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“Cidadania cordial”, “urbanidade blefe”, “sociabilidade espetacularizada” e “política factoide”: elementos da produção dos espaços públicos em Salvador. Thais de Bhanthumchinda Portela Professora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/FAUFBA, Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. [email protected] Jurema Moreira Cavalcanti Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA. [email protected] Luis Guilherme Albuquerque de Andrade Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA. [email protected] RESUMO Entendendo a subjetividade como indutora das práticas humanas na cidade e problematizando através de conceitos conhecidos a produção dessa subjetividade – “cidadania cordial”, “urbanidade blefe” e “sociabilidade espetacularizada” – o presente artigo busca uma reflexão sobre a atual produção dos espaços de Salvador por meio de uma política “factoide” criada pelos gestores do poder público. Como estudo de caso, o texto apresenta uma breve análise de dois planos de intervenção elaborados para região do Largo Dois de Julho na última década: o projeto vencedor do concurso promovido em 2002 pelo IAB/BA e o mais recente “Projeto de Humanização Santa Tereza”, apresentado pela Prefeitura de Salvador. Essa reflexão procura um entendimento dos desdobramentos dessas intervenções nas configurações social, espacial e política do bairro e consequentemente da cidade. PALAVRAS-CHAVE: Subjetividade, Politica Factoide, Espaço Urbano, Gestão Pública.

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“Cidadania cordial”, “urbanidade blefe”, “sociabili dade espetacularizada” e “política factoide”: elementos da produção

dos espaços públicos em Salvador.

Thais de Bhanthumchinda Portela Professora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/FAUFBA, Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. [email protected] Jurema Moreira Cavalcanti Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA. [email protected] Luis Guilherme Albuquerque de Andrade Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBA. [email protected]

RESUMO

Entendendo a subjetividade como indutora das práticas humanas na cidade e problematizando através de conceitos conhecidos a produção dessa subjetividade – “cidadania cordial”, “urbanidade blefe” e “sociabilidade espetacularizada” – o presente artigo busca uma reflexão sobre a atual produção dos espaços de Salvador por meio de uma política “factoide” criada pelos gestores do poder público. Como estudo de caso, o texto apresenta uma breve análise de dois planos de intervenção elaborados para região do Largo Dois de Julho na última década: o projeto vencedor do concurso promovido em 2002 pelo IAB/BA e o mais recente “Projeto de Humanização Santa Tereza”, apresentado pela Prefeitura de Salvador. Essa reflexão procura um entendimento dos desdobramentos dessas intervenções nas configurações social, espacial e política do bairro e consequentemente da cidade.

PALAVRAS-CHAVE :

Subjetividade, Politica Factoide, Espaço Urbano, Gestão Pública.

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“Cidadania cordial”, “urbanidade blefe”, “sociabili dade espetacularizada” e “política factoide”: elementos da produção

dos espaços públicos em Salvador.

O Estatuto da Cidade aponta que o uso do solo urbano deve ser determinado prioritariamente a partir de uma função social. Entretanto, os espaços das cidades brasileiras estão na contramão deste princípio e o direito de propriedade e caráter dos interesses privados é que vem determinando o uso do solo, prioritariamente para uma função mercadológica. Havendo um mercado de construção civil medianamente organizado e articulado com as instâncias governamentais da região este fenômeno de produção do solo urbano enquanto mercadoria se instala, muitas vezes com recursos públicos, diga-se de passagem.

A voracidade dos interesses particulares ligados a uma especulação capitalística no uso do solo urbano acontece da micro à macro escala de intervenções no espaço urbano e corrói a esfera pública arduamente conquistada pelos cidadãos dos movimentos sociais, da academia, dos políticos e de todos aqueles ligados à luta pelo direito à cidade presente no Estatuto da Cidade.

Poderíamos ficar neste texto provando a veracidade do fato, mas cremos que esta realidade é, por demais, evidente para gastarmos as poucas linhas que temos aqui com essas estatísticas. Olhemos apenas as paisagens das nossas cidades, tomemos como prova o skyline de cada uma delas. O que nos interessa não é provar o fenômeno e sim perguntar: por que ele se estabeleceu com essa intensidade? Por que nossas cidades, tendo o Estatuto da Cidade como parâmetro legal e jurídico, ficaram tão a mercê dos interesses especulativos capitalísticos e perderam, ou estão perdendo cada vez mais, a potência para o uso social do solo e da participação ativa do interesse coletivo na determinação desses usos? Por que as configurações territoriais das cidades herdadas de longos processos de luta urbana estão sendo atualizadas sem que possamos impedir as remoções de populações pobres em nome de um novo desenvolvimentismo espetacularizado?

De acordo com Milton Santos (2001), as configurações territoriais são o conjunto dos sistemas naturais, herdados por uma determinada sociedade, e dos sistemas de objetos técnicos e culturais historicamente estabelecidos. As configurações territoriais são apenas condições que se atualizam e advém de ações que foram ou estão sendo realizadas sobre essas mesmas configurações. Tomando esse pensamento gostaríamos, neste texto, de refletir sobre as ações que configuram o território e seu conjunto de sistemas, mas em um viés pouco usual no campo do planejamento urbano: a subjetividade.

É a subjetividade que estabelece parâmetros para as ações. Ela tensiona a cultura vigente nas ações discursivas e práticas que configuram os territórios. Se os parâmetros para as ações são a sociabilidade, a urbanidade e a cidadania, cabe a nós tentar entender quais são os modos de subjetivação que estão atualizando e dando sentido à esses termos: é a racionalidade eurocêntrica da qual adveio esses mesmos termos; e a subjetividade passiva de consumidores da sociedade do espetáculo; é a identidade nacional brasileira calcada no jeitinho, é o quê?

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Queremos refletir sobre este assunto porque essas ações são historicamente estabelecidas e reconfiguram o conjunto de sistemas. Mas, para o campo do planejamento urbano e do urbanismo, locados na grande área das ciências sociais aplicadas, a subjetividade não é uma questão “científica” séria porque não se pode diagnosticar/medir/quantificar/inferir o “interior” subjetivo do sujeito (seja ele indivíduo ou coletivo). Apesar das ciências já terem se repensado nas últimas décadas, ainda não conseguimos tratar das emoções, dos sentimentos, do imaginar/fabular o mundo e a própria existência dos sujeitos no campo do urbanismo – e quando mesmo assim tentamos, não somos levados muito a sério.

Mesmo sendo incomum, no campo de estudos ao qual pertence o urbanismo e o planejamento urbano, entendemos que o conceito de subjetividade é de fundamental importância para a compreensão da atual configuração territorial de nossas cidades. Subjetividade, de acordo com Guattari (1992, p. 19), é "o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial". A subjetividade não é, portanto, entendida como a intimidade interiorizada de um sujeito. Pensamos este conceito como modos de ação (discursos e práticas) que criam territórios existenciais para o sujeito, seja ele indivíduo e/ou coletivo. Os modos de subjetivação estão inscritos tanto no individuo como no coletivo que compartilha particularidades em um campo social, conectando processos grupais como, por exemplo, a produção de identidades.

“E eu nem diria que esses sistemas são ‘interiorizados’ ou ‘internalizados’ [...] e que implica uma idéia de subjetividade como algo a ser preenchido. Ao contrário, o que há é simplesmente uma produção de subjetividade. Não somente uma produção da subjetividade individuada – subjetividade dos indivíduos – mas uma produção de subjetividade social, uma produção de subjetividade que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo.” (GUATARRI; ROLNIK, 1993, p. 16).

Mas, aceitemos essa condição de pouca ciência. Perdemos nossa seriedade para ganhar uma pequena possibilidade de reflexão (permitam esse pequeno exercício de liberdade) intentando entender o desmantelamento dos interesses públicos em favor do mercado especulativo no uso do solo, que vem ocorrendo nas nossas cidades. A sociabilidade, a urbanidade e a cidadania, enquanto modos de subjetivação que se atualizam por discursos e práticas, não são entes fantasmagóricos que povoam um inconsciente indiferenciado no interior de um sujeito esclarecido e civilizado. São, isso sim, práticas e discursos de sujeitos corporificados, que produzem e são produzidos continuamente, nem sempre de modo coerente com a ideia racional eurocêntrica de sociabilidade, de urbanidade e de cidadania construída pela Cartilha dos Direitos Humanos e atualizada pelas Nações Unidas em cada ação.

A não coerência pode ocorrer, como aponta Guatarri, porque diferentes registros semióticos, que engendram a subjetividade, não mantêm relações hierárquicas obrigatórias, fixadas definitivamente. Guatarri dá o exemplo dos índices das Bolsas de Valores, que aparentemente se movem por critérios objetivos e racionais, mas que cotidianamente se alteram diante de especulações, daí a subjetividade ser considerada plural e polifônica, “ela não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca” (GUATARRI, 1992, p. 11).

Por não buscar a conexão, e sim uma reflexão sobre a subjetividade inerente às ações que configuram os territórios urbanos e que compactuam, concordando ou não, com o

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desmantelamento dos interesses públicos em favor do mercado especulativo no uso do solo é que chegamos à “cidadania cordial”, a “urbanidade blefe” e a “sociabilidade espetacularizada”. Entendemos que os registros dissonantes aqui engendrados ajudam a entender a produção da política “factoide”, que é o retrato cabal do Estado enquanto agente facilitador dos interesses privados do mercado especulativo do solo urbano, sem que ocorram rupturas graves e com consequências fundamentais na atual produção do espaço das cidades brasileiras em geral, mas de modo particular nessa nossa Cidade do Salvador.

1. Cidadania “cordial”

Cidadania: Qualidade de cidadão.

Cidadão: 1. Indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado ou no desempenho de seus deveres para com este. 2. Habitante de uma cidade. 3. Individuo, homem, sujeito (FERREIRA, 1975)

Cidadania é um termo que só tem sentido ao lado do termo Estado. Um é colado ao outro. A cidadania brasileira, por exemplo, só tem sentido ao lado do Estado-Nação Brasil. Mas qual é a qualidade desse cidadão brasileiro e desse Estado-Nação Brasil? Qual é o território existencial auto-referencial que inventa o ser cidadão brasileiro, ser cidadão baiano, ser cidadão soteropolitano? E que cidadania é possível a partir desse modo de subjetivação?

No início do século passado vários autores nacionais buscaram entender essa questão, usualmente em uma interpretação negativa do que era ser brasileiro: agremiação de três raças tristes, o negro escravo africano, o amarelo índio brasileiro e o branco português desterrado que fizeram, por preguiça, luxúria, conformidade, etc. um país pobre, agrário e exportador. Oliveira Vianna (2005) trata o brasileiro como tendo uma existência quieta e conformada, um povo quase sem linguagem dado seu temperamento rural, sem identidade coletiva e “insolidário”. Paulo Prado (1997) apresenta o brasileiro como um ser melancólico, surgido no encontro da cobiça e da luxúria dos portugueses com os índios e negros nos tempos coloniais, mentalidade essa agravada pelo período histórico onde predominava o romantismo europeu. Éramos o Jeca Tatu de Monteiro Lobato.

Para Sales (1994), esse homem cordial ainda explica o Brasil porque “representa a nossa impossibilidade de atingir uma ordenação impessoal que permita a ruptura com os padrões privatistas e particularistas dominantes no sistema e na família patriarcal”. Sérgio Buarque de Holanda (1995) fazia uma leitura mais “suave”. O brasileiro era um homem cordial, dominado pelo afeto das coisas que vinham do coração (cordis) e pouco ligado à racionalidade e ao processo civilizatório. As ações do homem cordial “quebravam” distâncias sociais e econômicas pela produção de um território auto-referencial familiar, íntimo e privado em detrimento da polidez e distância conveniente à co-presença civilizada dos diferentes na esfera pública, essa era nossa qualidade e nossa fraqueza.

“a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal.” (HOLANDA, 1984, p.106-7)

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“O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição [ e ] só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade.[...]” (HOLANDA, 1984, p.45)

Com os modernistas a interpretação dos intelectuais para o que vinha a ser o brasileiro segue o princípio da dubiedade de Buarque de Holanda. Éramos um príncipe branco ou um negro matreiro a depender da ocasião, pela antropofagia (re)elaborávamos valores estrangeiros tornando-os nossos ao mesmo tempo em que cordialmente tornávamos o “patrão/colonizador” nosso “padrinho”. De Jeca Tatu passamos à Macunaíma e nos tornamos “malandros”, “lúdicos”, “informais”. De país agrário exportador viramos o país do samba e do futebol, um país cujo povo não precisa se esforçar no trabalho porque já nasce com o talento e a esperteza necessária para “ganhar a vida”.

Ao mesmo tempo, por essa época estávamos construindo a identidade do brasileiro trabalhador. A Constituição de 1937 já citava/legitimava socialmente essa categoria – do mesmo modo que o Estatuto da Cidade legitima os movimentos sociais urbanos. Getúlio Vargas era o motor desse novo modo de subjetivação do ser brasileiro. Como canta o enredo da escola de samba Portela (2000): “Aclamado pelo povo o Estado Novo/ Getúlio Vargas anunciou/ A despeito da censura/ Não existe mal sem cura/ Viva o trabalhador ôôô”. Éramos, por fim, um povo honesto e trabalhador.

Todas essas identificações são produções de modos distintos de subjetivação, que por mais contraditórios que sejam produzem e atualizam o sentido do que vem a ser esse cidadão brasileiro, baiano ou soteropolitano. Somos trabalhadores honestos sim, mas ao mesmo tempo temos talento e esperteza para ganhar a vida, cordialmente. Somos cidadãos sim, mas que ainda hoje pelas ruas de Salvador realizamos nossas relações assim: “Venha minha tia, venha meu tio, resolva aqui o meu problema!”. Somos “cidadãos cordiais”. Negamos a corrupção, mas se precisar inventamos laços de afeto e familiaridade para garantir certos privilégios, que no final seriam, por si só, direitos de cidadania já adquiridos em nossas leis. Como é comum por aqui usarmos nomes de pessoas conhecidas para resolvermos nossos problemas cotidianos nos cartórios, prefeituras, escolas, hospitais, etc., usamos de nossa cordialidade, nossos laços afetivos e familiares, para garantir que o nosso interesse particular sobreponha-se aos interesses outros. Negamos a corrupção, mas compactuamos com ela na medida do nosso interesse particular.

Falamos aqui do que é uma compreensão da nossa cidadania, no sentido da qualidade daquele que habita a cidade, que está no nosso senso comum. Damos nomes a esse modo de ser cidadão, quem não conhece o jeitinho brasileiro ou a expressão "sabe com quem está falando?" que Roberto DaMatta trata no livro Carnavais, Malandros e Heróis, para explicar as implicações da hierarquia e da diferenciação entre indivíduo e pessoa na sociedade brasileira.

Citamos aqui autores como Sérgio Buarque, porque de certo modo nos parece que atualizamos uma compreensão dessa subjetividade coletiva brasileira do “homem cordial” em um contraditório “macunaíma-trabalhador-cidadão.” Uma subjetividade coletiva contraditória, na qual nos colocamos (aqui os autores também se implicam) como honestos cidadãos sim, mas que sabem dar um jeitinho de resolver todos os problemas e quando isso

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não funciona, usamos de nossas relações e soltamos um sonoro “sabe com quem está falando?”

Porque entender essas relações é tão importante? Porque temos essa enorme energia associativa – vide a História dos nossos movimentos sociais urbanos legitimados até na Constituição Federal – ainda que esta não produza uma urbanidade e uma sociabilidade com uma força ética tal que permita sobrepor os interesses coletivos aos interesses particulares, e extrapolando, os interesses do mercado aos interesses dos habitantes de toda a cidade? A esfera pública presente na vida urbana, a todo momento, torna-se refém dos interesse especulativos: vide a gestão da política habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida que privilegia as construtoras ao invés dos movimentos sociais ou o estado de exceção legitimado pela Lei da Copa para os megaeventos.

Talvez, por estarmos tão imbricados nesta subjetividade contraditória, pactuamos com uma política de Estado que também é conflitante. Essa política, ao invés de atuar de acordo com o estatuto jurídico brasileiro, mediando e mantendo os interesses coletivos/sociais, age como facilitadora dos interesses privados/particulares, porque ao fim e ao cabo não existe a política, existem sujeitos que atuam na esfera política, sujeitos esses, que partilham socialmente de uma subjetividade coletiva auto-referencial. E quando falamos aqui de sujeitos, não falamos do outro, e sim de nós mesmos, aqui autores e leitores do texto estão sendo implicados.

Ao Estado caberia a representação legal da sociedade como um todo e a promoção de ações discursivas e práticas de sociabilidade, de urbanidade e de cidadania que configurassem o território urbano a partir do bem coletivo – até mesmo em espaços de propriedade privada. Em tese, assim deveriam ser configurados nossos territórios urbanos, mas a nossa “cidadania cordial”, presente tanto no Estado como na vida cotidiana, faz o jogo virar para o lado contrário.

2. “Urbanidade blefe” Urbanidade: Qualidade de urbano; civilidade, cortesia, afabilidade. (FERREIRA, 1975)

Os sentidos da urbanidade – nossa civilidade, cortesia e afabilidade – quando vinculados à ideia do “macunaíma-trabalhador-cidadão”, adquire um caráter de blefe como acontece em um jogo de cartas como o pôquer. A civilidade, a cortesia e a afabilidade são a base de ações corriqueiras preestabelecidas nos contextos socais que servem para conduzir o convívio na vida urbana, na esfera pública. Mas quando as subjetividades coletivas presentes à essa vida urbana são contraditórias e voltadas para um interesse privado/particular, a urbanidade que lhe advém segue outras regras, não muito claras – daí a ideia do blefe.

No blefe joga se com uma expectativa, o que é dito e feito não necessariamente é que se pretende ou o que se deve fazer. Há uma expectativa de ganho, de levar vantagem em relação ao outro, e nesse jogo, alguns poucos ganham na maioria das vezes porque são espertos e dominam a arte do blefe e outros perdem na maior parte do tempo. Blefar é a arte de enganar, de esconder as condições do jogo para poder dominar o oponente e ganhar, mesmo em condições desvantajosas.

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Na esfera política estamos observando com as leis urbanas são utilizadas como parte de um blefe. Apesar de escritas com clareza e precisão, o abismo que separa o texto de sua aplicação é enorme. Quantas cidades brasileiras foram construídas em cima desta clareza legal e quantas estão sendo entulhadas diariamente a partir das brechas encontradas nas leis de ordenamento e uso do solo urbano? No âmbito privado a corrupção ativa talvez seja a grande promotora dessas incongruências urbanas. De braços dados com o recorte do setor público que pratica a corrupção passiva, as duas encerram o ciclo da produção das cidades brasileiras na contemporaneidade.

Entretanto, a demanda social pela corrupção extravasa o macro espaço das relações entre gestões públicas e as grandes empresas privadas. Ela está presente no micro, no cotidiano citadino, naquele que abomina a corrupção televisionada, mas que não vê problema em oferecer um “trocado pra cervejinha” ao guarda que pretende multá-lo por parar em local proibido, e que considera seu ato nada mais que uma ajuda mútua, ou novamente, o jeitinho brasileiro de ser.

A relação desta forma de urbanidade com os processos de urbanização da cidade se torna visível quando a opinião de uma minoria consegue dificultar ou impedir a realização de determinadas ações que beneficiariam a coletividade. Apresentaremos aqui um caso1 em que observamos essa imposição, esse blefe, agir durante a implantação de um projeto urbanístico. O consultor do projeto, em uma entrevista colocou o seguinte:

“Nessas horas o poder público é essa coisa ambígua, ele é fraco, quer dizer, uma questão de interesse público... um indivíduo... ele simplesmente impediu uma solução pra não litigar com esse indivíduo. E noutros momentos o poder público passa por cima de tudo e de todos pra atender ao seu interesse...” (AMOEDO,2012)

Temos assim a ideia do “cidadão cordial” e da “urbanidade blefe” que se desenrolam em uma “sociabilidade espetacularizada”

3. “Sociabilidade espetacularizada”

Sociabilidade: [do latim, ‘que pode ser unido’] 1. Qualidade de sociável. 2.Tendencia para a vida em sociedade; socialidade. 3. Maneiras de quem vive em sociedade. (FERREIRA, 1975)

“Essa sociedade que modela tudo o que a rodeia edifica sua técnica especial trabalhando a base concreta deste conjunto de tarefas: o seu próprio território. O urbanismo é a tomada do meio ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver-se em sua lógica de dominação absoluta, refaz a totalidade do espaço como seu próprio cenário” (DEBORD, 2003, p.110).

Os espaços construídos por um urbanismo que projeta cenários para valorizar o potencial das cidades enquanto mercadoria cultural tem no museu de Beaubourg, em Paris no final da década de 1970, seu modelo inaugural que vem sendo aprimorado por estratégias de requalificação, revitalização e de renovação em todo o mundo – a exemplo de Barcelona, seguida dos Grandes Projetos de Paris da era Miterrand, nos projetos de Bilbao, Lisboa e, por consequência e repetição (assim como as “caixas de sapato” modernistas), na maioria das cidades que entraram na competição do city marketing.

1 Aqui tratamos da implantação do projeto vencedor do concurso do IAB/BA em 2002

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Seguidores dessa nova modelagem pós-moderna de “culturalização” dos espaços urbanos, num fluxo de conhecimento, que sempre se inicia nos países centrais para os periféricos, os capitais empreendedores de cada uma destas cidades passaram a apoiar a produção destes instrumentos que legitimavam suas intervenções empreendedoras, principalmente depois de descobrirem o quanto o trato com a cultura é lucrativo para os negócios e deste modo valorizado no ranking global de competitividade.

A lógica utilitária e mercantil agrega-se aos planos estratégicos de desenvolvimento urbano, derivados do encontro dos interesses do setor privado com o setor público e, particularmente e muito usualmente, financiados pelos recursos deste último:

“Para variar a receita veio dos Estados Unidos. E, com ela, outra palavra-isca, a famigerada ‘revitalização urbana’, bem como seus derivados não menos famigerados: a ‘parceria’ entre setor público e iniciativa privada, encarregada por sua vez de ‘alavancar’(outro neologismo ianque – to levarage) investimentos privados com os fundos públicos [...] O roteiro que adota este último [multiplicação das réplicas de ‘requalificações’] é no fundo o da periodização do ‘espetáculo urbano’: a substituição pós-moderna do espetáculo como forma de resistência ou de festa popular revolucionária pelo espetáculo como forma de controle social (ARANTES,2000, p.22)

Nas últimas décadas esse campo disciplinar cresceu cada vez mais formalizando os espaços públicos urbanos, inserindo nesses os cenários culturais espetaculares e tranquilamente palatáveis, seguros e disciplinados. Gasta-se o esforço de criação para a produção desses cenários, já digeridos dos valores e contextos culturais de diferentes minorias artísticas, sociais, culturais, etc. (ver o Pelourinho em Salvador ou a Cidade do Samba no Rio de Janeiro), ao invés de investir o capital intelectual do urbanismo para gerar debates e processos que produzam instrumentos que efetivamente lidem com a vida na cidade real/cotidiana.

Existe a impressão de que os processos sociais do cotidiano – esses que estão na vida urbana, que são da cultura erudita e das culturas outras, que é complexa e contraditória – só entram em discussão no urbanismo quando são necessários para legitimar esta ou aquela política ou empreendimento. Esses usam o discurso da cidadania, da re-vitalização, re-qualificação, da re-humanização para formalizar uma imagem de “urbanidade reformada” nos espaços públicos renovados. E a imagem é sedutora, ela captura os desejos e produz novos sentidos para nossa subjetividade coletiva. O desejo aqui é tratado:

“Como consideramos o desejo? Todos os modos de elaboração do desejo e, antes de mais nada, todos os modos concretos pragmáticos de desejo, identificam essa dimensão subjetiva a algo da ordem do instinto animal, ou de uma pulsão funcionando segundo modos semióticos totalmente heterogêneos em relação aos de uma prática social. Podemos nos referir tanto às teorias clássicas da psicanálise, quanto às estruturalistas, nesse ponto pelo menos dá na mesma. Para qualquer uma dessas teorias ‘o desejo é legal, tudo bem, é muito útil’, mas é preciso que ele entre em quadros – quadros do ego, quadros da família, quadros sociais, quadros simbólicos [...] trata-se de uma teoria profundamente questionável. O desejo, em qualquer dimensão que se o considere, nunca é um energia indiferenciada, nunca é uma função de desordem. Não há universais, não há uma essência bestial do desejo. O desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de construção de algo (GUATARRI; ROLNIK, 1993, p.216, grifo nosso).

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O urbanismo é, em muitos momentos, a disciplina que mais colabora com os interesses hegemônicos do mercado e do Estado, que ordenam, disciplinam e controlam o espaço urbano para si e o discurso de um termina por legitimar o outro. E as pessoas que habitam a cidade da vida urbana cotidiana, que não estão na esfera pública da imagem publicitária e sim nas ruas, nas lojas, nas escolas, nos hospitais? Essas não tem como contratar arquitetos urbanistas que formalizam suas propostas, por isso ficam por conta própria para lidar com seus problemas.

“A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular corresponde outra produção, qualificada de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos impostos por uma ordem econômica dominante” (CERTEAU, 1994, p. 39).

Certeau, afirma ainda que “o homem ordinário” inventa o cotidiano com mil maneiras de “caça não autorizada”, escapando silenciosamente a essa conformação. Essa invenção do cotidiano se dá graças ao que chama de “artes de fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência” que vão alterando os objetos e os códigos, e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um. Como ele, acreditamos na possibilidade da multidão anônima abrir o próprio caminho no uso dos produtos impostos pelas políticas culturais, numa liberdade em que cada um procura viver, do melhor modo possível, a ordem social e a violência das coisas.

Entretanto, mesmo havendo resistências, estamos todos cercados por essa “sociabilidade espetacularizada”, isso equivale dizer que, no caso de Salvador, vivemos todos na “Cidade da Alegria”, na “Roma Negra”, uma cidade que vai do Pelourinho, passa pelo Farol da Barra e termina em Ondina e por onde desfilam corpos esculturais, corpos plenos de uma negritude assumida e de uma arquitetura colorida.

4. “Política factoide” Factual: [do latim, factu, ‘feito’] relativo a, ou que se baseia em fatos. (FERREIRA, 1975) No port. -óide (esp. -oide, it. -oide), cujo uso se tem expandido fortemente, no lat.cien. do séc. XVI em diante, nos vern. do séc. XVIII, em especial do séc. XIX em diante; seu uso psiquiátrico (esquizóide, paranóide) tem sido, por fim, fonte de seu uso com matiz pejorativo. Intelectualóide. (HOUAISS, 2001)

De acordo com Saïd Farhat no “Dicionário parlamentar e político: o processo político e legislativo no Brasil” (1996), a palavra factoide foi criada por Alberto Dines em um texto intitulado “Teoria e prática do factoide” e introduzida na política brasileira, em 1995, pelo então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia. Em uma entrevista à revista Veja, respondendo à pergunta: “Como você contamina a opinião pública?” ele respondeu: “É muito simples. Basta que eu elabore uma ideia com uma imagem muito nítida. Fatos que tenham conteúdo não tem a menor importância, porque a imagem é hegemônica sobre o conteúdo dos fatos.” Os factoides são fatos inventados, que não existem, mas “podem vir a existir”. Esse tipo de política é histórica no país, vide Getúlio Vargas ou Jânio Quadros, precursores do marketing político e dos factoides, antes dessa palavra existir. Ambos sabiam manipular e excitar as paixões populares e simulando cenas e criando frases de ocasião, blefes, por assim dizer.

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A política de lançar mão dos factoides sejam eles projetos, ideias ou programas é ainda vigente e perceptível nas diversas escalas de governo, amparada pelo sistema de produção que está por trás dela. Ora, se um forte indicador para avaliar a eficácia de uma gestão consiste na execução do orçamento disponível, como evitar que os recursos públicos sejam gastos em propostas contraditórias, se esta prática produz uma imagem favorável de boa gestão e de capacidade de investimento?

Projetos elaborados para transformar as cidades-sede dos jogos da Copa do mundo/ FIFA em “Cidades Mundiais2” estão, a todo momento, criando a “urbanidade blefe” dentro da “sociabilidade espetacularizada” e aceitamos porque somos “cidadãos cordiais”. São projetos prontos que estão sendo implantados sem a menor participação da sociedade, através de legítimos estados de exceção, vide a Lei da Copa. Mas esse mesmo quadro é desenhado para projetos de intervenção de menor escala. E nesses, a lógica da produção de factoides cresce exponencialmente, principalmente nos últimos anos em Salvador. Essa ideia de “política factoide” também está relacionada a incapacidade de gestão administrativa em conduzir processos de produção qualificado dos espaços públicos. Muitas são as propostas apresentadas pelo governo municipal, tais como os projetos Salvador Capital Mundial e a re-humanização de Santa Tereza, que se propõem claramente a atender aos interesses do mercado, entretanto, a ingerência é de tal ordem que nem mesmo o capital imobiliário com toda sua máquina produtora de “sociabilidades espetacularizadas” consegue agir em seu interesse na produção desse espaço.

5. Elementos da produção dos espaços públicos em Salvador: um caso.

O desejo constante de reconstrução dos espaços da cidade conduz os administradores públicos a promover planos de reurbanização, requalificação, etc. numa estratégia de autopromoção política, ainda que em discurso apresentem-se enquanto medida de beneficiamento da população envolvida. Tal estratégia, também vem atrelada a um interesse dos agentes financiadores que, logicamente, propiciam tal investimento em troca de benefícios particulares.

Dentro de nossa proposta de reflexão, levantamos alguns exemplos de projetos apresentados para Salvador que de alguma maneira estivessem atrelados a essa política factoide, evidenciando os modos se subjetividade já expostos. Aqui abordamos dois projetos em particular, que tratam da mesma região da cidade, o Largo Dois de Julho: o projeto vencedor do concurso promovido em 2002 pelo IAB/BA e o mais recente “Projeto de Humanização Santa Tereza”, apresentado pela Prefeitura de Salvador.

Em 2002 o IAB/ BA, na tentativa de democratizar o acesso aos projetos públicos, abriu um concurso nacional para a reurbanização de dois espaços: a Praça Cairu e o Largo Dois de Julho. “Quem venceu a Praça Cairu foi a equipe coordenada por Luís Antônio, (da qual) participava Pasqualino [...] e esse daqui foi Sérgio Sá coordenador da equipe do Dois de Julho”. (AMOEDO,2012)

2 Ver Projeto Salvador Capital Mundial em: <http://www.capitalmundial.salvador.ba.gov.br> e <http://www.youtube.com/watch?v=1uRBwpRthtQ>. Capturados em: 07/07/2012

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Segundo Floriano F. Amoedo3, a proposta consistia em “revitalizar essa conexão entre o Centro e a Cidade Baixa, no que havia de possibilidade dentro da poligonal de intervenção do projeto”, “humanizar” o largo e “diminuir o conflito entre pedestre e automóvel”. Para tanto, a proposta foi desenvolvida na tentativa de “apropriar espaços que estão subutilizados em quintais mortos, como áreas de playgrounds pra crianças, de praças...”, manter a ligação de veículos da Rua do Cabeça até Santa Tereza e criar “um estacionamento em vários níveis” – com prédio de escritórios pra financiar o investimento – que faria com que as pessoas que viessem da Cidade Baixa pudessem entrar no estacionamento e deixar os automóveis sem precisar entrar na praça”.

Muitas propostas, entretanto, não foram viabilizadas, boa parte pela dificuldade na implantação das parcerias público-privadas, que seriam responsáveis pela gestão do edifício de escritórios e o estacionamento. Em outros casos pela indisponibilidade da prefeitura em negociar com alguns comerciantes e condôminos em meio a um período pré-eleitoral. Num caso que nos foi relatado, para que uma das ruas da área de intervenção pudesse servir de acesso a automóveis e pedestres era necessário que as fachadas das edificações fossem recuadas. Os projetistas, por sua vez, se dispuseram a conversar com os envolvidos, que aceitaram prontamente a sugestão, com exceção do arrendatário de uma padaria – o que acabou inviabilizando a execução da proposta. Esse fato exemplifica o que chamamos inicialmente do uso da cordialidade. Nesse episódio, foi mais fácil alterar o projeto do que se indispor em defesa de uma a solução que melhor atenderia ao interesse coletivo. Por fim a execução do projeto foi parcial, a obra limitou-se à área do largo, propriamente dito.

Figura 1: Plano geral de intervenção – Proposta vencedora do Concurso em 2002

Fonte: Arquivo FFA (Floriano Freaza Amoedo Arquitetura e Urbanismo)

3 Consultor do projeto vencedor do concurso do IAB/BA para o Dois de Julho em 2002

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Figuras 2 e 3: Áreas que sofreram intervenção – Largo Dois de Julho e Largo do Mocambinho

Fonte: Arquivo FFA (Floriano Freaza Amoedo Arquitetura e Urbanismo)

Dez anos após o concurso que propunha a revitalização do Dois de Julho, a atual gestão municipal apresentou o esboço do projeto “Santa Tereza – Humanização do Bairro”. Uma série de pormenores não foi esclarecida, mas diversas vozes opinaram sobre o que deveria, ou o que parecia ser o projeto.

Para o Governo:

“O projeto consiste na revitalização da área, a partir da restauração de imóveis antigos, construção de áreas de lazer, melhoria das calçadas e na iluminação pública. A ideia é que haja investimento de empresários, do governo federal. Os moradores da região devem receber incentivo fiscal para contribuir com o ‘novo bairro4.”

Segundo o Secretário de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente (SEDHAN) “o objetivo é criar [...] identidade e autoestima na comunidade, valorizar o patrimônio histórico e cultural, além de estimular novos empreendimentos5”. Por último,

4< http://www.metro1.com.br/portal/?varSession=noticia&varEditoriaId=5&varId=4044>. Capturado em 06/07/2012. 5 <http://salvadoremumdia.blogspot.com.br/2012/04/projeto-para-o-bairro-santa-tereza-foi.html>. Capturado em 06/07/2012.

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"busca-se contar com a captação e aplicação de recursos, através de diversas parcerias: Estado/ Município/ empresariado local/ comunidade/ ONGs, Governo Federal e, até mesmo, daqueles provenientes de Instituições Financeiras Internacionais para mudar a realidade e proporcionar um ‘upgrade’ à imagem do bairro6”.

Figura 3: Plano geral da intervenção proposto pela Prefeitura Municipal em 2012

Fonte: Prefeitura Municipal de Salvador

Para os empresários: “O nome Santa Tereza é uma homenagem ao antigo Convento de Santa Tereza de Ávila, fundado no século XVII pelos Carmelitas Descalços, na Cidade do Salvador, que à época era a capital do Brasil”. A intensão é de “revitalizar radicalmente algumas áreas entre as Avenidas Contorno e Carlos Gomes, e entre a Praça Castro Alves e a Ladeira dos Aflitos, passando pela Rua do Sodré, adjacências do Largo Dois de Julho e Ladeira da Preguiça”. O objetivo é dar “nova função a muitos dos casarões em ruínas do Centro de Salvador” e, apesar de ser definido como um “projeto audacioso de reabilitação urbana”, a proposta está sendo comparada às “requalificações urbanas privadas realizadas em bairros, até então decadentes, como o Soho, em Nova Iorque, a Havana Vieja, em Cuba e o Puerto Madero, em Buenos Aires7”.

6 <http://issuu.com/cideu/docs/humaniza__o_de_bairro_santatereza>. Capturado em 07/07/2012. 7 <http://www.tribunadabahia.com.br/news.php?idAtual=61796>. Capturado em 17/07/12

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Para a população: A preocupação maior é com “fortes indícios de uma intervenção que assume, unilateralmente, interesses econômicos do empresariado em detrimento do interesse coletivo e das demandas do conjunto de moradores e usuários do bairro Dois de Julho.8” (MOURAD; FIGUEIREDO In: A TARDE, 2012).

Segundo Wlamira Albuquerque, historiadora e moradora do Dois de Julho,

“A requalificação e a humanização, como têm sido propostas vai implicar um processo de exclusão deliberada a favor de investimentos privados de alto padrão da rede hoteleira. [...] Além de ser uma tentativa de apagar a memória do Dois de Julho, na medida em que se pretende criar um novo nome para se desfazer do estigma de decadência em que se encontra o local por irresponsabilidade do poder público, vai gerar a expulsão dos moradores, que não terão como arcar com custos de aluguéis e comércio mais caros9”.

O fato é que a proposta apresentada para o público, no intuito de afirmar a ideia de participação, previa a “revitalização da área compreendida entre o Largo Dois de Julho e o Convento de Santa Tereza10” para subsidiar os diversos empreendimentos de alto padrão que contemplarão a construção de “[...] residências de luxo, restaurantes, museus, cinemas, espaço para eventos e lojas diversas, havendo ainda espaço e demanda para lofts, hotéis, novos restaurantes, escritórios e estacionamentos11”.

Passados três meses após a primeira apresentação pública do projeto, a Prefeitura de Salvador decidiu suspender a realização do Projeto, diante da pressão dos movimentos e manifestações organizados por moradores e frequentadores do bairro contrários a implantação da proposta. Conforme comunicado do dia 30/07/2012:

“A Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Habitação e Meio Ambiente (Sedham) informa a desistência da execução do referido projeto, por entender que tal polêmica tem criado um clima de acirramento indevido, prejudicial aos reais interesses da cidade [...] A área que seria beneficiada pelo projeto sofre um contínuo e acentuado processo de degradação tendo justamente como principais prejudicados os seus atuais moradores. O projeto contemplaria ações de infraestrutura, paisagismo, implantação de áreas de lazer, plena acessibilidade para os portadores de necessidades especiais, valorização das atividades comerciais existentes, cursos de capacitação profissional para os moradores e atração de novas empresas para a geração de empregos com prioridade de contratação para a população local12”.

O mesmo comunicado informa ainda que “A prefeitura se vê obrigada a suspender a execução do projeto na área citada, iniciando imediatamente estudos para a identificação de outra área que possa vir a ser beneficiada pelas ações já planejadas pelos técnicos da Fundação Mario Leal Ferreira”. A nota da prefeitura demonstra claramente a intenção de sua proposta: como não foi aceita pela comunidade local – apresentados em discurso como os maiores 8 <http://atarde.uol.com.br/noticia.jsf?id=5851758>. Capturado em 07/07/12: Entrevista concedida pelas urbanistas Laila Mourad e Glória Figueiredo ao jornal Atarde. 9 <http://atarde.uol.com.br/noticia.jsf?id=5851758>. Capturado em 07/07/12). 10 <http://www.metro1.com.br/portal/?varSession=noticia&varEditoriaId=5&varId=4044>. Capturado em 06/07/2012) 11 <http://www.tribunadabahia.com.br/news.php?idAtual=61796>. Capturado em 17/07/12 12 <http://bahianoticias.com.br/principal/noticia/120109-prefeitura-desiste-de-projeto-de-requalificacao-do-2-de-julho.html>. capturado em 31/07/2012

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“beneficiados” do projeto – aponta o favorecimento de outra região da cidade, prevendo a utilização dos recursos que seriam destinados até então ao Dois de Julho/ Santa Tereza, buscando assim, uma nova localidade onde os futuros “favorecidos” sintam-se honrados em receber tais investimentos.

Na lógica da produção de factoides a preocupação é, antes de tudo, garantir o retorno do recurso investido (capital político). Não se põe em questão se haverá retorno do serviço público para a população, porque a lógica é de economista, não de política pública. O projeto então se torna um factoide “com estratégia de marketing, sem preocupação com a cidade, mas com a execução do orçamento” (AMOEDO, 2012) - sinônimo de boa gestão e de capacidade de investimento.

Ao relacionar a desistência da prefeitura aos conceitos trabalhados, cabem as perguntas: Quando então, podemos enxergar o sentido de urbanidade que permeia o poder público, se num momento absolutamente propício para dar início ao debate – que relacionaria os interesses dos moradores às possibilidades de investimento – a prefeitura simplesmente bate em retirada? Ou seja, a participação (defendida em todos os níveis de gestão e atestada pelo Estatuto da Cidade) é uma via de mão única e, só se torna possível, quando os técnicos e os gestores falam e a população escuta?

Ao mesmo tempo, constatamos que desta vez aqueles que costumam se utilizar do recurso “sabe com quem está falando?” não foram contemplados. Tudo indica que a resistência à implantação do projeto acabou empurrando-o para as vésperas do período eleitoral – considerado pela tradição eleitoreira um momento ruim para se tomar partido publicamente de uma minoria. Dessa forma, a melhor maneira de fazer uso do orçamento será encontrar um local onde haja a necessidade de uma “operação tapa buracos” que satisfaça a todos, eleitores e elegíveis.

Nesta partida o blefe incitou o aceite da aposta, dando ganho de causa ao seu oponente.

Referências

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