calistro, resolveu parir numa noite dessa feitura. Nada bom!

O pai da criança levantou a contragosto, esperando fosse rebate falso, que tempo ainda não era; melhor

esperar. Porém, se enganou. As contrações continuavam a aumentar e o jeito foi calçar as botas e campear o cavalo na escuridão.

Saiu pra bruma ainda sentindo o quente das cobertas e o cavalo não encontrou. Diabo! Onde se meteu o

cavalo? Restava a égua que, além de meio xucra, trazia no rabo da saia um potrilho de ano, teimando em mamar mais tempo.

Como não tivesse outra condução, arreou a égua mesmo e bateu estrada

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Fantasma da Imbuia

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atrás de Don‟Ana Parteira, três léguas adiante. Troc-troc, troc-troc e o potrilho perdido atrás, considerando um despropósito aquela viagem noturna.

Calistro saiu de casa tão apressado que nem tempo perdeu na escolha de caminho e acabou tomando o pior

deles, o que passava bem aos pés da imbuia oca. Talvez o amigo não saiba, mas nessa imbuia vive um fantasma, dos legítimos. Não foram poucos os que ali ficaram de puro susto. De modos que a estrada, em noite escura, fica deserta.

Ver... nunca vi, no entanto contam tantas que mentira não pode ser. Dizem até que, do oco daquela árvore, arrancaram um panelão de dinheiro, enterrado ali antigamente e que o fantasma é a alma do homem que cavou, encontrou e levou o tesouro. Ele

teria esperado algum tempo e, numa noite assim escura, arrancou o pote e sumiu no mundo. Dizem que ele sabia da maldição, mesmo assim a cobiça foi mais forte. Agora, nas madrugadas

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silenciosas, fica assustando cavalos e cavaleiros.

Outros acreditam seja a alma pecaminosa do jesuíta que ali escondeu o ouro que roubou dos índios. Pode ser verdade, porque, por ali, se encontram restos de um aldeamento Xokleng.

Ainda bem que medo não tinha e fantasma talvez não haja. Ia assim despreocupado que uma lebre, arrancada da moita, quase o mata de susto. Ele sorumbático e a égua adivinhando o trilho, juntos

esqueceram o potrilho, curioso e lerdo, cada vez mais longe em cada curva da estrada. Calistro procurou concentrar o pensamento na mulher, na parteira e no quinto filho que ia nascer; na vida sem dinheiro, nos sonhos de prosperidade jamais alcançados.

Quando saiu da meditação, se deu conta que o potrilho havia ficado muito pra trás e que o barrigueiro estava frouxo. Parou, então, e aproveitou o tempo para ajeitar o arreame. Colocou tudo no chão e repôs pacientemente; primeiro o baixeiro e os arreios e

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apertou o barrigueiro até levantar a égua; depois colocou os pelegos e a badana; por último, jogou a chincha por cima e apertou essa também.

Feito o serviço, campeou o molenga, a cria da égua que devia de estar perdido no pretume da noite. Nem sombra nem

barulho. Viu foi a imbuia oca, meio preta meio branca, abrindo e fechando os braços, como quem pede ajuda para fugir de perigo. Apertou os olhos para ver melhor, mas continuava com a impressão de que a árvore fazia gestos desesperados.

Pulou no lombo da égua, que havia aproveitado o descanso para tirar um cochilo, e fincou as esporas na barriga do animal, para sair depressa dali. Não que a égua não tenha arrancado... Até que saiu, mas foi um jeito pesada, como se alguma coisa a segurasse.

Apelou para o rabo de tatu e descascou as traseiras do animal de tanto bater e a coitada ia meio de arrasto, andando com dificuldade. Nessa agonia, prosseguiram até um descampado,

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duas retas adiante, onde a estrada cortava uma resteva.

A égua parou agradecida. E ele, apavorado. Até de olhar pra trás tinha medo. Esperou um pouco, assuntando. Nada. Só o resfolgar da montaria. Escorregou da sela de mansito e

bombeou em volta, apalpando a escuridão. Aí percebeu o ocorrido: sucedeu-se que o peso nada mais era que o potrilho pendurado pela chincha. Na imbuia, o bichinho, cansado e com fome, achegou-se à mãe, para mamar. O Calistro, sempre distraído, laçou e

apertou o coitado contra a barriga da égua.

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O MILAGRE

Os campos catarinenses, que se

debruçam entre a Serra do Mar e o Vale do Rio do Peixe, sempre conviveram com coronéis, violentos e místicos. Na época da inauguração da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, o mais orgulho deles, o coronel Celestino Guedes da Luz, levou um coice na

nádega direita, uma pancada certeira, violência essa praticada pelo cavalo tordilho, seu amigo e companheiro de tantas andanças.

Sem pensar nas consequências, Celestino galopou dos galopes os mais diversos e nas mais cansativas

peregrinações pela fazenda e pelos bordéis. Recolheu vacas frescas, bois perdidos, amores duvidosos e uma inchação que aos poucos desorganizava o seu traseiro.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Milagre

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A princípio, auxiliado pela mulher – divina mártir –, o coronel levava a região untada em emplastos de folha-gorda e de outras que iam sendo receitadas pelos vizinhos e compadres.

Não contou, de imediato, para a peonada, o fato que o mantinha horas

inteiras encostado ao portão da mangueira, só alegando preocupação com o preço do boi-em-pé, dificuldades no mercado da carne. Já não manifestava a mesma energia com o capataz, que aos poucos ia criando asas, fazendo o que bem entendia.

Passou a dormir cedo e levantar muito tarde, comendo menos e falando o mínimo possível. Na fazenda, todos estranhavam o fato e levantavam suspeitas. A imaginação de quem se sentiu oprimido produz interpretações variadas.

Decorridos seis meses, sua dolorida nádega apresentava significativo intumescimento, coisa de quinze centímetros de altura. A dor media muito mais... Aprendeu a dormir sempre do mesmo lado e havia

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contratado um piá para, durante o sono, ficar abanando a sua santa desgraça. Já não cavalgava e, como todo homem macho, lamentava-se infinitamente da dor. Sentia uma multidão de formigas caminhando sem direção e, devido à elevação surgida,

passou-se a chamar a região de “formigueiro”.

Era, na época, róseo Pão de Açúcar, com tonalidades secundárias, variando entre o roxo e o amarelo. De forma alguma foi possível tratá-lo, dado à aspereza e à grosseria do orgulhoso

caudilho. Restavam as injeções de 5 ml, que faziam o coronel Celestino estremecer. Para piorar, uma das regiões mais propícias para a aplicação era justamente a que necessitava de tratamento e estava interditada.

Foi nesse ínterim que, sentindo-se

derrotado, admitiu que homem também chora.

O „formigueiro‟ crescia rosado e vigoroso, numa adolescência irrequieta e viçosa. Dormia com o monte para o teto e, como já não desse conta da

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necessária refrigeração, o piá-abanador foi substituído por um potente ventilador, que foi posto na posição ideal para que a protuberância foi açoitada por rajadas fortes e frias. Era quase uma massagem gelada sobre o, sem sombra de dúvidas, formigueiro

quente.

Começou aí uma via-sacra a médicos burgueses e bem pagos, que iam comendo em grandes bocados as fatias de suas fazendas. Todos tinham promessas e dúvidas íntimas... Retirar aqueles dois quilos e meio... era uma

façanha perigosa. Ao mesmo tempo, mantinham acesa a esperança do enfermo, pois isso poderia garantir lucro fácil e duradouro.

Havia chegado a hora da mulher tomar uma atitude mais radical. Rezou, fez promessas e chegou a cumpri-las

imediatamente, na esperança que os santos entendessem a sua angústia. Lutou, finalmente, para que a fé do coronel brotasse, abundante e forte. E venceu a incredulidade dele. Convenceu-o de que só um milagre da

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Virgem Santíssima poderia fazer a operação. Meteu dentro daquela cabeça dura que só restava a religião e, dentro dela, a Santa Padroeira do Brasil, da qual deveria beijar os pés.

Viajar daquele jeito? Que roupa vestir? Para solucionar esse impasse,

reuniram-se várias costureiras e, após uma semana de intenso trabalho, estava pronta uma calça capaz de vestir, ao mesmo tempo, o coronel e o „formigueiro‟. Sem falta nem sobra.

Finalmente, Celestino vestiu as calças

especiais, convocou um compadre de absoluta confiança para acompanhá-lo e rumou para Aparecida do Norte, munido de fé e de desespero. Já provava o gosto amargo da pobreza e pouco restava a fazer. Depositaria aos pés da Santa todo o seu sofrimento.

Em plena Missa Solene – a missa dos milagres –, o coronel, amparado entre o compadre e a fiel esposa, rezou fanaticamente, pela primeira vez. A multidão toda rezou e ele entrou em êxtase. Estavam todos com os braços para o alto. Quase levitavam...

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No exato momento da Consagração à Nossa Senhora Aparecida, um malandro, gatuno e nada cristão, com sua „mão-leve‟, passou a navalha „naquele bolsão recheado‟, encontrando, no lugar da carteira de dinheiro, um imenso tumor, que sujou

suas mãos. O abscesso estava maduro e a pele do local estava praticamente morta, por isso o coronel nada sentiu, a não ser uma crescente sensação de alívio, como se a dor e o mal nunca tivessem existido.

Passou a mão na bunda e, não mais

encontrando o „formigueiro‟, voltou seu olhar para a imagem da Virgem e soltou o mais forte grito que a Basílica já ouviu:

-Milagre! Milagre! Tô bom. Milagre!

O coronel Celestino estava salvo. O

„formigueiro‟ caiu aos pés... não exatamente, aos pés da Virgem, mas aos pés dele mesmo.

E até hoje, movido pela fé que o levou a Aparecida do Norte e montado em seu tordilho negro, vai à missa,

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diariamente. Até ao cavalo ele deu o perdão.

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O SUMIÇO DO TAVICO

Era um sábado à noite, preparei a janta como de costume: feijão preto tenro, colhido na semana, bem temperado, e carne defumada em molho verde. Não tive pressa, afinal a noite estava à disposição.

Havia fechado as galinhas e firmado a tramela com a pedra de afiar; aqui não se pode confiar nem nos cachorros. Os ladrões trazem cadelas no cio, ossos, o diabo e ... levam as galinhas.

Aquela choca velha da crista dupla

estava no ninho, sobre os ovos do dia. Por isso, vai passar uma semana presa no pinteiro. Fez tamanho alarido, que parecia qualquer pessoa medíocre diante da verdade. Sabe, estou cheia de chocas e não quero pintos piando o dia inteiro e nem frangos ciscando pelo

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quintal: o jeito é prendê-las. A senhora não quer umas duas? Por acaso, não lhe interessa? São ótimas mães e um frango gordo alegra qualquer mesa... Ah! Não quer. Não tem importância.

Mas, como eu ia dizendo, o Tavico devia entrar a qualquer momento, pois

já não via as vacas no pasto. Sinal de que estavam na estrebaria, já sem leite. Esperava também o leite, para desnatar e limpar tudo. A senhora sabe como fica a desnatadeira... Credo em Cruz! Que erva ruim essa do Luís. Acho que colocaram até pimenteira braba

naquele monjolo velho...

Mas, onde é mesmo que estava? É mesmo... o Tavico não vinha e eu sentada na caixa da lenha a esperar. Limpei as unhas com uma lasca de bracatinga e fiquei ouvindo o fogo crepitar. Depois, até ele se aborreceu

da espera e se aquietou. A chaleira velha, aquela ali, de ferro, chiava uma fumaceira branca e o Tavico não vinha. Antes de entrar, ele costumava lavar os pés no cocho de roupa e, muitas vezes, até lambuzava a que ali estivesse

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ensaboada, esperando para enxaguar quando o tempo melhorasse.

Olha que esperei um bocado. Depois, espiei pela janela o pretume da noite: era um céu sem luz qualquer, com um pouco de vento e uma neblina começando a baixar. Mas, será que o

Tavico não desce? Abri a porta, na esperança de que ele estivesse fuçando na bicicleta, que naqueles dias tinha enguiçado o torpedo... mas, não estava ali. Vai ver que ele ficou descascando milho... De noite o caruncho ataca menos.

Sentei sossegada na caixa de lenha e esperei outro tanto. Nessas alturas, o fogo já tinha apagado. Olhei, só tinha umas brasas moribundas. Cada vez que eu abria a porta do fogão, aquele barulho de ferro rangido parecia mais feio. Precisava ir atrás do Tavico, mas

não me animava. Pensei: Talvez ele tenha ido no Fonsi: não é tão longe e eles conversam muito... O diabo é que ia atrasando a janta e eu cansando de esperar.

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Saí e os olhos demoraram acostumar com a escuridão. Tropecei num cachorro e depois pus o pé numa gamela com soro de requeijão. Aos poucos, a vista foi acostumando e já via um vulto aqui, outro vulto ali... tudo parado e dormindo. No poço, ainda

estava o balde e a bacia de alumínio. A porteira, naquele tempo, ainda não tinha caído e estava fechada. Cruzei a valeta e entrei no paiol. Silêncio mortal... Acendi um fósforo e um desgraçado dum rato saiu correndo e derrubando lata, que quase desmaiei

de susto.

Nem dormindo na sacaria de milho estava o Tavico. Tudo deserto. A quirera estava pronta para o dia seguinte e a batata doce picada com aipim. Já que estava lá, dei uma olhada na cebola recém colhida... Sabe como é

cebola nova: apodrece fácil. No outro paiol, nem fui olhar, pois estava entulhado de trigo até a boca. Mas, aonde se enfiou o Tavico? Se tivesse luar, poderia ter ido carpir um pouco. Mas, escuro assim...

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Entrei na estrebaria. Uma vaca bateu o chifre na parede, duro como pedra, e outra, badalou a corrente. Vi o balde do leite pendurado no prego e me animei: quem sabe ele não adormeceu tirando leite? Dizem que é quentinho dormir do lado da vaca! O terneiro novo berrou

seco... sinal que não tinha recebido o leite ainda quente, engrossado com fubá desmanchado. E nem aí encontrei o Tavico.

De certa forma, fiquei contente, como ninguém jantou, não havia louça para lavar. E fui dormir como estava.

Diabo de um homem! Desaparecer assim e ainda na minguante da lua. Não que fizesse muita falta, mas para tratar as vacas servia.

Isso faz muito tempo, comadre, uns oito anos. E ainda não achei o Tavico.

No dia seguinte, vasculhei tudo: galinheiro, patente, estrebaria, paiol, roça e tudo o mais. Nada do homem. Chamei os vizinhos, viramos o mundo e nem sinal de vida. Chorei uns dias, só de raiva por ter esperado mais de duas

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horas a janta que acabou esfriando. Depois passou, fui acostumando... hoje, nem ligo.

Mas, vamos dormir, comadre, que amanhã tenho que tirar o leite, ainda de madrugada. Foi-se o tempo do Tavico fazer tudo sozinho e eu dormir

até o sol alto.

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DELEGADO APARÍCIO

Nas manhãs de geada, mal o sol nos

batia à porta e já o Aparício atravessava a rua, enrolado em muita lã, chaleira numa mão, cuia n‟outra. Trazia os óculos de aros dourados a cavalo pela metade do nariz. Parecia que iam cair, mas... assim cavalgavam pelo restante do dia, obrigando o

delegado a erguer exageradamente a cabeça para divisar as expressões faciais dos muitos interlocutores.

Repetia, todos os dias, a lamentação que o sol só lhe chegava em casa às onze horas, quando não era mais necessário e que, sendo da cor oposta

à geada, dela não gostava e aceitava que ela se formasse sobre o telhado e pelo quintal com o surdo rancor dos impotentes. Aceitava porque não tinha como evitar mesmo. Ainda bem que os vizinhos tinham sol de sobra...

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Em frente ao nosso velho casarão dos tempos do onça, a essa hora, a escada já suportava um ou dois de nós, com as mãos enfiadas nos bolsos fundos e a soltar um nevoeiro que se desfazia pela cara. Chegava no mesmo ritual, nem bom-dia, nem com-licença; só queixas

e histórias de aventuras. Acomodava-se, encostando a bengala no ferro de limpar a lama dos calçados em dia de chuva e mostrava novamente a bala presa na parte interna da coxa esquerda, metida ali por uns bandidos, lá no Paraná, quando ainda era moço e

não andava assim todo duro e encarangado de reumatismo.

Pois era só tatear que se percebia a bala de trinta-e-oito que tanto incomodava quando o tempo estava pra-chuva e no frio desses invernos úmidos dos sem-nada-o-que-fazer.

Diariamente, contava seu drama noturno e conjugal, em que a mulher, grande e gorda, contrastava com ele, miúdo e magrela. O problema não era ela; o problema era a geometria com seus triângulos quase retângulos,

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formados por uma figura redonda e um plano inclinado. Explicava assim o problema da coberta que a mulher armava como um toldo, de forma que ou se encostava nela ou se encostava na coberta, nunca aquecendo por igual os dois lados do corpo reumático e

curtido pela dura vida de policial-contrabandista-aventureiro-mulherengo.

-Guri, pense o frio e a umidagem do Rio Paraná, nas madrugadas em que passávamos os cavalos argentinos, ladeados por duas canoas. Tinha bicho

camarada, mas muitos daqueles puros-sangues forçavam mais que a correnteza da água e a gente ali, firme, que o dinheiro era bom.

-Seo Aparício, quantos cavalos o senhor trouxe para melhorar o nosso rebanho?

-Virgê... nem tem conta.

Mas ele contava toda a sua vida de homem indomável, de mercenário a delegado, passando por períodos obscuros. E acrescentava:

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-Tô acabado! Delegado nesse buraco, cozinhando mingau pr‟esses ladrões-de-galinha. Dá inté saudade do tempo em que a turma dobrava ferros pra fugi. Óia esses aí... pode até sortá que apreferem dormi no porão, lambendo mingau. E eu aceito. Sabe você que as

diária deles rendem mais que o meu salário.

E a gente espichava o pescoço para ver os „presos‟, olhando pela janela sem vidro, com as travessas meio podres, que prendiam a família do Graxaim, assim chamada pela habilidade de

afanar aves domésticas. Olhava e via que eles queriam mesmo é estar ali conosco, naquele sol gostoso.

Nem mesmo quando o moleque Álvaro enforcou o cachorro de estimação do delegado, se alterou. Só queria saber como aquela cinta velha suportou o

peso de um animal tão grande. E recordávamos que, num sábado, o Lobo, meio sangue pastor alemão, amanheceu rijo, balançando pela cinta, enforcado num galho de pessegueiro.

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No entanto, que o Aparício gostava de contar era o episódio em que o Álvaro perdeu o dedão do pé esquerdo. Logo depois de enforcar o Lobo, o moleque safado viu, em frente à bodega, um cavalo com as rédeas no chão, resfolegando debaixo do arreame. O

bicho carpinteiro, que morava lá dentro dele, foi mais forte e levou o piá que, com muito jeito, conseguiu montar e sair despercebido. Só que fez a besteira de amarrar a rédea na presilha da calça e, quando o cavalo disparou e ele caiu, foi pisado, coiceado e arrastado até o

bicho cansar e foi ele, o delegado, quem juntou o negrinho que tinha a cabeça em sangue e um dedo a menos, cortado que foi pelo casco do animal.

É o próprio Aparício que lamenta:

-Que a cara dele tenha ficado toda marcada... vá lá; mas agora chutar

torto porque falta o dedão... é demais...

E entrava nos comentários o jogo dominical do Ouro Verde, em que o ponteiro esquerdo jogou pessimamente, alegando como

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desculpa a falta do dedão e que, ao chutar a bola, a coisa saia diversa do que planejava e, por isso, não tinha culpa. Pensava direito, mas o pé executava com defeito.

E o Aparício já esquecia tudo para rir do porre quando caiu a cantina e o Álvaro

bebia vinho deitado na valeta. Por alguns quilômetros, o Rio do Peixe foi tingido de vermelho escuro e dizia-se que os peixes estavam todos bêbados. O Aparício fez diferente: recolheu vinho com um balde e guardou em garrafões. Depois, levou pra casa e bebeu um

pouco todo dia; onde já se viu beber vinho numa valeta...

Quando se cansou do mate, encostou a cuia na asa da chaleira de ferro e alembrou de como acabou com os ciganos em Laranjeiras do Sul, há muitos anos. Nesse tempo, já tinha

uma bala enfiada nas costas, bem próximo da coluna, por isso o tempo de chuva incomodava tanto.

Levantou, esticou os restos de carne que ainda cobriam os ossos, se aproximou do capinzeiro e nele

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despejou uma cusparada interminável. Voltou rengueando e sentou no mesmo lugar. Ainda olhando por cima dos óculos de ouro, contou o causo.

Um dia, chegou o sargento relatando a situação, feia por sinal. Os ciganos – segundo denunciavam – haviam

roubado um menino do lugar e o povo, por vingança, foi lá e queimou um barraco deles. Foi o início da guerra. Durante meses, morreu gente de lá e de cá e pediam a ele – Aparício – que desse fim naquela sangueira.

E, para isso, ele só teria requisitado um soldado, duas armas novas e munição. Apesar da insistência do sargento, fincou pé: “Só quero um soldado.”

Chegaram próximo ao acampamento e constataram que os ciganos estavam entrincheirados atrás de uma pilha de

madeira. Fingiram ir embora e cavaram duas valas, que ficaram prontas à noitinha. Uma ao leste e outra ao norte, sendo que na primeira acenderam um foguinho e nela ficou o soldado. Ele – Aparício – ficou na outra.

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A última batalha começou no fim da madrugada. Os ciganos passaram a noite bombeando a trincheira do soldado, iluminada que estava pelas chamas da pequena fogueira. E o soldado dormiu sossegadamente até àquela hora. Acordou então e começou

a erguer o capacete, preso na ponta de uma vara. Subia o capacete vazio, sempre em ponto diverso da vala e sempre um dos ciganos se debruçava na borda da trincheira, mirava e abria fogo contra o „inimigo‟. O clarão do estampido mostrava o alvo ao Aparício,

que dificilmente perdia um tiro. O único problema era o soldado que, quando cansava o braço, demorava subir o capacete ou repetia demais o „ponto em que estava‟, pondo em risco o plano.

Às oito da manhã, os ciganos gritaram que chegava; iam se entregar e, logo

depois do almoço, levantaram acampamento. E o Aparício sentenciava:

-Mais vale um burro pensando do que uma tropa dando coice!

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O LAGARTO VOADOR

Chovia há quase uma semana e nos

sentíamos úmidos e aborrecidos. Na hora do chimarrão, faltava muita gente e, em silêncio, olhávamos para a estrada, onde, de vez em quando, passava alguém derrapando na lama. Os carros passavam devagar, numa chiadeira danada. Gervásio filosofou:

-Que dia triste... só serve pra dormir.

-Compadre, lhe garanto que nem todo mundo dorme num dia assim.

-O prefeito, por exemplo... – atalhou o Ademir. Imagine como vão ficar as estradas do interior do município!

-Menos mal que os bueiros entupidos... Veja ali na esquina a água varando por cima.

-E as máquinas da Prefeitura... devem de tá tudo parada – finalizou o Demétrio, num longo suspiro.

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-Pois, eles que aproveitem a chuva e consertem as máquinas; dentro da garagem, não chove.

Voltou o silêncio, só interrompido pelo ronco que anunciava que acabou a água na cuia, pedindo abastecimento e movendo a roda. Eu não arredava olho

de uma goteira funda, bem em frente à porta. Pensava na vida e meu pensamento viajava com grande facilidade. Quem me acordou foi o prefeito, que entrou correndo, coberto de pequenas pérolas líquidas.

-Por falar no diabo...

-Pois é. Inda‟gorinha nóis tava falando de vóis-mecê – e o Tonico se sacudia em risos, como a provocar a curiosidade do recém-chegado, que, para decepção geral, não perguntou se “falavam bem ou falavam mal”.

Estava realmente preocupado. Derrubou a água das mangas, passou a mão sobre o cepo de angico e sentou-se. Só depois disse o cerimonioso „Bom Dia!, olhando para cada um de nós. Logo percebemos que a chuva dele era

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pior que a nossa e, como ninguém queria aumentar a tristeza dele, continuamos em silêncio, a cismar da vida.

A chuva descia mansa e eternamente: a natureza estava encharcada; tudo pingava ou vertia. Do outro lado da

rua, apareceu uma choca com sua ninhada, no mais legítimo sentido de „pinto-molhado‟. Vinham em avanços intermitentes, num melancólico coro de pios e lamentos. Acompanhávamos a procissão, quando o prefeito se levantou, tomou vida e fôlego, como se

a galinha despertasse dentro dele algo muito importante.

-Essa choca me fez lembrar do lagarto voador e garanto que o Mario vai gostar de ouvir o que se sucedeu.

-Senhor Prefeito, o senhor sabe que

careço de causos para escrever a coluna no jornal.

-Amigo Mario, vou contar o que de fato vi, presenciei, de um lagarto voador. Ou seja, eu mesmo vi o lagarto voando.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Lagarto Voador

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“Numa dessas visitas a negócio, comprando gado, estive na fazenda do seo Lohse. A gente não pode ter pressa nessas ocasiões e, antes do interesse, vem o chimarrão e uma boa prosa. Ele gosta muito de galo-de-briga, animais crioulos ali da fazenda, tratados com

muita estima.

Entre uma cuia e outra, ele me contou que ainda vivia a galinha índia velha; tão velha que ficou com o bico comprido, torto feito um gancho e que criou esporas, feito macho. Sim, a galinha era muito velha, mas não se

entregava pra idade e acabava de tirar do choco mais uma bela ninhada de campeões. Até arriscou; “Como é do toco que saem os cavacos, pode ter certeza que cada um fará a sua historiazinha.”

Depois, a caminho da mangueira, onde

íamos ver o gado, encontramos a famosa choca, passeando com a filharada, num gramadinho muito verdinho. Ele insistiu em mostrar de perto as armas da velha mãe. Fomos lá.

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O sol estava forte barbaridade e ela, toda prosa, falava lá na língua dela com os pequenos, que pareciam entender, porque respondiam mais ou menos em coro. Nós ficamos ali de mão na cintura, admirando a cena, quando, de repente surgiu um lagarto, correndo do

meio do mato. Parecia corrido de algum perigo e vinha bem na direção dos pintinhos. A galinha, mãe cuidadosa, partiu em defesa dos filhos e atacou o bicho, dando uma violenta bicada, bem na nuca do miserável.

Como já disse, o bico da galinha velha

ficou torto, como um gancho. Sentindo a fisgada, o lagarto desandou a correr pro lado dos potreiros. Aí, deu-se o inusitado: a choca, sem poder soltar o bico enroscado, um pouco pulava, um pouco ia de arrasto... e, naquele, pula-pra-lá-pula-pra-cá, acabou subindo no

lagarto e, mais por medo do que por raiva, calcou as esporas nas virilhas do coitado, que, sentindo a dor, levantou a cola e acelerou a corrida. Era um corisco.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Lagarto Voador

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Imagine você: a galinha precisava se equilibrar, que ficar em cima de um lagarto em alta velocidade não é nada fácil. Buscando equilíbrio, a galinha abriu as asas e o lagarto, eu já disse, corria muito... Foi o suficiente: os dois saíram voando... até baterem na

cerca... Aí, acabou-se a magia. O lagarto sumiu na capoeira e a choca retornou para acalmar a filharada, que piava desesperadamente, temendo pela vida da mãe. E ela, toda vaidosa, contou a eles como „carregou o monstro pra longe‟.”

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O CASCUDO DO ORÁCIO

A quarta-feira acordou molhada, sem

um pio de ave; tudo chuvoso e triste. Era uma chuva leve e sem pressa, prometendo ficar uns dias. Na véspera, observando o olho d‟água, já se previa chuva farta. Quando a água mingua de repente e as paredes suam, é hora de guardar lenha seca e preparar muito

trato pro gado, que a chuva vem com vontade.

Olhamos um para o outro e isso levou algum tempo, já que somos muitos. Que fazer num dia assim?

-Vamos pescar? – propôs Tonho.

-???

-Minhoca e massa eu arranjo; é só arrumarem linha e anzol – reforçou ele.

E nos preparamos condignamente para uma grande pescaria, não faltando nem mesmo proposta, de alguém que não ia

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Cascudo do Orácio

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pescar, de ir com o trator e carreta para buscar os peixes.

O que parecia perto longe estava e os calos já abriam a boca, quando chegamos ao rio. A chuva fazia uma pausa nevoenta e a lenha que achamos estava molhada. Logo à frente e

abaixo, o rio, barrento e espumoso, resvalava coleante como uma serpente. Não parecia conter peixes, mas desistir assim sem luta seria covardia. O fogo demorava e os mosquitos aproveitavam o nosso sangue.

-Ô Chico, apressa esse fogo, que eu vou armar as linhas. Pode queimar os papelões que trouxemos, mais os envelopes e a estopa que molhei na gasolina. Quando o fogo começar, acrescente as tiras de borracha.

-Deixa comigo, que eu sou macaco

velho. Logo vai ter por aqui uma fumaceira danada. Quero ver é a gente agüentar o cheiro de fumaça.

A primeira hora foi de decepção total. A correnteza era muito forte, de modos que as linhas ou enroscavam nos

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Cascudo do Orácio

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barrancos ou flutuavam dançando. Sem fogo e sem peixes, combinamos nos espalhar pelos braços do rio, valetas e barreiros, que ao menos lambari tinha à vontade. Só o Orácio, teimoso e sozinho, ficou olhando sua linha dançar sobre as águas revoltas.

Pois, pareceu que os cardumes todos se enfiaram pelas valetas e barreiros e o Calistro, com seu jequi, pegou duas bonitas carpas, uma traíra, um cascudo de palmo e outros trocados. Ao menos unzinho cada um pescou, menos o Orácio, lá na barranca do rio, envolto

em uma nuvem de pernilongos, praguejando à toa.

-Orácio, chega aqui; com um toco de linha se pega lambari à beça. Larga mão de teimosia, segure a linha sem vara, sem nada... a coisa tá fácil.

Ele veio, mas sem a linha. Visitou-nos, admirado, mantendo porém a palavra de só pescar no rio e que pegaria um baita peixe. Aí o causo se divide.

Orácio gaba-se até hoje de ter sido o único, em todo o Vale do Canoinhas, a

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fisgar um cascudo na linha de mão. Passa adiante a sua história, uma vez por semana, na roda de chimarrão, e não admite descrença. Além disso, continuamente, acrescenta tamanho ao peixe e garante que a isca era massa de pão.

Como acreditar, pois a linha flutuava e cascudo só rasteja o fundo do rio? E também: não se tem registro de cascudo que tenha engolido isca, muito menos de pão; o bicho come mesmo é limo de pedra.

As outras versões mais prováveis são as seguintes:

O próprio Calistro teria armado o seu jequi e sem-nada-o-que-fazer, foi até o rio na hora em que Orácio visitava os outros. Puxou a linha, fisgou o cascudo, vivinho da silva, lançou a linha de volta

para o meio do rio e saiu assobiando uma musiquinha qualquer, até encontrar o Orácio que retornava da visita.

-Mexendo na linha, hein?

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-Eu, não. Tenho mais o que fazer. Eu passeio enquanto os peixes se pegam sozinhos.

-Claro! Na ceva, você gasta mais do que vale o peixe...

-Que nada; já ganhei o dia e sem uma

picada de pernilongo. Olhe tua cara... tá que é só pelote!

Derrotado no duelo oral, o Orácio desapareceu nas árvores ribeirinhas e quase morreu de emoção quando viu a linha dando „corridas‟. Tremendo de nervoso, puxou a linha, que acabou

toda embaraçada nos pés dele. Nessa hora, contou pela primeira vez essa façanha que repete com total convicção.

Outra versão, bem mais ousada, conta que, num momento em que ele se entretinha com os mosquitos, o Chico,

que é bom nadador, chegou na barranca do rio, trazendo consigo o cascudo que ganhara do Calistro. Percebendo a distração do Orácio, mergulhou até a linha e nela prendeu o cascudo pelo rabo e simulando o

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desespero do peixe ao morder o anzol, deu dois soquinhos na linha.

A „corrida do peixe‟ acordou o Orácio, que saltou de pé e em segundos recolheu os trinta metros de linha numa maçaroca sobre os pés.

Foi o de melhor proveito nessa pescaria, em que saímos encharcados, gripados, com muito pouco peixe e a coautoria dessa proeza.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Cadeia Vazia

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CADEIA VAZIA

A cadeia pública era ocupada pelos

mesmos inquilinos e isso preocupava o delegado. Não só por estar enjoado daquelas caras, como também, percebia que o procedimento, longe de punir, até incentivava o crime; se couber a palavra crime para tais ocorrências...

Eram três celas, que costumavam abrigar bêbados, ladrões-de-galinha e brigões. Os assassinos e bandidos nem paravam ali, poderiam deixar os outros presos assustados e inseguros os guardas, que por si só já não é recomendado. Casos raros, como

tarados e prostitutas, tinham solução própria e não eram problema... muito pelo contrário.

A vida na cadeia ia muito bem, se não fosse a monotonia de suportar sempre os mesmos fregueses. Na primeira cela,

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a visita mais frequente era a do Pé-de-vaca, que, por beber com a patroa e com ela fazer arruaça, por ela se fazia acompanhar nas grades. A cela do meio era ocupada pelo Pito-aceso, mais o Constante, vez por outra recebiam a companhia da Jura, que dificilmente

pernoitava. Na última alcova, o Waldomiro Brabo, mais a mulher, numa sexta sim, n‟outra não, sempre no dia que passasse o trem pagador, que ele era turmeiro da estrada de ferro e ela era quem ficava com o pagamento quinzenal. Nos outros dias, o Tareco ou

algum exaltado que brigava no futebol ou nos bailes, mas eram fatos raros, que só aconteciam em finais de semana.

Noves fora, a melhor frequência era do Pito-aceso e do Constante, como o próprio nome indica.

Da cadeia para trás, havia uma pastagem para ovelhas, com cerca muito alta e arame de farpa grande, um juntinho do outro. O lugar é bastante alto, em cima de um morro, e água só é encontrada com 20 ou 30

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metros de poço, cavado na rocha. As ovelhas bebiam água fresquinha, bombeada daquelas funduras. Mais além ainda, morava um cabra desleixado, que, em casa, tinha muito cachorro guaipeca, a não mais acabar. Cachorrada magra, ossuda, as cadelas

carregadas de filhotes, todos famintos.

Um belo dia, a matilha descobriu o rebanho e a cerca pouco atrapalhou, pois já disse que a cachorrada estava faminta. Vocês já sabem que cachorro ovelheiro é só matar... e foi o que começou a acontecer. Anoitecia, a

cachorrada enveredava, bulia com as ovelhas, o homem acionava o gatilho, o alvo morria e os defuntos eram arrastados para o lugar de onde vieram.

Briga de teimoso é cheia de paciência. No dia em que o ovelheiro devolveu ao

lar três ou quatro cadáveres caninos, o cachorreiro, numa hora bem calculada, depois da meia-noite, os trouxe de volta e os atirou dentro do poço.

Nos dias seguintes, as pessoas não entendiam a satisfação dos dois

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vizinhos briguentos, cada qual mais risonho, por se sentir vingado com sua façanha. E mesmo quando disse na cara do inimigo que matara quatro de seus vira-latas prediletos, o ovelheiro recebeu um plácido sorriso.

O fato começou aos poucos a se

esclarecer. Passada uma semana, as ovelhas começaram a rejeitar a água; morriam de sede, mas não bebiam. Não foi preciso nem abrir o poço para adivinhar toda a história. Maus odores evolvam, indicando o crime. A encrenca foi parar na delegacia e os dois

briguentos na cadeia. Iam dormir juntos para poder conversar melhor... Parecia ser mais uma ocorrência policial, sem maiores consequências. Mas o delegado ria à toa. Tinha lá os seus planos.

No dia seguinte, comprou uma corda

que alcançava com sobras o fundo do poço, passou pela cadeia, acordou os dois briguentos e rumou para a granja. Chegando à boca do poço, fez um sorteio: ganhou o dos cachorros. Numa alça de corda, pendurou e desceu o

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homem no poço, ante o olhar espavorido do outro, que esperava pela segunda viagem. No rosto do delegado, permanecia a satisfação. Sem chegar perto da boca do poço, que o fedor era tanto, ia gritando:

-Sorte a tua... os cachorros desceram

sem a corda! Vai tomar conta da tua cachorrada e vê se deixa de incomodar os vizinhos!

-Pela virgê...por minha mãe... tira eu daqui, pelaamordedeusseodotô!

E o das ovelhas tentava negociar:

-Eu não joguei as ovelhas mortas no poço dele... Além do que não foram as ovelhas que mataram os cachorros... Nem eu nem as ovelhas invadimos propriedade alheia.

Mas, não se escapou, não. Teve sua vez de descer ao inferno.

Depois de muito vômito e de milhares de desculpas, liberou os dois para que fossem cuidar de seus afazeres. Então, o dono do poço reclamou:

-Mas, tem mais cachorro lá dentro...

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-Preocupa não, que logo alguém cai preso e volto aqui... a corda já tá comprada mesmo!

A notícia logo se espalhou e até o pessoal do futebol passou a jogar mais leve, evitando machucar os adversários. Tanto é que acabaram as

expulsões e o time passou a ganhar. Mas, comemoravam as vitórias com um copo d‟água; nada de bebedeiras. O Waldomiro e a mulher fizeram o décimo oitavo filho, tudo na perfeita paz. As galinhas reiniciaram as guerras com os gambás, seus únicos predadores daí em

diante.

Pois o senhor veja: a cadeia permanece vazia, faz bem uns oito anos. Acabou-se o roubo; terminaram-se as brigas. O Constante e o Pito-aceso andam por aí, roçando potreiro, cortando lenha, vez por outra uma carpidinha... Se o senhor

convida para o almoço, eles aceitam, com uma condição:

-Se não for galinha... garrei nojo desse bicho de pena!

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UM HOMEM DE CORAGEM

Quando Gervásio avistou o cemitério,

banhado de frio luar, o vento balançava sem direção definida, em sopradelas gélidas, que musicavam as folhas adormecidas. Era madrugada sem horário de um dia sem data. As pernas, que caminhavam de má vontade, estancaram. Gervásio olhou, num olhar

de 360°, a mata deserta, as árvores prateadas e as sobras que caminhavam. Imaginou estranham figuras a chorar pelas ramagens, sobressaltando-se a cada ruído ou coaxo.

Uma bracatinga gemeu, torcida pelo

vento. As pernas paralisadas moveram-se em grande velocidade, para frente e para trás, num percurso de centímetro e meio. Se tivesse no bolso um sismógrafo, ele teria registrado a marca de 7,6 pontos na Escala Richter. Sentiu

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alfinetadas nas axilas e, na segunda vez que a planta gemeu, descobriu que eram os pelos, arrepiados de susto, que magoavam as covas de seus braços.

O cemitério estava ali; tão diferente do que vira no dia anterior... Parecia maior, mais claro e sinistro. Por certo,

não deveria retroceder: tinha a palavra empenhada. De alguma forma a cumpriria. Apostara dinheiro e honra na sua coragem e provaria levando a aliança do velho Honorato, morto há vinte dias, vítima de tuberculose e do Mal de Lues.

O médico, consultado à tardinha, garantira imunidade e cura, no caso de contágio. O que ninguém curava era o medo. Gervásio curvou-se para contemplar as pernas, verificando se estavam livres de detritos, possíveis nessas ocasiões. Nada. Estavam quase

secas; apenas tremiam. Urgia mover-se. Primeiro a esquerda (sendo canhoto, dominava melhor), depois a direita, ainda desobediente. Passos pesados, arrastados e largos.

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Demorou-se o suficiente nesse percurso entre a curva da estrada e o cemitério.

A tranca, que à luz do dia saltava solícita, à noite pesava e teimava enroscar. Os dedos trêmulos buscaram possíveis travas, tramelas ou fios, nada encontrando. Saltar o portão... Cadê a

coragem. Deus me livre! Isso pode ser pecado. Uma coruja voou baixo, quase levando seu chapéu. Não percebeu como, mas, nesse momento, a tranca soltou e o portão se abriu.

Antes de entrar, espichou os olhos

sobre as „residências‟. Logo na entrada, dormia Melão Maduro, polaco azucrinado que criava encrenca e brigava por qualquer motivo. Por certo, deveria evitar as proximidades daquele túmulo. Mesmo morto, o morto poderia tomar a coragem como afronta.

Mais acima, morava eternamente um casal de beatos, corocas de sacristia, desses que certamente estão no céu e podem avisar Deus de intrusões semelhantes. Melhor ocultar-se deles. À esquerda, Chica Moita, mulher conhecidíssima, que fez história e

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chifres. Do portão, já era possível sentir o perfume barato que ela usava em serviço. Se bem que o perfume estava na memória dele e não na terra que cobria a dita cuja. Passaria por ali, pé ante pé, evitando as folhas secas pelo chão.

Mais à esquerda ainda, descansavam uns pobres e indigentes, entocados em terra só, tendo sobre si roseiras e margaridas. Sobre a cova da Doralice, nascera, crescera e florescia um butiazeiro farfalhante. Parecia música fúnebre. Os dentes do Gervásio batiam

no compasso.

Dali, virando-se para o outro lado, via residências nobres, com capela e tudo. De uma delas, saiam gritinhos de morcegos e, logo após, um deles também saiu, fazendo acrobacias negras, acompanhando o relevo das

construções.

Uma rajada de brisa fresca ergueu uma camélia e pétalas de rosa, secas sobre o mármore da tumba do coronel Lucena. Gervásio sentiu alisarem-se até

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os pelos mais íntimos. Sentia-se leve, anestesiado.

O Honorato descera aos infernos logo à esquerda e um pouco acima da grande cruz, ensebada em velas promissivas e remorsadas. O vulto branco da sepultura se escondia atrás de outra,

toda em mármore preto. É claro que o Gervásio estava vendo as sepulturas e ... um cachorro magro, saindo silencioso por entre as duas; lambeu a grande cruz, molhou aqui e ali, indo saltar o muro num vão danificado, aos fundos do bairro.

O homem voltou a si quando o vento derrubou o chapéu, trepado que estava nos cabelos eriçados, distantes da cabeça, de pé e eretos. Faltou mobilidade para apanhar a cobertura. Reuniu forças e rezou ao todo poderoso, pedindo perdão antecipado

pela coragem que não tinha.

Ao lado da sepultura, ainda permaneciam uma ripa com restos de cimento e dois tijolos. Gervásio, pisando neles, apoiou a mão direita sobre a lápide e, com a esquerda,

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desferiu o primeiro golpe. Acertou o dedo, tal era o tremor que o dominava. Só não desmaiou, porque a batida ecoava de sepulcro em sepulcro, de modo cada vez mais lento, até chegar ao dos dois beatos, onde repicou duas batidas secas, consecutivas e finais.

Esperou silenciar e novamente ergueu o martelo. Ao baixá-lo, não houve obediência. O martelo enroscou-se na coroa de flores do túmulo vizinho. A sensação de que alguém segurava a ferramenta, superou toda e qualquer resistência.

Gervásio sentia calor e uma certa umidade... Moveu-se, mas não descerrou os olhos. Ouvia-se o canto dos pássaros, vozes distantes, conversa animada, alguém assobiando. Imaginou o paraíso, quente, um pouco úmido e alegre. Muito alegre.

Ergue-se de um salto. O sol ia alto, sorridente. Num roçado ao longe, dois homens aravam e um guri picava rama de mandioca. Seu chapéu ficou amassado e um pouco sujo.

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ÓIA O LADRÃO!

O Doliski era boa gente. Bom cortador

de pedras. O mais afamado em toda região. Seu gosto era cortar pedras para muro e porão de casa. Em troca, exigia muito pouco: um rancho para dormir e um litro de cachaça, o mais frequente possível. Sem família e sem parentes, vivia ao deus-dará; hoje

aqui, amanhã ... quem sabe?

Morou muito tempo nas terras de meu pai, cortando pedras ou dormindo semanas inteiras. Nunca nos perturbou, nem prejudicou. Gostávamos dele e ele se sentia grato.

Depois, perdemos o seu rasto. Passado

muito tempo, contaram o seguinte: Virou ladrão. Roubava o que encontrasse sem guarda. Tinha andado preso, saiu, roubava, voltava pra cadeia e não se corrigia. Diziam que fazia isso em troca da hospedagem

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pública, pela bóia dos guardas. Se essa era de fato a intenção dele, se deu mal.

Gaudêncio registrou queixa que o Doliski lhe furtara uma lata de banha de porco. A polícia fez o levantamento, recolheu provas, ouviu testemunhas, chegando ao verídico: O Doliski roubara

uma lata de banha, da qual nem lambiscara. Roubou só por roubar. Seria fácil devolver a banha e tudo estaria resolvido. Porém, assim já era demais. Tinham de acabar essa roubalheira em troca de hospedagem policial. Não deixaram por menos.

No sábado, que na vila era dia de carneação e o povaréu fazia compras, pela Rua do Comércio – única com placa e número por aquelas paragens –, apontou o Doliski, com uma lata de vinte quilos de banha às costas, a gritar:

-Óia o ladrão... Óia o ladrão de banha... Óia o ladrão... – e, pela cara loura, lágrimas e catarro faziam uma torrente. Atrás dele, os soldados, de cassetete em punho, ameaçavam, cada vez que ele demorava a repetir o refrão:

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-Óia o ladrão... Óia o ladrão de banha... Óia o ladrão...

Nunca mais o Doliski roubou.

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DO TEMPO DE IMAGINAR

AFINAL...

A GENTE PODE VIVER LIVRE, MESMO NA DITADURA.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Homem que Morreu de Fome

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O HOMEM QUE MORREU DE FOME Adaptação literária da tradição oral.

Orácio nasceu e cresceu na Linha Paciência... a bem dizer, não cresceu o que tinha direito... só de preguiça. Pouco plantou, menos colheu. Tinha tanta preguiça que, ao lhe indagarem o nome, respondia, curto e fraco:

- ... àcio.

A vontade de trabalhar estava tão em falta que ele passava o dia lamentando o que tinha feito no anterior, dores imaginárias, falta de sono, ultimamente. Mortos os pais, passou a uma vida vegetativa, sem água nem

adubo. Definhava física e mentalmente.

Quando a crise aumentou, todos passaram a economizar, dando um jeitinho, tentando sobreviver. Ele não. Nem se preocupou com a trabalheira dos outros. Simplesmente, deixou de

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Homem que Morreu de Fome

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comer. Como fosse raquítico por natureza, passados poucos dias, morreu.

O velório teve boa frequência, mais por curiosidade, já que amigos ele não cultivava. As pessoas que vinham, espiavam soltando risinhos sem

orações e voltavam para suas obrigações. Orácio, então, podia ficar em paz no seu caixão; nada dele exigiam, nem mesmo que batesse na porta do céu, pedindo entrada.

Durante a noite, os tradicionais

frequentadores bebericaram café com pinga, contaram piadas, falaram das moças, pondo em evidência as mais vulneráveis. Foi uma vigília calma, pois todos sabiam da preguiça do morto e da sua decisão de não mais retornar à vida, logo não precisavam olhar atentamente se o defunto dava sinais

de ressurreição.

Assim, sucederam-se as horas e o dia entrou pela porta, que nos velórios permanece aberta, pra‟mor de fugir, caso o morto torne de repente. A manhã fumarenta trouxe o padre e a

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benção final; fecharam o caixão, sem que alguém chorasse a despedida. Apagaram a única vela que ainda ardia.

Dali, que era a Rua do Beco, passaram para a Rua do Comércio e desembocaram na Rua do Cemitério, cursando assim pelas principais vias da

aldeia. Das poucas janelas, ralos velhinhos bombeavam.

Ia o enterro numa procissão lenta, morro acima, sem vontade de rezar. E foi andando, andando... O morto que se finou em greve de fome, por preguiça

de trabalhar e até de comer, ia tranquilo, balançando nos passos irregulares dos carregadores.

Da boca do cemitério, espiavam o coveiro e o Tonhão, coronel de muita terra, muita gente e muito boi gordo. Tinha roça e invernada a perder de

vista e o colchão recheado de dinheiro.

Chegando diante das autoridades, o caixão parou e os acompanhantes ficaram esperando a palavra sempre importante do fazendeiro.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Homem que Morreu de Fome

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-Quem é o morto? (Claro que ele já sabia; perguntou só por perguntar.)

-O Orácio, seo coroné.

-Do que se finô?

-De fome, seo coroné.

-Impossível num país como este alguém morrê de fome! Acorda homem, que te dô um saco de arrois.

Abriram a tampa e, de pronto, o Orácio sentou no caixão.

-Seo coroné: arrois cum casca ô já discascado?

-Mas óme... é só levá no discascadô... não basta que te dê o arrois?

-Não. Pode segui o enterro.

E foi-se embora eternamente.

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COMER OU SAIR

A portinhola se abriu e, em seguida,

também a porta. O soldado Honório olhou-me divertido, como se eu fosse um animal raro, possuído de doença nova ou em moda. Afinal, não foi sem motivo: aquela porta esteve fechada por seis anos, dois meses e sete dias. Ali o mundo era diminuto, pois cabiam

apenas um catre, uma latrina, uma pia e pensamentos.

Numa sexta-feira, fazem mais de seis anos, fui nomeado titular-residente dessa jurisdição. Era uma tarde chuvosa, fria e semeada de vento. Foi a última vez em que vi chuva. Em poucos

minutos, recebi roupas secas, com a informação que seriam minhas até o fim da vida delas. Eram de pano comum: uma camisa amarela, listrada de tonalidades diversas do mesmo matiz e calças grosseiras de cor

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duvidosa, postada entre o azul e o chumbo.

Os três primeiros dias foram mais longos que os dois anos seguintes. Neles, a agitação não teve termo e ainda me preocupava com a família. Depois, o mundo silenciou, nunca mais

ouvi notícias ou soube de alguém. Fui „isolado por ordem superior‟.

Ao longo dos anos, conheci oito ou nove guardas e fui visitado por duas dúzias de inquiridores, que se aproximavam de minha „janela‟ com

muita cautela, temendo, talvez, que minhas ideias fossem contagiosas. Sempre me pareceu que acreditavam mais em mim do que neles mesmos. Transparecia uma admiração curiosa para comigo. Antes não me deixavam escrever; depois, insistiram para que o fizesse. Queriam arrancar alguma

confissão que não fiz por absoluta falta de inspiração.

Agora, bem na hora do almoço, finalmente a porta foi aberta e eu poderia sair e olhar para o corredor todo e não apenas para o pedaço dele

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que ficava diante das grades da portinhola. Demétrio, soldado-garçom ou cozinheiro, nunca soube ao certo, se mantinha com a bandeja nas mãos, atento à minha escolha. As batatas não mudaram; ainda trazem metade das cascas e, naquele momento, a luz dava

especial destaque a elas. Mas, nunca fui forçado a comê-las. Foi sempre assim: não me deram nada e nada me cobraram; me anulavam.

A água foi sempre suficiente, não estando ausente por mais de dez dias. Mantive a latrina sempre limpa. Depois

da caneta e da escova de dente, foi minha maior ocupação. Quando estava inquieto ou cansado de fazer nada, limpava e polia a latrina. Essa vantagem eu tive; a não ser por debaixo da porta ou pela água, doença venérea ali não entrava. A escova

dental me foi muito útil. Escovei os dentes por qualquer motivo. Tédio, revolta, cansaço, ... O uso excessivo chegou a gastar as arcadas.

Na fresta entre a porta e o caixilho, se apresentava um ninho de traças,

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agrupado em castas e hierarquicamente distribuído através dos anos. Enquanto a porta esteve fechada, passei horas tentando adivinhar como se organizavam, o que comiam, onde dormiam. Duas ou três vezes, joguei água na fresta, mas

continuavam imperturbáveis. Com elas, aprendi a não ter pressa.

A bem da verdade, nem sei em que cidade estou, qual a corporação. Nunca soube de outros presos e nunca responderam minhas perguntas. Todos me olhavam como o Honório, com um

ar patético, como se eu fosse um misto de poder e de desgraça.

A mulher e os filhos...? Talvez nunca, como eu, souberam notícia sequer. Pensei na família dias a fio. Depois, suspendi o martírio e busquei paz na alienação.

Bernardo, um negro que me guardou nos primeiros meses como se eu fosse uma joia da coroa da rainha, havia insinuado a minha morte e que me conservavam vivo para ser usado como cobaia em experiências

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parapsicológicas. Era chamar-me de perigoso e sobre-humano, necessariamente isolado e moralmente morto. Não conseguia lembrar do que de tão drástico havia escrito para me levar vivo ao túmulo, mas é certo que atingi alguém que evitaria novos

ataques verbais.

Honório voltou-se mais para a direita e falou, com alguém que eu não via, qualquer coisa como: “Está completamente louco, isto é, curado. Esse não erra mais.” Depois, balançou o dedo encardido diante do meu nariz,

num gesto que me lembrou da cauda do meu cachorro Treco em dias de mormaço. Pretendia testar as minhas reações. A voz lhe saiu rouca:

-Te manca. Te soltaram...

Calmamente, olhei o feijão e a salada

mal temperada, com uma necessidade mecânica de comer. Afinal, nesses seis anos sempre fui muito pontual; rigorosamente pontual. Fiquei em dúvida: comer ou sair? As juntas me pareceram emperradas e frágeis para suspender pés de chumbo. Estava

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Comer ou Sair

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desacostumado ao movimento. Ali, minhas viagens tinham sido somente mentais. Que fazer agora: comer ou sair?

Paradoxalmente, ali me sentia seguro e não conseguia escolher entre uma refeição gordurenta e uma liberdade,

cujas características não sabia ao certo.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Impotência

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IMPOTÊNCIA Ainda nos corredores, recebi

cumprimentos e mais cumprimentos. Chegando à porta dos fundos, que dá para o jardim, encontrei o sol, todo menino, brincando com o orvalho das primeiras horas do dia. Os olhos, cansados de luzes cortantes e minúcias vitais, se banharam no carinho morno

da chuva solar sobre a manhã. Sentei no degrau, terminando de abotoar a camisa. A brisa era levemente fria. Além do jardim, carros businantes afastavam pedestres, com impaciência. Um menino gritava as manchetes políticas do jornal que

pretendia vender, manchetes iguais a tantas, mentirosas, a fazer intrigas, narração de lances de xadrez, para o qual, nem permissão de assistir tivemos.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Impotência

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Entre as árvores, projetavam-se imagens da madrugada: uma imensidão de mãos caminhando sobre o corpo anestesiado. Enluvadas e silenciosas, alcançando ferramentas, retirando materiais usados, construindo gestos. Era um caso grave. Tão grave

que trabalhamos a noite quase toda, sem um mínimo de sono. Estive sempre bem acordado, com susto no olhar. A equipe toda esteve.

Naquele momento, auxiliares e aprendizes faziam a limpeza. Nós salvamos a vida; fizemos o milagre.

Podíamos ficar a olhar o sol sobre as árvores orvalhadas, encostados na parede, sobre o degrau, aquecidos pela luz, vendo outras vidas na rua, de pessoas correndo, se atropelando, angustiadas e sem tempo.

Caminhei sob o sol, dei meia volta para

olhar o prédio branco, cheio de janelas, a cozinha movimentada para o café da manhã dos internados e, lá na frente, a sala de espera coalhada de olhares indagadores, o vai-e-vem inquieto de parentes, talvez mães. Na calha, sobre

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Impotência

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o último pavimento, os pardais namoricavam ao sol. E, num daqueles quartos, um homem salvo numa cirurgia dificílima respira calmo, ainda meio anestesiado.

Havíamos vencido a morte; vitória também da medicina. Bisturis, pinças,

algodão e luvas ambulantes entram novamente na minha linha visual. Erguendo os olhos, encontrei inquietação nos meus assistentes. Estavam inseguros, precisavam de minhas decisões. Bisturi... Pinça... Tudo passou. Abrimos uma cabeça doente,

retiramos o inimigo e fechamos a certeza da cura.

Bem que mereço um café. Caminhando displicentemente, chego à sala dos médicos. A garrafa térmica está ali, acompanhada e alguns biscoitos. Estranho. Por que a sala estaria

deserta? Talvez, tenham todos ido para casa abraçar a família.

Eu me sentia como um guerreiro após uma monstrenga batalha: exausto e vitorioso. Uma alegria muda me vinha aos olhos. Afinal, vencemos a morte e

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Impotência

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queria saborear o sucesso lentamente, como se fosse um drinque. Sentia uma paz muito grande e, nessas circunstâncias, admiti que a paz é branca.

Não dei importância à entrada do meu colega, cabisbaixo, sisudo, a engolir

silencioso o café fumegante. Olhava mais longe: salvara uma vida já desacreditada. Do corredor, vinham o caminhar delicado, sombras brancas passando, ruídos de portas abrindo, de portas fechando...

-Se suicidou com dois tiros na cabeça... filhinho de papai... depois da festinha...

Só na segunda vez é que ouvi a voz rouca com mais nitidez; mesmo assim, não acreditei. Pedi que repetisse.

Estava morto e era jovem: dezoito anos. Sadio e tinha um futuro

promissor. Fechava a vida, adolescente ainda. Enquanto ressuscitávamos moribundos, os jovens se suicidavam. Não me lembro se terminei de tomar o café; só sei que o sorriso acabou, a alegria sumiu e o sol se escondeu.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Impotência

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Alcancei o corredor, repleto de fantasmas brancos, andando com cautela. Um gemido, vindo do infinito, invadia o hospital. Perambulei. Minha noite e meus esforços foram mortos por dois tiros de revólver.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Casamento do Fernando

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O CASAMENTO DO FERNANDO3

Numa tarde de quinta-feira, apareceu

lá no sítio, galopando uma moto 125 cc, um barbicha magro, de olhos piscantes e irrequietos. Pouca prosa, muito mistério. Esperou pela noite, depois, pela janta, apoiando os braços na mesa de imbuia maciça, rodou o copo de vinho entre o polegar e o dedo

médio, às vezes mais cheio, às vezes mais fútil. E a noite cresceu, se fez negra, depois estrelada e o vegetariano que não desembuchava: desconhecia-se a que veio e o que buscava.

Quando as vinte e quatro horas do dia já davam mostras de finamento, ainda

mais sonâmbulos e exaustos, ouvimos a catástrofe:

-Caso terça-feira e você é o fotógrafo. 3 Fernando Luis Tokarski, poeta, prosador, jornalista e

historiador da Guerra do Contestado. Foi meu aluno no Colégio Estadual Santa Cruz, em Canoinhas (SC) e, anos mais tarde, companheiro de sonhos e de obras artísticas.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Casamento do Fernando

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-Fernando, esse vinho é como o diabo: entra na pessoa e passa a fazer estripulias. Amanhã, você estará melhor...

-Que nada! Estou falando sério. Meu casamento acontece na terça e você é o fotógrafo. Vou de agasalho (aquele

pijama marrom com jeito de tapete) e levo a noiva na motoca.

Não lembro que tenha dito mais coisa antes de ir embora. E foi. Comigo ficou a preocupação. Nunca havia fotografado um casamento e meu

nervosismo poderia manchar os retratos. Comentamos conjugalmente os fatos e a Edith identificou a necessária rapidez... Que fazer? Serei fotógrafo.

No domingo, a decisão de convidar o Egon4, às escondidas do noivo, era

coisa certa, porém invertida na segunda-feira, ante a possibilidade do polaco já ter contratado alguém e de

4 Egon Thiem, exímio fotógrafo profissional, que participava de

nossas excursões exploratórias em rios, grutas e cavernas, para registrar a história regional em fotografias.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Casamento do Fernando

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ter me encarregado de tal só pra me encrencar e tornar mais pitoresco o acontecimento. Seria mil vezes pior. Certamente, os fotógrafos lutariam diante do altar e eu, depois de pagar as despesas e os prejuízos, teria minha excomunhão anulada, ficando preso ao

celibato por séculos e séculos, amém. Maldito noivo!

Na terça-feira, 18 de dezembro de 1979, cheguei à casa do noivo, no fusca azul pavão, uma hora antes da cerimônia marcada para as 18:30 horas. Encontrei-o no banheiro, envolto

em colônias e desodorantes.

-Ô cara, essa história de fotógrafo é só trote, né?

-Eu não te disse que você é o fotógrafo... Se não quiser, nem precisa.

-Você não ia de agasalho?

-Ia, mas essa corja recém saiu daqui e me obrigaram a vestir essa joça e prenderam a moto, pra ter certeza que eles me encontram aqui e me levam „decentemente‟ à igreja. Mas, pode saber: caso assim, sob protesto!

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Casamento do Fernando

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-Muito bom! Você nem merece isso. Fernando, onde eu encontro água potável?

-Na torneira...

-Engraçadinho... esse cloro tá quente.

-Ah! Na geladeira, dentro da garrafa

térmica.

-???

Enfim, encontrei a garrafa térmica e o copo. Abri a primeira, entornei o liquido no segundo e tentei beber... Era mais choca e morna do que morna e choca

era a água da torneira.

-Polaco, você é um besta! Garrafa térmica fechada conserva a água da torneira na mesma porcaria que é... que importa a geladeira.

-Pois é; eu não sabia!

(Pobre Zeca5; crianças grandes incomodam mais...)

Certo de que ali eu era de utilidade nenhuma, fui saindo. Diante da casa,

5 Rosélis Carvalho do Prado, esposa do Fernando,

companheira dele em todas as horas.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Casamento do Fernando

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encontrei o caminhão dos padrinhos, ainda com uns restos de lenha na carroceria. Imaginei o noivo indo pra igreja, na cabine, sentadinho entre os dois; jamais colocariam o infeliz trepado nos paus.

Cheguei à igreja antes do noivo e vi

que ela está em ruínas mesmo. Estive olhando, na esperança6 do noivo, que ajudou arruiná-la com aquele „Para a Semana Santa e o Resto da Vida‟7. A construção está cedendo nas mais diversas partes. Pensei até numa tragédia dominical, mas, horrorizado,

afastei o pensamento.

Infelizmente, minha previsão foi confirmada: eu estava muito nervoso e fotografei impropriamente, no espaço e no tempo. Quando percebi, os noivos já estavam na metade do templo8 e eu

6 Tempo de espera.

7 Texto espalhado de madrugada, principalmente na Praça da

Matriz, com críticas azedas e irônicas à forma inconsequente com que era tratado o edifício antigo, patrimônio histórico da cidade, com uma abóbada recoberta com pinturas bíblicas.

8 Essas núpcias foram diferentes e não seguiram a tradição

cristã: os noivos entraram de mãos dadas, sem música. O pai da noiva é que esperou por eles.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Casamento do Fernando

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não havia fotografado a entrada nupcial. Pedi, então, que voltassem e esperassem e sorrissem e depois continuassem, que em nada atrapalharia, pois música não tinha mesmo. Perdi a entrada solene dos noivos, mas documentei quando o

noivo pediu emprestado o lenço do padrinho e assoou ruidosamente o nariz, que, com certeza, só tinha impressão.

Na hora do beijo, o flash da máquina não carregou e os noivos esperaram beijando longamente e cansaram e

deixaram de beijar, envergonhados do riso complacente do celebrante. O Frei Ladi, na sua santidade precoce, foi o mais fotogênico e fotografado, naqueles largos gestos de “Deus vos abençoe, em nome ...” e “Ide em paz e multiplicai-vos”.

E, quando as primeiras pessoas chegavam para a missa nupcial, os noivos sorrateiramente deixavam a igreja, para cear um peru desses automáticos, que, ao chegar ao cozimento ideal, disparam uma seta

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Casamento do Fernando

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vermelha e alimentam tão pouco que em nada prejudicariam o pós-jantar, com congestões e mortes. Encontramos a Irmã Angélica, tremendo de indignação; justíssima, por sinal.

-Que foi que houve aí? Casamento? Cadê os noivos? Ei! E a missa?

-Irmã Angélica, esse cara é ateu e à-toa. Imagine a senhora que, se não fossem os parentes e os padrinhos, ele casava de pijama e trazia a noiva na garupa da moto...

-Minha Nossa Senhora! Que Deus tenha

piedade deles... – e, persignando-se repetidamente, entrou para a missa já começada.

Pela escadaria, começavam a chegar os amigos e os curiosos, para um casamento já acontecido.

De repente, me vi só em companhia dos noivos, a admirar o crepúsculo. O irreverente e dissidente poeta estava finalmente incluído entre as pessoas decentes, que casam, proliferam, proletariam e se massificam, para sucesso das futuras campanhas

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Casamento do Fernando

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eleitorais. (Confirmaria, posteriormente, ingressando no glorioso Partido.)

Seo José (Canhoto) nos recebeu com toda juventude de seus sessenta anos bem vividos e com a simpatia que o caracteriza.

Não faltou quem, no intervalo entre dois goles, avisasse ao noivo:

-Hoje não. Outro dia, desabafe. Hoje, você precisa tá são!!!

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Defunto Desconhecido

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DEFUNTO DESCONHECIDO

Três mulheres viviam num ermo, sem

nunca ter conhecido o amor.

Plantavam uma pequena horta e uma rocinha, com feijão, amendoim, pipoca, aipim, milho, ... Plantavam o de-comer e só. Fiavam o algodão que desse e cosiam panos para cobrir o corpo. Ao redor de casa, as árvores do quintal

frutificavam o ano inteiro e, no mato, sobejava muita fruta. Peixe tinha no açude deixado pelo velho pai... e as galinhas cresciam soltas ao derredor, fornecendo ovos e frangos. Sentiam falta de nada.

Passavam os dias implicando uma com

as outras e todas com todas. Vidinha de deitar na rede e ficar cochilando.

Até o dia em que a mais moça viu um vulto, ao longe... quase um ponto na poeira da estrada. Chamou as outras duas irmãs e, juntas, espremeram os

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Defunto Desconhecido

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olhos, que era pra enxergar melhor. Sim. Era coisa viva, porque mudava de posição, se mexia. E ficaram olhando, olhando... Quando o vulto entrou no alcance da vista, perceberam que era gente. Alguém se arrastando devagar pela estrada. Quase não andava.

Cansaram de olhar aquela figura, que podia bem ser apenas uma miragem. Melhor não perder tempo com alucinações; voltaram à rotina de sempre: esperar o tempo passar. E assim, consumiram mais de hora.

Mas, então, a mais velha resolveu assuntar. Que poderia ser? Gente? Não recebiam visitas há anos... as pessoas que passavam por ali, só seguiam alguma necessidade. Vir para chegar... isso fazia muito tempo. E aquela figura ao longe não tinha jeito de quem „andasse por aí‟. Não era vaqueiro...

nem rezadeira... As outras duas se interessaram... Quem poderia ser?

Voltaram para o terreiro e olharam em direção da estrada. Sim. Era uma pessoa de fora. Nunca tinham visto alguém assim. Com aquelas roupas,

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Defunto Desconhecido

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com aquele jeito de andar. E vinha tão devagar que resolveram ir ao encontro da figura.

Como caminhavam mais depressa, logo reconheceram ser um homem. Não era mulher, não. Era homem. E foram se achegando, se achegando... Com

certeza, aquele homem estava muito fraco... mal conseguia andar. Por isso, uma delas carregou a sacola que ele trazia pendurada ao ombro e as outras duas, entrando embaixo de seus braços, apoiavam e incentivavam seus passos, para saíssem daquele sol

abrasador.

Com certo esforço de todos, alcançaram o alpendre e deitaram o homem na rede. Ele estava com muita sede e bebia pequenos goles. Não aceitou comida e nada falava; só gemia. Cuidaram dele como um filho

que nunca tiveram. Limparam seu rosto com um pano úmido, acariciaram suas mãos, compridas e magras. Finalmente, tinham a quem cuidar. E ele, esquecido das dores, até chegou a sorrir.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Defunto Desconhecido

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Como a noite se aproximasse, combinaram fazer uma canja de galinha, com arroz pilado. Mas, quem comeu foi elas; ele nem quis provar. Só agradeceu com os olhos. Ficaram assim, rodeando ele. E ele, com um sopro cada vez mais fraco, se deixava

cuidar. Cuidaram tanto que pensaram que ele tinha adormecido. Desconfiaram foi quando o corpo começou esfriar.

Nisso, já tinha anoitecido e muitas nuvens invadiram o céu. Nem era tempo de chover, mas choveu. Chuva

diferente. Chuva de muita água. Chuva calma. E elas começaram a arrumar o corpo do homem sobre o banco, antes que ele esfriasse de todo. Lembravam dos mortos de sua família e de como aprenderam a preparar o defunto para o velório. Velório de uma única vela: a

do lampião.

Passaram a noite em claro, guardando o corpo. E a chuva prosseguia. Achavam ser um bom sinal.

Lá pela madrugada, passaram para a cozinha, reacenderam o fogo que havia

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Defunto Desconhecido

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adormecido, esquentaram água e coaram um café dos fortes, para afastar o sono, que teimava em pesar nos olhos. Bebericavam o café, com olhos baixos, roendo umas broas dormidas, com o pensamento pregado no defunto, que poderia (Quem sabe?)

sentir a ausência delas. Por isso, entre um bocado e outro, uma ia até a sala, benzer o corpo com umas gotas de água benta, que haviam colocado numa xícara sem asa, bem ao lado da cabeça dele.

Aconteceu, porém, de um vaqueiro

querer encontrar uma rês desgarrada e de passar por ali e de estranhar o lampião aceso àquela hora. Se aproximou, apeou do cavalo e, ao passar pelo alpendre, tirou o chapéu encharcado, para entrar com respeito, pois adivinhou ser um velório.

Estava ele ali contrito, fazendo sua reverência ao falecido, quando uma das mulheres se aproximou deles e exclamou:

- Ah! Meu Deus! Nem deu tempo de contar a ele o meu segredo...

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Defunto Desconhecido

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Falou isso, suspirou e voltou para trás da cortina de fios, sem ao menos olhar para o vaqueiro. Da cozinha, vinham uns resmungos chorosos, lamentando uma „morte tão repentina‟. O vaqueiro segurando a curiosidade com as duas mãos, afinou os ouvidos, procurando

acompanhar os fiapos de conversa que vinham lá dos fundos. Quem seria aquele homem? Amante de uma delas? Ou das três? Qual seria o segredo que nem deu tempo de contar?

Pelo pouco que conseguia entender, havia um mistério em volta da

presença daquele homem, jamais visto por ele ou por outro habitante daqueles cafundós. Parecia que elas já sentiam muita falta do falecido e que a vida delas nunca mais seria a mesma. Há quanto tempo o desconhecido estaria com elas? De onde ele veio? Como elas

conseguiram esconder tão bem a presença dele?

Resolveu deixar de lado a maledicência e reiniciou a reza fúnebre. Já pensava em voltar ao trabalho noturno, quando outra das mulheres rompeu o véu da

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Defunto Desconhecido

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cortina esfarrapada, arrastou os pés até o centro da sala e falou:

- Ai! Fui tão feliz, mas tudo acabou...

O vaqueiro olhou para ela, com atenção, procurando encontrar respostas para as muitas curiosidades.

Olhou para o morto, olhou para a mulher, ... e só sentiu aumentar a confusão em seu pensamento, que tentava entender a relação entre os dois. Mas, a mulher voltou para a beira do fogão, levando todos os possíveis esclarecimentos.

Nem bem reatou a reza e a última das irmãs se achegava a eles. Era a mais velha. Chorava de mansinho, lágrimas de desesperança. Pensou em perguntar a ela todas as suas curiosidades, mas foi calado pela profunda tristeza que abatia a „viúva‟. Ela acariciou as mãos e

o rosto do defunto, como se muito e há muito tempo repetisse aqueles gestos. Seria ela a „esposa‟? Seria só ela? Como é que o povo jamais soube do conluio?

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Defunto Desconhecido

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Assim divagava, quando a terceira das irmãs também retornou ao café com broa. E, novamente, ficou a sós na sala. Bem, não tão só. Havia ainda o defunto, o lampião e a sombra dele mesmo, dançando pelas paredes. Rezou uns restos de orações e saiu

para o alpendre. A chuva havia lavado o céu e as estrelas brilhavam como nunca. Recolocou o chapéu na cabeça, subiu no cavalo e retomou a busca interrompida.

No entanto, já não andava sozinho: todas as curiosidades cavalgavam com

ele. Só que clareasse o dia, iria perguntar a quem encontrasse se sabia que as três mulheres não eram solteironas coisa nenhuma; tiveram um homem, que agora estava morto, que estava sendo velado, que ele mesmo viu e até rezou pelo falecido.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Em Defesa da Honra

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EM DEFESA DA HONRA

Meio da tarde, sol a pino. O Ademar e a

Francisca ali de olho colado na tela da TV, vertendo emoções por todos os poros.

-Ô de casa, atenção um minuto aqui...

-Quéqueééé?

-É só um minuto; quero mostrar muita

coisa linda!

-Entra, entra... Vá sentando...

-Pois é. Vejo que são aposentados, com muito tempo para a cultura. A minha oferta vem a calhar... – e começou a abrir as caixas de livros, coloridos, muitos de capa dura, todos eles com forte cheiro de tinta fresca.

-Que livro é esse aqui... verde...

-É um guia completo de alimentação saudável, com informações científicas, muitas receitas e tudo muito bem

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Em Defesa da Honra

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explicado, sem dificuldade para se entender.

-Uh!!! Bonito mesmo... – e o Ademar folhava o volume, com olhos de esperto.

-E são receitas com ingredientes

facilmente encontrados aqui na região; nada de coisas de longe, tipo azeite de dendê ou castanhas do Pará. É tudo aqui do Sul mesmo. Até o papel do livro é daqui. Nada de longe.

-Magina!!!!!!

-Vocês têm netos?

-Craro.

-Então, essa coleção vai servir como uma luva. Trata de todos os assuntos infanto-juvenis, assuntos escolares, educação sexual, ...

Ao ouvir essa última expressão, o velho garanhão pintou a cara de vermelho; que absurdo propor sexo para as netas dele... Pigarreou, engasgou e vomitou:

-Carece não; as netas são pessoas direita e não querem aprendê educação de indecença. Qui barrrrrbaridade!!!

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Em Defesa da Honra

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-Amigo, são apenas informações que elas podem usar...

O Ademar cortou a conversa com um talho só:

-Guarda esse daí qui aqui não carece não.

-Certo. O senhor é quem manda. Mas, tem essa bíblia, que está bem abaixo do preço. É uma bíblia benta pelo papa; ajuda a ganhar o céu.

Foi aí que os dois se animaram. Ir para o céu era tudo o que eles queriam, ainda mais com as doenças que

estavam comendo as pernas e as entranhas deles.

-E quanto custa? – perguntaram juntos.

-O preço está na contracapa.

-O que contra o quê – exclamaram.

Onde já se viu uma bíblia ser contra, ainda mais contra uma capa que guardava ela mesma. Mas, gentilmente, o rapaz explicou que eram os números escritos na „capa de trás‟, a que ficava no fim do livro.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Em Defesa da Honra

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Para desanuviar o ambiente, o vendedor de livros resolveu adentrar nas ideias publicadas e, abrindo um livro de orações, indicou uma linha que, se lida, comoveria até um Judas. A Francisca olhou para a ponta do dedo do vendedor sobre a escrita, o Ademar

também olhou e ambos não acharam oração alguma. Olharam um para o outro, antes de juntos depositarem um olhar vazio sobre o rapaz.

Justamente ele, Secretário da Associação de Moradores Juntos Caminhando, não sabia a diferença

entre um „a‟ e um „$‟. Francisca... menos ainda... ela nasceu analfabeta e continuava ágrafa. Que dilema: como dizer ao moço cheiroso que ambos estavam impossibilitados de decifrar aqueles pequenos sinais impressos?

-Só que ... pra nóis não tem

serventia...

E o vendedor, surdo como todo vendedor, continuava a tagarelar ofertas, utilizando a técnica de falar o mais poder e o mais rápido possível, para que as vítimas não tomassem pé

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Em Defesa da Honra

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da situação. Mas, a essas alturas, o Ademar já estava vermelho e gago, com a espingarda apontando para o nariz do intruso, que, inteligentemente, correu para a estrada, e, em seguida, para longe dali.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Insuficiência Conjugal

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INSUFICIÊNCIA CONJUGAL

Na véspera de Natal, ainda não sabia

como presentear os filhos, sem dinheiro, numa crise medonha. Nélio e Neto queriam do Papai Noel um trenzinho elétrico, visto e escolhido na vitrine da loja.

A empregada consumia tudo e não fazia o serviço como deveria e ainda

tinha de dar graças, pois empregada de confiança é difícil encontrar. O empregozinho, num mísero escritório, não rendia a roupa, a cabeleireira e o cigarro, tendo ainda de ajudar na prestação da casa que, ainda bem, era nova e confortável.

Natal é Natal e cada criança quer o seu presente. O jeito é conseguir o dinheiro, mesmo vendendo alguma coisa... Mas. Como? Sabia de amigas que conseguiam um dinheirinho extra, de maneira relativamente fácil. Havia

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Insuficiência Conjugal

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uma pensão que alugava quartos e, clandestinamente, mulheres, anônimas e variáveis. Eram de classe média e muitas vezes sofriam de insuficiência conjugal. Era posto um sinal de modo que os fregueses ficassem sabendo da disponibilidade e compareciam em

sigilo absoluto.

Fora mulher fiel e sincera toda uma vida... Quem desconfiaria dela? Bastava encontrar um motivo pra sair. Seus trinta e cinco anos vertiam sensualidade por todos os poros... Por que não tentar? O que ficaria desta

aventura? Esperava que fosse só o trenzinho para os filhos.

Mas, como enfrentaria o marido e os amigos? Nem conhecia a dona da pensão... Pior se alguém ficasse sabendo e conversa vai, conversa vem... o marido descobrisse tudo...

Estaria perdida.

Poderia alegar trabalho extra ou alguma amiga... Seriam apenas algumas horas e daria enorme alegria aos filhos. Quanto ao marido, bastava

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um bom banho e tudo ficava como era dantes; jamais contaria essa bobagem.

II

Na pequena loja, ele pensava na Noite de Natal. As crianças queriam ganhar um trenzinho azul e ele havia dito à

mulher que não gastaria o dinheiro da prestação da casa com coisas de criança. E foi sincero: tencionava gastá-lo de outra maneira.

Sua vida tinha sido de uma rotina maçante, tantos anos de santidade infrutífera, a careca crescendo e a

velhice acenando cada vez mais próxima. Precisava sentir-se homem, encontrar um sentido para a vida, que só casa e comida não bastam.

Nunca tivera coragem, amedrontado com doenças e pela própria consciência. Que diabo de pecado: não

se podia ser homem? Há meses rondava ocasiões, sem êxito. O pouco que o animou foi uma casa de pensão, que no fundo abrigava mulheres, que diziam serem limpas e silenciosas; quase de família. De resto, olhar as

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meninas do balcão, caminhar pela praia, sonhar e sonhar... que, por sinal, só aumenta a frustração.

Como presente de Natal, queria sentir-se homem, amar com paixão de adolescente. Tinha vergonha até de lembrar do modo como olhava as

mulheres, um tarado ávido, um desequilibrado que via em tudo malícia. Tentara algumas garotas, mas fora um fracasso. E o dinheiro da prestação da casa estava ali; era só pegar e não ouviria um não. Vivia enterrado naquela loja havia anos... que fossem

ao diabo, queria se sentir vivo, ao menos uma vez.

III

Como o marido não veio almoçar, a desculpa para a saída noturna ficou inútil: agora era sair e justificar depois.

Passou a tarde aflita, buscando alívio para a consciência pesada. Todos perguntavam pela razão de tanta agonia e ela desconversava, disfarçando. Como seria? Sentiria algum prazer ou seria somente um ato mecânico, indiferente e neutro; apenas

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um „trabalho‟ que rendesse o preço do trenzinho para os filhos? Temia ser rejeitada; nunca tinha refletido sobre essa possibilidade na lei da oferta e da procura. E se o „freguês‟ a considerasse repugnante e negasse o pagamento combinado.

A vida é absurda e inclemente: uma mãe vendendo o corpo para alegrar os filhos. Será que eles ficariam sabendo...? Tomara que não.

Saiu às seis. Cobriu o rosto de maquiagem, para esconder a

identidade. Vestiu roupas estranhas e entrou na noite. A dona da pensão nem reparou nela, uma freguesa a mais somente, um dinheirinho extra. E não havia muita procura, mesmo sendo mulheres de família, discretas e de uma noite só, pois não voltam nem chantageiam.

IV

Como o comércio funcionava em horário especial de fim-de-ano, fechavam às 22 horas e não custava sair um pouco antes, passar pela

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pensão e chegar em casa no horário de costume. Quarentão frustrado, via no ilícito a única emoção do Natal e precisava senti-la. Que trenzinho, que pecado... queria mais era viver.

E, também a mulher, com aquela cara de santa, dando conselhos e escovando

calças, não tinha ardor, parecia cansada, sem vontade. Chamou o funcionário de confiança e disse não estar bem, o que era visível no tremor e na palidez. Iria para casa, que atendesse pelo restante do expediente, fechasse a loja e tudo o mais.

E foi caminhando, sem saber se para casa ou para onde. Quando viu, estava na Rua das Flores e reconheceu o aviso que lhe falaram: alguém estava disponível...

-Incrível! Deve ser uma mulher sem

filhos... „trabalhando‟ numa noite dessas...

E foi entrando, nervoso e desastrado.

-Calma, moço. É a sua primeira noite? Não se assuste: mulher não morde.

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Pagou sem escutar o preço e aturdido seguiu a matrona, cérebro vazio, corpo suando, alma penando.

Foi tudo muito rápido. Como num sonho. Ofegante, intenso e forte. Num quarto escuro, sem palavras e oprimido pela vergonha, com a estranha

sensação de que fora ludibriado pelo desejo, pela ilusão de que seria muito diferente e só foi maior e mais violento, deixando a certeza de que todas as mulheres são iguais. Essa custou caro e usava uma maquiagem horrorosa.

Para aliviar o sentimento de culpa, deixou com a „amante‟ o que restava de dinheiro nos bolsos e saiu em disparada, pensando nos filhos e na mulher, os quais não tinham culpa da sua aventura. E como pagaria a prestação do BNH? Andou depressa, chamando a atenção das pessoas com

seu andar de fuga, com sua cara pálida.

Chegando em casa, sentiu alívio com a ausência da mulher, que estava atrasada. Seria mais fácil rezar as desculpas, pois ela também estava em falta. Tomou um banho quente, com

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bastante sabonete e acompanhou os filhos no início do filme A NATIVIDADE, que passava na TV, com sobressaltos a cada pergunta ou movimento dos garotos, que esperavam a chegada do Papai Noel a qualquer instante.

Só então percebeu que era tarde e a

mulher não chegava. Perguntou por ela.

-Saiu. Disse que ia fazer compras de Natal.

-Mas, já é tarde. Onde será que se meteu?

Por mais que considerasse exagerado o atraso da esposa, sabia que deveria silenciar, pois ele vinha de culpa maior e sabia que „quem tem telhado de vidro não deve lançar pedras...‟

V

Quando a mãe abriu a porta e entrou, os meninos procuraram, nos pacotes, pelo sonhado trenzinho, mas só havia roupas para cada um deles, para o papai e para a mamãe. Apesar da decepção, procuraram demonstrar contentamento pelo que ganharam.

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Nisso, veio da rua a música anunciando a passagem do Papai Noel. Eles correram para fora e ainda viram quando ele dobrou à direita na primeira esquina... Parecia que, mais uma vez, o trenzinho ficaria só no sonho.

Já retornavam para dentro da casa,

quando viram, sob a floreira, o trenzinho azul, carregado de bombons. Correram abraçar os pais, pedindo a eles que agradecessem ao Papai Noel.

A mãe estava com uma expressão ambígua, entre contente por poder

atender o pedido dos filhos e triste por ter chegado tão tarde. O pai estava muito tenso, mas se esforçava para parecer natural, conversando com os filhos, o que era raro. Outra atitude incomum: abraçou a mulher e recusou que ela ajudasse na prestação da casa; que ficasse com o dinheiro, comprasse

roupas ou alguma delícia para saborearem juntos.

-Pai, o que o senhor tem hoje?

-Nada, não, filho! Penso que tudo poderia ser diferente aqui em casa.

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-É mesmo, pai. Nós queremos que o senhor e a mamãe sejam sempre alegres e amigos, como nesta noite.

-Mas...

-Mais.

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FILOSOFIA DE PESCADOR

Luis fora pescador desde criança. Ao

menos na filosofia... Gostava das coisas lentas e que consumissem pouco esforço. Alegria era quando o pai falava em pescaria, peixe, minhoca e beira de rio. Criança ainda, sem saber da filosofia, vivia com rios rolando pela cabeça, de cujas águas saltavam

úmidos e provocantes lambaris.

-Deu falta do Luis... busque no barranco do rio... deve de tá pescando.

De tão eficiente pescador, cultivava até viveiros de minhocas, por tipo e tamanho. Cedo criou método e arte próprios de pescador que honra a

tradição: os maiores peixes eram os que caíram n‟água e os pequenos geralmente aumentavam... após devorados e livres de medida.

Passou a infância e a juventude sentado à beira do rio, dando sangue

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Filosofia de Pescador

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para os mosquitos beberem e tendo, entre os poucos e encardidos dentes, um palheiro feito a capricho, desses em que a palha bem escolhida abraça fumo secado na beirada da chapa do fogão a lenha. Depois de morosamente picado, esfarelado e destroçado, era

calmamente enrolado, enquanto um olho segue cientificamente a pinicada de eventual peixe.

Uma vez enrolado, o cigarro levava viscosa lambida, de modo a resistir a uns três descansos atrás da orelha, sempre a da direita, que era mais

elástica e volumosa. Se não fosse essa fétida fumaça, os mosquitos sorveriam totalmente o precioso sangue do pescador.

Gostava mesmo era de fisgar uma „dessas carpa de déis quilo‟. Comemorava a emoção de sentir o

peso na linha e a danada cansando, cansando... até se entregar. Traíra era o diabo: cortava a linha e lá se ia mais um anzol. O Luis não admitia pescar de tarrafa, espinhel ou jequi...

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Filosofia de Pescador

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prevalecimento e falta de gosto... onde já se viu perder uma corrida de linha?

Mas, o tempo passou e o rosto magro ganhou barbas; necessário se fazia trabalhar e formar família. Um tio, abismado com tamanha vadiagem e desleixo, insultou toda fauna aquática e

jurou mudar de nome, se de vida não mudasse o sobrinho pescador-de-água-doce.

E depois, as fábricas de papel liquidaram os peixes com soda cáustica e, mesmo os remanescentes eram

alimentados por esgoto humano, uma poluição orgânica e vexatória. Luis envergonhou-se. Afinal, não sabia que era tão feio pescar e que „gente civilizada‟ vive elegante e fabrilmente produzindo, para ser considerada evoluída. Foi o tio quem explicou:

-Hoje, nos modernos conceitos sociais, um homem pode ser mais ou menos produtivo, não importando o que pense de resto...

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-Minha nossa, virgê Maria! Intão, sô improdutivo... Num quero ser isso aí, não...

E lavado, engomado e passado a limpo, foi cumprir o emprego que o tio arranjara. Não compreendeu, entretanto, por que cartazes, rádio,

televisão e tudo o mais, só falavam em dinheiro: “criar uma vaca custa tanto$, fabricar um caminhão custa tanto$, criar um emprego custa tanto$, criar um filho custa tanto$, ...”

Era muita pressão. Ele não queria

progresso ou honra social. Estava assustado e o fatal veio acontecer. Encaminhado aos exames periódicos de saúde, foi submetido a uma abreugrafia e o médico – peça importante no sistema de produção em série –, mostrando a chapa, analisou a situação interna, dizendo que ele seria revisado

de quando em quando. Impressionou-se pela imagem dos pulmões, que lhe pareceram pretos de picumã, e por toda aquela ossada branquela e descarnada. Decidiu ali mesmo:

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Filosofia de Pescador

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-Deus me livre, seo dotô... credo-im-cruis... si tô tão magro ansim, me aperdoe: vô morre notro lugá...

E fechou os ouvidos às explicações clínicas e às considerações médicas, permanecendo mudo e imóvel pelo resto do tempo que ali o retiveram.

Progressivamente, foi estampando no rosto a derrota e toda desolação que vitimou sua alma.

Saiu do consultório direto para a pensão, juntou seus tarecos e voltou para o mato; se instalou na barranca,

sem competir com as máquinas e livre das exigências da sociedade de consumo.

Morreu 50 anos mais tarde, sentado e sorrindo, com o caniço na mão e um palheiro entre os dentes, sem nunca mais engrandecer sua pesca, com

medo de ser considerado „um homem evoluído‟.

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CONSULTA MÉDICA

A chuva era intermitente como o amor.

Há muito chovia com sol e prometia e não limpava o tempo. Mela estava ansiosa, desde a última consulta em Porto Alegre. Não que fosse comportamento anormal, pois sua ânsia „normal‟ beirava a histeria. Essas visitas irregulares eram a sua maior alegria.

Quando os empregados viam a faina aumentar e a patroa excitada ao extremo, não se dizia outra coisa:

-Vai vê que vai a Port‟alegre... O negócio lá deve ser dos bom...

Era um tal de arruma vestido e procura meia... Por falar em meias, eram

sempre de cor apagada, dessas grandonas, que vão até a porta do céu, com raros buracos e coleções de bolinhas peludas, resultado do uso prolongado, normal em lã vagabunda e ban-lon. Vestida apenas de meias e

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Consulta Médica

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coadjuvantes ficava bem grotesca e um pouco repugnante.

O certo é que as malas eram poucas e a pintura exagerada. Mais parecia massa de moldar do que ruge. E assim viajou, como das outras vezes, dizendo ao marido que não se sentia bem, indo,

por isso, ao médico em Porto Alegre. Não se sabia ao certo o motivo, mas ele não se alterava, mantinha-se indiferente, como se ela tivesse dito:

-Vou até a cozinha, engolir uma jarra d‟água.

Possivelmente, seria um espírito que, na outra vida, não respeitou esse preceito social e sofria o castigo correspondente. A mansidão era tanta a ponto de parecer falta de amor pela fatal companheira. E foi ler o seu jornal, cachimbo balançando fumaça,

lareira acesa.

Era uma semana de chuvas temporárias e intermitentes, deixando lama e umidade, suficientes para aborrecer o mais sólido dos viventes. A viagem foi uma música monótona no

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Consulta Médica

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asfalto molhado. Por mais cuidado que se tomasse, algumas gotas alagavam o carro. A imaginação de Mela fugia do aguaceiro e penetrava no apartamento acarpetado da Borges de Medeiros. No mais... almofadões, vinho fino, música francesa e a megera se adoçava, ia se

acalmando até o sono solto, em posição ridícula...

Nessa hora, saciado e insone, o Ernesto ia resolver negócios bancários e fazer visitas políticas, deixando aberta a porta do apartamento. Cumpria com honestidade a posição assumida

rapazelho ainda, quando aprendeu a „consultar com Mela em Porto Alegre‟, na época, uma mulher completa, firme e móvel, tremendamente técnica. Bons tempos aqueles! Depois, quando o rapaz começou a demonstrar desinteresse, passou uns tempos

aborrecida, temerosa, mas – não sabia porquê – logo ele voltou a „trabalhar direitinho‟.

As divagações tinham o tamanho da viagem, por isso sumiram na chegada.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Consulta Médica

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Agora, era estacionar o carro e correr para o atleta sexual.

Mela entrou no elevador, escondida naqueles anônimos óculos-de-sol, bem forrada de cosméticos, vestida às pressas, cabelos em desalinho, presos num lenço antiquado. Parecia um

desses cabides de brechó, uma solteirona desatualizada que faz o possível para chamar a atenção, mesmo que isso seja um mecanismo inconsciente. É comum assim procederem pessoas inseguras e que nunca passaram pela desgraça se

suportar igual companhia. Talvez, fugissem da companhia delas mesmas; fugiam de si mesmas.

Mais uma viagem terminava, com as portas abrindo no sétimo „céu‟.

E foi ali que encontrou a Zefa, vinda da

mesma cidade, nos mesmos moldes e em trajes semelhantes, para similar „visita ao médico‟. A „consulta dela‟ acabara de acabar e ela voltava com aquela cara de satisfeita. A surpresa recíproca deixou o elevador parado naquela estação. Pensando disfarçar,

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Consulta Médica

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Mela não apeou. A princípio, uma não desconfiou da outra e vice-versa. Porém, um breve diálogo atualizou os fatos: eram rivais. Nisso, o elevador foi chamado no térreo e desceu as duas até a porta do edifício, onde a luta iniciou.

A sombrinha, comprada na Rua da Praia com a finalidade de esnobar a inovação francesa na cidade interiorana, fez-se em pedaços, sendo o plástico colorido, onde estava escrito “mon amour”, lançado sobre o hidrante, que assim ficava protegido de

uma chuva de objetos lançados sobre ele.

A bolsa, ao atingir a concorrente, jogou objetos para longe; entre eles, uma escova entulhada de cabelos de peruca, um maço de cigarros Vila Rica, rapidamente apanhado por um da

plateia, e uma piteira tão encardida e gasta que ninguém se abaixou para juntar. O pó-compacto se espalhou por pessoas e por paredes e o sapato, lançado sem elegância, cravou o salto nas costas de um cambista cego que

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exercia sua atividade naquela rua movimentada e que, nesse momento, batia com a bengala nos pés da assistência buscando uma brecha para fugir da tempestade.

Era peruca caindo e batom se abrindo, descalças e descabeladas, vestidos

rasgados, intimidades publicadas, quando sobrou o puxa-cabelo e o arranha-cara. O ajuntamento de curiosos entupiu a entrada do prédio e congestionou o trânsito; as pessoas se erguiam na ponta dos pés para poder ver melhor. Formaram-se duas

torcidas, fanáticas e delirantes. Um casal de guardas-civis chegou em silêncio e ficou observando com olhos divertidos, sem coragem para interferir (literalmente...), torcendo, eles também, um para cada combatente.

As duas gladiadoras já esmoreciam no

momento que o Ernesto, suado e ofegante, venceu o cerco da multidão a colovelaços. Maldição: marcara o mesmo dia para as duas. Tentou diplomacia:

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-Calma! Que-que-é-isso? Vamos conversar...

As madames se olharam e, juntas, olharam para o Ernesto... demoradamente, como a pensar... Não deu outra coisa; o moço apanhou mais que bife de segunda.

Posteriormente, para felicidade geral, tudo voltou ao normal.

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LOBISOMEM

Gaudêncio vivia ali, talvez um pouco

mais além, mas não chegava a ser distante. Muitos o conheceram; alguns chegaram mesmo a visitá-lo. Tinha hábitos esquisitos e muitas manias e superstições.

Era realmente um enigma. Uns diziam que era bonito, outros diziam que era

horrível. De retrato falado, então... nem se fale. Para mim que vi sua fotografia uma única vez, achei-o muito comum, sem nada de especial, sem mesmo as feições de louco que lhe atribuíam.

Levava uma vida estranha ou, pelo

menos, reservada. Tinha filhos e mulher, os quais sumiram há muito tempo e deles não mais se soube. Tinha algumas vacas e um cavalo branco pintado de sarna. Muitas galinhas, que eram seu orgulho e com

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elas passava boa parte do tempo. Não saía de casa e não entrava em igreja. Presunçoso, se considerava superior e gostava de criticar os vizinhos, mesmo sem conhecê-los.

Tonico Branco foi seu compadre, mas se arrependeu e se afastou. Antipatizou

com refeição dele. Encontrou Gaudêncio a comer formigas, num ritual muito semelhante a um garoto que enfia o dedo num bolo e depois lambe a guloseima. Ele estava sentado sobre uma pedra, em frente a um formigueiro, dessa formiga preta,

carnívora; enfiava o dedo na casa dos insetos e, quando o dedo estivesse carregado como um enxame, retirava o „espeto‟ e lambia a refeição.

Despertou medo, curiosidade e, n‟algumas solteironas, excitação, pois elas ficaram a imaginar algum outro

dedo coberto de formigas picando até inchar. Não foi o caso do Tonico, que passou semana e meia a vomitar e a suar pesadelos. Se bem que o Sérgio Bermudes tenha pensado seriamente

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em usar o humano tamanduá no combate à saúva.

Outra mania do Gaudêncio era perambular pelo mato. Saia sem avisar e chegava a vagar por dois dias. Foi numa dessas peregrinações que assustou a Maroca Prates. A velhota

estava à cata de casca de ipê-roxo, na esperança de afastar um reumatismo crônico. Havia arrastado as pernas um bom par de horas pelos terrenos do Joca Freire, onde diziam existir um bosque dessas plantas milagrosas. De quando em quando, endireitava a

corcunda para analisar as copadas das árvores, porém só via caneleiras e branquilhos. Já pensava que poderia ser difícil encontrar o caminho de volta, mas qual o perigo? A única coisa que poderia perder era a virgindade e essa ficou esquecida num trem noturno,

ainda nos tempos de menina.

De repente, ouviu o estalido de galhos e gravetos sendo partidos. Maroca jurou não sentir medo, porém a visão da criatura que apareceu à sua frente superava todo o estoque de coragem

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armazenado durante quase um século. Tentou gritar... a garganta não obedeceu; tentou correr... e conseguiu correr. Em instantes, chegou em casa, seguida de perto pelo „monstro‟, que pedia tivesse calma, que não queria fazer nenhum mal. Afinal, estava

apenas passeando. Maroca passou fácil dos cem anos e nunca mais sofreu de reumatismo.

Foi nessa época que Tião Praxedes, vizinho de Gaudêncio, perdeu o sono. Toda noite, os cachorros latiam, ganiam e choravam. Tião levantava do

aconchego e orvalhava as ceroulas no capinzeiro, inutilmente. Chegou a jurar que era visagem, mula-sem-cabeça, saci, curupira ou outra entidade qualquer. Dormira uma vez com uma comadre e isso pesava no seu purgatório: sabia que desse prazer só

pode nascer boitatá.

Numa sexta-feira de lua cheia, decidiu que seria a última tentativa de quebrar o mistério. Deitou-se sem tirar nem mesmo as botas, deixando a foice ao alcance da mão e dormindo com um

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olho só. Na hora de sempre, a cachorrada latiu e, num salto, a arma estava na mão. Saiu rapidamente pela porta entreaberta, sem deixar, no entanto, de andar atento e de agir com cautela. Notou que a coisa estava no galinheiro e pra lá andou, na ponta dos

pés.

Ao abrir a porta, quase não pode acreditar no que via... Bem debaixo do poleiro das galinhas, um cachorrão ou um lobo talvez, enfim, um bicho grande lambia as titicas pretas e brancas pelo chão.

Praxedes ficou com nojo e isso virou coragem. Avançou mirando o animal bem no meio e baixou tamanha foiçada que quase divide o monstro em dois. Mesmo assim, o bicho conseguiu fugir.

Surpresa mesmo foi, no dia seguinte,

quando escutou a conversa da sua com a mulher do Gaudêncio, numa visita de pedir ajuda.

-Puis onte, o Gaudêncio saiu dizendo que ia no vizinho, negocia um gadinho. Vortô tarde e cum baita corte nas

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cadera. Diz que num foi briga, nem guampaço de vaca. Tá calado e num qué contá o que assucede...

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FUTEBOL AMADOR

Aos domingos sem chuva, um time de

futebol, desses anônimos e sem uniforme nem cores; sem distintivo, sede ou finalidade (exemplo do mais autêntico futebol amador brasileiro), alugava um ônibus, nem tão confortável nem tão caro, e ia jogar nas cidades ou nas aldeias, nas

preliminares, nos torneios e nos cafundós. Quase sempre, os times adversários eram identificados em campo por „os com camisa‟ ou „os sem camisa‟.

Paupérrimo, mas mesmo assim tinha um “dono” que cutucava umas e

outras; geralmente transladado sem muitas condições de equilíbrio... Porém, respeitado, pois era o dono da oficina mecânica, do posto de gasolina e das camisetas (nove azuis e duas verdes), de meia dúzia de pares de meias (de

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Futebol Amador

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cores variadas...), da bola e da respectiva bomba pneumática. Ah! E de uma imensa paixão por futebol.

Num desses domingos ensolarados, embarcamos para um lugar qualquer, sem a devida sorte. Antes mesmo de a delegação sair, percebemos que o óleo

diesel vazava da bomba injetora do motor do ônibus, num esguicho forte e dourado. (O preço do petróleo, naquele tempo, permitia que o vazamento fosse bonito...) Como o time era de um mecânico, defeito em Mercedes Bens não foi problema.

Após duas horas de consertos e testes, iniciamos a epopeia. Éramos oito e mais um piá, lavador de peças na oficina. O jeito foi passar pela casa da namorada de um, no bar de outro, na casa do primo deste e na casa do vizinho daquele... Conseguimos ajuntar

catorze „atletas‟. Razoável. Partimos. Viagem normal, alegre.

Quando passamos um pontilhão, a estrada dobrava numa leve curva para a direita, cortando campos baixos e alagados.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Futebol Amador

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-É aí, pessoal!

Não se via „estádio‟; era um potreiro comum... quer dizer, um potreiro com duas traves se olhando de canto, dado não estarem paralelas e nem frente a frente. Dos „donos da casa‟... nem sinal. Porém, não demorou surgir da

capoeira, um, dois, ... enfim, muitos. Pito apagado pendendo dos beiços, olhar ladino, mudos, mãos nos bolsos furados.

-Cadê a turma?

-Tão poraí...

Logo mais, o lugar foi enfeitado com cervejas e moças.

-Sabe, o outro time não veio... Vocês não querem fazer também a preliminar?

Realmente. Sobre um tronco caído estavam expostas duas minúsculas taças com laços de fitinhas coloridas nas asas. Alguém comentou:

-Seria mais vantajoso disputar um copo sujo de cerveja!

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Fizemos uma reunião técnica e democrática: dez centímetros de lama por sessenta metros de campo, divididos pelo tamanho da taça...

-Turma, vamos topar a dificuldade?

E topamos. Ganhamos a partida

preliminar por 5 gols a 2. No time não sei de onde que enfrentamos, dois calçavam chuteiras. Ao final, de nós catorze, onze estavam embarrados e exaustos. Partimos para o segundo jogo e, como o dono do time só escalava o jogador e não a posição,

surgiram cinco centroavantes e cinco zagueiros-centrais. Nova reunião e uma escalação em que oito jogaram sob protesto.

Como faltava um par de chuteiras, o ponteiro direito usou a chuteira esquerda e o ponteiro esquerdo usou a

chuteira direita, para que ambos conseguissem firmar o pé de apoio, que o barro era liso.

Começou o jogo. Os homens lutavam pela taça (a maiorzinha delas...) como se fosse a Copa do Mundo. Nos

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defendíamos como dava. Estava em campo um meu irmão, muito disposto, que mandava a bola pro mato de bate-pronto.. Fomos suportando.

Lá pelas tantas, um gordo, se não me engano o motorista do carro-tanque, bateu uma falta e, apesar da

ingenuidade da cobrança, a bola entrou. Como não tinha rede, ainda hoje desconfio muito que a bola tenha passado por baixo do travessão...

E o jogo se arrastava... A dado momento, jogadores de ambos os

times, exaustos do barro preto e do capinzeiro alto, cercaram o juiz para reclamar do tempo que não passava. Ele muito simplesmente disse jamais ter apitado uma partida de futebol e que, apesar de terem lhe entregado um relógio, não sabia ler as horas e nem a que horas terminar o jogo.

De comum acordo, encerramos o primeiro tempo. O céu já pensava anoitecer. Bebemos um gole de cerveja (que, mesmo quente, era a melhor do mundo), ao lado do „dono do time‟ e do

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motorista, nessas alturas, ambos mais pra lá do que pra cá.

Ao reiniciar a peleja. Como capitão do time e entendedor de horas, mostrei ao juiz a hora de terminar o jogo. Estávamos ganhando, anoitecia e o motorista do ônibus estava

completamente embriagado. Por tudo isso, marquei o prazo de dez minutos para o segundo tempo. Mal recomeçou, num bate-rebate, a bola entrou no nosso gol, passou pela rede invisível e se escondeu no capinzeiro. O Mauro correu feito doido, buscou a bola e a

colocou para cobrança do tiro-de-meta. E a gente se colocou como se de fato fosse tiro-de-meta, lembrando que não tinha pequena área e nem marcação de laterais do campo.

O juiz veio perguntar se não tinha sido gol e nós nos escandalizamos... onde já

se viu? A bola passou longe... E eles deixaram de comemorar e disseram que foi, pra nós que dizíamos que não foi, e a discussão era calma e confusa. Tirei o juiz do rolo e expliquei que a bola passou por fora da meta e ele

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confirmou que „viu‟ a bola ir para fora do campo e que era mesmo tiro-de-meta.

Logo em seguida, arbitro terminou o jogo e eles não aceitaram:

-Mas como? Recém começou o segundo

tempo!

-Eu sou o juiz e pronto. Tá‟qui no relógio: fim de jogo. Outra vez não me coloquem de juiz que eu não sou de voltar atrás.

Pegamos as duas taças e iniciamos o retorno pra casa, por aquelas sinuosos

estradas no meio do mato. Não demorou e um barulho de ferros se fez ouvir.

-Seo motorista, esse barulho é de pneu furado?

Silêncio. A viagem continuou. Mais tarde, repetimos a pergunta e ele, com os olhos afogados em cerveja, reconheceu:

-Acho que tá furado, mas não tem estepe...

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Aí furou o companheiro do furado e ficamos no meio da estrada, escura e fria.

Após um breve período de prostração, alguns se exaltaram:

-Diabo! Amanhã tenho que trabalhar

cedo; isso é palhaçada!

O „dono do time‟ e o motorista dormiam a sono solto. Foram acordados aos berros. Sugerimos a eles que tirássemos um pneu da direita e colocássemos na esquerda...

-Não dá; não tem macaco...

Fomos pro mato e encontramos um grosso tronco de árvore e calçamos e levantamos o ônibus e acordamos novamente o motorista.

-O carro tá suspenso... é só trocar o pneu.

-Não dá; não tem chave de roda...

Aí a revolta foi grande. Alguns já começávamos a desmontar o ônibus e outros já começavam a retornar a pé, quando, em sentido contrário, apareceu um caminhão. Então, o motorista do

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ônibus levantou a cabeça do volante e sentenciou:

-Só tava esperando esse caminhão...

Aí usamos o macaco-troco e as ferramentas emprestadas; trocamos as rodas, voltamos felizes e fomos

comemorar.

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FUTEBOL COM CHUVA

D‟outra feita, participamos de uma

„amistoso‟, em algum lugar, pros lados de Major Vieira. Amistoso é modo de falar, porque, nos cafundós, qualquer jogo é uma guerra. Possivelmente, seja – de fato – o futebol um sucessor da guerra. Pois, dizem que, no começo, a bola era nada mais nada menos que a

cabeça de um derrotado.

Bem, esse era o futebol da Idade Média; agora, se chutar a cabeça de alguém, mesmo que o jogador consiga chutar a dele mesmo, o juiz proíbe de continuar jogando. Melhor esquecer essas delongas...

Na década de 1970, foi inaugurada a fábrica da Rigesa, em Três Barras, e ela contratou os quase famosos ônibus da empresa Nevada, de Lages, para transportar seus operários. Tinha os „Nevada‟ e os „Nevadinha‟, que eram os

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micro-ônibus. Todos com sistema de aquecimento interno.

Era inverno, época do ano que os índios chamavam de „lua em que as folhas caem‟, e o frio estava de assustar. Por isso, para nossas excursões futebolísticas, trocamos o caminhão

pelo „Nevadinha‟, tornando a viagem mais atraente que o futebol. E bem mais cara, também.

Muitos dos „craques‟ acabaram excluídos da equipe pelo critério financeiro; só embarcava quem tivesse

dinheiro para a passagem. E viajávamos sentados em bancos macios, respirando ar aquecido e, quase sempre, chegávamos. Se não chovesse, se não furasse pneu, se ...

Naquele dia, a viagem de ida foi tranqüila e chegamos bem

descansados, em condições de render bem mais em campo. Ganhamos o sorteio e o capitão escolheu a bola: queira sair jogando. O craque do time deu leve toque na bola, para que ela saísse do buraco que assinalava o centro do campo, e o centroavante

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recuou a pelota para o lateral-direito. Esse sentiu-se ameaçado pelo ponta-esquerda da equipe da casa, que vinha feito um vendaval, e não vacilou: encheu o pé, com toda raiva. A bola subiu, subiu, ... e caiu entre o centroavante e o goleiro adversário,

que corriam um para o outro... olhando pra cima. E trombaram no limite da grande-área, enquanto a bola, envergonhada dos dois, passou pela janela da trave e ganhou o samambaial. Três toques e o gol. Pena o jogo não estar entre as treze apostas

da Loteria Esportiva, pois teríamos ganhado o prêmio de „gol mais rápido do teste‟.

Gol foi, caso contrário seria pênalti, com o que eles não concordaram. Aliás, não concordaram nem com o gol nem com o pênalti. Foi aquele bate-boca. Só

no começo... depois, o „galo‟, um capiau que jogava por empréstimo para a equipe local, ficou valente, autorizado pela cachaça e pela cerveja, partiu pra briga. Apanhamos um pouco... calamos muito mais.

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No segundo tempo, instalou-se um problema: a bola parou em cima de uma árvore e, quando um jogador deles subiu e tocou na bola, o juiz deu falta, pois a galhada que prendeu a bola estava sobre o campo de jogo. Depois de muita discussão, eles

concordaram com a falta, desde que fosse cobrada do ponto em que a bola estava quando foi tocada. Nova discussão e o juiz converteu a falta em ... bola ao alto. Pois, foi lá no alto que a falta aconteceu. Quando o fato se repetiu, ninguém quis trepar na árvore

e, enquanto alguns jogavam pedras e paus na bola inocente, o restante da trupe aguardava de pé-armado, pois, quando caísse, a bola estaria em jogo.

Ao menos, nessa circunstância, era possível ver a bola e não era como em outro „estádio‟ das redondezas, em que

havia uma depressão numa das laterais, de tal amplitude que nela sumiam bola e os que a disputavam, de forma que o juiz corriam para a beira da cratera, para decidir os lances, não raro trágicos.

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Pior ainda, em outro mais, no qual de uma trave não se avistava a outra, pois o campo de futebol foi construído sobre uma lomba; a linha central, que dividia a duas partes do campo, estava três metros mais alta que as extremidades. Por isso, os goleiros só viam as traves

adversárias na troca de campo. Só troca de lado, mesmo, que o intervalo de jogo não era respeitado. Quando um zagueiro dava balão, saia correndo para ver com quem a bola ficava. Muita gente acabava se enganando, ao julgar que ele queria alcançar a bola que ele

mesmo tinha chutado.

Também pitorescas eram as atividades da torcida, ao lado do campo e pelos arrabaldes: mocinhas, ingenuamente pintadas, executavam danças rituais de acasalamento, sonhando com a vida urbana. É muito romântico o

acasalamento bucólico, no entanto, desconheciam as precariedades salariais de seus „príncipes encantados‟. Além do que a chuva afasta a mais fanática torcida, inclusive as candidatas a madame.

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Pois é: a chuva começou de mansinho e foi tomando conta do jogo. No „estádio‟, só restavam a bola, o juiz e os jogadores. E a chuva, é claro. Passou a ser um jogo na lama. Obviamente, nada mais aconteceu e o gol relâmpago garantiu nossa vitória. Já era algo

diferente.

Ou não? Bastou o „Nevadinha‟ tentar se manter sobre a estrada, que logo descobrimos que havia outras diferenças. Barro, valetas e um difícil retorno. Inesquecível. Quilômetros a pé, sob chuva fria e constante, pois a

„condução‟ ficou mesmo foi na valeta da estrada apenas carroçável.

Formou-se uma lamentosa procissão noturna. Longa, irregular, dispersa e sem velas. Em pequenos grupos, uns comendo resmungos, outros gozando lentidões. Surgiram calos e câimbras.

Completamente molhados, enfrentamos as primeiras luzes, refratadas através da grade pluvial.

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O CORTE DA LINHA

Poucas pessoas tiveram a felicidade de

nascer e de crescer nas margens de uma estrada de ferro. Fui uma delas. O apito e a cadência do trem acompanharam a minha infância e a minha adolescência. Além de passarem diariamente, me levaram com frequência para Caçador e Videira e,

mais tarde, para longe, onde estudei e construí minha vida profissional. Eram longas viagens, num duro sacolejo, pior que trote de redomão, pois os bancos eram de ripas de madeira.

Quantas aventuras vivemos em torno da estrada de ferro! Apostávamos o

equilíbrio sobre os trilhos, andando das mais diversas maneiras e, com os anos, nos tornamos hábeis nessa arte. Colocávamos bolinhas de gude nas emendas dos trilhos, para ver o „tiro‟ que a roda produzia ao prensar a

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esfera. Procurávamos as marcas de freadas nas curvas, acariciando admirados o local em que a roda rasgou o trilho.

Da Maria-fumaça à locomotiva a diesel, tudo foi curiosidade e fantasia, até mesmo a morte de meu avô materno (o

Nono Luiz Bortolini), triturado pelas rodas, cortado ao meio. Os acidentes, as batidas, os descarrilamentos, e os trens caídos no Rio do Peixe ou nos seus afluentes eram notícias quentes e muito comentadas.

Por isso, mesmo que a estação não ficasse no caminho, passávamos por lá para saber se o Misto estava no horário, se estava atrasado ou se traria novidades, como acidentes ferroviários. Aí, se o agente desse a mínima pista, em minutos o desastre estaria divulgado e a plataforma da estação

apinhada de curiosos, atrapalhando até o funcionário que, com um ar de muita importância, tentava aumentar o atraso ou o aviso, naquele quadro-negro visto, revisto e analisado, ao menos uma vez por semana. E era uma decepção saber

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que o problema foi resolvido e ver passar por ali o comboio sinistrado, com bem menos estragos do que esperávamos.

As plataformas dos vagões de passageiros, além de escada para entrar e sair, serviam de palco para

malabarismos e para provas de coragem, como andar pendurados ou passar de um vagão para o outro sem usar as passarelas.

Quando uma pessoa caia do trem, então, a notícia alarmava e todos

corriam para saber se morreu ou por que não morreu. E ninguém se contentava com notícia ouvida na rua; era preciso ir até a estação e confirmar pessoalmente cada tragédia.

Bom mesmo era quando o trem atropelava uma carroça ou caminhão: o

fato causava frenesi. Porém, esses fatos „melhores‟ eram raros e nos contentávamos com alguma vaca atropelada, como a da Dona Gelta, que enroscou a corda no dormente e berrou desesperada, até o baque final. Aqueles berros entravam na alma da gente e

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emergiam em pesadelos de espantar o sono. Ou o cavalo de um homem, que meio bêbado, quis mostrar coragem e fez o animal corcovear diante da locomotiva, como em filmes americanos, até levarem o tranco e aí adeus.

Quando algum vagão ficava parado na estação para carga ou descarga de mercadorias, era uma luta do guarda-chaves para manter afastada a piazada, que teimava em trepar e mexer.

Próxima à estação, estava, toda preta,

a caixa d‟água, onde a Maria-fumaça matava a sede. O trem parava ao lado e os funcionários, cobertos de fuligem, abriam a tampa do tanque, nele enfiavam a manga de lona e puxavam a corrente que abria a válvula, soltando a água. Pois, nas horas em que a caixa d‟água estivesse completamente

sozinha e sem vigia, vez por outra, um guri passava por ali e soltava toda a água da caixa, causando transtorno para os maquinistas que precisassem abastecer as locomotivas. Soltava a água e saia correndo para se esconder,

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mesmo que ninguém estivesse vendo ou ficasse sabendo.

Ver o Misto ou o Expresso era programa mais importante que a missa, pois ao menos, no trem as caras eram mais variadas e não sempre as mesmas como nas missas. Misto era uma

composição mista: com vagões de carga e vagões de passageiros; um de primeira classe, com bancos estofados, e um ou dois de segunda classe, com bancos de ripas nuas. O Expresso ou Direto era um trem só de passageiros, além do que tinha um vagão-

restaurante e um ou dois vagões-dormitório. Viajar de primeira classe era privilégio dos ricos; no dormitório, então, nem se fale. Antigamente, o Misto também arrastava um vagão-restaurante e, com a volta da Maria-fumaça para turismo nostálgico, esse

componente passou a ser essencial.

Vez por outra, passava um carregamento de animais, em vagões especiais para esse transporte; eram bois, vacas, cavalos, éguas, ovelhas, carneiros, cordeiros, ... raramente

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porcos; ninguém mereceria respirar fedor por uma viagem inteira. Havia outras geringonças que nos animavam: automóveis embarcados, circos, turbinas, ... Os mais velhos falam orgulhosos de terem visto passar as tropas militares gaúchas, em trens

superlotados, indo para São Paulo, em defesa do Getúlio Vargas.

Um desperdício era os mistos se encontrarem ali, pois se perdia metade do prazer, tendo dois trens e um só tempo para ver „tantas novidades‟; mal se conseguia passar correndo por todos

os vagões de passageiros. Algumas pessoas nem iam à estação: ficavam em casa e, da varanda, contavam o número de vagões, enquanto a piazada acenava e gritava, quase sempre inutilmente. Aliás, saber quantos vagões tinha cada comboio era –

simultaneamente – informação importante e... perfeitamente inútil.

O trem também foi o mais importante ponto de cultura; elo de ligação da população local com a produção artística das metrópoles. A banca de

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revistas que circulavam com os trens era a única oportunidade de comprar jornais, gibis, romances (principalmente os policiais...), fotonovelas e outras revistas.

Fora da área „urbana‟, o trem era igualmente um grande atrativo. Quem

morava ao lado da estrada de ferro tinha suas terras valorizadas, pois usufruía de um programa diário de eventos: a passagem dos trens. Nessas horas, as mulheres esqueciam as panelas no fogo, a roupa no tanque, o bebê no berço, a costura na máquina,

... e corriam „ver o trem‟. Os homens – igualmente – paravam o serviço, seja ele lá o que fosse, e se deliciavam com aquela visão do „emissário do progresso‟, ícone da civilização. Na roça, a enxada parava em pé, suportando os braços cruzados,

enquanto o colono enxugava o suor e, espremendo os olhos, procurava, nas janelas dos vagões de segunda classe, a cara de alguma pessoa conhecida.

Foram e ainda estão sendo muitas as histórias ferroviárias. Todas muito

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cativantes. Porém, a mais pitoresca daqueles tempos envolveu os gêmeos, um casal, filhos de pai alfaiate e mãe cozinheira. Aliás: os pais eram excelentes profissionais. Formavam a dupla final de uma prole abundante e gozavam da benevolência da família,

por serem caçulas em dose dupla. Viviam aprontando, sob os olhares complacentes dos familiares.

Os turmeiros da estrada de ferro é que sofriam com eles. Por influência de não-sei-quem, plantavam arroz, milho, batata, aipim e outros cultivares nos

„vinte-cinco‟ (os vinte e cinco metros da faixa de terra pertencentes à RFFSA). Com a mãe na dianteira, o trabalho rendia, mas, se ela estivesse atendendo festas, casamentos ou encomendas de bolos, os gêmeos pouco faziam. Mais brincavam, dando descanso às

enxadas.

Quem não conheceu o prazer de escorregar pelos cortes da linha? Nem sabe o que é que é? Muito simples. Os trilhos da estrada de ferro devem estar mais ou menos no nível, mesmo que o

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terreno circundante seja acidentado. Por isso, no Vale do rio do Peixe, que é uma garganta, a estrada é uma sequência de escavações nas montanhas, com aterros intermediários, formando taludes acentuados. A gente deslizava encosta

abaixo, sentado em cascas de coqueiros ou um maço de capim resistente. Assim, eram testados os limites da coragem e do prazer.

Havia, contudo, um problema. Junto com os „atletas‟, descia muita terra, que ia trancar as valetas e bueiros da

via férrea. Um dos trabalhos dos turmeiros era garantir passagem para a água, evitando assim danos maiores ao leito da ferrovia. Quando a terra deslizava de encontro aos trilhos, eles carregavam esse entulho e levavam até o aterro mais próximo, onde era

descarregado. Isso dava muito trabalho, que eles executavam com certa mágoa.

A gente escorregava vez por outra, mas os gêmeos, era todo dia. Bastava não estar chovendo e a mãe estar longe,

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que eles desciam as encostas dos cortes, entulhando de terra e cisco as valas que margeiam a estrada. Já se iam anos de raiva contida, de terra carregada e de tantos artifícios, que iam desde simples aviso até arame farpado, que pouco assustava.

Quando chovia, os turmeiros ficavam nos galpões da Turma, afiando ferramentas ou apontando os pregos de madeira, geralmente imbuia, usados para firmar os grampos e parafusos nos dormentes mais velhos ou nos quais os buracos tinham crescido. Foi aí que o

João Maria olhou bem pro feitor, feito susto, e disse:

-Seo Almeida, que tal a gente fincar uma dúzia desses cravos bem no meio daquelas rampas que os piás usam para escorregar?

-Qual nada, João Maria. Já me conformei; é minha sina. Um dia eles casam, vão embora e o sacrifício acaba.

-Que nada! Eu curo é já.

Naqueles dias de primavera, os gêmeos tinham uns treze anos e deveriam

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carpir o mato que crescia em meio a um mandiocal de ano, bem no alto do corte. A pista de escorregar já estava bem marcada. Numa manhã, o vagonete saiu bem cedo e fez uma parada ali. O João Maria fincou os cravos, distribuídos pelo meio da

rampa, deixando centímetro e meio pra fora. Era uma descida bem inclinada, com uns sete ou oito metros de comprimento. Quem, por ela, começasse escorregar só poderia parar ao chegar aos trilhos.

O Zezinando cobriu tudo com terra da

mesma cor e para disfarçar, jogou no trilho uns ramos de nhapindá, para que os dois pensassem que fosse aquela toda a dificuldade. Seo Almeida ria um riso manso, mostrando os dois dentes de ouro, abrigados abaixo do bigode clássico. Tudo pronto, soltou as mãos

que se entrelaçavam nas costas, postura legitima de um bom feitor, e foram trabalhar num trecho adiante.

Durante todo o dia, ficaram imaginando os possíveis resultados da inédita lição. Qual seria o azarado a abrir caminho?

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Corte na Linha

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Ele ou ela? O primeiro teria tempo de avisar o segundo? Ou desceriam na sequência? Como ficariam os fundilhos? Qual o tamanho do estrago? E se os ferimentos fossem graves? Já sentiam remorso. Antes que isso, preferiam, por toda a vida, tirar terra da valeta.

Coitada da mãe deles! Sofreria mais que os filhos. E, quem não fez alguma molecagem na juventude?

Demorou, mas a tarde veio. Chegou a hora também de comprovar a armadilha. O vagonete parou, sem que os homens falassem no assunto. No

entanto, todos olharam para cima e viram os cravos vestidos com pedaços de casimira e, mais abaixo, com pedaços de seda com florzinhas cor-de-rosa. Sinal claro que o casal passara por ali.

Eram sete homens; cada qual tirou a

sua conclusão, em silêncio. Assim chegaram, assim saíram. Só foram falar no caso uns três dias mais tarde, quando souberam que, além dos fundilhos da roupa, só foram arranhões

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Corte na Linha

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mais ou menos profundos, sem fraturas ou extirpações.

Nunca mais encontraram pistas de escorregar pelas encostas dos cortes da linha férrea.

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MORTE CIRÚRGICA

O Amélio andava doente, mas só iria ao

médico quando a morte tocasse a campainha. Remediava, remediava, ... sem tomar remédios. Quando as forças o abandonaram, foi carregado ao hospital, onde apenas carimbaram seu passaporte:

-Levem pra frente, que a coisa tá preta.

Busquem recurso.

Na capital estadual, foi internado em um grande hospital, como indigente incógnito. Os exames médicos e laboratoriais atestaram a gravidade da situação e ele foi colocado na fila para a mesa cirúrgica, que, para seu azar,

estava congestionada.

A família foi avisada pelo motorista da ambulância e desandou a chorar por três dias, findos os quais, elegeram a mãe e o cunhado do enfermo para visitá-lo, financiados pela caridade dos

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vizinhos. Encheram uma sacola com bolachas caseiras e broas. Também, compraram chips de queijo e uma barra de chocolate Prestígio. Essas eram as guloseimas preferidas do Amélio e poderiam ter melhor eficácia sobre ele do que injeções.

Saíram de madrugada, com os pés gelados e os olhos colados de sono. Os sapatos apertavam, a estação rodoviária estava tão loooonnnnnnge, o ônibus atrasou, não conseguiram lugar para sentar e viajaram pendurados nas barras do teto. Ô viagem comprida,

com paradas intermitentes para aquele sobe-e-desce que não acabava mais. Chegaram quando o calor já começava a cozinhar os passageiros. Estavam exaustos e ainda tinham que andar até o hospital, que era num fim-de-mundo.

Depois de andar por umas duas horas,

feito uns perdidos, encontraram o hospital, a portaria, os corredores, as escadas e a enfermaria. Indagaram cadê o Amélio, a um enfermo deitado em uma das camas, o qual muito simplesmente estranhou não saberem:

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-Aquele polaco que foi operado? Olha, foi levado ontem e não trouxeram mais de volta. Dizem por aí que um homem morreu na operação... Quem sabe foi ele...

Era desgraça em enxurrada. A mãe gritava de dor, o cunhado apalermou.

Mas, como? O Amélio nem tava tão mal assim... Logo ele que nem ia ao médico.

Socorre aqui, conforta ali... amainou o choro.

-Do quê mesmo operaram ele?

-Acho que de tudo... pois ele tava bem ruinzinho...

-Então foi ele mesmo que se finou... e nem sabemos do quê...

-Melhor nem perguntar, para não ter que pagar o prejuízo.

-Sim. É melhor... Mas, e como tirar ele daqui sem falar com o doutor?

-Bem... O homem que morreu na operação já saiu...

-Já saiu? Mas, ele não estava morto?

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Morte Cirúrgica

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-Claro, claro. Ele não saiu sozinho; levaram ele.

-Levaram? Pra onde?

-Tá sendo velado na capela do Cemitério Municipal.

Nem escutaram as explicações de como

ir, de onde era, nem nada. Saíram rumo ao cemitério, a pé, que dinheiro não tinham. Que canseira, bolhas nos pés, tristeza na alma e caminhar, caminhar, caminhar, ... As bolachas debulharam de tanto bater na sacola, o chocolate derreteu em cima dos

documentos, bem no fundo da bolsa. No fim das energias, conseguiram chegar.

-Cadê o Amélio?

-Que Amélio?

-O meu cunhado.

-Ah! O seu cunhado. Sei lá!

-Ele morreu.

-Então, pode ser um desses aí...

Olharam pra cara dos quatro defuntos em seus caixões floridos e não eram o

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Amélio. Perguntaram para uma das viúvas:

-A senhora, por acaso, não viu um morto chegar de já hoje?

-Que desgraceira, vejam ele mortinho da silva... que tristeza!

-Não esse aí. O Amélio.

-Não. O nome dele é Fernando; é meu marido.

Tempo perdido: a viúva não queria saber de outros mortos. Mas, um menino tímido, que se encolhia na

vergonha, apontou ladeira acima:

-Há pouco, enterraram um homem ali em cima. Vai ver, era ele.

Foram até a sepultura, choraram sobre a terra fresca, rezaram, lamentaram, assoaram os narizes nas mangas e choram mais um pouco. Pobre Amélio!

Gastado todo o choro, quietaram em pé, sem decisão. Ficaram assim até cansar. Não havia o que fazer. Como diz a Bíblia: ‟Estava tudo consumado.‟

Então, a mãe quis saber do que tinha morrido o filho.

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-Só o médico é que pode saber, disse o cunhado.

-Iche! Precisamos voltar ao hospital pra pegar os documentos dele e o atestado de óbito, que é pra mostrar pra mulher e pros filho.

E, desfazendo o caminho, voltaram ao hospital. Perguntaram, perguntaram, perguntaram, perguntaram e perguntaram. Ninguém sabia que o Amélio tinha morrido.

-Mas então? Ele não tá até enterrado lá no cemitério?

-É difici de tá... Pois, daqui, ele não saiu.

Tava aqui, foi pra lá, o Dr. Teixeira disse, a enfermeira Odete sabe, ...

Finalmente, alguém sabia alguma coisa:

-Ele foi levado para a outra enfermaria.

Se arrastaram pra lá.

Não há de ver que o Amélio tava lá, vivinho da silva, rindo, satisfeito da vida; nem percebeu o susto dos

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parentes, os olhos vermelhos de tanto chorar.

-Fui operado ontem, nem senti dor. Me trocaram de quarto, já tô comendo... Tá tudo muito bom!

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CAIXA NEGRA

Acordei uma segunda vez. Ainda era

noite. Escuro como o breu! Sem sono e cansado de ficar na mesma posição, pensei em me virar de lado. Não deu... a cama era muito estreita.

-Cama estreita? E com flores?

Cama estreita, rendas, flores, gravata,

... Com mil demônios: eu estava morto. Quer dizer, tinha estado morto. Apalpei o forro de seda, não encontrei maçaneta; empurrei a porta, não abria.

Acredito ter permanecido algum tempo sem acreditar, esperando que do sonho logo despertaria. E não era pesadelo;

eu estava preso em um caixão para defuntos, comprado por um amigo com pretensões a poeta, diretamente na Funerária Mão Amiga. O jeito era agir depressa e gastar pouco oxigênio e pensar que tudo desse certo.

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Sair de uma urna funerária é fácil, mas abrir o túmulo... Não, não é, porque o cimento ainda deve de estar mole. Bom! Depende do tempo que estou aqui. É. Vamos torcer que esteja mole. Deve ter sido o Borghetti... é o único pedreiro que faria uma dessas. Os

outros abrem o caixão e espiam se o morto está mesmo morto. Mas ele foi sempre assim. Deve a todo mundo e corre feito louco para arranjar amortização.

Se eu não tivesse ridicularizado a mulher naquela idéia de último beijo,

talvez ela tivesse sentido que meu cheiro era de vivo. Ou, talvez não... Quando a gente morre muda de cheiro? Agora é tarde e preciso abrir a tampa. Vejamos: deve de ter dois parafusos, um de cada lado, desses pequenos, com uma cruz de malta ou símbolos em

rococó. Nem sei por que parafusam a tampa se o defunto está morto mesmo...

Fiz força com os pés, mãos, joelhos e o resto também... Nada. Nem sinal. Deve ter uma dúzia daqueles parafusos. Que

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distração a minha! Não olhar quantos parafusos colocam nas tampas de caixão. Deixa-me ver: no da Lena, a tampa era preta, com uma cruz de pontas arredondadas... Sei lá? Não reparei nos parafusos. Do velho Nando, a tampa era envernizada... lembro

ainda que tinha alças enormes e o velho era raquítico e sumido. Diabo! Não lembro dos parafusos.

O melhor é virar o caixão de lado: abre mais fácil... O problema é que não vira. Se pudesse sair, eu virava o caixão e, depois, entrava outra vez, bem

direitinho. São Corcóvio, como saio dessa?

Se o caixão tivesse dessas janelinhas em que a viúva espia o nariz do morto, sem acordar a saudade do resto, mas meu caixão é de segunda; janela só de pau. Se tivesse papel e caneta, deixaria

um bilhete, pedindo que fizessem uma janelinha de abrir por dentro, com uma tramelinha. Assim, eu tiraria o braço esquerdo e desparafusaria o lado direito e vice-versa.

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O pior é que não lembro como morri. Não sinto nada e não me lembro de doença ou queda... Ontem, fui a Major Vieira e voltei. Quer dizer, lá não morri. Diabo! Como vou saber se foi ontem? Pode ter sido há um mês. Nos Estados Unidos, uma mulher viveu enterrada

quase um ano...

Caramba! Lá fora, o cimento deve estar seco. Se ao menos as flores não fossem de plástico, reconheceria o estado delas... Eu não apodreci, as flores de plástico não murcham... e agora Mario? Para piorar, começou uma coceira no

dedão do pé, impossível de alcançar nesse caixão estreito. Acho que vou gritar... Dizem que, nos primeiros dias, a viúva fica inconsolável... Quem sabe está rezando ali fora?

Sim! E onde estou enterrado? Se tivesse um mapa e uma bússola... é

escuro e não ia adiantar. Se pelo menos acendesse a luz, veria a horas. Que? Nem o relógio deixaram? Desse jeito, quem é que chega na hora certa lá em cima? Ou embaixo? Que

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Caixa Negra

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importância tem isso... preciso sair. Quem sabe, ir trabalhar.

Maldição! Não me lembro quando morri. Acho que eu fui dormir... O banho eu tomei, o sabonete era branco... acho que era branco. Se fui dormir após o banho, que pijama teria

vestido? Não lembro. Poxa, o Fernando ficou de escrever ao Martins Mendes... será que contou que eu morri? Devem ter posto um anúncio na rádio, mais ou menos assim: “A Funerária Mão Amiga comunica a morte eterna de Mario Tessari, outrossim, avisa que o féretro

sairá de Marcílio Dias para o cemitério mais próximo, lá pelo meio dia.” Provavelmente não. Devem ter me enterrado de noite, senão não seria tão escuro.

Esqueci de fazer um monte de coisas; ficou tudo errado. Nem disse ao Chico

para soltar as vacas e picar uns paus de lenha para a mulher cozinhar o feijão. Depois é aquela lamúria...

Estou concluindo que essa droga não abre e eu vou acabar morrendo outra vez. Bem que poderiam ter me

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Caixa Negra

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arrumado um caixão como o do Neco: mal saíram pra rua, despencou o fundo. Fundo? Por que não pensei antes, quem sabe? Ilusão. Não rebenta nem com reza. Decerto o Luis vai rezar dois pai-nossos, no terço de domingo, pela minha salvação.. Até o Frei Ladi, se der

tempo, dirá breves palavras para facilitar minha entrada triunfal no paraíso. Se rezar um pouco mais, é possível até que me arrumem uns dez anjos tocando trombone, vestidos de saiões cor-de-rosa, com renda branca pingando dos braços.

Não é muito animador morrer sem saber se é noite ou se é dia. Nem lenço me deram. Viajo para longe e para sempre, sem meu velho lenço. Com a breca! Não quero que pensem que ressuscitei ou me virei no caixão depois de morto. Sei de um monte de

comparações, exclamações de pena e escândalos, próprios para essas ocasiões.

Se tivesse alguma coisa para ler, ao menos o tempo passaria mais depressa.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Destino do Abençoado

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O DESTINO DO ABENÇOADO

-O Abençoado tinha mais é que morrer

mesmo; só assim a gente dorme sossegado.

-É! Mas a mulherada tá de luto fechado. É só falar no assunto que o choro aponta nos olhos delas.

Eu pouco conhecia o povo dali, por isso,

movido pela curiosidade, me meti na conversa.

-Que Abençoado? Por que Abençoado?

-Ah! Você não sabe? Era um cabra de sorte. Tinha a seus pés toda e qualquer mulher que desejasse. Foi assim desde menino. Tinha açúcar. Nem precisava ir

atrás, por que elas vinham em penca e ele aproveitava. Daí o apelido.

Foi o que me contaram.

Se por um lado era sorte, por outro era azar. Era um galã, mas não sossegava o pito, não criava raiz, não se

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estabelecia. Vivia de cá pra lá e aonde chegasse, a mulherada sai correndo atrás, se oferecendo.

Na época do acontecido, vivia ali no Camacã, tinha um trabalho fixo que rendia o-que-comer. Digo isso, porque bem antes foi dono de um bom pedaço

de chão e de uma ponta de gado. Poderia ter ficado rico, não fosse o peso da sina com que nasceu. A atração sobre as mulheres foi sua glória e sua desgraça. Delas, levava amor e dinheiro, esbanjados sem o mínimo zelo... O amor não recebia o valor que

merece; o dinheiro, em sua mão, evaporava.

De certa feita, foi até uma fazenda por motivo de comprar um cavalo pra montaria. O negócio foi sendo tecido com muita saliva, em conversa espichada, sem pressa. Ia tudo muito

normal, não fosse a mulher do fazendeiro aparecer na janela e bater os olhos nesse tal Abençoado. Pronto! Enrabichou. Deu de passar ali por frente, requebrando, não se contendo de vontades. Achou de servir um

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Destino do Abençoado

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cafezinho... Depois, voltou pra saber se não faltava nada; outra vez, pra perguntar uma pergunta que esqueceu ao chegar. Quando alembrou, retornou para perguntar, mas... ficou só na vontade...

Naquele dia, o garanhão fez que não

viu, até porque esse era um dos segredos de tamanho sucesso. O desprezo aumentava o interesse. Por outro lado, tinha orgulho de suas conquistas e delas fazia o maior alarde. A fama era ainda maior do que a sacanagem. Isso também tem o seu

atrativo: ser uma das conquistadas era motivo de vaidade.

Alguns dias depois, o Abençoado voltou à fazenda, propondo outros negócios, mil motivos e razões. Só que ali não conseguiu apagar o incêndio que acendeu. E essa não poderia ser a

primeira a arder até a morte. Não que fosse mulher bonita, nem mesmo mulher nova. Apenas não deveria ser a primeira a fugir da regra. Por isso, resolveu roubá-la. Assim, sem combinar nem onde nem quando. E ela

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Destino do Abençoado

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entendeu. Tanto entendeu que na noite em que ele assobiou lá da porteira, ela se levantou em silêncio, vestiu a melhor roupa e saiu na ponta dos pés. Abandonou o marido, os filhos, o conforto da casa, a segurança e o respeito de um casamento de tantos

anos. Nem pensou: deixou tudo para trás.

Fugiram pra longe, onde levaram uma vidinha humilde, sem regalias. No começo, sob forte vigilância, parecia que o vício tinha ficado no passado, porém, na primeira oportunidade,

voltou com força, devolvendo o homem à antiga orgia sexual.

Na fazenda, a balbúrdia e a fofoca foram amainando aos poucos. Todos voltavam à rotina cotidiana, menos o marido, que estava em frangalhos: descuidou do trabalho, não comia, não

se lavava, passava as noites resmungando, ... perdeu o interesse por tudo ao derredor. As crianças ficavam no abandono, sujas, famintas, esbodegadas. A casa está imunda, o gado não encontrava sal no cocho,

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Destino do Abençoado

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ninguém fechava a porteira, ... Era de cortar a alma.

Aí, os vizinhos resolveram ajudar. Pior do que a vergonha da traição era viver naquele fracasso total, com as crianças entregues à própria sorte. Se ficassem doentes, provavelmente morreriam

sem que o pai se importasse. De comum acordo, cruzaram fronteiras estaduais e sequestraram a mulher. Veio esperneando, mas veio. Não que estivesse „bem casada‟ por lá, mas resistia ao vexame de voltar sobre os próprios passos, vergonha de admitir a

desilusão e de engolir a humilhação assim diante de todos.

Porém, esse drama durou poucos dias e tudo voltou ao que era dantes. O acontecido parecia um pedaço de novela, visto na televisão e rapidamente esquecido.

Só que... o Abençoado veio atrás. Chegou quieto. Nos primeiros dias, amoitado e silencioso; depois, no de sempre. Mulheres há muitas, mas as outras não tinham sido arrancadas das mãos dele; cavalo roubado sempre faz

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Destino do Abençoado

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mais falta a quem o perdeu. Não que a mulher valesse a pena, mas ficou a mágoa, o orgulho ferido. Que que é isso? Nunca havia perdido umazinha sequer...

Apenas as coisas se acomodaram, o inveterado rufião começou a provocar o

fazendeiro, espalhando conversa má e prometendo vingança. Sem outro motivo, encilhava o cavalo e andava pelas estradas que dão na fazenda; ia e vinha sem destino. Algumas vezes, passava em frente da casa num galope louco, voltava a trote, empinava o

cavalo, fazia manobras ousadas. Repassava. Porém, a mulher ficava dentro de casa, sem manifestar interesse.

O fazendeiro tinha voltado a ser „homem macho‟ e só queria era matar o desafeto. A situação chegou àquele

ponto em que só a morte resolve. Seria um dos dois; era questão de ocasião, de pontaria. Na primeira oportunidade em que se batessem de frente, ao menos um morreria.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Destino do Abençoado

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E o povão excitado, aguardava o duelo, fazia apostas, previa o desfecho e vibrava ante a possibilidade de assistir a cena fatal. Toda a região vivia na expectativa.

Na manhã fatídica, debaixo de uma garoa miúda, o fazendeiro andava pela

cidade, pisando firme nas botas de cano alto. Entrava e saia dos estabelecimentos, cuidando de seus negócios. Numa dessas andanças, passava em frente a um bar quando viu o Abençoado aguardando vez no mictório, nos fundos do bar. Ao

perceber o perigo, a vítima ainda tentou fugir, se esconder atrás do muro. Não deu tempo. O primeiro tiro pegou no braço que defendia o rosto, outro na perna. Caiu... tentou se levantar... aí levou a bala derradeira.

Ficou horas ali caído diante do mictório.

O povo passava indiferente, como se apenas tivesse ocorrido um fato normal e rotineiro. Algo comum e esperado. Além do que o fazendeiro poderia retornar ao local para confirmar a morte...

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – O Destino do Abençoado

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O julgamento está marcado. Nos bares e barbearias, a conversa anda animada. O assunto atravessa os dias sem perder fôlego. Divide as opiniões: cada um tem a sua justiça. Até o gaiato que não esquece:

-Pobre Abençoado! Morreu de bexiga

cheia...

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Transportando Madeira

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TRANSPORTANDO MADEIRA

-Então, o Tacheki virou caminhoneiro?

-Quer dizer: caminhoneiro já era... transportando madeira daqui pra lá. Agora, inverteu. Traz madeiras de lá pra cá.

-Claro. Acabaram com as imbuias, com os pinheiros, com os palitos, com as

canelas, com os cedros, ...

-Aqui em frente, passavam muitos caminhões de reboque, carregados de toras ou carregados de tábuas. Nunca mais vi um caminhão de reboque.

-A madeira que andava nos reboques era comprida e firme. Esses tocos de

madeira mole viajam em carroceria fechada, senão só metade da carga chega ao destino.

-Acabaram os reboques ou acabou a madeira?

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Transportando Madeira

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-Antes, havia madeira pra vender pra Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, ... Agora, falta madeira até pra montar a armação de um telhado.

-É isso mesmo. As serrarias viraram madeireiras. Antes, serravam toras nativas e vendiam até pras estranjas;

agora, o jeito, é buscar madeira no Pará.

-O que facilita são os asfaltos que levam pro mato-grossão.

-É mas só até Cuiabá... dali pra diante, tem ainda muito pó.

-Lá só tem índio...

-Que nada. Tem mais gaúcho que gente. E tão derrubando tudo, até os governo local.

-Pra fazer dinheiro, vale qualquer esforço.

-Uma coisa é plantar árvores e explorar a madeira, reflorestamento; outra, é derrubar a mata nativa e plantar pasto.

-E acabar com tudo como fizeram por aqui.

-A Amazônia tá virando deserto.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Transportando Madeira

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-Pois é. A ganância mata muita terra. Tirar, tirar e tirar até acabar.

-Inda outro dia, o Tavico falava dos ervais plantados, que é o jeito responsável de se tratar a terra. A madeira também deveria ser assim. E não só para fabricar papel.

-É. Mas, pinus é madeira mole; dá só papel mesmo.

-Pode ser. Porém, um dia ainda a gente vai se contentar com pinus mesmo, pois as madeiras de verdade estão acabando.

-Quem sabe se aparece outra árvore de crescimento rápido que não seja tão mole... que sirva pra construir e pra fazer caixas? A gente não sabe, mas pode que alguém saiba.

-De um jeito ou de outro, a verdade é que os donos de serraria viraram atravessadores. Já não tendo toras pra serrar, acabam revendendo tábuas e caibros lá do Norte.

-E de madeira muito melhor, mais dura, mais resistente.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Transportando Madeira

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-E mais fedorenta, também. A diferença entre o perfume da resina de um pinheiro araucária e de uma madeira vermelha lá do Norte... Bem, fedem a podre... pra não dizer coisa pior...

-De fato. Quando passava ali na madeireira, imaginava tinham cagado

no mundo. Depois, pensei: não iam conseguir cagar todo dia a toda hora. Resolvi cheirar pra cá, pra lá, e cheguei perto de uma pilha daquela madeira mal cheirosa... Bem, vocês sabem qual é.

-Vai ver que nem tudo lá no Norte fede.

-Claro, claro. Tem muita coisa boa por lá. Muito papagaio e muito peixe. Cobra gigante...

-É uma judiaria o que fazem com os papagaios. Vi um, numa casa aqui pra baixo, preso em uma corrente que

sangrava a perna do coitado. Maldade pura. Caso de polícia.

-É, mas os caminhoneiros fazem a festa com os pobres animais. Além de gargantear muita vantagem.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Transportando Madeira

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-Nem tudo é lorota. Eu mesmo estive por lá, pescando. Tem muito dourado dos grandes; tem pacu, tem ...., tem ....

-E é fácil de chegar lá nesse rio?

-Tem muito rio cheio de peixe...

-Mas não tem igual ao Teles Pires.

-Como que você sabe?

-O pessoal das serrarias contam que ele é o melhor em tudo: mais fácil de chegar, tem muito peixe e nenhum controle das autoridades.

-Não digo sempre... brasileiro precisa de um grande que diga o que não se deve fazer.

-E não é o certo?

-Claro que não. Um absurdo ir lá destruir a natureza, matar peixe por

pura aventura. Já acabaram com os peixes daqui e agora estão querendo acabar com os de lá também.

-Principalmente, indo uma caminhonada de pescador como fazem uns de por aqui...

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Transportando Madeira

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-Quer que se divirtam como? Deixa o povo se divertir.

-Às custas da natureza, derrubando a Floresta Amazônica? Acabando com os peixes dos rios?

-Você acha que uns vinte ou trinta

quilos de peixe vai acabar com aquela imensidão de peixe que tem no Rio Teles Pires?

-Por acaso, aqui também não tinha peixe em quantidade?

-Isso mesmo: antigamente tinha muito peixe em todos os nossos rios. Foi

diminuindo, diminuindo ... até acabar. Hoje, não sobrou peixe nem pra semente.

-Se bobear pode que acabe até o pinhão pra semente e aí adeus todos os pinheirais.

-Deixe de bobagens: a madeira da Amazônia nunca vai acabar, nem os peixes. Lá tem abundância.

-A mesma abundância que tinha aqui e que acabou. Aliás, acabou até com o

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Transportando Madeira

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solo. Derrubaram as árvores, mataram a caça e os peixes e torraram a terra.

-Deixe de bobagens: as árvores e os peixes lá do Norte jamais vão acabar; tem peixe de mais de metro.

-Que conversa é essa de peixes de um

metro?

-Vá ali no Lali e veja as fotos você mesmo.

-Vou mesmo. Tem muita conversa sobre o Norte que já se vê que é conversa de papudo; história de mentiroso. Peixe de metro, ouro à flor-

da-terra, mais avião no céu do que passarinho, ...

-E não tem?

-Pode até ter, mas o pessoal aumenta muito...

-No dia que o Tacheki tiver por aqui, vou pedir pra ele contar uns causo de lá, só pra vocês ver que o mundo lá é muito maior, muito mais aventuroso.

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DOENÇA MENTAL

-A Berenice está com doença mental.

-Qual nada. Falei com ela ainda ontem e ela estava alegre, conversando normalmente, consciente de tudo...

-Então, você não viu a doença dela?

-Doença? Bom... ela tá com um curativo no ombro.

-Esse é o caso. Ela está convencida de que está doente.

-Mas, ela não tá?

-Tá e não tá.

-Explique melhor.

-Nos últimos tempos, ela estava procurando doenças e a mosca estava procurando ela. A mosca encontrou „um ombro amigo‟ e ela ganhou um berne.

-Ah! Um berne... Mas o curativo é no ombro e não na cabeça.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Doença Mental

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-Essa que é a questão. Vocês não notaram que o Teófilo anda enfurnado em casa, quase não vai cuidar da lida com o gado?

-Vai dizer que ele está cuidando da mulher?

-Bem. Da mulher, quem está cuidando é um médico novo que apareceu na cidade. Ele só leva ela até o médico, de carro, toda manhã. O que ele está cuidando é do serviço dela, pois ela não está fazendo nada.

-O cara tá deixando o serviço crescer

no pasto porque a mulher está com berne?

-Assim é que as coisas estão. Ela não levanta nem uma calcinha...

-Não brinca. Isso é exagero teu.

-Tô dizendo: ela não suspende o bule para despejar o café na xícara. Não faz serviço algum.

-Por causa de um berne? Que tamanho tem esse monstro?

-Pequeno. Um berninho fajuto. Só.

-Mas, então?

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Doença Mental

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-Tô dizendo: vi o berne espiando pelo buraquinho. Berne normal.

-Então, como se explica tanto resguardo?

-Bem! A mulher não é uma mulher qualquer: é a Berenice.

-O quê? Ela vale ouro?

-Em certo sentido, sim. O corpo de cada um é, para si, o que há de mais sagrado. Mas, não é pelo valor que o corpo dela tenha para ela ou para o marido; é pelo modo que eles pensam...

-Ela tem medo de berne?

-Não. Tanto é que deixou a mosca picar, depositar os ovos, fechar o buraco e tudo o mais.

-Já sei: a mulher é melindrosa.

-É nada. Mulher de coragem tali! De coragem e de fé. Acredita em padre, benzedor, médico, ...

-E, daí? Muita gente acredita...

-Sim, sim... Mas, ela acredita cegamente.

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-Então, explica essa fé.

-Ela tava em casa, alinhavando crochê, enquanto ele tava na lida com o gado. Dia quente, abafado. E ela tava com ombro descoberto. Ali... esperando mosca. Sentiu a fisgada, mas – literalmente – deu de ombros. A mosca

continuou pondo seus ovos, tranquilamente.

-E ela nem notou?

-Notar, notou... mas o bichinho era tão pequeno...

-E daí? - as perguntas pipocavam.

-Três dias depois, a coceira apertou e ela contou ao marido, pedindo que verificasse o que era, pois ela não conseguia ver o local, nem com espelho. Ele viu e profetizou: “É berne, mulher. Te pegou dormindo?”

-Não pode – retrucou ela – aqui nem tem mosca...

-Ô muié! Tu tá cega; a casa está rodeada de pastagem e com gado curtido de Neguvon... Sem veneno, só sobra a gente.

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-E aí ela já parou de fazer o trabalho dela?

-Não. Ainda não. Ele quis passar „roxinho‟, mas ela alegou que no ombro ficava feio; como iria para a igreja com um ombro roxo? Que era coisa sem importância, que já ia passar... E,

assim, o berne cresceu em paz. Ela chegou aqui em casa e solicitou opinião. Eu também aconselhei matar o bicho, antes que ele criasse bigode. Ela disse que só dormia nos intervalos entre uma ferroada e outra. Procurava não acordar o marido, pois ele estava

moído de tanto trabalho pesado. Voltaram a me consultar. O berne já tinha alcançado a idade adulta. Mais uma vez, aconselhei passar o mata-bicho e torcer para que ele resolvesse sair por conta própria. Aí, ela cismou de ir ao médico. Contei a ela como os

médicos costumam tratar pacientes de berne: eles fazem uma baita cirurgia e cortam mais do que o necessário. Eles ganham por ponto que costuram e, ainda, cobram pelos curativos. Que matasse o bicho e pronto.

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-E ela foi pro médico...

-Foi e... ficou. Se fosse pelo SUS, ele teria feito o básico. Mas, como ela disse que pagava, que nem queria saber o preço... Ele meteu a faca... no ombro e ... no bolso deles.

-Mas... aí tudo ficou resolvido?

-É que o cirurgião tem de justificar o assalto e fez uma fila de recomendações: nada de levantar peso, de aborrecimentos, de ficar no sol, ... Deveria evitar esforços e movimentos bruscos. E ela levou ao pé da letra.

Nada de trabalho.

-Mas só pode ser de preguiça...

-Que nada! A mulher é das trabalhadeiras. Ela apenas seguiu a orientação médica. Além de, diariamente, às oito horas da manhã, estar no hospital para fazer os curativos.

-Você tá inventando. Hoje, nem de parto uma mulher fica internada...

-Pois é. Mas, isso era importante para o médico: ele cobrava cada curativo.

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-O quê? Ela não fazia os curativos no posto de saúde?

-Fazia nada. Ela queria ser bem atendida.

-Que idiota!

-Pois é. Agora vai pra doze dias que ela

tá de resguardo: ele tem até de vestir a mulher. Logo, só trabalha nos intervalos entre um gemido e outro. No quinto dia, eles passaram lá por casa. Tavam meio magoados, com cara de ofendidos. Como não dei importância para a choradeira, ele encostou em

mim e foi dizendo: “Vê como são as pessoa desse lugar: a mulher doente e ninguém veio nem visitá...” Arregalei o olho, mas ele não se perturbou. Continuo a acusação, insinuando que eu mesmo era um insensível.

-Vai ver ele queria que você olhasse o

berne dela...

-O berne não, esse o médico tirou. Só se fosse pra ver o buraco ...

-Nem fale...

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-E ela estava com febre, abatida ou coisa assim.

-Qual nada. Tava era muito descansada, pois ele fazia todo o serviço da casa. Ela só mandava. A não ser que esteja com a boca cansada de tanto mandar...

-E ainda continua doente?

-Claro. Agora, o esperto do médico disse a ela que deve ficar noventa dias sem trabalhar.

-Isso lembra do Amante Casagrande. Vocês lembram? Aquele do pescoço

torto.

-Ah! O Amante. Também com um nome desses... só podia entortar o pescoço. Garanhão da casa grande...

-Não fala bobagem. O homem era um exemplar pai de família. Boa pessoa; ótimo vizinho. Honesto e trabalhador.

-Mas, então, por que torceu o pescoço?

-Foi no tempo de guri. Tinha uns oito anos quando nasceu um furúnculo bem na tala do pescoço, abaixo da orelha direita. Doía. Claro que doía. Estava

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muito inchado também e ele mantinha o pescoço teso, deitado sobre o ombro esquerdo. O furúnculo foi embora, mas a dor ficou pra sempre...

-Como assim?

-Doer não doía mais, mas ele sentia...

Era um efeito psicológico: medo que doesse.

-Lembro dele. Passou a vida com o pescoço duro. Para olhar para o lado, ele tinha que virar o corpo todo, como se fosse o farol de um automóvel. E morreu assim e assim foi enterrado.

Passados dez anos, o caixão foi aberto, sei lá por quê... Pois, descobriram que as vértebras do pescoço tinham soldado umas nas outras, formando um osso só, numa curva acentuada. Uma calcificação fundiu as vértebras como se fossem uma peça só.

-É. Mas, no caso dela, isso não vai acontecer.

-Claro que ela não vai ficar com o pescoço duro! Mas, o marido já pediu aposentadoria para cuidar da „doente‟.

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LEI É LEI

O Nuno nunca foi de se arrebentar

trabalhando; trabalhava só pro gasto, na manha. Porém, naquela manhã, nem isso conseguia fazer. Estava revoltado com as leis. Tentou iniciar várias tarefas, mas logo desistia e andava resmungando de um lado para o outro. A meia-manhã estava

demorando passar. Esquentou a água bem antes da hora do chimarrão e ficou ali esperando o primeiro que chegasse. Por azar, o pessoal atrasou e chegaram num bando só e todos participaram desse bate-boca. Ele tinha planejado contar várias vezes aquela indignação.

-Bom Dia! Nuno; hoje esperou em pé...

-Tô puto!

-Direito teu... a gente respeita.

-As leis provocam cada coisa nojenta...

-Que lei, Nuno. A dos políticos?

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-A lei que indeniza os acidentes de trabalho.

-Como assim?

-Numhádevê que o rapaiz da viúva Angélica atorou um dedo da mão...

-Mas aí foi a serra e não a lei.

-Foi a serra...! Foi nada. Ele é que colocou no dedo na serra, por querê!

-Isso é verdade: a serra não saiu correndo atrás dele.

-E não foi o primeiro a vender um dedo; só na madeireira, já passa de

vinte. E todos acabaram aposentados.

-Viu só. É isso. Os cara se cortam para se aposentar.

-Pois é: a lei é assim. A vítima de acidente de trabalho tem direito.

-Direito? Isso lá é direito. Isso é é

torto.

-Mas, até o sargento conseguiu reforma porque a ferida da perna não sarava...

-Ia sará nunca! Ele cutucava nela todo dia pra que infeccionasse...

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-Mas, não foi o único. Tem aquele outro policial que provou que era louco e hoje vive muito bem lá no sítio, com a família. Louco foi quem acreditou na mentira dele.

-Aí é que eu digo: a culpa é da lei.

-Bem, aí tem lei dessa também pra professor ficá doente treis dia por mêis; pra mulher ir pro banco com o nenê da vizinha e assim não enfrentá fila; diploma de universidade pra não ficá preso; e daí por diante.

-Não tem até aposentadoria de mãe pra

marmanjo não trabaiá?

-Essa é nova: aposentadoria de mãe?

-E não é? Só de pensá já lembro de uns déis caso... Pois não é o caso da Conceição? Foi só ela conseguir o aposento rural que o filho largô do serviço: agora só anda de moto, assuntando...

-É verdade! Alembrei de algumas famílias em que o pai e a mãe passaram a receber o aposento do FUNRURAL e adeus trabalho; agora comem do governo.

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-Pois é, mas está na lei; é direito deles.

-Que direito torto...

-Não tô dizendo: é bolsa família, bolsa transporte, bolsa remédio, ... tudo dentro da lei. Eles dizem: “Se for cabra do nosso lado... pode.”

-Também tem os direitos da criança e do adolescente, que proíbe o trabalho deles, como se trabalho fizesse mal à saúde. Onde já se viu aprender o trabalho dos pais ser crime. Vá lá que a criança não deixe de estudar e que sobre algum tempo para a

traquinagem, mas trabalhar um pouco faz bem até pra ir se acostumando com a vida, pois nela se trabalha muito.

-Claro, claro! E trabalhar é sempre um prazer quando se entende o trabalho como realização de uma ideia, como maneira de conseguir outras coisas. Por

exemplo: pode que um menino queira formar mudas de plantas nativas, porque adora a natureza. Ele se realiza através desse trabalho, ajuda a preservar a natureza e pode ganhar umas moedas para comprar algo que

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deseje muito. E, nem sempre, os pais podem comprar as coisas que os adolescentes desejam.

-É, mas... parece que o trabalho proibido é aquele pesado, trabalho de adulto, com oito horas diárias...

-Com certeza, uma criança ou um adolescente não suporta trabalhar como um adulto, mas muitos passam o dia ao léu e nem pra escola vão. Aí não dá na mesma? Correm e se arriscam mais do que trabalhando...

- Tô dizendo: Desse jeito, todo o povo

vai querê vive às custa do governo...

- Mas, a culpa é nossa. Pode arrepará: basta uma passeata para muito político mudar o voto. A gente é que tem de votá certo e cobrá dus óme...

- Bem... Chega de prosa; vamô trabaiá.

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APOSENTADO POR INVALIDEZ

-Noutro dia, vocês exageraram no caso

da mulher do Teófilo; vai ver que ela tem outros problemas...

-Ah! Isso ela tem mesmo. Ou melhor: ela sabe criar problemas... bem lucrativos.

-Que ela é esperta, a gente sabe...

-Esperta e meia.

-Ela sempre considerou importante ter „problemas de saúde‟ e, deles, sempre tirou proveito. Quando descobria uma deficiência, um defeito congênito, procurava valorizar o máximo, como um diferencial que podia dar a ela um

lugar de destaque na comunidade. Quando descobria uma „doença‟, ficava totalmente dominada por ela e passava a viver em função da moléstia.

-Mas, ela parece alegre, bem disposta...

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-É verdade. Ela mesma acaba esquecendo que „estava doente‟, pois se entusiasma com facilidade, principalmente quando alguém precisa dela. Aí, esquece até das dores reais. E fica saudável até uma próxima oportunidade de ficar doente.

-Ela não é mãe daquele rapaz que conseguiu a aposentadoria aos dezoito anos de idade?

-Essa mesma.

-Então a mulher é uma artista!

-Já disse pra vocês: esperta e meia.

-Como que ele conseguiu?

-A mãe foi fundamental na construção da aposentadoria. Ele tem uma deficiência visual, desde guri. Sempre teve de usar óculos. Começou trabalhar cedo; ele era muito trabalhador. Na época, abriram muitas fábricas de móveis e ele conseguiu um emprego na empresa de um primo. Trabalhava direitinho. Mas, um sábado à tarde, atendendo um pedido da mãe, ele foi levar de moto a irmã caçula a algum lugar. Ele não queria, mas a mãe

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insistiu. Imagine um piloto meio cego, saindo por aí de má vontade, de óculos fundo-de-garrafa e capacete com visor embaçado... Não deu outra: atropelou um carro estacionado.

-Eles se machucaram muito?

-Talvez. Pode que os problemas congênitos dele tenham piorado... Ela ficou meio quebrada e não regula bem... Mas, pode que já fosse assim. Ele quebrou um fêmur e outros ossos menores... Claro: se o fêmur é o maior, os outros só podem ser menores ... Por

causa do acidente e das fraturas, ele ficou afastado do serviço, recebendo auxilio da seguridade social. Era para ser por noventa dias, depois passou para cento e oitenta... Nesse meio tempo, um político aventou a possibilidade de incluir os defeitos visuais como resultantes do acidente...

E aí começou uma sequência de perícias médicas para provar que estava doente ou para autorizar a „volta ao trabalho‟. De eleição em eleição, a „doença‟ se consolidou e ele foi aposentado por invalidez.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Aposentado por Invalidez

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-Ele está inválido?

-Depende. Se tiver alguém olhando, sim. Quando ele esquece de „estar inválido‟, é um rapaz forte, com trinta e dois anos de idade, saudável e ativo.

-Mas, ele não era deficiente visual?

-Bem... isso todos nós somos... um pouco. Vista boa só tem quem nunca foi ao especialista. A pessoa que tem pequena deficiência visual – ou mesmo física – pensa que todo mundo é assim e continua a vida. Quanta gente descobre que precisa usar óculos

quando tenta conseguir uma carteira de motorista? Ele tinha uma „enorme miopia‟, que diminuiu muito quando morreu o oftalmologista que receitava as lentes. O novo médico analisou os olhos do rapaz, fez uma limpeza geral e receitou lentes de quatro graus... Nada

tão anormal. Conheço pessoas que usam lentes com dezoito, dezenove graus e trabalham normalmente, sem ter uma falta ao trabalho. Tive uma professora de Matemática que, se perdesse os óculos, não conseguiria voltar pra casa...

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Aposentado por Invalidez

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-E agora? Ele voltou a trabalhar?

-Claro que não! Para o INSS ele está aposentado. Mas, dirige um carro com menos de ano e vive uma boa vida.

-É. Carro com preço especial, pois ele „é‟ deficiente.

-E o pior é que ele tira proveito disso, trocando de carro todo ano. E não carro popular, desses pé-duro. É carro bom, confortável e bem equipado... para, passado um ano, vender por um bom preço.

-Aprendeu com a mãe...

-De fato: tem uma fé inabalável nas suas deficiências, tal qual a mãe dele. Ele fala, com convicção, que „a perna [dele] não tem osso‟ e por isso, ele „não pode levantar peso‟.

-Impossível: sem o fêmur, ele precisaria usar aparelho ortopédico... A perna não pode ficar pendurada, balançando...

-Não. Não fica. A perna está firme e forte, parece normal. Ele nem manca ao caminhar.

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Aposentado por Invalidez

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-Ano passado, ele vinha andando atrás do carro-de-boi do pai dele e, terminada a subida do morro, deu uma corrida e saltou sobre o carro. Quando viu que eu estava vendo, empalideceu e desviou o olhar. Em outras oportunidades, vi o rapaz trabalhando

com o pai, normalmente. Inclusive correndo atrás do gado, debaixo de chuva.

-Sei de pessoas muito mais „doentes‟ que ele, que trabalham duro e nunca se queixam.

-Também sei. Veja quantos paraplégicos trabalham nas empresas, como autônomos, músicos, ... Quantos cegos trabalham e se sentem integrados à sociedade.

-Penso que seja uma questão de cara-de-pau. São pessoas que perderam a

vergonha e vivem de esmolas com o maior orgulho.

-E, infelizmente, são muitos!

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MORTE FELIZ

Depois de uma noite varrida pelo vento

e lavada pela chuva, nada melhor que uma boa rodada de chimarrão, temperado com conversas bem proveitosas. Mesmo que muitos durmam indiferentes às tempestades, essa não é uma regra. A noite de quem tem goteiras em casa, por exemplo, é

bem mais longa e, durante o dia seguinte, o sono permanece espiando em cada olho, pronto a dominar o semivivente. Mas, ao menos, está vivo. Pior é para quem morreu nessa noite. Ou não.

A morte pode ser ruim ou desejada,

repentina ou prolongada por anos de agonia. Boa morte é sorte de poucos e excelente morte, então, uma raridade. Como ninguém tem o direito da escolha, ficamos todos a comentar a morte dos outros... às vezes com

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Mario Tessari RODA DE CHIMARRÃO – Morte Feliz

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temor, outras, com dó e algumas, com inveja.

Nessa manhã coberta de nuvens ameaçadoras, o cemitério municipal vai receber mais um dos seus inquilinos. O corpo será carregado em silêncio, mesmo que muitos sigam pensando

nas circunstâncias em que ocorreu o passamento.

Antes, como em muitos velórios, serão desfiados rosários de exclamações louvando a vida digna do defunto, as suas virtudes e as suas ideias. O que

deveria ser dito, ao vivo, ao vivo – que poderia ouvir, apreciar e tirar proveito –, é dito, ao acaso, ao morto. É dito diante de um corpo inerte, que nada ouve, aprecia ou aproveita.

Porém, hoje, toda essa filosofada é inútil, pois os frequentadores da Roda

de Chimarrão não falarão nem ao vivo e nem ao morto. Para o vivo, não foi possível e, para o defunto, nem será necessário contar, pois é ele quem melhor sabe do assunto. Trata-se da própria morte dele: do alegre fim da vida e do começo da história. Os

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demais fatos da vida do Tito são corriqueiros e dispensam escrituras. Mas, a morte... essa foi especial.

Claro, claro. Ele teve uma vida longa e pacata, num sítio de boas nascentes, terras férteis, matas, boa vizinhança, ... Sim. A vida foi boa para com ele...

ou ele soube bem viver a vida. Ou as duas coisas, ao mesmo tempo. Infância de mimos e de peraltices, adolescência de muitos amores, casamento com uma vizinha, dois filhos atenciosos, ... Como eu escrevi: uma vida tranquila.

Mas, por que toda essa conversa, esse prólogo. Simples. É que a morte fechou com chave de ouro a maravilhosa existência dele. Vamos ao fato, então.

O vovô estava viúvo há década e meia e continuou vivendo no sítio em que sempre viveu, com um filho casado

morando ao lado, com uma nora muito alegre e com um neto mimado ao extremo. Os moradores mais recentes do lugar nem chegaram a conhecê-lo, pois ele vivia quieto no canto dele. Cuidava de pequenas roças, de uma dúzia de vacas e gastava sem exageros

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os parcos vinténs dos benefícios da previdência oficial, disfarçadamente denominados „aposentadoria rural‟.

Com zelo, tinha acabado de reformar a casa, conforme seu gosto. De longe, se destacavam as cores vivas das paredes e das janelas. Ele mesmo pouco viu

dessas cores; no entanto deixou tudo colorido para as vistas alheias. E agora está morto para sempre. Mas, morreu bem, o felizardo.

Tito, como contei, era muito discreto. Tinha lá seus segredos. Durante o dia,

estava por casa, cuidando da lida corriqueira. Mas, quando a noite se estabelecia por completo, um vulto saia ainda mais discretamente e rumava para a casa da amante. Ela até falava em se separar, mas era casada e mãe de três filhos. Situação acomodada, a vida fluía sem tropeços. Pra que sacudir

a casa?

Ano antes, um enfarte já tinha anunciado as deficiências do músculo cardíaco, porém ele nem se preocupou com isso. Queria era amar. Como na noite derradeira. Ele estava em bons

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lençóis... Ou melhor, sobre eles. Tinha partes do corpo que suportavam atividades intensas; até precisavam de atividades vigorosas. Mas, o coração não aguentou o tranco: se entregou de vez.

Imaginem o desespero da mulher

quando percebeu que havia exigido esforço excessivo do amante, a ponto de matá-lo de amor. Na confusão, só lembrou de chamar o corpo de bombeiros e de tentar reanimá-lo com massagem no peito e vigorosas respirações boca-a-boca. Nada. O

homem estava todo molenga, espichado sobre os lençóis, com um sorriso maroto no rosto.

Foi assim que os paramédicos contemplaram a cena: o homem completamente nu, estirado sobre os lençóis e os filhos dela, que acordaram

com o rebuliço, ao redor da cama, apreciando o „filme‟.

Vocês devem de estar pensando que ela não queria que ele morresse... Em parte, vocês têm razão: ela não queria que ele tivesse morrido ali, na cama

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dela, hora e meia depois de o marido ter pego no serviço, no turno noturno de uma fábrica não muito distante ...

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RODA DE CHIMARRÃO

Essa modesta coleção de contos regionais é fruto da observação e da audição, na convivência com pessoas simples. Selecionam o

humor, a filosofia e a perspicácia do homem comum da Região do Contestado; conversas em rodas de chimarrão, causos da tradição oral, transcritos ou servindo como

fonte de inspiração.

Nem todo mateador é caboclo, nem todas as histórias são caipiras; o chimarrão não é privilégio rural.

MARIO TESSARI