hitler e buñuel

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HITLER E BUÑUEL

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Um texto teatral de Antonio Caetano (www.cafeimpresso.com.br). Leitura livre.

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HITLER E BUEL

HITLER E BUUEL

Era tudo falso e profundo, irreal ao mesmo tempo.

Eu era pela tagarelice total.

A gente devia apelar para a maluquice.

As pessoas j tiveram a sua cota de enredo e personagem.

Henry Miller

O telefone-lagosta em um pedestal. O telefone-lagosta toca insistentemente.( importante q o telefone j esteja tocando quando a platia ainda estiver no saguo, esperando a abertura das portas e o incio da pea)No palco, Hitler se apronta.

H sculos, Hitler aguarda que algum atenda.

Ele se ajeita, anda, pra, ansioso.

O telefone-lagosta toca. Ele no atende. Ningum atende.

Entra Buuel.

Ele vem devagar, tomando conhecimento do lugar, procurando o telefone com os olhos. Parece se surpreender ao descobrir que o telefone-lagosta que toca.

Hitler, que percebera sua entrada, o espreita das sombras.

Buuel contempla o telefone-lagosta - memria de Dal ainda jovem, signo de um tempo bom, objeto-cmplice pulsando como se o chamasse - e avana para ele, admirado, sem se dar conta de Hitler.

Quando vai atender finalmente o telefone, Hitler salta e Buuel estanca. Os dois se medem no olhar: dio, nos olhos de Hitler; desdm, nos olhos de Buuel. O telefone pra de tocar.

LB: Parou de tocar...

AH: Estava tocando h uma eternidade.LB: Eu sei. Eu ouvia. Por isso, eu vim. Vim atender a chamada.

AH: , mas desligaram.LB: No comeo, h muito, muito tempo, mas ainda to vivo que parece ontem, eu ouvia apenas um rudo vago e distante. Dia a dia, o som foi se tornando mais claro. Um telefone... E cada vez mais prximo. Cada vez mais ntido, mais ntimo e familiar...

O telefone me guiava como uma luz...

Quantas vezes, o corao me sobressaltava, com a impresso de que finalmente eu chegaria... Mas no, ainda no era ali...

E ento eu retomava o caminho, novamente atento apenas ao sinal incessante e claro que, ao fim, haveria de me anunciar algo, algo de muito importante.

Pois, por que outra razo, afinal, um telefone tocaria tanto?

AH: E o que voc esperava ouvir?

LB: No sei... Eu no ousava pensar...

Nem sequer esperava uma voz... Para mim, atender o telefone seria como ler palavras em um livro.

Eu, muitas vezes, sob as estrelas, sonhava, antes de dormir, que quando chegasse aqui e atendesse o telefone, o sentido de toda aquela longa caminhada por uma estrada que parecia nunca acabar, em direo a um telefone que s eu ouvia tocar, se revelaria, enfim... Seria a iluminao... A salvao... Ou alguma coisa terminada em o.

Qualquer coisa que no fosse mais solido.

Quantas vezes, eu sonhei que esse telefone tocava s para mim...Fiel e incessante, dia e noite, sob o sol ou a chuva, em noites clidas ou tenebrosas, ele tocava, minha espera...

AH: ... Vai ver, era mesmo pra voc...

LB: Por que voc no atendeu?

AH: Porque, como se v, no era para mim.

LB: Como podia saber?

AH: Eu nunca atendo telefones. E se eu nunca atendo, no era para mim.

LB: Nunca?

AH: Nunca.

LB: Por qu?

AH: Eu gosto de parecer ocupado. Gosto de fingir que no estou.LB: Pra qu?

AH: Isso faz com que eu me sinta poderoso.No se preocupe, era pra voc. Mas no era importante.

Se fosse importante eu saberia.

LB: Para mim, era importante!AH: Bobagem... Devia ser engano.

LB: No! Era para mim. Eu sei!

Mas o que importa agora saber o que isto quer dizer...

O que significa eu chegar aqui e no exato momento em que eu vou atender, voc aparece e o telefone pra de tocar?

AH: S Deus sabe...

LB: S Ele deixaria tocar tanto...

AH: Ento no era para mim.

LB: Digamos que fosse Deus e fosse para mim... Se Ele desligou bem na hora em que eu ia atender... Isto s pode significar uma coisa: que aqui o Inferno!Claro! O sujeito passa uma eternidade acreditando que h um telefone que toca para ele, s para ele. E toca cada vez mais perto. Ele chega mesmo a sentir que o telefone tocar, sim, at que ele chegue, porque algum do outro lado, no importa quem, quer gui-lo at l para lhe dizer algo muito importante. Mas, enfim, quando ele chega...

AH: O telefone pra de tocar...

LB: Diz pra mim: no o Inferno?

AH: Ora, meu amigo, a mesma chave que abre o Cu, abre tambm o Inferno. Veja bem, eu mesmo muitas vezes, enquanto esse telefone asqueroso tocava sem parar e eu me aprontava para o grande discurso final da to desejada vitria, confesso a voc que eu, muitas vezes, como ningum vinha atender esse maldito telefone, eu intimamente cheguei a duvidar, cheguei mesmo a desconfiar que aqui fosse o Inferno. Um instante que jamais se cumpria ou um pesadelo que noite aps noite se repete. Mas ento daqui a pouco eu despertaria, mas s daqui a pouco... E esse pouco nunca se completa e ningum vem atender esse telefone horrendo, e eu nunca desperto desse pesadelo em que tudo me parece to real, to longamente igual, quanto agora. Agora? No, agora no mais.Confesso que nessas horas de incerteza, mesmo que nem sequer um msculo do meu corpo demonstrasse o menor sentimento, no ntimo, eu olhava esse objeto nojento e o via como um mau pressgio... Quem o teria colocado a? E por qu? Pra qu? Ser isto o Inferno? Eu tambm me perguntava, em silncio...

E ento voc chegou e o telefone parou.

Eis que agora toda dvida se dissipa! No, meu amigo, aqui no o Inferno! Decididamente no !E diria mais: isto no o Inferno. Isto o Cu e voc o Messias! O meu Messias!

LB: O Inferno uma piada! isso! Nada de chamas, nada de torturas. Apenas isto: uma piada de mau gosto. Eis o que Inferno...

AH: No! Isto talvez tenha sido o Inferno. Mas agora no que voc chegou, tudo mudou!

Sinal de que j podemos ir.

Estou bem?

LB: No me parece mal...

AH: Ento vamos!

LB: Para onde?

AH: Ora... No sei... Foi voc quem veio me buscar...

LB: Voc est louco... Eu vim por causa do telefone, no lembra?AH: Claro! Por isso o telefone parou!

LB: Exatamente na hora em que eu iria atender...

AH: Foi melhor assim...

LB: Por qu?AH: Prefiro assim: nada fizemos. Ele apenas se extinguiu por si mesmo.

Eu tinha um mau pressentimento. Uma espcie de medo. Infantil, claro. Um medo de que o mundo irremediavelmente explodisse em mil pedaos se algum erguesse esse objeto e dissesse al.No, eu preferia que tudo continuasse como estava. Melhor, mais prudente. Tudo bem, tocava sem parar, ningum atendia, era chato, mas, tudo bem, eu j estava acostumado. Nada acontecia, certo, mas, em compensao, algo de grandioso sempre estava para acontecer...

Essa iminncia me animava, me fazia andar apressado, de um lado para o outro, como uma fera enjaulada, como um gladiador prestes a entrar na arena, as idias girando febris em meu crebro, meus olhos faiscantes, as palavras na minha mente ensaiando silenciosamente um discurso interminvel.Ento voc chegou e o telefone parou.

Logo, sua chegada s pode significar uma coisa: o fim de toda espera para mim! Vamos?LB: Eu no consigo acreditar... Tudo isso por conta de um telefone... De um telefone que eu j nem sei mais se tocava mesmo...

AH: Eu tambm ouvia...

LB: verdade...

AH: Mas voc reparou se algum mais ouvia?

LB: Ningum.AH: Ningum ouvia ou no havia ningum?

LB: No sei...

AH: No sabe? Isso muito importante...LB: O que me importa isso agora?

AH: Muito, muito! O que voc esperava encontrar?LB: No sei...

AH: Deus? Voc esperava encontrar Deus?

LB: No sei!AH: Pense! Essa parte me interessa muito.

Se voc veio encontrar Deus, ento no serei, por acaso, Deus?

LB: Voc louco!AH: Voc esquece uma coisa. Esse telefone meu e era aqui que ele tocava.LB: Mas voc no atendeu!

AH: Voc no percebe? Ser que voc no percebe? Eu no podia atender! Se eu no esperasse paciente e resoluto, voc jamais chegaria aqui. Se no fosse eu, seu destino jamais se cumpriria.

LB: o Inferno... S pode ser.AH: No! No v que desde a sua chegada, tudo mudou? No v que voc o Messias? Claro! E eu sou Deus! E ele, esse asqueroso telefone, ele o Esprito Santo! No v?

LB: Voc est louco! Isto uma lagosta e no uma pomba!

AH: Tudo est claro agora! No v? No, no v... Mas ao menos ouvia! ! Ouvir, voc ouvia! Somente ns dois ouvamos! Logo, eu, voc e o telefone somos um s! o mistrio da Santssima Trindade!E no me olhe com essa cara! Que seja assim - uma lagosta no lugar da pomba, eu o Pai e voc o Filho - nisso que reside o Mistrio.

De repente, o telefone volta a tocar.AH: No atenda!

LB: Melhor atender...

AH: Eu tenho medo!

LB: Mas, pense, se continuar assim vai ser o Inferno de novo!

AH: ...

LB: Lembra? Voc mesmo disse que era um Inferno...

AH: No! Eu tenho medo!

LB: Deixe de bobagem... Vamos l... Eu atendo, dou uma palavrinha ou duas, digo adeus, desligo e pronto. Fim.

AH: Ento est bem! Atenda! Atenda de uma vez! Vamos, atenda!

LB: Pensando bem...

AH: Atenda!

LB: Deixe tocar mais um pouco...

AH: Por qu?

LB: Eu tambm gosto de me sentir importante...

AH: Atenda...

LB: No vou atender!

AH: Muito bem! Eu preciso me arrumar...

LB: No!

AH: O que foi?

LB: No v. Voc est bem assim.

AH: Voc acha?

LB: Acho.

AH: Ento podemos ir.

LB: No!

AH: Como assim?

LB: Voc est louco? Ser que voc no entende? L fora no h nada! Ningum...

AH: No! L fora h milhes! Milhes. minha espera. espera que eu lhes anuncie finalmente a vitria.

LB: Voc est louco! Voc mesmo disse: s ns dois ouvamos.

AH: Ora... E da? Voc mesmo no sabe se ningum ouvia ou se no havia ningum...

LB: Se ningum ouvia ou se no havia ningum? Tanto faz! Qual a diferena entre discursar para surdos ou discursar para fantasmas?

AH: verdade... Ento, se assim, atenda o telefone...

LB: Por qu?AH: No foi pra isso que voc veio, pra atender esse maldito telefone?

LB: No sei... O telefonema que eu ouvia era outro...

AH: Mas o mesmo telefone!

LB: E da? Vai ver esse telefonema pra voc.

AH: Atende. Se for pra mim, diga que eu no estou.LB: Eu no...

AH: Vai, atende...

LB: No... Atende voc...

AH: Eu nunca atendi um telefonema na minha vida...

LB: Mentira...

AH: No que eu me lembre...

LB: Atende...

AH: No consigo...

LB: Justamente por isso! Atenda! Quem sabe no seja nisto que resida o sentido disto tudo? Em fazer voc perder o medo.AH: No! O medo meu e gosto dele! No consigo nem me imaginar pegando nessa coisa...

LB: No deixa de ser um telefone como outro qualquer...AH: Me d asco... Parece um escorpio... E to nojento quanto uma barata...

LB: Deus s ligaria para um telefone assim...

AH: Voc acha que pode ser Deus?

LB: No sei...

AH: Mas voc tem esperana?

LB: Tive...

AH: Ento atenda o telefone!

LB: No tenho mais...

AH: Por qu?

LB: Quando cheguei aqui eu era um crente. Mas, depois que o telefone parou exatamente no instante em que eu ia atend-lo, no sei, alguma coisa parece ter morrido em mim...

AH: Mas est tocando de novo!

LB: Mas j outro telefonema... At eu j sou outro...

AH: Ningum muda to depressa!

LB: Voc no sabe o que aquele telefonema significava...

AH: Voc no fica nem curioso? Juro, eu atenderia, se pudesse... Mas eu no posso. Por favor, atenda... Deve ser importante...

LB: Por isso mesmo! Eu no me sinto pronto...

AH: Por favor...

LB: Preciso recuperar a f, a mesma f que me trouxe at aqui...

AH: Eu vou me arrumar... Preciso estar pronto...

LB: Eu vou atender.

AH: Finalmente!Buuel aproxima-se do telefone, mas no momento em que vai atend-lo.AH: No! Espere! Oua!

LB: O qu?

AH: Preste ateno... No parece que o telefone... Oua... No parece que ele toca em intervalos distintos? Oua! Uma espcie de cdigo Morse...

LB: No estou ouvindo nada... Para mim igual...AH: No atenda!

LB: Por qu?

AH: Voc no entende! uma mensagem em cdigo! Se voc atender, adeus!

LB: mesmo?

AH: Voc atende e do outro lado, nada. E depois voc desliga e ser o silncio eterno...

LB: OK, no vou atender...

AH: Acho bom...

LB: S quero entender... Voc est dizendo que o primeiro telefonema teria sido apenas para me trazer at aqui. Por isso, voc no atendeu...

AH: Claro!

LB: Agora, este segundo, transmite uma mensagem em cdigo...

AH: Exatamente!

LB: E foi para isso que eu vim! Para junto com voc deciframos o cdigo e depois a mensagem...

AH: Faz sentido, no faz?

LB: Voc est louco!

AH: Por favor, eu lhe peo: no atenda esse telefonema! Ele a nossa nica esperana!

LB: Est bem, est bem...

AH: timo! Ento vamos comear! Preste ateno... O que est ouvindo?LB: Nada...

AH: Como nada?LB: Nada... A mesma coisa.

AH: Como a mesma coisa?

LB: A mesma coisa: o telefone tocando igual.

AH: Mas outro telefonema...

LB: Mas o telefone o mesmo!

AH: Mas voc mesmo disse...

LB: Eu sei o que eu mesmo disse! Mas isso foi da outra vez. Ainda h pouco, era voc quem dizia "Mas outro telefonema" e era eu quem retrucava "Mas o telefone o mesmo"...

AH: E como foi agora...?

LB: Agora ns trocamos...

AH: Mas o dilogo o mesmo! Logo...

LB: Logo o qu?!

AH: Logo estamos ouvindo o mesmo telefone tocando de modo diferente... E onde eu digo que h uma mensagem, tudo que voc ouve um simples telefone tocando...

LB: Puxa! Voc no est to louco assim...

AH: Louco, eu?! Voc chega aqui dizendo que andou uma eternidade para vir atender a esse telefone porque esperava muito, ao que parece, conversar com Deus...

LB: Eu no disse isso!

AH: Disse... Ou se no disse, deu a entender...

LB: No disse, nem dei a entender!AH: Chegou com toda a pompa de um Messias, anunciando que iria ouvir a palavra de Deus num simples telefone. E agora, quando eu lhe proponho um mtodo racional, a leitura de um aspecto factvel desse fenmeno intrigante e aparentemente sem sentido, o senhor, antes to crente, se declara um insensvel, incapaz de distinguir a msica que h nisso que o senhor alega ser o mesmo som de telefone que ouvimos antes.

LB: Eu no ouo diferenas...

AH: Procure ouvi-las! Preste ateno! Sinta. Busque. Imagine. Perceba... Acabaremos por decifrar o cdigo e a mensagem... E ento estaremos salvos.

LB: No mais simples atender?

AH: E nos arriscarmos a nos deparar com o Nada? Tenha f na cincia! No poder do clculo humano! E ento seremos ns os deuses...

LB: Quem sabe o sentido no est no Silncio?

AH: No! Eu odeio o silncio! No atenda! Prefiro o telefone tocando...

LB: Vou atender...

AH: No!

LB: Estou me preparando...

AH: Por favor...

LB: Vou atender e simplesmente ouvir sem nada esperar escutar.

AH: Voc louco! O telefone meu. Est comigo h sculos. No ser atendido e pronto! S por cima do meu cadver!

LB: Voc j est morto!

AH: Isso o que voc diz!

LB: Estamos os dois mortos! Ser que nem isso voc percebe?

AH: Mas eu me sinto to vivo...

LB: Bom, eu tambm...

AH: Ser ento que ser personagem isso?

LB: possvel...

AH: Que estranha a vida...

LB: Parece nunca cessar...

AH: verdade...

LB: Como o tempo passa...

AH: E como a gente se acostuma depressa...

LB: to estranho tudo...

AH: Sempre foi...

LB: Ento, se no estamos mortos exatamente, o que ter sido aquilo tudo?

AH: Um pesadelo?

LB: Um sonho?

AH: E isto agora?

LB: Um pesadelo?

AH: Um sonho?

AH: Atenda ao telefone...

LB: Atenderei.

Buuel atende ao telefone. Ouve atentamente sem nunca falar nada. Hitler espera, movendo-se impaciente. Buuel finalmente desliga o telefone.

AH: O que Ele disse?

LB: Nada. Era s silncio. O murmurante silncio de uma concha.

AH: Isso no uma concha! uma lagosta, idiota! No disseram nada, no ? Eu sabia! Deus est morto! Deus - ou seja l o que for, nunca se sabe - est morto!

Morreu esperando que algum atendesse.

Morreu e o telefone continuou tocando, indefinidamente, e foi isso que durante anos voc adorou, um telefone tocando no vazio, sem ningum do outro lado da linha.

Vamos, temos de ir...

LB: No mais preciso...

Entra um grupo enorme de pessoas que toma o palco.

H cinco tipos de gente nesse grupo: os que rastejam, os que andam de quatro, os que andam de joelhos, os que andam de p e os que andam sobre outros.

O objetivo sempre respirar um "ar mais alto", estar "mais acima".

Por conta disso, outros arranjos entre esses tipos so feitos. Homens de p que no podem pagar para andar nas costas de outros homens de p, se contentam em pagar um ou dois de quatro para carreg-los. E assim por diante.

Respiradouros de mergulho so objetos de desejo, nesse caso... Tampinhas de refrigerantes, papel higinico usado, pedaos de jornal velho parecem representar o dinheiro.

Hitler e Buuel observam o mundo que vem.

As pessoas formam um bloco compacto e colorido que se move num vaivm incessante. Entre os homens que esto nos ombros de outros homens, um se destaca por ser carregado numa espcie de andor por quatro homens, maiores e mais fortes.

Ele se aproxima de Buuel e Hitler.

Ele Xy e veste-se vagamente como um bispo.

XY: Ol, ol! De onde vocs esto indo?

LB: Eu ia lhe perguntar a mesma coisa...

AH: A mesma?

XY: Ora, ora! Ns estamos vindo para l!

AH: E ns nem samos daqui...

LB: O telefone? Onde est o telefone?

AH: Sumiu...

LB: E o que isso?

XY: Ora, ora! Que pergunta tola! Isto a Realidade!

LB: Parece mais o Inferno!

XY: Sim, sim! Parece, parece!

AH: Mas a Realidade?XY: , ! A Realidade, a Realidade! Adeus, adeus!

AH: Espere!

LB: Espere!

(os dois): Espere, espere!

XY: Sim, sim?LB: Isto mesmo a Realidade?

XY: Claro, claro! to evidente, to evidente...

LB: Mas esta Realidade to dura...

XY: verdade, verdade! Esta a dura e cruel Realidade!

Mas o que se pode fazer? A Realidade assim.Cada homem cada homem e cada homem ainda muitos outros homens anteriores e futuros que, no entanto, so todos ao mesmo tempo um s homem, este que se agora em cada um desses tempos.AH: No entendi...

XY: E afinal? O que vocs esperavam? A Realidade isto, meus caros! isto! Vejam, vejam! Como eles lutam, como eles sofrem. vidos, violentos e, ao mesmo tempo, to ternos, to dceis.

Daqui de onde estou posso v-los. E chego mesmo a admir-los...

como se eu lhes pudesse ver a essncia, estar e no estar l, ser e no ser um deles, muito alm de todo bem e de todo mal. Do alto...

Sim, sim! Esta a dura e cruel Realidade... Mas sempre haver espao para a Beleza... Uma mulher toma o palco e dana entre aqueles corpos todos: sobe, pula de um para outro, atirada, erguida, suspensa, numa coreografia movida percusso de palmas e rudos vocais.

XY: A Beleza os excita e acalma... Em face dela, eles pressentem o que so e reconhecem intimamente que no mereceriam um destino melhor. Por isso, eles amam a Beleza: porque ela os humilha e justifica. Por isso, eles amam a Beleza. Mas, em seu amor, eles a matariam se pudessem... Por isso, sofrem por ela e morrem por ela.

Porque a matariam se pudessem... No estranho? No estranho?

AH: As massas so volveis...

XY: Massas? Voc disse massas? Olhando bem, parece mesmo... Massa... Movida a sonho, desejo e privao. Sobretudo, privao. Quanto menos tm, mais sonham... impressionante... Im-pres-si-o-nan-te!Mas muito boa sua imagem, senhor... Muito boa mesmo... Cham-los de massa. Sua sensibilidade esttica me impressiona.

AH: Obrigado, obrigado... Mas, uma coisa ainda me intriga. De que modo o senhor faz parte da Realidade?

XY: Boa pergunta! Estou, digamos assim, em um estgio mais avanado. Outro nvel... Olhe para eles... Agora, olhe para mim... Olhe para eles... Agora, olhe para mim... Percebe? Caos... Ordem... Tem de ser assim! De outro modo no haveria Beleza.

Resumindo: as coisas so assim porque tm de ser assim.

A Ordem se nutre do Caos e assim tem de ser.

A Realidade muito complexa, meu senhor... Muito complexa. Entende? Entende?

AH: Acho que posso entender. Se eu quiser...

XY: Que bom! Que bom! Uma vontade frrea e obstinada, eis a nica fora capaz de agir sobre a Realidade. Venha! Venha! Sente-se aqui! Sente-se!

Hitler sobe e senta-se ao lado de Xy.

XY: (Para Buuel) O senhor tambm... O senhor tambm...

LB: Eu no vou...XY: Vir! Vir! Cedo ou tarde todos acabam cedendo Realidade.

(Para Hitler) V, v? outra luz agora... Mais ntido tudo... Tudo!

So poucos os que chegam a este ponto to depressa...

Est de parabns! De parabns!

Mas o senhor pode subir muito mais! Muito mais!

Olhar do alto! Milhes a seus ps! Pense nisso... Sinta... Feche os olhos e respire fundo... Isso! Isso!

AH (De olhos fechados): Sim, eu pressinto, pressinto o que vir... Uma nova realidade que apenas os cegos e os que trazem a alma manchada de culpa no podero ver. Sim! Sim! Eu sinto! Eu sinto!

LB: Voc est louco!

AH (Olhando de olhos fechados para Buuel): Louco? Agora que todas as minhas expectativas se confirmam voc ousa chamar-me de louco?

Eu disse a voc que eu precisava vir.

Eu disse a voc que o esperava havia uma eternidade.

(Encarando Buuel nos olhos de olhos fechados) Mesmo quando voc duvidava, eu continuava crendo. L, no mago, eu acreditava que eles me esperavam.

LB: Voc enlouqueceu!

AH: (Ainda de olhos fechados) Loucura... tudo que sabe dizer? Loucura?!

(Abre os olhos) Ser que voc no v que esta a Realidade?

LB: Eu s vejo Dor!

AH: Porque voc est olhando da! Suba e veja daqui! Daqui o que eu vejo a Roda Inexorvel da Existncia, a purgao milenar de todos os karmas...

LB: No vou subir. No quero subir.

AH: Venha! Venha! Da voc s v a face cruel da Realidade...

XY: Venha! Venha! Sente-se ao lado da Beleza!

LB: No!

XY: Ele no sente. No sente... No como voc!

AH: uma pena... Uma pena...

Voc, a quem aguardei como a um filho querido e a quem acolhi como o Messias, aquele que me anunciaria, o meu arauto e o meu guia. Agora, no instante final da sagrao da minha Glria, voc se recusa a vir sentar-se ao meu lado...

Mas, ainda assim, sou-lhe grato, eternamente grato...

Se no quer ficar, muito bem... Pode ir!

V! V! Sua misso est cumprida.

LB: V? Como assim, v? Ns estamos juntos nesta histria.

AH: Esta j outra histria, meu caro...

Ser que voc no percebe que tudo mudou?

Ser que voc no entende que eu estou vendo tudo com outros olhos?

Olhe sua volta: tudo mudou. Aquela histria acabou.

Daqui onde estou agora, eu posso lhe dizer com toda a segurana: isto a vida.

E a vida uma luta! Minha luta!

Mais uma vez, lhe estendo a mo... (Mas antes que Buuel a tome, ele a recolhe rapidamente) Mas voc a recusa! No quer! Eu sei que no quer! No quer!

Porque voc no se contenta em me preceder. No, no... Voc quer um destino ainda mais grandioso. O meu destino! No contente em ter ouvido o chamado, voc aspira ser a Suprema Luz...

Mas eu perdo voc... Devia mandar quebrar suas patas para que voc rastejasse, mas prefiro que voc v, que siga seu destino sem sentido. V! Voc nada tem a ver com a Realidade. Adeus.Hitler erguido e parte junto com Xy e a Realidade.

Todos saem do palco. Buuel fica sozinho.

As luzes se apagam. LB: Nunca estive to s.

Antes, havia aquele telefone tocando. Eu no me importava se ningum ouvia ou se no havia ningum... Eu ouvia - e essa esperana me bastava. Quando fui atender, o telefone parou. Quando deixei de crer, ele voltou a tocar. E, quando finalmente atendi, era o Silncio.

Ento uma Realidade mais horrenda que o Inferno passou por mim e de repente quando me dou conta estou s... S como nunca estive. Sozinho, na escurido e no silncio. Nada poderia ser pior... Nada...

LB: Eu disse Nada?... (Focos de luz vo se acendendo e, sob cada um, h um imvel Pensador de Rodin, nu com uma mscara contra gases. So muitos e se distribuem sobre pedestais feito esttuas em um jardim)

LB: Mas se eu disse Nada ento o Nada no h. H ao menos eu.

LB: Eu disse eu? Sozinho no sei bem nem o que sou... A morte ser isto? Solido, escurido e silncio.

A luz finalmente se acende sobre Buuel e ele se d conta das esttuas. Levanta-se e passeia entre elas, examinando-as.

LB: Quem so vocs? Fala! Ningum fala... (Limpando as lentes das mscaras) Nem posso lhes ver os olhos... (Encosta o ouvido onde se supe que eles respirariam) Nem um sussurro... Talvez eu pudesse ouvir... Ouvir... Um murmrio que fosse... No... J aconteceu de outra vez... No quero mais ouvir nada... No h nada para ouvir... E se eu parar de falar, ser de novo o Silncio...

(A voz de Buuel em off. Ele continua andando)

LB (off): E, no entanto, como eu, eles pensam... Em que ser que pensam? Parecem dormir de to absortos... Melhor deix-los... Eles no respiram mais o ar da Realidade. Eles conseguiram escapar. Puro pensamento incomunicvel, arremedo de silncio, cinema da solido.

Buuel volta para seu lugar. Tudo se apaga. Resta apenas uma escassa luz sobre ele.

LB: Estou cansado...

Vi que as coisas quando buscam seu rumo, encontram seu vazio. **Tenho sono, muito sono...

Buuel deita-se e dorme, encolhido no palco vazio.

Entra um outro Buuel que se aproxima do corpo que dorme. O segundo Buuel deita-se ao lado do primeiro e o primeiro Buuel se levanta, num movimento sincronizado. Levanta-se e observa um monge que se aproxima lentamente todo coberto. O monge pra. Buuel sente o irresistvel mpeto de lhe baixar o capuz. Revela-se o rosto falsamente feminino e profusamente maquiado de um travesti. MONGE: Tudo possvel.

Em seguida ele abre a tnica e se mostra nu, os seios de silicone e o pnis pendente.MONGE: S o Nada no h.

Ento, ele sai, se ajeitando, suspendendo um pouco a tnica e a amarrando com o cinto com estudado desleixo e s ento reparamos que ela usa enormes sandlias de saltos finssimos.

Silncio.

Irrompe o circo com sua fanfarra e suas figuras de sonho: malabaristas, engolidores de espada, cuspidores de fogo, anes, palhaos, domadores. Passam, apenas passam, espalhando alegria.

Enfim, quando o circo acaba de passar, resta uma menina em cena. Vestida como uma colegial ou algo equivalente.

LB: Voc no vai com eles?

LILI: Eu estou sempre com eles... Meu nome Liberdade.LB: Abaixo o trabalho! Abaixo o trabalho!

LILI: Abaixo o trabalho!

LB: Voc to linda, Liberdade!LILI: Voc me deseja?

LB: Muito...

LILI: Pode imaginar minha bocetinha sem plos... Meu cuzinho, rugoso e rseo... Meus seios trgidos... Pode imaginar?

Eu sempre ainda toda fruto.

Impbere e pura, deleitosa e pronta, recendendo doce de to mida...

LB: Osculetor me oris sui cum mellora sum ubera tua vino...

LILI: Pobre, Don Luiz...

Posso ver seu desejo.

Mas onde est sua inocncia?

LB: Liberdade! Liberdade!LILI: No, no, Don Luiz... Violar ou adorar? s isso que sabe o seu desejo, Don Luiz?Entra uma an.

AN: No h como se prevenir contra o Abominvel.

Entra um homem-tronco correndo pelo palco num carrinho de rolim.

HOMEM-TRONCO: Tudo bom!

AN: O medo o pai da tirania.

HOMEM-TRONCO: Tudo bom!

A an se aproxima de Buuel.

AN: Feche os olhos, Don Luiz... (Buuel fecha os olhos) Imagine... De quem so estas mos, Don Luiz? A an lhe acaricia o pau.

AN: E est voz?

Outra voz em off fala o mesmo que a an repete com os lbios mudamente.VOZ: Estas mos... Esta voz... De quem esta boca?

De costas para aplatia, a an, sem nem precisar se ajoelhar, parece chupar o pau de Buuel.Uma senhora surge sentada numa cadeira de rodas. A voz em off que falava pela an a dela. Ela gira em volta de Buuel e a an na cadeira de rodas.A SENHORA: Voc meu filho? No. Voc no meu filho. Mas se parece tanto com ele... Voc conhece meu filho? Fale-me do meu filho... Como ele est? Est bem? Fico to preocupada... Seu rosto... Voc se parece com ele? Sabe, eu s vezes no me lembro de meu filho... Mas voc se parece tanto com ele... So amigos? Conte-me...Liberdade passa esvoaante pelo palco.

A an, o homem tronco e a senhora na cadeira de rodas evoluem pelo palco antes de sair.

LB: Lili?! Lili?Nossa Senhora ilumina-se no fundo do palco.NOSSA SENHORA: O Acaso o senhor de todas as coisas.

LB: Lili! Lili!

LILI: Posso ver o seu desejo. Mas onde est sua inocncia?

Buuel corre para ela. Ela foge. como se brincassem de pique-esconde. Finalmente, quando Buuel pensa que a ir encontrar escondida em um canto qualquer, em seu lugar ele encontra uma bicicleta.

Ao fundo, projetam-se as imagens de uma longa estrada, da Via Lctea, da espuma girante de um caf expresso, como em A Chinesa, de Godard.Buster Keaton surge, ao fundo, srio.

Buuel cai na gargalhada e sua gargalhada contagia Buster Keaton. Buster Keaton ri!

Cai o pano. FIM

** "Eh visto que las cosas quando buscan su rumo, encontran su vacio", Frederico Garcia Lorca, "Um poeta em NY".

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