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capítulo de raízes do brasil

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O homem cordial Srgio Buarque de Holanda
Cap. V de Razes do Brasil (1 ed. 1936). Vale observar que este conceito de "homem cordial" adquire interesse filosfico especfico a partir da crtica de Mrio Vieira de Mello, em sua obra Desenvolvimento e cultura. O problema do estetismo no Brasil (1 ed. 1963), cap. VI, cujo texto se encontra em nosso site Textos de Filosofia Brasileira.

Para consultar o texto relacionado:
http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/05/desenvolvimento-e-cultura-o-problema-do.html
Notas ao fim do texto.

Antgona e Creonte. Pedagogia moderna e as virtudes antifamiliares. Patrimonialismo O homem cordial. Averso aos ritualismos: como se manifesta ela na vida social, na linguagem, nos negcios. A religio e a exaltao dos valores cordiais.
O Estado no uma ampliao do crculo familiar e, ainda menos, uma integrao de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a famlia o melhor exemplo. No existe, entre o crculo familiar e o Estado, uma gradao, mas antes uma descontinuidade e at uma oposio. A indistino fundamental entre as duas formas prejuzo romntico que teve os seus adeptos mais entusiastas durante o sculo dcimo nono. De acordo com esses doutrinadores, o Estado e as suas instituies descenderiam em linha reta, e por simples evoluo da Famlia. A verdade, bem outra, que pertencem a ordens diferentes em essncia. S pela transgresso da ordem domstica e familiar que nasce o Estado e que o simples indivduo se faz cidado, contribuinte, eleitor, elegvel, recrutvel e responsvel, ante as leis da Cidade. H nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpreo e no uma depurao sucessiva, uma espiritualizao de formas mais naturais e rudimentares, uma procisso das hipstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua forma pura, abolida por uma transcendncia.

Ningum exprimiu com mais intensidade a oposio e mesmo a incompatibilidade fundamental entre os dois princpios do que Sfocles. Creonte encarna a noo abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangvel que a famlia. Antgona, sepultando Polinice contra as ordenaes do Estado, atrai sobre si a clera do irmo, que no age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidados, da ptria:

E todo aquele que acima da Ptria
Coloca seu amigo, eu o terei por nulo.

O conflito entre Antgona e Creonte de todas as pocas e preserva-se sua veemncia ainda em nossos dias. Em todas as culturas, o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei particular faz-se acompanhar de crises mais ou menos graves e prolongadas, que podem afetar profundamente a estrutura da sociedade. O estudo dessas crises constitui um dos temas fundamentais da histria social. Quem compare, por exemplo, o regime do trabalho das velhas corporaes e grmios de artesos com a escravido dos salrios nas usinas modernas, tem um elemento precioso para o julgamento da inquietao social de nossos dias. Nas velhas corporaes o mestre e seus aprendizes e jornaleiros formavam como uma s famlia, cujos membros se sujeitavam a uma hierarquia natural, mas que partilham das mesmas privaes e confortos. Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e empregados nos processos de manufatura e diferenciando cada vez mais suas funes, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fcil, alm disso, ao capitalista, explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salrios nfimos.

Para o empregador moderno assinala um socilogo norte-americano o empregado transforma-se em um simples nmero: a relao humana desapareceu. A produo em larga escala, a organizao de grandes massas de trabalho e complicados mecanismos para colossais rendimentos, acentuou, aparentemente, e exacerbou, a separao das classes produtoras, tornando inevitvel um sentimento de irresponsabilidade, da parte dos que dirigem, pelas vidas dos trabalhadores manuais. Compare-se o sistema de produo, tal como existia quando o mestre e seu aprendiz ou empregado trabalhavam na mesma sala e utilizavam os mesmos instrumentos, como o que ocorre na organizao habitual da corporao moderna. No primeiro, as relaes de empregador e empregado eram pessoais e diretas, no havia autoridades intermedirias. Na ltima, entre o trabalhador manual e o derradeiro proprietrio o acionista existe toda uma hierarquia de funcionrios e autoridades representados pelo superintendente da usina, o diretor-geral, o presidente da corporao, a junta executiva do conselho de diretoria e o prprio conselho de diretoria. Como fcil que a responsabilidade por acidentes do trabalho, salrios inadequados ou condies anti-higinicas, se perca de um extremo ao outro dessa srie.[1]

A crise que acompanhou a transio do trabalho industrial aqui assinalada pode dar uma ideia plida das dificuldades que se opem abolio da velha ordem familiar por outra, em que as instituies e as relaes sociais, fundadas em princpios abstratos, tendem a substituir-se aos laos de afeto e de sangue. Ainda hoje persistem, aqui e ali, mesmo nas grandes cidades, algumas dessas famlias retardatrias, concentradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal que mandava educarem-se os filhos apenas para o crculo domstico. Mas essas mesmas tendem a desaparecer ante as exigncias imperativas das novas condies de vida. Segundo alguns pedagogos e psiclogos de nossos dias, a educao familiar deve ser apenas uma espcie de propedutica da vida na sociedade, fora da famlia. E se bem considerarmos as teorias modernas, veremos que elas tendem, cada vez mais, a separar o indivduo da comunidade domstica, a libert-lo, por assim dizer, das virtudes familiares. Dir-se- que essa separao e essa libertao representam as condies primrias e obrigatrias de qualquer adaptao vida prtica.

Nisso, a pedagogia cientfica da atualidade segue rumos precisamente opostos aos que preconizam os antigos mtodos de educao. Um dos seus adeptos chega a observar, por exemplo, que a obedincia, um dos princpios bsicos da velha educao, s deve ser estimulada na medida em que possa permitir uma adoo razovel de opinies e regras que a prpria criana reconhea como formuladas por adultos que tenham experincia nos terrenos sociais em que ela ingressa. Em particular acrescenta a criana deve ser preparada para desobedecer nos pontos em que sejam falveis as previses dos pais. Deve adquirir progressivamente a individualidade, nico fundamento justo das relaes familiares. Os casos frequentes em que os jovens so dominados pelas mes e pais na escolha das roupas, dos brinquedos, dos interesses e atividades gerais, a ponto de se tornarem incompetentes, tanto social, como individualmente, quando no psicopatas, so demasiado frequentes para serem ignorados. E aconselha: no s os pais de ideias estreitas, mas especialmente os que so extremamente atilados e inteligentes, devem precaver-se contra essa atitude falsa, pois esses pais realmente inteligentes so, de ordinrio, os que mais se inclinam a exercer domnio sobre a criana. As boas mes causam, provavelmente, maiores estragos do que as ms, na acepo mais generalizada e popular destes vocbulos.[2]

Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito slidas a ideia de famlia e principalmente onde predomina a famlia de tipo patriarcal tende a ser precria e a lutar contra fortes restries a formao e evoluo da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptao indivduos ao mecanismo social , assim, especialmente sensvel no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelncia, como o so, sem dvida, aquelas que repousam no esprito de iniciativa pessoal e na concorrncia entre os cidados.

Entre ns, mesmo durante o Imprio, j se tinham tornado manifestas as limitaes que os vnculos familiares demasiado estreitos, e no raro opressivos, podem impor vida ulterior dos indivduos. No faltavam, sem dvida, meios de se corrigirem os inconvenientes que muitas vezes acarretam certos padres de conduta impostos desde cedo pelo crculo domstico. E no haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurdicos, fundados desde 1827 em So Paulo e Olinda, contriburam largamente para a formao de homens pblicos capazes, devemo-lo s possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais, de viver por si, libertando-se progressivamente dos velhos laos caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades.

A personalidade social do estudante, moldada em tradies acentuadamente particularistas, tradies que, como se sabe, costumam ser decisivas e imperativas durante os primeiros quatro ou cinco anos de vida da criana,[3] era forada a ajustar-se, nesses casos, a novas situaes e a novas relaes sociais que importavam na necessidade de uma reviso, por vezes radical, dos interesses, atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenas adquiridos no convvio da famlia.

Transplantados para longe dos pais, muito jovens, os filhos aterrados de que falava Capistrano de Abreu, s por essa forma conseguiam alcanar um senso de responsabilidade que lhes fora at ento vedado. Nem sempre, certo, as novas experincias bastavam para apagar neles o vinco domstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, to oposto s exigncias de uma sociedade de homens livres e de inclinao cada vez mais igualitria. Por isso mesmo Joaquim Nabuco pode dizer que em nossa poltica e em nossa sociedade [...] so os rfos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam.[4]

Tem-se visto como a crtica dirigida contra a tendncia recente de alguns Estados para a criao de vastos aparelhamentos de seguro e previdncia social, funda-se unicamente no fato de deixarem margem extremamente diminuta ao individual e tambm no definhamento a que tais institutos condenam toda sorte de competies. Essa argumentao prpria de uma poca em que, pela primeira vez na histria, se erigiu a concorrncia entre os cidados, como todas as suas consequncias, em valor social positivo.

Aos que, com razo de seu ponto de vista, condenam por motivos parecidos os mbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes, isto , aos que os condenam por circunscreverem demasiado os horizontes da criana dentro da paisagem domstica, pode ser respondido que, em rigor, s hoje tais ambientes chegam a constituir, muitas vezes, verdadeiras escolas de inadaptados e at de psicopatas. Em outras pocas, tudo contribua para a maior harmonia e maior coincidncia entre as virtudes que se formam e se exigem no recesso do lar e as que asseguram a prosperidade social e a ordem entre os cidados. No est muito distante o tempo que o Dr. Johnson fazia ante o seu bigrafo, a apologia crua dos castigos corporais para os educandos e recomendava a vara para o terror geral de todos. Parecia-lhe prefervel esse recurso a que se dissesse, por exemplo, ao aluno: Se fizeres isto ou aquilo, sers mais estimado do que teu irmo ou tua irm. Porque, segundo dizia a Boswell, a vara tem um efeito que termina em si, ao passo que se forem incentivadas as emulaes e as comparaes de superioridade, lanar-se-o, com isso, as bases de um mal permanente, fazendo com que irmos e irms se detestem uns aos outros.

No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da famlia patriarcal, o desenvolvimento da urbanizao que no resulta unicamente do crescimento das cidades, mas tambm do crescimento dos meios de comunicao, atraindo vastas reas rurais para a esfera de influncia das cidades ia acarretar um desequilbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.

No era fcil aos detentores das posies pblicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distino fundamental entre os domnios do privado e do pblico. Assim, eles se caracterizavam justamente pelo que separa o funcionrio patrimonial do puro burocrata conforme a definio de Max Weber. Para o funcionrio patrimonial, a prpria gesto poltica apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funes, os empregos e os benefcios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionrio e no a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrtico, em que prevalecem a especializao das funes e o esforo para se assegurarem garantias jurdicas aos cidados.[5] A escolha dos homens que iro exercer funes pblicas faz-se de acordo com a confiana pessoal que meream os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades prprias. Falta a tudo a ordenao impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrtico. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva diviso das funes e com a racionalizao, adquirir traos burocrticos. Mas em sua essncia ele tanto mais diferente do burocrtico, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.

No Brasil, pode dizer-se que s excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionrios puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrrio, possvel acompanhar, ao longo de nossa histria, o predomnio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente prprio em crculos fechados e pouco acessveis a uma ordenao impessoal. Dentre esses crculos, foi sem dvida o da famlia aquele que se exprimiu com mais fora e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestvel, absorvente, do ncleo familiar a esfera, por excelncia dos chamados contatos primrios, dos laos de sangue e de corao est em que as relaes que se criam na vida domstica sempre forneceram o modelo obrigatrio de qualquer composio social entre ns. Isso ocorre mesmo onde as instituies democrticas, fundadas em princpios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.

J se disse, numa expresso feliz, que a contribuio brasileira para a civilizao ser de cordialidade daremos ao mundo o homem cordial.[6, ler esta nota especialmente] A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes to gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um trao definido do carter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influncia ancestral dos padres de convvio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar boas maneiras, civilidade. So antes de tudo expresses legtimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade h qualquer coisa de coercitivo ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenas. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinrios do convvio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverncia religiosa. J houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de venerao divindade, no cerimonial xintosta, no diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito.

Nenhum povo est mais distante dessa noo ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinria de convvio social , no fundo, justamente o contrrio da polidez. Ela pode iludir na aparncia e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espcie de mmica deliberada de manifestaes que so espontneas no homem cordial: a forma natural e viva que se converteu em frmula. Alm disso a polidez , de algum modo, organizao de defesa ante a sociedade. Detm-se na parte exterior, epidrmica do indivduo, podendo mesmo servir, quando necessrio, de pea de resistncia. Equivale a um disfarce que permitir a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoes.

Por meio de semelhante padronizao das formas exteriores da cordialidade, que no precisam ser legtimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do esprito sobre a vida. Armado dessa mscara, o indivduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presena contnua e soberana do indivduo.

No homem cordial, a vida em sociedade , de certo modo, uma verdadeira libertao do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si prprio em todas as circunstncias da existncia. Sua maneira de expanso para com os outros reduz o indivduo, cada vez mais, parcela social, perifrica, que no brasileiro como bom americano tende a ser a que mais importa. Ela antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: Vosso mau amor de vs mesmos vos faz do isolamento um cativeiro.[7]

Nada mais significativo dessa averso ao ritualismo social, que exige, por vezes, uma personalidade fortemente homognea e equilibrada em todas as suas partes, do que a dificuldade em que se sentem, geralmente, os brasileiros, de uma reverncia prolongada ante um superior. Nosso temperamento admite frmulas de reverncia, e at de bom grado, mas quase somente enquanto no suprimam de todo a possibilidade de convvio mais familiar. A manifestao normal do respeito em outros povos tem aqui sua rplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. E isso tanto mais especfico, quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, to prximos de ns em tantos aspectos, aos ttulos e sinais de reverncia.

No domnio da lingustica, para citar um exemplo, esse modo de ser parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminao inho, aposta s palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. a maneira de faz-los mais acessveis aos sentidos e tambm de aproxim-los do corao. Sabemos como frequente, entre portugueses, o zombarem de certos abusos desse nosso apego aos diminutivos, abusos to ridculos para eles quanto o para ns, muitas vezes, a pieguice lusitana, lacrimosa e amarga.[8] Um estudo atento das nossas formas sintticas traria, sem dvida, revelaes preciosas a esse respeito.

mesma ordem de manifestaes pertence certamente a tendncia para a omisso do nome de famlia no tratamento social. Em regra o nome individual, de batismo, que prevalece. Essa tendncia, que entre os portugueses resulta de uma tradio com velhas razes como se sabe, os nomes de famlia s entram a predominar na Europa crist e medieval a partir do sculo XII acentuou-se estranhamente entre ns. Seria talvez plausvel relacionar tal fato sugesto de que o uso do simples prenome importa em abolir psicologicamente as barreiras determinadas pelo fato de existirem famlias diferentes e independentes umas das outras. Corresponde atitude natural aos grupos humanos que, aceitando de bom grado uma disciplina da simpatia, da concrdia, repelem as do raciocnio abstrato ou que no tenham como fundamento, para empregar a terminologia de Tnnies, as comunidades de sangue, de lugar ou de esprito.[9]

O desconhecimento de qualquer forma de convvio que no seja ditada por uma tica de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade. E to caracterstica, entre ns, essa maneira de ser, que no desaparece sequer nos tipos de atividade que devem alimentar-se normalmente da concorrncia. Um negociante de Filadlfia manifestou certa vez a Andr Siegfried seu espanto ao verificar que no, no Brasil como na Argentina, para conquistar um fregus tinha necessidade de fazer dele um amigo.[10]

Nosso velho catolicismo, to caracterstico, que permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer estranho s almas verdadeiramente religiosas, provm ainda dos mesmos motivos. A popularidade, entre ns, de uma Santa Teresa de Lisieux Santa Teresinha resulta muito do carter intimista que pode adquirir seu culto, culto amvel e quase fraterno, que se acomoda mal s cerimnias e suprime as distncias. o que tambm ocorreu com o nosso menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianas e que faz pensar menos no Jesus dos evangelhos cannicos do que no de certos apcrifos, principalmente as diversas redaes do Evangelho da Infncia. Os que assistiram s festas do Senhor Bom Jesus de Pirapora, em So Paulo, conhecem a histria do Cristo que desce do altar para sambar com o povo.

Essa forma de culto, que tem antecedentes na Pennsula Ibrica, tambm aparece na Europa Medieval e justamente com a decadncia da religio palaciana, superindividual, em que a vontade comum se manifesta na edificao dos grandiosos monumentos gticos. Transposto esse perodo afirma um historiador surge um sentimento religioso mais humano e singelo. Cada casa quer ter sua capela prpria, onde os moradores se ajoelham ante o padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os santos j no aparecem como entes privilegiados e eximidos de qualquer sentimento humano. Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e o prprio Deus um amigo familiar, domstico e prximo o oposto do Deus palaciano, a quem o cavaleiro, de joelhos, vai prestar sua homenagem, como a um senhor feudal.[11]

O que representa semelhante atitude uma transposio caracterstica para o domnio do religioso desse horror s distncias que parece constituir, ao menos at agora, o trao mais especfico do esprito brasileiro. Note-se que ainda aqui ns nos comportamos de modo perfeitamente contrrio atitude j assinalada entre japoneses, onde o ritualismo invade o terreno da conduta social para dar-lhe mais rigor. No Brasil precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza.

Essa averso ao ritualismo conjuga-se mal, como fcil imaginar com um sentimento religioso verdadeiramente profundo e consciente. Newman, em um dos seus sermes anglicanos, exprimia a firme convico de que a nao inglesa lucraria se sua religio fosse mais supersticiosa, more bigoted, se estivesse mais acessvel influncia popular, se falasse mais diretamente s imaginaes e aos coraes. No Brasil, ao contrrio, foi justamente o nosso culto sem obrigaes e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, democrtico, um culto que dispensava no fiel todo esforo, toda diligncia, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso. significativo que, ao tempo da famosa questo eclesistica, no Imprio, uma luta furiosa, que durante largo tempo abalou o pas, se tenha travado principalmente porque D. Vital de Oliveira se obstinava em no abandonar seu excesso de zelo. E o mais singular que, entre os acusadores do bispo de Olinda, por uma intransigncia que lhes parecia imperdovel e criminosa, figurassem no poucos catlicos, ou que se imaginavam sinceramente catlicos.

A uma religiosidade de superfcie, menos atenta ao sentido ntimo das cerimnias do que ao colorido e pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreenso de toda verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos, ningum pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, no tinha foras para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaborao poltica seria possvel seno fora dela, fora de um culto que s apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razo e a vontade. No admira pois, que nossa Repblica tenha sido feita pelos positivistas, ou agnsticos e nossa Independncia fosse obra de maons. A estes se entregou com tanta publicidade nosso primeiro Imperador que o fato chegaria a alarmar o prprio Prncipe de Metternich, pelos perigosos exemplos que encerrava sua atitude.

A pouca devoo dos brasileiros e at das brasileiras coisa que se impe aos olhos de todos os viajantes estrangeiros, desde os tempos do Padre Ferno Cardim, que dizia das pernambucanas quinhentistas serem muito senhoras e no muito devotas, nem frequentarem missas, pregaes, confisses, etc..[12] Auguste de Saint-Hilaire, que visitou a cidade de So Paulo pela semana santa de 1822, conta-nos como lhe doa a pouca ateno dos fiis durante os servios religiosos. Ningum se compenetra do esprito das solenidades observa Os homens mais distintos delas participam apenas por hbito, e o povo comparece como se fosse a um folguedo. No ofcio de Endoenas, a maioria dos presentes recebeu a comunho da mo do bispo. Olhavam direita e esquerda, conversavam antes desse momento solene e recomeavam a conversar logo depois. As ruas, acrescenta pouco adiante, viviam apinhadas de gente, que corria de igreja a igreja j, mas somente para v-las, sem o menor sinal de fervor.[13]

Em verdade, muito pouco se poderia esperar de uma devoo que, como essa, quer ser continuamente sazonada por condimentos fortes e que, para ferir as almas, h de ferir primeiramente os olhos e os ouvidos. Em meio do rudo e da mixrdia, da jovialidade e da ostentao que caracterizam todas essas celebraes gloriosas, pomposas, esplendorosas, nota o Pastor Kidder, quem deseje encontrar, j no digo estmulo, mas ao menos lugar para um culto mais espiritual, precisar ser singularmente fervoroso.[14] Outro visitante, de meados do sculo passado, manifesta profundas dvidas sobre a possibilidade de se implantarem algum dia, no Brasil, formas mais rigoristas de culto. Conta-se que os prprios protestantes logo degeneram aqui, exclama. E acrescenta: que o clima no favorece a severidade das seitas nrdicas. O austero metodismo ou o puritanismo jamais florescero nos trpicos.[15]

A exaltao dos valores cordiais e das formas concretas e sensveis da religio, que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigncia do esforo de reconquista espiritual e da propaganda da f perante a ofensiva da Reforma, encontraram entre ns um terreno de eleio e acomodaram-se bem a outros aspectos tpicos de nosso comportamento social. Em particular a nossa averso ao ritualismo explicvel, at certo ponto, nesta terra remissa e algo melanclica, de que falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo, o ritualismo no nos necessrio. Normalmente nossa reao ao meio em que vivemos no uma reao de defesa. A vida ntima do brasileiro nem bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como pea consciente, no conjunto social. Ele livre, pois, para se abandonar a todo o repertrio de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades.

Notas
[1] F. Stuart Chapin, Cultural change (Nova York, 1928), pg. 261.
[2] Knight Dunlap, Civilized Life. The Principles and Applications of Social Psychology (Baltimore, 1935), pg. 189.
[3] Margaret Mead, Ruth Shoule Cavan, John Dollard e Eleanor Wembridge, The Adolescent Word. Culture and Personality, The American Journal of Sociology, julho, 1936, pg. 84 e segs.
[4] A perda da me na infncia diz ainda um acontecimento fundamental na vida, dos que transformam o homem, mesmo quando ele no tem conscincia do abalo. Desde esse dia ficava decidido que Nabuco pertenceria forte famlia dos que se fazem asperamente por si mesmos, dos que anseiam por deixar o estreito conchego da casa e procurar abrigo no vasto deserto do mundo, em oposio aos que contraem na intimidade materna o instinto domstico predominante. Hrcules no se preocupava de deixar os filhos na orfandade, diz-nos Epiteto, porque sabia que no h rfos no mundo. Joaquim Nabuco, op. cit., I, pg 5.
[5] Max Weber, op. cit., II, pg. 795 e segs.
[6] A expresso do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicao Monterey. No pareceria necessrio reiterar o que j est implcito no texto, isto , que a palavra cordial h de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimolgico, se no tivesse sido contrariamente interpretada em obra recente de autoria do Sr. Cassiano Ricardo onde se fala no homem cordial dos aperitivos e das cordiais saudaes, que so fechos de cartas tanto amveis como agressivas e se antepe cordialidade assim entendida o capital sentimento dos brasileiros, que ser a bondade e at mesmo certa tcnica da bondade, uma bondade mais envolvente, mais poltica, mais assimiladora.
Feito este esclarecimento e para melhor frisar a diferena, em verdade fundamental, entre as ideias sustentadas na referida obra e as sugestes que prope o presente trabalho, cabe dizer que, pela expresso cordialidade, se eliminam aqui, deliberadamente, os juzos ticos e as intenes apologticas a que parece inclinar-se o Sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em bondade ou em homem bom. Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, no abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concrdia. A inimizade bem pode ser to cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do corao, procedem, assim, da esfera do ntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domnio dos grupos primrios, cujo unidade, segundo observa o prprio elaborador do conceito no somente de harmonia e amor. A amizade, desde que abandona o mbito circunscrito pelos sentimentos privados ou ntimos, passa a ser, quando muito, benevolncia, posto que a impreciso vocabular admita maior extenso do conceito. Assim como a inimizade, sendo pblica ou poltica, no cordial, se chamar mais precisamente hostilidade. A distino entre inimizade e hostilidade, formulou-a de modo claro Carl Schmitt recorrendo ao lxico latino: Hostis is est cum quo publice bellum habemus [...] in quo ab inimico differt, qui est is, quocum habemus privata odia... Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen, Hamburgo, s. d. [1933], pg. 11, nota.[7] Friedrich Nietzsche, Werke, Alfred Krner Verlag, IV (Leipzig, s. d.), pg. 65.
[8] O mesmo apego aos diminutivos foi notado por folcloristas, gramticos e dialetlogos em terras de lngua espanhola, especialmente da Amrica, e at em vrias regies da Espanha (Andaluzia, Salamanca, Arago...). Com razo observa Amado Alonso que a abundncia de testemunhos semelhantes e relativos s zonas mais distintas, prejudica o intento de se interpretar o abuso de diminutivos como particularismo de cada uma. Resta admitir, contudo, que esse abuso seja um trao do regional, da linguagem das regies enquanto oposta geral. E como a oposio maior nos campos do que nas cidades, o diminutivo representaria sobretudo um trao da fala rural. A profuso destas formas diz Alonso denuncia um carter cultural, uma forma socialmente plasmada de comportamento nas relaes coloquiais, que a reiterada manifestao do tom amistoso em quem fala e sua petio de reciprocidade. Os ambientes rurais e dialetais que criaram e cultivam essas maneiras sociais costumam ser avessos aos tipos de relaes interpessoais mais disciplinadas das cidades ou das classes cultas, porque os julgam mais convencionais e mais insinceros e inexpressivos do que os seus. Cf. Amado Alonso, Nocin, Emocin, Accin y Fantasia en los Diminutivos, Volkstum und Kultur der Romanen, VIII, 1 (Hamburgo, 1935), pgs. 117-18. No Brasil, onde esse trao persiste, mesmo nos meios mais fortemente atingidos pela urbanizao progressiva, sua presena pode denotar uma lembrana e um survival, entre tantos outros, dos estilos de convivncia humana plasmados pelo ambiente rural e patriarcal, cuja marca o cosmopolitismo dos nossos dias ainda no conseguiu apagar. Pode-se dizer que um trao ntido da atitude cordial, indiferente ou, de algum modo, oposta s regras chamadas, e no por acaso, de civilidade e urbanidade. Uma tentativa de estudo da influncia exercida sobre nossas formas sintticas por motivos psicolgicos semelhantes encontra-se em Joo Ribeiro, Lngua nacional (So Paulo, 1933), pg. 11.
[9] Ou sejam as categorias: 1) de parentesco; 2) de vizinhana; 3) de amizade.
[10] Andr Siegfried, Amrique latine (Paris, 1934), pg. 148.
[11] Prof. Dr. Alfred Von Martin, Kultursoziologie des Mittelalters, Handwrterbuch der Soziologie (Stuttgart, 1931), pg. 383.
[12] Ferno Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil (Rio de Janeiro, 1925), pg. 334.
[13] Auguste de Saint-Hilaire, Voyage au Rio Grande do Sul (Orlans, 1887), pg. 587.
[14] Rev. Daniel P. Kidder, Sketches of residence and travels in Brazil, (Londres, 1845), pg. 157.
[15] Thomas Ewbank, Life in Brazil or a journal of a visit to the land of cocoa and the palm (Nova York, 1856), pg. 239.