hoje precisei faltar a uma aula

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Hoje precisei faltar a uma aula (na verdade o dia inteiro) para resolver uns probleminhas com minha mão direita que insiste em não ficar boa de vez. No ponto de ônibus uma senhora aguardava a condução, e eu perdido, tabaréu na cidade alheia e manco da mão direita, sem saber andar nos lugares, perguntei se por ali passaria meu ônibus. A senhora sorriu e respondeu que sim, que estava no lugar certo e que dali a instantes o ônibus passaria. E reclamou da obra de pavimentação que a fez perder a condução, havia esperado por quase uma hora no ponto errado, e só então um passante a avisou que não era ali o ponto de parada. Essa senhora reclamava e sorria ao mesmo tempo. Logo outra senhora sentou-se e passamos a conversar os três: as duas eram pacientes vinculadas ao atendimento do SUS, sem plano de saúde. A primeira havia saído da consulta com o oncologista que surpreendentemente lhe havia informado que o medicamento utilizado no tratamento de câncer, e que segundo ela, até ali, era o que vinha prolongando sua possibilidade de permanecer viva, teria o fornecimento suspenso, devido principalmente ao seu alto custo, e, ainda em decorrência da desnecessidade de continuação do uso, já que – nesse momento pareceu discordar de seu médico - aparentemente ela estaria num estágio de recuperação que já não demandava mais a medicação. Era uma senhora negra, sorridente, poucos cabelos e de gestos largos que, entre uma frase e outra, acenava para o alto e afirmava sua fé num reiterado graças a deus. A outra senhora sentou-se e contou parte de seu drama. Havia perdido o transporte de

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Sobre o cancer

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Hoje precisei faltar a uma aula (na verdade o dia inteiro) para resolver uns probleminhas com minha mo direita que insiste em no ficar boa de vez. No ponto de nibus uma senhora aguardava a conduo, e eu perdido, tabaru na cidade alheia e manco da mo direita, sem saber andar nos lugares, perguntei se por ali passaria meu nibus. A senhora sorriu e respondeu que sim, que estava no lugar certo e que dali a instantes o nibus passaria. E reclamou da obra de pavimentao que a fez perder a conduo, havia esperado por quase uma hora no ponto errado, e s ento um passante a avisou que no era ali o ponto de parada. Essa senhora reclamava e sorria ao mesmo tempo. Logo outra senhora sentou-se e passamos a conversar os trs: as duas eram pacientes vinculadas ao atendimento do SUS, sem plano de sade. A primeira havia sado da consulta com o oncologista que surpreendentemente lhe havia informado que o medicamento utilizado no tratamento de cncer, e que segundo ela, at ali, era o que vinha prolongando sua possibilidade de permanecer viva, teria o fornecimento suspenso, devido principalmente ao seu alto custo, e, ainda em decorrncia da desnecessidade de continuao do uso, j que nesse momento pareceu discordar de seu mdico - aparentemente ela estaria num estgio de recuperao que j no demandava mais a medicao. Era uma senhora negra, sorridente, poucos cabelos e de gestos largos que, entre uma frase e outra, acenava para o alto e afirmava sua f num reiterado graas a deus. A outra senhora sentou-se e contou parte de seu drama. Havia perdido o transporte de enfermos da prefeitura, teria que viajar por meios prprios, retornava aps uma consulta com o ortopedista. Era uma senhora de pele clara e cabelos brancos, caminhava com certa dificuldade devido uma forte dor na coluna. E estvamos l ns trs. Eu calado, as observava e as ouvia. Pouco menos de uma hora e me solidarizei tanto com a histria daquelas duas senhoras que me emocionei profundamente. Falavam da dificuldade em utilizar o sistema nico de sade, da corrupo na prefeitura da cidade do interior, onde h trs cardiologistas e nenhum dos trs atendem pelo SUS, da dificuldade na obteno de medicamento de alto custo para prolongar a vida dos pacientes oncolgicos, do difcil relacionamento entre paciente e mdico-perito do INSS e da marcao e atendimento nos postos de sade no interior e da imensa fila para atendimento nos hospitais regionais. Observei apenas durante todo o tempo em que estivemos ali. E perdoem-me os professores pela ausncia, mas ali tive uma aula e uma lio que levarei por toda minha vida e em minha futura carreira mdica. Ainda que o sentimento imediato ali fosse de indignao com o tratamento que o Estado - sem responsabilizar esse ou aquele gestor da coisa pblica disponibilizava quelas suas senhoras, mes, avs, o sentimento que predominava ali era o de esperana e resilincia. A senhora cujo cncer transfigurou a aparncia, afirmou rindo que recebera, fazia pouco tempo, uma carta do SUS, lhe informando o valor do seu sofrimento: Um cncer de tero, que atingiu os pulmes e que depois de oito anos de luta e sofrimento, de quimio, rdio e tantas outras terapias, era trazido sob a forma de extrato, de valor em moeda corrente. E ela riu alto! E afirmou num desabafo, que a vontade que teve foi de responder a carta do SUS, inform-la que no era apenas mais um nmero nas estatsticas, que aquele valor gasto com seu tratamento era irrisrio em relao aos impostos que pagou durante toda uma vida. Eu ri tambm, e concordei com ela. A outra senhora, afastada pelo INSS, fez queixa do mdico-perito, que acreditava ser possvel mant-la trabalhando, ainda que uma dor lancinante percorresse sua coluna durante todo o dia. E ouviu uma piada: A senhora no caixa? No trabalha sentada? E foi a primeira queixa que ouvi especificamente acerca do trabalho do profissional mdico. Mas ainda assim, em de sua fala era possvel perceber o mdico-perito do INSS, como pertencente a uma outra categoria profissional, a dos peritos, tamanha a ausncia de humanidade naquele contato entre mdico/paciente. E inmeras reflexes me tomavam ali, enquanto via aqueles dois seres humanos to frgeis, e, ao mesmo tempo, absolutamente fortes, capazes de conviver com dores to fortes no corpo quanto esperana de permanecer viva ou to simplesmente, de p. E sorrir. No houve queixas dos mdicos. A culpa como dizia uma delas, no poderia ser atribuda ao mdico, e sim a um sistema (SUS) que limita a dignidade da promoo da sade quelas pessoas que mais precisam. Meus olhos se encheram de lgrimas ao me despedir das duas, foi quando falei baixinho que estava iniciando os estudos para me tornar mdico e me despedi, ao entrar no nibus, o que ouvi, acho que nunca vou esquecer: V meu filho, v ser um mdico bom, disse uma. E a outra completou: Vai sim, voc sabe ouvir as pessoas. Seja um bom mdico. Vou me esforar, prometo.