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REVISTA DE MANGUINHOS | MAIO DE 2005 8 A construção de um ideal em saúde pública swaldo Cruz e seus seguidores conseguiram transformar um instituto produtor de soro e vacina contra a peste bubônica em um centro de excelência não só na produção de diversos insumos para a saúde, mas também em pesquisa e ensino. É claro que, ao longo de 105 anos de existência, a Fiocruz teve seus percalços: enfrentou descontentamento popular, crise financeira, perda da autonomia, ditadura militar. Mas os pesquisadores de Manguinhos triunfaram. Hoje, o Castelo Mourisco se insere em uma paisagem bem diferente da do início do século 20. Continua, porém, sendo símbolo de vanguarda científica e de um novo pensamento para a saúde pública, voltado para a promoção da saúde dos brasileiros. HISTÓRIA O

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A construçãode um ideal emsaúde pública

swaldo Cruz e seus seguidoresconseguiram transformar um institutoprodutor de soro e vacina contra a peste

bubônica em um centro de excelência não só naprodução de diversos insumos para a saúde, mastambém em pesquisa e ensino. É claro que, aolongo de 105 anos de existência, a Fiocruz teveseus percalços: enfrentou descontentamentopopular, crise financeira, perda da autonomia,ditadura militar. Mas os pesquisadores deManguinhos triunfaram. Hoje, o Castelo Mouriscose insere em uma paisagem bem diferente da doinício do século 20. Continua, porém, sendosímbolo de vanguarda científica e de um novopensamento para a saúde pública, voltado para apromoção da saúde dos brasileiros.

HISTÓRIA

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Oano era 1899. OswaldoCruz, jovem médico queacabara de voltar do Insti-tuto Pasteur, em Paris, in-tegrava a equipe respon-

sável por diagnosticar uma misteriosadoença que assolava a cidade de Santos.Junto com Adolpho Lutz e Vital Brazil, con-cluiu que se tratava da peste bubônica.

A doença chegaria também ao Rio deJaneiro, então capital da República. Logo,em 1900, para produzir soro e vacina con-tra a peste, era criado em Manguinhos, noRio, o Instituto Soroterápico Federal. Cruzseria seu diretor-técnico e a direção-geralficaria com o Barão de Pedro Afonso, pro-prietário do Instituto Vacínico Municipal,que fabricava a vacina antivariólica.

Mas Cruz e Pedro Afonso não traba-lhariam juntos por muito tempo. Para obarão, a nova instituição se limitaria a fazersoro e vacina. Já Cruz idealizava uma estru-tura que combinasse produção, pesquisa eensino, nos moldes do Instituto Pasteur. Em1902, após o afastamento de Pedro Afon-

so, Cruz se tornou diretor-geral do Institu-to e começou a moldar uma instituição que,mais tarde, viria a se consolidar como umareferência da saúde pública.

Foi também em 1902 que RodriguesAlves se tornou presidente da República.Ele tinha razões para se preocupar comas epidemias que atingiam o Rio. Alémde já ter perdido uma filha com febreamarela, era grande fazendeiro de café ereconhecia a doença como uma ameaça àexportação do produto. Decidido a trans-formar a capital da República, nomeouPereira Passos como prefeito do Rio e Cruzcomo diretor-geral de Saúde Pública.

Pereira Passos alargou ruas e demo-liu cerca de 1.600 cortiços e velhos edifí-cios no centro do Rio. Esse “bota-abai-xo” até tinha o propósito de criar umacidade saudável, mas se fundamentavaem um discurso médico já caduco.

“O controle da peste, da febre amare-la e da varíola não requeria esse tipo deintervenção. O próprio Cruz vai combatera febre amarela em Belém sem mexer na

Brigada de combate à febre amarela, estratégia idealizada por Oswaldo Cruz para eliminar pólos de insetos transmissores da doença

Barão de Pedro Afonso,primeiro diretor geral do

Instituto Soroterápico Federal,que deu origem à Fiocruz

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estrutura física da cidade. As obras, pelocontrário, poderiam até piorar a situação,criando ambientes propícios à prolifera-ção de animais transmissores de doenças.Mas isso não significa que Cruz era contraafastar as camadas populares do centrodo Rio para transformá-lo em uma Parisdas Américas”, comenta o historiador Jai-me Benchimol, editor científico da revistaHistória, Ciências, Saúde: Manguinhos.

Seja como for, o Rio amargava umaumento populacional combinado à cri-se do café. Ex-escravos, imigrantes euro-peus, desertores das Forças Armadas etodo tipo de gente se misturavam na ca-pital da República, onde faltavam empre-go, saneamento básico e moradia (a de-molição dos cortiços impulsionou aocupação dos morros por favelas). Foinesse clima de descontentamento queCruz promoveu suas campanhas.

Uma delas foi para exterminar os ra-tos, cujas pulgas transmitem a peste. Ogoverno pagava 300 réis por animal cap-turado. E logo surgiu quem criasse ratospara vendê-los às autoridades. EmboraCruz tenha sido vítima de uma enxurradade piadas, no fim sua campanha surtiuefeito contra a moléstia.

No combate à febre amarela, Cruzusou brigadas de mata-mosquitos. Mas,naquela época, nem todos concordavamque os mosquitos eram os transmissoresda doença. Cruz adotou um método nadacordial para impor sua opinião: as briga-das podiam entrar na casa das pessoas àforça para eliminar focos de insetos e re-mover pacientes para o Hospital São Se-bastião. A estratégia causou polêmica,mas, em 1903, os casos de febre amarelacaíram quase a zero.

Contudo, Cruz ainda precisava ven-cer mais um obstáculo: a varíola. Em me-ados de 1904, chegava a 1.800 o núme-ro de internações devido à doença noHospital São Sebastião. Mesmo assim ascamadas populares rejeitavam a vacina,que consistia no líquido de pústulas devacas doentes. Afinal, era esquisita a idéiade ser inoculado com esse líquido. E ain-da corria o boato de que quem se vacina-va ficava com feições bovinas.

No Brasil, o uso de vacina contra avaríola foi declarado obrigatório para cri-anças em 1837 e para adultos em 1846.Mas essa resolução não era cumprida, atéporque a produção da vacina em escalaindustrial no Rio só começou em 1884.Então, em junho de 1904, Cruz motivou

o governo a enviar ao Congresso um pro-jeto para reinstaurar a obrigatoriedadeda vacinação em todo o território nacio-nal. Apenas os indivíduos que compro-vassem ser vacinados conseguiriam con-tratos de trabalho, matrículas em escolas,certidões de casamento, autorização paraviagens etc.

Após intenso bate-boca no Congres-so, a nova lei foi aprovada em 31 de outu-bro e regulamentada em 9 de novembro.Isso serviu de catalisador para um episó-dio conhecido como Revolta da Vacina. Opovo, já tão oprimido, não aceitava ver suacasa invadida e ter que tomar uma injeçãocontra a vontade: foi às ruas da capital daRepública protestar. Mas a revolta não seresumiu a esse movimento popular.

Toda a confusão em torno da vacinatambém serviu de pretexto para a açãode forças políticas que queriam deporRodrigues Alves – típico representante daoligarquia cafeeira. “Uniram-se na opo-

sição monarquistas que se reorganizavam,militares, republicanos mais radicais eoperários. Era uma coalizão estranha eexplosiva”, diz Benchimol.

Em 5 de novembro, foi criada a LigaContra a Vacinação Obrigatória. Cinco diasdepois, estudantes aos gritos foram repri-midos pela polícia. No dia 11, já era possí-vel escutar troca de tiros. No dia 12, haviamuito mais gente nas ruas e, no dia 13, ocaos estava instalado no Rio. “Houve detudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrup-ção de trânsito, estabelecimentos e casasde espetáculos fechadas, bondes assalta-dos e bondes queimados, lampiões que-brados à pedrada, árvores derrubadas,edifícios públicos e particulares deteriora-dos”, dizia a edição de 14 de novembrode 1904 da Gazeta de Notícias.

Tanto tumulto incluía uma rebeliãomilitar. Cadetes da Escola Militar da PraiaVermelha enfrentraram tropas governamen-tais na Rua da Passagem. O conflito termi-

Sentados ao centro, Belisário Penna e Arthur Neiva,em acampamento no Piauí, em junho de 1912

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nou com a fuga dos combatentes de ambasas partes. Do lado popular, os revoltososque mais resistiram aos batalhões federaisficavam no bairro da Saúde. Eram mais deduas mil pessoas, mas foram vencidas peladura repressão do Exército.

Após um total de 945 prisões, 461deportados, 110 feridos e 30 mortos emmenos de duas semanas de conflitos,

Rodrigues Alves se viu obrigado a desis-tir da vacinação obrigatória. “Todos saí-ram perdendo. Os revoltosos foram cas-tigados pelo governo e pela varíola. Avacinação vinha crescendo e despencou,depois da tentativa de torná-la obrigató-ria. A ação do governo foi desastrada edesastrosa, porque interrompeu um mo-vimento ascendente de adesão à vacina”,explica Benchimol. Mais tarde, em 1908,quando o Rio foi atingido pela mais vio-lenta epidemia de varíola de sua história,o povo correu para ser vacinado, em umepisódio avesso à Revolta da Vacina.

Contudo, em 1904, Cruz recebeu atéameaça de morte. Voltou-se, então, parao trabalho em Manguinhos. À revelia dospoderes Executivo e Legislativo, usava asverbas que sobravam da Diretoria-geralde Saúde Pública (DGSP) para ampliar emelhorar as instalações do Instituto. Foiquando recebeu um convite para partici-par de uma exposição no 14° CongressoInternacional de Higiene e Demografia,

em 1907, em Berlim.Manguinhos foi o único representan-

te da Améria Latina na exposição e Cruzrecebeu a medalha de ouro do evento.Ele foi aclamado no retorno ao Brasil. Pro-va disso é que, em 1908, Manguinhosganhou um novo regulamento e foi re-batizado de Instituto Oswaldo Cruz (IOC).

“As elites não tinham uma visão mui-to clara do que significava o Instituto. Elastinham uma noção do que representavamas ações de Cruz em saúde pública. Masdesconheciam o potencial da pesquisa, ouseja, o que ela podia oferecer em termosde ganhos sociais”, afirma Benchimol. “OInstituto tinha conseguido dar respostaseficazes contra aquilo que preocupava aselites: as epidemias, que afugentavam es-trangeiros e capitais. Foi assim que Cruzganhou prestígio, apoio institucional, po-der de barganha, de captar recursos e denegociar em prol da pesquisa e de outrosassuntos que as elites não julgavam tãoimportantes”, completa.

Hábil administrador da ciência, Cruztransformou o IOC em uma instituiçãoauto-sustentável. Ela vendia seus produ-tos biológicos de uso humano e veteriná-rio, exceto durante epidemias, quando osinsumos eram fornecidos gratuitamenteao governo. A renda obtida era usada naqualificação de novos cientistas e na reali-zação de investigações científicas, cujos re-sultados permitiam incrementar a produ-ção, o que revertia em mais recursos paraensino e pesquisa. Foi assim que o IOCconseguiu se erguer dentro de uma socie-dade que não tinha tradição científica.

Cruz e sua equipe conseguiram, empouco tempo, conquistar aliados e clien-tes dentro e fora do país. Eles mantinhamcontato com pesquisadores estrangeirosque buscavam soluções para os mesmosenigmas. Estavam em sintonia com as pes-quisas mais avançadas realizadas no exte-rior. Além disso, grandes criadores de gadose renderam ao IOC quando constataram,na prática, a eficácia de suas vacinas vete-rinárias. Também não tardou para quegrandes empresários convocassem os ci-entistas para combater doenças endêmi-cas que dificultavam grandes empreendi-mentos em áreas remotas do Brasil.

Ainda em 1905, Cruz fez sua primei-ra viagem ao Norte, onde inspecionou 23portos. A partir daí, a equipe de Mangui-nhos começou a desbravar o interior dopaís com o objetivo de estudar e debelarmoléstias que dificultavam a expansão do

Eram comuns nosjornais e revistas daépoca caricaturas queironizavam as açõespouco ortodoxas emuitas vezes autoritá-rias de Oswaldo Cruz

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capitalismo brasileiro.Em 1906, Carlos Chagas esteve em

Itatinga, no interior de São Paulo. Lá, aCompanhia Docas de Santos construíauma hidrelétrica e a malária atingia osoperários. Ele, então, realizou a primeiracampanha bem-sucedida do Brasil con-tra a malária. No ano seguinte, junto comArthur Neiva, Chagas foi chamado parafazer a profilaxia da doença em Xerém,na Baixada Fluminense, onde a InspetoriaGeral de Obras Públicas construía umaqueduto. Meses depois, Chagas, agoracom Belisário Penna, seguiu para MinasGerais, porque a malária dificultava o pro-longamento dos trilhos da Central doBrasil. Os dois montaram um laboratórioem Lassance, onde Chagas descobriria atripanossomíase americana, em 1909.

No ano seguinte à descoberta dadoença de Chagas, Cruz e Penna foram àAmazônia a convite da empresa norte-americana que construía a Estrada de Fer-ro Madeira-Mamoré. Esta tinha a famade consumir a vida de um operário paracada dormente assentado na selva. A cul-pa era principalmente da malária, quederrubava os trabalhadores e exigia o re-crutamento constante de mais homens.Para a construção dos primeiros 90quilômetros da ferrovia, foi necessário umtotal de oito mil operários, entre imigran-tes e nordestinos atraídos pela ascensãodos seringais.

A malária atingia de 80% a 90% dapopulação local, segundo os cálculos deCruz e Penna. Para piorar a situação, o com-bate à doença requeria doses tão altas demedicamento que ele podia ser tóxico. Li-vrar a região do mosquito transmissor damalária demandaria tantas obras de sane-amento que o custo poderia ser superiorao da construção da ferrovia. Então, a úni-ca solução viável parecia ser o uso do re-médio e o recolhimento obrigatório dosoperários em locais protegidos dos mos-quitos desde o pôr-do-sol.

Essa campanha contra a malária nãodeu certo. Mas a construção da Madeira-Mamoré continuou, assim como as mor-tes de milhares de operários. O últimotrecho da ferrovia foi inaugurado em1912, mas ela já não parecia tão útil, por-que a borracha estava em crise. O gover-no, em uma tentativa de salvar o produ-to, criou a Superintendência da Defesada Borracha. Esta entrou em contato comCruz porque julgava que um estudo dascondições de salubridade da Amazônia

era fundamental a seus propósitos.Então, entre outubro de 1912 e mar-

ço de 1913, Chagas, do IOC, Pacheco Leão,da Escola de Medicina do Rio de Janeiro, eJoão Pedro de Albuquerque, da DGSP, per-correram os rios que atravessavam os se-ringais. “Incontestavelmente é no Rio Ne-gro que se encontra a condição maisprimitiva de trabalho e a condição maisprecária de vida humana”, escreveram norelatório da viagem. Com uma posturaetnocêntrica, os cientistas consideravam osíndios “primitivos e inferiores”. E critica-vam os brancos que, em vezde civilizarem e integraremos gentios, os escravizavam.Ao longo de todo o percur-so, pouquíssimos vilarejostinham atividade agrícoladesenvolvida ou contavamcom um serviço médico.Mas os casos de maláriaestavam por toda a parte.

Nas expedições doIOC realizadas entre 1911e 1913, o objetivo centralera a investigação científi-ca, e não a intervençãomédico-sanitária de curtoprazo. Há mais de 900registros fotográficos des-sas expedições, que forampioneiras ao revelar hábi-tos e mentalidades das po-pulações e ao destacar oestado de abandono, mi-séria e insalubridade emque viviam os brasileiroslonge da capital da Repú-blica.

Em 1911, Astrogildo Machado e An-tônio Martins estiveram no vale do rioTocantins, onde havia obras de amplia-ção da Estrada de Ferro Central do Brasil.Lá reuniram uma coleção de insetos he-matófagos e de parasitos encontrados empássaros e macacos. Também registraramcasos de doença de Chagas e de bócioendêmico. Mas as impressões de Macha-do e Martins sobre as condições de saú-de da população foram bem menos ne-fastas que as de Penna e Neiva, quepassaram pelo mesmo local entre marçoe outubro de 1912.

Na mais demorada e extensa expedi-ção científica do IOC, que cruzou Bahia,Piauí e Goiás, Penna e Neiva fizeram mui-tas observações de caráter antropológicoe sociológico. Constataram que as popu-

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lações interioranas não tinham noção deque seus vilarejos eram parte integrantede algo maior, o Brasil. Não havia consci-ência de pertencer à nação.

Em Juazeiro, cidade então com seismil habitantes, os cientistas encontraramtrês médicos, um hospital com 12 leitos emuitos, muitos casos de malária. Ao lon-go de todo o percurso da expedição, quasenão havia assistência médica tradicional,mas não faltavam práticas curandeiras.Pessoas mordidas por cachorros raivososrecebiam uma mistura de alho, sal e uri-

na, e a chave do sacrário da igreja eraintroduzida na boca do paciente.

No caminho para Paranaguá, Pennae Neiva sofreram na pele os tormentos daseca. A dieta da população não incluíaverduras, legumes nem frutas. A econo-mia da região consistia basicamente nacriação de gado, mas a cada ano mais dametade dos bezerros morria devido aocarbúnculo sintomático – os criadores eas autoridades locais não sabiam, mas oIOC produzia a vacina contra a doença hámais de cinco anos! Também se praticava

a extração do látex da maniçoba com mão-de-obra quase escrava, de modo seme-lhante ao que ocorria nos seringais daAmazônia. Os trabalhadores adquiriamcom o patrão alimentos, remédios e ou-tros produtos por preços muito altos.Contraíam dívidas enormes e trabalha-vam para pagá-las. Ficavam, então, pre-sos ao emprego, porque as dívidas sóaumentavam e jamais poderiam ser to-talmente saldadas.

Durante toda a viagem, Penna e Neivaidentificaram, além de alto índice de mor-

José Gomes de Faria, terceiro da esquerda para a direita, com membros da expedição científica e habitantes de uma fazenda no Ceará, em 1912

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talidade infantil, elevada incidência deasma, doenças dos olhos, tuberculose,difteria, varíola e sífilis. Já em Goiás, nacidade de Porto Nacional, chamou a aten-ção o grande número de habitantes víti-mas da doença de Chagas.

Os registros de Penna e Neiva foramentregues à Inspetoria das Obras contraa Seca, que patrocinou outras duas expe-dições científicas do IOC em 1912. Demarço a julho, Albuquerque e José Go-mes de Faria atravessaram o Ceará e oPiauí, mas nenhum relatório da viagem

foi publicado. Já Lutz e Machado estive-ram no vale do Rio São Francisco entreabril e julho. Concluíram que a principalcausa das doenças na região não era ahostilidade do meio ambiente, e sim apobreza e o atraso. Mais tarde, a partir demeados dos anos 1930, Leônidas Deanetambém percorreria o Brasil, especialmen-te a Amazônia, realizando campanhascontra a malária e fazendo estudos inédi-tos sobre outras endemias rurais.

As expedições científicas do IOC aju-daram Monteiro Lobato a repensar seupersonagem Jeca Tatu, que passou de cai-pira preguiçoso a vítima das mazelas dointerior. Também contribuíram para funda-mentar um movimento em prol da moder-nização dos serviços sanitários não só nacapital da República, mas em todo o país.

Chagas estava entre os maiores en-tusiastas desse movimento sanitarista. Em1920, ele foi uma das molas propulsoraspara a criação do Departamento Nacio-nal de Saúde Pública, que começou amontar uma base para a prevenção dedoenças endêmicas em regiões do paísantes totalmente esquecidas. Na direçãodo IOC desde o falecimento de Cruz, em1917, Chagas incentivou pesquisas so-bre etiologia, epidemiologia e aspectosclínicos de moléstias da zona rural.

De modo geral, na gestão de Cha-gas, as atividades de pesquisa e ensinoforam ampliadas em Manguinhos, assimcomo seu quadro de funcionários. Tam-bém houve novidades na área de produ-ção. Dessa maneira, o médico conseguiumanter a autonomia da instituição, ape-sar das conjunturas externas.

A República Velha agonizava e o Bra-sil enfrentava uma crise, que não poupouo IOC. Este foi atingido pelo subfatura-mento de seus produtos, pela inflação epela recessão econômica. Os avanços nasciências biomédicas ocorridos após a 1ªGuerra Mundial não puderam ser absorvi-dos e a infra-estrutura tecnológica de Man-guinhos ficou desatualizada. Os salários dosfuncionários também caíram e o duplo em-prego se tornou prática generalizada.

A situação ficou mais crítica após aRevolução de 1930. Getúlio Vargasedificou um Estado intervencionista nosdomínios econômico e social. Até o finaldo Estado Novo, em 1945, Manguinhosaté recebeu investimentos estatais, masperdeu muito de sua autonomia. A ren-da do Instituto foi incorporada à receitageral da União e o governo já não paga-

va pelos produtos fornecidos pelo IOC.O Instituto foi obrigado, por exemplo, adeixar de produzir as vacinas veterinári-as, que davam um ótimo retorno finan-ceiro. Insatisfeitos, muitos cientistas dei-xaram a instituição e optaram pelacarreira universitária.

O Estado Novo de Vargas coincidiucom a 2ª Guerra Mundial, que estimulouem vários países trabalhos sobre produ-tos necessários aos soldados, como plas-ma e medicamentos. No Brasil, as déca-das após a guerra seriam marcadas poruma conjuntura desenvolvimentista. Aimpressão é de que se valorizava aquiloque poderia ter aplicação a curto prazo.

Nesse contexto, a produção de vaci-nas era estimulada no IOC, em detrimen-to da entomologia médica e da zoolo-gia, por exemplo. As queixas de quefaltavam recursos para a pesquisa básicalogo começaram a ecoar e, mais tarde,um grupo de cientistas de Manguinhosse engajaria na defesa da criação de umMinistério da Ciência.

A fragmentação interna do IOC seintensificava. Grupos procuravam fazeralianças externas para fortalecer suas pro-postas dentro do IOC. “Os pesquisadoresjá não se viam como príncipes da ciênciaencastelados. Eles estavam engajados emmovimentos políticos, culturais e ideoló-gicos”, analisa Benchimol.

Foi nesse clima de ruptura internaque Manguinhos vivenciou o golpe mili-tar de 1964. Pesquisadores foram afasta-dos de cargos de chefia e Rocha Lagoa,ex-aluno da Escola Superior de Guerra,tornou-se diretor do IOC. Consideradoum pesquisador de competência duvido-sa, Rocha Lagoa disse, certa vez, que suasestratégias se alinhavam com as doPentágono – órgão de defesa dos EUAque nada tem a ver com uma instituiçãode pesquisa científica.

Os cientistas que contestavam RochaLagoa tinham recursos e financiamentoscortados para suas pesquisas, além deserem acusados de conspirar em seus la-boratórios. Foram abertos inquéritos paraapurar focos de comunismo dentro deManguinhos. Porém, não havia provaspara a indiciação dos cientistas acusados,entre os quais se destacavam aqueles quelutavam pela valorização da pesquisa bá-sica e pela criação de um Ministério daCiência – atitudes ditas subversivas.

A perseguição a esses pesquisadoresficou ainda mais acirrada quando Rocha

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Lagoa se tornou ministro da Saúde. Em1970, o Ato Institucional n° 5 cassou dezcientistas de Manguinhos. Pelo Ato Insti-tucional n° 10, eles também foram impe-didos de exercer atividades de pesquisa eensino em qualquer instituição que tives-se financiamento do governo brasileiro.

O episódio foi batizado de Massacrede Manguinhos por Herman Lent, um doscassados. Um telegrama de 1946 ende-reçado a Luis Carlos Prestes foi usadocomo prova contra Lent e outros cassa-dos. No telegrama, eles apoiavam Prestesem seu desejo de retirar do Brasil tropasdos EUA que, durante a 2ª Guerra Mun-dial, se instalaram na região Nordeste.

No mesmo ano do Massacre de Man-guinhos, o IOC se transformou em Funda-ção Instituto Oswaldo Cruz. Foram incor-poradas unidades como o DepartamentoNacional de Endemias Rurais (atuais campiregionais da Fiocruz) e o Serviço de Pro-dutos Profiláticos (hoje desdobrado emFarmanguinhos e Biomanguinhos), entreoutras. Mas muita água ainda rolaria atéque os cassados fossem reintegrados àFiocruz, em 1985.

Entre produção de insumos e pesqui-

sa básica, o governo escolhia a primeiraopção na hora dos investimentos. Mas issonão impediu que a produção de vacinas,exceto a de febre amarela, se tornasse ob-soleta em Manguinhos. Tanto é que, quan-do a Campanha de Erradicação da Varíolafoi lançada, em 1966, a tecnologia paraproduzir a vacina antivariólica era basica-mente a mesma usada por Pedro Afonso,no início do século 19. Foram feitos, en-tão, os ajustes técnicos e a doença foierradicada do Brasil em 1971.

Contudo, outro problema de saúdepública logo bateu à porta dos brasilei-ros. O governo militar até tentou abafaro caso, mas, em 1972, os hospitaispaulistas registravam, diariamente, 14óbitos por meningite e 160 novos casosda doença. O então ministro da Saúde,Paulo de Almeida Machado, decidiu vaci-nar toda a população brasileira e o eco-nomista Vinícius da Fonseca, técnico doMinistério do Planejamento, recebeu amissão de analisar o assunto.

Eram necessárias 80 milhões de do-ses da vacina, que, após muita negocia-ção, foram compradas do Instituto Mé-rieux, na França. Com o sucesso da

vacinação, Fonseca foi indicado para adireção da Fiocruz. Quebrava-se, assim,a tradição de diretores médicos-cientis-tas. À frente da instituição de 1975 a1979, Fonseca buscou incentivar pro-gramas multidisciplinares, para dar fimà infrutífera disputa entre pesquisa bá-sica e aplicada. Ele poderia ter sido ape-nas mais um interlocutor do regimemilitar, mas deu os primeiros passos doque viria a ser a modernização e osoerguimento da Fiocruz.

Em 1982, os governadores dos esta-dos, dez deles de oposição, foram esco-lhidos por eleições diretas. Em 1984, opovo, nas ruas, reinvidicava eleiçõesdiretas também para presidente da Re-pública. Essa conjuntura externa teve re-flexo na Fiocruz. Em 1985, tornava-se pre-sidente da instituição o sanitarista SergioArouca, professor da Ensp e um dos líde-res do movimento pela reforma no setorde saúde. Contrário à forma autoritáriacomo a instituição vinha sendo adminis-trada, Arouca inaugurou uma nova fasena Fiocruz, marcada pela redemocratiza-ção e pela retomada da excelência emtodos os campos de atuação.

Os dez cientistas de Manguinhos cassados durante o regime militar. Na parte de cima, da esquerda para a direita: Masao Goto,Herman Lent, Haity Moussatché, Hugo Souza Lopes e Augusto Perissé. Embaixo, Fernando Ubatuba, Sebastião Oliveira, Domin-gos Machado, Tito Arcoverde e Moacyr Vaz de Andrade

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Servidores da Fiocruz abraçamo Castelo em ato na década de 80