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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
ALEXANDRE GALVÃO CARVALHO
HISTORIOGRAFIA E PARADIGMAS: A Tradição Primitivista-Substantivista e a Grécia Antiga
Niterói 2007
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ALEXANDRE GALVÃO CARVALHO
HISTORIOGRAFIA E PARADIGMAS: A Tradição Primitivista-Substantivista e a Grécia Antiga.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense visando à obtenção do Grau de Doutor em História. Área de Concentração: História Social.
Orientador: Profº Drº CIRO FLAMARION SANTANA CARDOSO
Niterói 2007
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Carvalho, Alexandre Galvão Historiografia e paradigmas: A tradição primitivista-
substantivista e a Grécia Antiga – Alexandre Galvão Carvalho – Niterói: 2007.
261p. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
Fluminense, 2007. Bibliografia: f.256-261. 1. Historiografia – História antiga - Grécia. I. Título.
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ALEXANDRE GALVÃO CARVALHO
HISTORIOGRAFIA E PARADIGMAS: A Tradição Primitivista-Substantivista e a Grécia Antiga
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense visando à obtenção do Grau de Doutor em História. Área de Concentração: História Social.
Aprovada em agosto de 2007
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________ Profº Drº Ciro Flamarion S. Cardoso – Orientador
Universidade Federal Fluminense
____________________________________________________________ Profª Drª Sônia Rebel de Araújo
Universidade Federal Fluminense
____________________________________________________________ Profº Drº Marcelo Aparecido Rede Universidade Federal Fluminense
____________________________________________________________
Profª Drª Cláudia Beltrão da Rosa Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
____________________________________________________________
Profº Drº Fábio Duarte Joly Universidade Federal do Recôncavo Baiano
Niterói 2007
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Dedico este trabalho à minha esposa Cláudia, que ajudou a transformar este sonho em
realidade. Seu incansável auxílio para o sucesso deste trabalho reforçou minha confiança na
consecução de um projeto de vida construído a dois. A você, meu amor, minha eterna e
calorosa gratidão.
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AGRADECIMENTOS
À UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), universidade na qual sou
professor do Departamento de História, que propiciou-me a tranqüilidade necessária para
desenvolver a pesquisa, liberando-me das atividades de regência e dando o suporte necessário
de infra-estrutura.
À FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia), que por meio da
concessão de bolsa de doutorado e do auxílio-tese viabilizou as condições materiais para o
desenvolvimento do trabalho.
Junto a estas instituições, algumas pessoas foram fundamentais no desenvolvimento
de minha pesquisa.
Ao meu orientador, Ciro, minha maior referência intelectual desde que comecei a
trilhar pelos caminhos da História. É um privilégio continuar trabalhando com um
profissional tão cioso de suas responsabilidades, que transmite a segurança necessária para o
desenvolvimento de um trabalho satisfatório.
Ao amigo Miguel Palmeira, que nestes anos desenvolveu uma pesquisa muito próxima
da minha, e acompanhou este trabalho desde sua gestação. Municiou-me com um farto e
imprescindível material de pesquisa e, generosamente, leu e discutiu alguns dos principais
capítulos da tese.
A Fábio Joly, novo companheiro nas terras baianas, que também foi imprescindível na
sugestão e cessão de material de pesquisa.
Aos amigos Leonardo Maia, Klinton Senra, Daniel, Marcelo, Clínio e Stela, meus
esteios no Rio, Iguaba e em Niterói.
7
Aos companheiros de Departamento: Luiz Otávio, Márcia Lemos, Roberto Oliveira e
a todos os amigos do “Clube do Carteado”.
À Zélia Chequer, pelo seu brilhante trabalho na correção ortográfica.
Ao meu pai, Nestor, Ivanise, meus irmãos Stefano, Cláudio e Nathália, que sempre me
receberam com enorme carinho, e não pouparam esforços para ajudar-me em todas as etapas
do trabalho.
Aos meus filhos, Alexandre e Carina, que desde pequenos aprenderam a conviver e
respeitar um pai que os divide com este trabalho solitário e ardoroso, mas que são o motivo
maior de tudo que faço em minha vida.
Finalmente, à minha mãe, Karina, que com seu amor infinito tem me mostrado que as
dificuldades foram feitas para serem vencidas.
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RESUMO
O objetivo deste trabalho é investigar a sociedade grega antiga por meio dos trabalhos dos autores paradigmáticos da tradição primitivista-substantivista. Esta tradição nasceu no final do século XIX, na Alemanha, dentro do contexto de debates científicos centrando no oikos, sob a influência da tradição histórica alemã. Karl Bücher, um economista, lançou as bases desta tradição, defendendo que uma organização econômica baseada no oikos foi predominante durante toda a Antiguidade, dentro de uma perspectiva evolucionista. Max Weber repensou a hipótese de Bücher e, adotando algumas das críticas dos historiadores alemães a Bücher, redefiniu os paradigmas da tradição, colocando a pólis no centro dos argumentos primitivistas. Hasebroek seguiu Weber, porém, dirigiu críticas violentas contra a tradição modernista. Karl Polanyi, que foi o responsável pela introdução do substantivismo na tradição inaugurada por Bücher e seguida por Weber, desenvolveu estudos em uma perspectiva antropológica, removendo os resquícios neoclássicos da tradição e redimensionando o conceito formalista do mercado. Moses Finley, sob a influência da História Social, deu contornos finais a esta tradição, juntamente com os argumentos antiformalistas baseados em uma análise social centrada no papel dos diferentes grupos de status e na importância da cidadania. Os trabalhos destes autores contribuíram para o nascimento e consolidação da ciência histórica moderna, inserindo a História Antiga na corrente da Historiografia moderna. Palavras-chave: Historiografia, História Antiga, Grécia Antiga.
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ABSTRACT
The objective of this work is to investigate the ancient Greek society by means of the works of paradigmatic authors of the primitivist-substantivist tradition. This tradition was born in the late nineteenth century, in Germany, in the context of scientific debates centering on the oikos, under the influence of German historical tradition. Karl Bücher, an economist, launched the bases of this tradition, defending that an economic organization based on the oikos was prevalent throughout Antiquity, doing so within an evolutionist perspective. Max Weber rethought Bücher’s hypothesis, and, adopting some of the German historians’ criticisms of Bücher, redefined the paradigms of the tradition, placing the polis at the center of the primitivist arguments. Hasebroek followed Weber, but directed violent criticisms against the modernist tradition. Karl Polanyi, who was responsible for the introduction of substantivism in the tradition inaugurated by Bücher and then Weber, developed studies in an anthropologic perspective, removing neoclassical traces from that tradition and reassessing the formalist concept of the market. Moses Finley, under the influence of social history, gave this tradition its final outline, together with antiformalist arguments based on a social analysis centered in the role of the different groups of status and the importance of citizenship. The works of these authors have contributed to the birth and consolidation of modern historical science, inserting Ancient History in the mainstream of modern historiography. Key words: Historiography, Ancient History, Ancient Greece.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12
PARTE I - O NASCIMENTO DO “PRIMITIVISMO” SOB O DOMÍNIO DA TRADIÇÃO ALEMÃ
2 A ALEMANHA DO FINAL DO SÉCULO XIX E A CONTROVÉRSIA BÜCHER & MEYER ............................................................................................. 21
2.1 CONTEXTO SOCIAL, POLÍTICO E CULTURAL DA ALEMANHA DO FINAL DO SÉCULO XIX ATÉ OS ANOS DO SÉCULO XX ............................. 21
2.2 ILUMINISMO E IDEALISMO NA ALEMANHA NO FINAL DO SÉCULO XIX .......................................................................................................................... 24
2.3 A ESCOLA HISTÓRICA DE TEORIA ECONÔMICA E A CONTROVÉRSIA DOS MÉTODOS (METHODENSTREIT) ............................................................... 30
2.4 KARL BÜCHER E OS ESTÁGIOS ECONÔMICOS ........................................... 36
2.5 EDUARD MEYER E A TEORIA DA HISTÓRIA: O PARADOXO ENTRE O HISTORISMO E O ANACRONISMO ............................................................... 44
2.6 MEYER E A EVOLUÇÃO ECONÔMICA DA GRÉCIA ANTIGA ..................... 48
3 A PÓLIS TOMA O LUGAR DO OIKOS. O TIPO IDEAL DE MAX WEBER E O NEOPRIMITIVISMO DE HASEBROEK .................................................... 60
3.1 OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DOS TRABALHOS DE WEBER ............................................................................................................ 60
3.2 A GRÉCIA ANTIGA E SEUS VÁRIOS “TIPOS IDEAIS” .................................. 67
3.3 JOHANNES HASEBROEK E O NEOPRIMITIVISMO ........................................ 98
11
3.3.1 Estado, Política e Comércio .................................................................................. 100
PARTE II - A GUINADA ANTROPOLÓGICA E O SUBSTANTIVISMO
4 O ATAQUE AO MERCADO “FORMALISTA”. KARL POLANYI E O NASCIMENTO DO MERCADO NA GRÉCIA ANTIGA .......................... 121
4.1 INFLUÊNCIAS INTELECTUAIS E O CONTEXTO POLÍTICO ..................... 121
4.2 A DEFINIÇÃO DO ECONÔMICO .................................................................... 125
4.3 RECIPROCIDADE, REDISTRIBUIÇÃO, HOUSEHOLD E INTERCÂMBIO . 137
4.4 O SURGIMENTO DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS E AS DIFERENÇAS ENTRE OCIDENTE E ORIENTE ....................................................................... 144
4.5 KARL POLANYI E A GRÉCIA ANTIGA .......................................................... 149
4.5.1 O Comércio ........................................................................................................... 151
4.5.2 O Mercado ............................................................................................................. 159
4.5.3 A Ágora e a Pólis ................................................................................................... 160
4.5.4 Dinheiro ................................................................................................................. 164
PARTE III - A CONSOLIDAÇÃO DA HISTÓRIA SOCIAL NO SEIO DA TRADIÇÃO PRIMITIVISTA-SUBSTANTIVISTA
5 O DOMÍNIO DO SOCIAL. MOSES FINLEY E A ECONOMI A ANTIGA ............................................................................................................. 174
5.1 A CRISE DO HISTORISMO CLÁSSICO E O CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO DA HISTÓRIA SOCIAL ............................................ 175
5.2 MOSES FINLEY E A HISTÓRIA SOCIAL ....................................................... 189
5.2.1 A Crítica do Historismo e a Discussão das Fontes .............................................. 190
5.2.2 A Utilização de Modelos e o Diálogo com a Sociologia e a Antropologia ......... 195
5.2.3 O Marxismo. A Influência do Instituto de Pesquisa Social e a História Total .... 203
5.3 MOSES FINLEY E A ECONOMIA ANTIGA ................................................... 219
6 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 249
7 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 256
12
1 INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é investigar a sociedade grega antiga por meio dos trabalhos
de alguns autores paradigmáticos de uma tradição intitulada primitivista-substantivista,
gerada no seio de um centenário debate acerca da “economia antiga”, iniciado na Alemanha
no final do século XIX.
Tradição aqui é entendida como uma continuidade viva de idéias e reflexões, que não
são particulares nem parciais, mas de caráter universal, que se acumulam ao longo do tempo.
Os autores investigados, considerados paradigmáticos desta tradição, Karl Bücher, Max
Weber, Johannes Hasebroek, Karl Polanyi e Moses Finley, não são os únicos que defenderam
os postulados desta tradição, contudo eles foram escolhidos porque, além de servirem de
parâmetro para a produção historiográfica de seus contemporâneos, gestaram conceitos e
teorias que contribuíram para a cientificidade da História.
Não estamos nos propondo a investigar o debate entre primitivistas e modernistas ou
todos os matizes da controvérsia do oikos; isto ampliaria nosso raio de investigação a um
campo muito mais amplo e inviável ante os prazos estabelecidos para esta pesquisa. Nosso
objetivo é localizar a produção desses autores no debate, procurando demonstrar a existência
de postulados gerais acerca do lugar da economia antiga. Longe de ser uma simples
reafirmação de influência de um autor para outro, esses postulados apresentam convergências
e divergências entre esses autores e desdobramentos ao longo do tempo, o que procuraremos
demonstrar à luz das correntes historiográficas defendidas por eles. Além desses autores, o
primeiro grande autor paradigmático da corrente “modernista”, Eduard Meyer, que iniciou o
debate com Karl Bücher, também foi alvo de nossa preocupação, porque se tornou uma
referência para os autores analisados aqui e nos ajudou a compreender melhor as raízes
históricas desta tradição.
13
É, portanto, em sua essência, um trabalho de historiografia. As correntes mais recentes
da produção histórica sobre a Antigüidade apresentam uma preocupação cada vez maior com
os problemas da historiografia. Trata-se de pesquisas que consistem em averiguar a
repercussão e a influência de idéias, conceitos e valores da Antiguidade sobre outros períodos
da História. Alguns dos expoentes deste tipo de trabalho são representados por Arnaldo
Momigliano, François Hartog, Ricardo Di Donnato, Claude Mossé, Vidal-Naquet e Dabdab-
Trabulsi (no Brasil) entre outros. O que tais análises têm em comum entre si e com este
trabalho é a percepção das condições gerais de uma época, neste caso específico, a
Antigüidade, e as marcas que elas deixaram nas construções intelectuais daqueles que
escreveram acerca dela, isto é, o “uso” que se fez desta Antigüidade. Segundo Peter Gay, os
grandes acontecimentos do presente estimulam os historiadores a descobrirem a importância
do que antes foi considerado sem importância, ou irrelevante aquilo que foi visto como
importante.1 O diálogo com a Antiguidade é parte da História. Para Vidal-Naquet, a Grécia,
por exemplo, não está na nossa História, mas, sim, o diálogo com a Grécia e, antes de tudo, o
diálogo com os textos gregos.
a reelaboração da herança grega, ora sob forma mítica ou ideológica, ora sob a forma do trabalho crítico e científico, é um dos dados da nossa história intelectual, que se exprime na criação, incessantemente renovada, de novos modos de discurso, de novos conceitos, de novos campos epistemológicos.2
Ao investigarmos a produção historiográfica dos autores paradigmáticos da tradição
primitivista-substantivista, relacionamos nosso trabalho a duas esferas analíticas temporais: a
Antiguidade clássica e historiografia contemporânea, pois o conjunto da obra daqueles
autores, objeto de nossas reflexões, situa-se em grande parte no final do século XIX e
primeira metade do século XX, demandando uma discussão dos grandes debates
historiográficos contemporâneos a eles. O campo da historiografia pode contribuir para o
aperfeiçoamento teórico da História, ao avaliar criticamente a produção de alguns autores com
o fim de aperfeiçoar procedimentos intelectuais de nossa própria “ operação historiográfica”.
Na medida em que se diluem as divisões que organizam uma época e sua historiografia,
aumentam nossas perspectivas de examinar os dados de seu tempo, pelo fato de estarmos
deslocados, o que possibilita revelar suas relações com outros elementos de sua época e
1 GAY, P. Os estilos na História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 2 VIDAL-NAQUET, P. Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desafio. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002, p. 254-255.
14
inscrever sua historiografia na História, agora objeto de nossa historiografia. Segundo Michel
de Certeau, “toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-
econômico, político e cultural. (...) É em função deste lugar que se instauram os métodos, que
se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes são
propostas, se organizam.”3
Cada trabalho individual se insere em uma rede cuja combinação dinâmica forma a
História em um momento dado. Assim, uma obra é reconhecida pelos seus pares, na medida
em que se situa em um conjunto operatório e representa um progresso em relação ao estatuto
atual dos objetos e métodos históricos, além de tornar possíveis novas pesquisas. Portanto,
muito mais ligada ao complexo de uma fabricação específica e coletiva, do que ao efeito de
uma filosofia individual, uma obra histórica é o produto de um lugar. Assim, a mudança de
uma situação social resulta em uma mudança no modo de trabalhar e no tipo de discurso. Se a
organização da História é relativa a um lugar e a um tempo, isto é possível pelas técnicas de
produção. Toda sociedade se pensa historicamente com os instrumentos que lhes são
próprios.4
Para Michel de Certeau, a escrita da História é uma prática social que confere ao leitor
um lugar determinado e se destaca do trabalho cotidiano, das eventualidades, dos conflitos da
pesquisa. Ela se separa do tempo que passa e fornece modelos no quadro fictício do tempo
passado. A escrita histórica está assegurada por certo número de conceitos, categorias
históricas de tipos diferentes: século, classe social, família, povo, guerra, heresia etc. Ela
impõe regras que são diferentes da prática e complementares a ela, mas são regras que
organizam lugares em vista de uma produção. A escrita permite que uma sociedade se situe,
dotando-a de uma linguagem sobre o passado. Abre para o presente um espaço próprio para
marcar o passado, a fim de redistribuir o espaço dos possíveis. Determina negativamente
aquilo que está por fazer, enterrando os mortos e estabelecendo um lugar para os vivos. Ela
honra e elimina o passado. Introduz aquilo que não se faz mais. Pretende criar no presente um
lugar a preencher, um “dever - fazer”. Portanto, ela é ao mesmo tempo performática e espelho
de uma realidade.5
O gesto de ordenamento do passado pelo historiador é formal e submetido a requisitos
de exposição, é uma ordem que o historiador não a faz, ele a encontra. A interpretação
3 CERTEAU, M. de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1982, p. 66-67. 4 ibid., p. 65-77. 5 ibid., p. 101-109.
15
histórica é uma tentativa de oferecer uma explicação objetiva do passado, para a qual o
historiador usa estratégias expositivas persuasivas, cujo estilo é a marca que o diferencia e o
distingue; é a prova de sua subjetividade. Neste sentido, as técnicas estilísticas utilizadas pelos
historiadores apresentam semelhanças com as técnicas dos romancistas, diferindo-se pelo fato
de que, enquanto na ficção a verdade é um instrumento ocasional, na História é uma busca
incessante, sua finalidade essencial. Daí a dupla face do ofício do historiador: estar voltada
para as subjetividades e para a ciência, tal como os domínios da cultura e da personalidade
individual.6
A principal hipótese de trabalho é mostrar que todos os autores com os quais estamos
trabalhando estão comprometidos com a constituição e solidificação de uma historiografia
“moderna”. Ao investigar o desdobramento dos argumentos da tradição primitivista-
substantivista, procuraremos elencar os argumentos específicos desses autores acerca da
“economia antiga”, em particular, a grega, que, na verdade, contribuem para a formação da
historiografia moderna. O objetivo, então, é mostrar como os trabalhos de alguns autores
paradigmáticos constituíram-se em uma tradição que pode agora ser radiografada no interior
de uma grande corrente historiográfica que dominou o pensamento do Ocidente por mais de
dois séculos. Eis o grande desafio deste trabalho.
O trabalho está dividido em três partes. A primeira parte, O NASCIMENTO DO
“PRIMITIVISMO” SOB O DOMÍNIO DA TRADIÇÃO HISTÓRICA ALEMÃ , com
dois capítulos, aborda o contexto intelectual em que se desenvolveu o debate acerca do lugar
da “economia” do mundo antigo na historiografia alemã do final do século XIX.
A Alemanha foi palco de um intenso debate, no final do século XIX e início do XX,
acerca do lugar do mundo antigo na ciência histórica. No centro deste debate estava o estudo
das relações econômicas na Antigüidade, pois o capitalismo e suas transformações,
desencadeadas a partir da Revolução Industrial, impulsionavam o desenvolvimento de uma
História Econômica. Na Alemanha, este interesse nasceu com os trabalhos de alguns
economistas que esboçavam esquemas de evolução do desenvolvimento econômico das
comunidades primitivas até épocas modernas. K. Bücher, por exemplo, afirmava que até o
século X, as comunidades existentes nunca haviam passado da etapa de economia doméstica
fechada. Com efeito, afirmava que a vida econômica dos gregos e romanos repousava no
oikos, unidade central auto-suficiente. Tal perspectiva, tributária de Rodbertus, enfatizava a
idéia de que uma economia monetarizada requeria uma estrutura social completamente 6 GAY, P. op. cit., p. 190-195.
16
diferente da existente em uma economia de intercâmbios em espécie. As opiniões destes
autores, classificados de “primitivistas”, foram fervorosamente combatidas por outros
classicistas alemães liderados por E. Meyer, que destacava, por outro lado, a importância do
comércio e dos transportes na vida econômica da Antigüidade. Ao afirmar a existência de
manufaturas e de dinheiro em grande escala, Meyer pressupunha que a organização das
atividades econômicas da Antigüidade seguia o modelo do mercado.7 O avanço comercial
demandava a produção de artigos para o comércio, pois a criação de uma indústria
exportadora exigia a importação de matérias-primas e produtos alimentares para as cidades
superpovoadas. Tudo isto favoreceu o capitalismo e, no plano social, a formação de uma
“aristocracia comercial” dominante nas grandes cidades industriais.8 Hasebroek classificou a
posição de Meyer de “modernista”, pois este sugeria que o mundo antigo seguia a mesma
linha de desenvolvimento do mundo moderno, isto é, um desenvolvimento sem precedentes
da capacidade produtiva. Max Weber retomou muitas das questões abordadas por estes
autores e, sem demonstrar um claro alinhamento entre primitivistas e modernistas, mas
estando, aparentemente, mais próximo dos primeiros, pôs de relevo as características únicas
da cultura antiga, afirmando que a força que movia a economia do mundo clássico era a
orientação político militar da cultura antiga.9 Também acreditava haver capitalismo no mundo
antigo, mas de natureza bem diferente do capitalismo moderno. O capitalismo, ali, é de
orientação política e o excedente econômico advém dos aluguéis de terras e da exploração de
mão-de-obra escrava. Hasebroek foi signatário dessas idéias e aprofundou muitas das idéias
de Weber, sendo seu principal mérito o de ter associado às atividades econômicas com a vida
política, recolocando a vida econômica no quadro único da Cidade, mostrando que, na cidade
grega, diferentemente dos Estados modernos, havia uma dissociação entre a comunidade
política dos cidadãos e a maioria dos elementos ativos do artesanato e comércio.10 Estes
autores desempenharam um papel fundamental neste debate, tanto que sua influência
ultrapassou os limites do mundo acadêmico alemão, com defensores e opositores em diversos
países da Europa. Outros sábios alemães também produziram trabalhos sobre este tema e
merecem ser mencionados, porém, não serão investigados aqui, como é o caso de R. von
7 PEARSON, W. El debate secular sobre o primitivismo económico. In: POLANYI, K; ARENSBERG, C;
PEARSON, H. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: Labor universitária, 1976. p. 51-59.
8 Ver WILL, E. Trois quarts de siècle de recherches sur L’économie grecque antique. Annales ESC, v. 1, n. 9, p. 10, 1954.
9 PEARSON, W. El debate secular sobre o primitivismo económico. In: POLANYI, K; ARENSBERG, C; PEARSON, H. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: Labor universitaria, 1976. p. 51-59.
10 WILL, E. op. cit., p.14.
17
Pöhlmann que aplicou a análise marxista à economia e à sociedade antigas; Fr. Oertel e R.
Laqueur que admitiam a existência de uma certa forma de capitalismo orientado para o
comércio e caracterizado pelos grandes empréstimos; e A.E. Zimmern, que realizou um
primeiro trabalho sobre a mentalidade econômica dos gregos, de caráter mais “primitivista”
que “modernista”.11
O primeiro capítulo explora a divergência entre os trabalhos de Bücher e Meyer,
autores que iniciaram a contenda entre “primitivistas” e “modernistas”, procurando mostrar
que, apesar das divergências, os trabalhos deles estão perfeitamente envolvidos pela
“atmosfera” intelectual da tradição histórica alemã. O segundo capítulo apresenta o arcabouço
teórico da obra de Max Weber e sua inserção nos debates intelectuais travados na Alemanha
no início do século XX. O “tipo ideal” e a sua utilização na análise do mundo antigo, em
particular da Grécia Antiga, e o “racionalismo” econômico são as questões privilegiadas neste
capítulo. O oikos, argumento central de Bücher, é agora redimensionado por Weber e
colocado em segundo plano em relação à pólis. Finalmente, aborda, ainda, o trabalho de
Hasebroek segundo duas perspectivas: convergências e divergências em relação à obra de
Weber; e retomada de um ataque violento aos “modernistas”.
A segunda parte da tese, A GUINADA ANTROPOLÓGICA E O
SUBSTANTIVISMO, compõe-se de um capítulo sobre o trabalho de Karl Polanyi. O título
desta parte indica uma substituição do referencial intelectual da tradição “primitivista”, na
qual o Historismo era um dos elementos centrais da ossatura historiográfica e o Idealismo, a
matriz filosófica, por um referencial antropológico. O austríaco Karl Polanyi (1886-1964) é o
protagonista mais ilustre desta vertente, depois dos alemães, tendo desenvolvido pesquisas
pioneiras acerca do lugar da economia nas sociedades antigas.
Agora um novo elemento invade o centro das preocupações da tradição investigada: o
mercado. Polanyi procura mostrar primordialmente que o mercado, da forma como descrito
pelos formalistas, é algo historicamente datado, e que a indissociabilidade entre mercado,
comércio e dinheiro é uma falácia formalista. Além disso, procura, junto com seus
colaboradores, remover os resquícios formalistas do conceito de economia presentes nos
trabalhos de Weber e seus seguidores.
O debate entre as correntes formalistas e substantivistas abre o capítulo e, em seguida,
a crítica polanyiana aos elementos formalistas orientadores do arcabouço teórico de Weber. A
11 ibid., passim.
18
seção sobre a Grécia Antiga será utilizada como exemplo para comprovar a hipótese de que o
mercado, o comércio e o dinheiro não assumem na Grécia Antiga as mesmas características
que têm nas sociedades modernas, definidas segundo os parâmetros formalistas. Procuramos
apontar as divergências e convergências de Polanyi com os autores já explorados nos
capítulos anteriores.
A terceira parte, A CONSOLIDAÇÃO DA HISTÓRIA SOCIAL NO SEIO
DA TRADIÇÃO PRIMITIVISTA-SUBSTANTIVISTA , é composta por um capítulo, o
quarto desta tese, sobre os trabalhos de Moses Finley, cujo objetivo é demonstrar que eles
constituem uma defesa dos princípios da História Social no interior da tradição estudada.
Procuramos, inicialmente, mostrar as influências intelectuais e teóricas dos neomarxistas da
Escola de Frankfurt, da Escola dos Annales, da sociologia weberiana e do substantivismo
polanyiano sobre as idéias de Finley.
Três temas da produção historiográfica finleyniana são abordados com mais ênfase
para reafirmar a influência da História Social: a discussão sobre as fontes, a utilização de
modelos e a defesa da História total. A exploração destes temas é antecedida, na parte inicial
do capítulo, por um preâmbulo sobre a constituição e o fortalecimento da História Social no
espaço acadêmico norte-americano e europeu. Este preâmbulo ajuda-nos a entender a crítica
de Finley aos chamados “antiquaristas” e positivistas, identificados por ele como defensores
de uma História tradicional, isto é, Historista.
Finley procura conciliar o institucionalismo histórico weberiano com o substantivismo
polanyiano em sua análise sobre a economia antiga à luz dos princípios da História Social. Os
temas explorados neste capítulo, conceito de economia, a escravidão, a cidade antiga, a
mentalidade dos proprietários de terras e o papel do Estado nos assuntos econômicos, são
temas de escritos que atravessam toda a carreira de Finley e estão presentes no livro, A
Economia Antiga, e sobre os quais se debruçaram os autores da tradição primitivista-
substantivista que o precederam.
Subjacente à analise dos autores paradigmáticos desta tradição encontra-se uma
reflexão sobre o estatuto científico da História. Os modelos apresentados pelos autores
analisados indicam como se estabeleceu o diálogo, ou a sua ausência, entre a História e as
outras ciências humanas, em determinados períodos.
Esperamos, assim, fomentar uma reflexão crítica acerca de um momento em que os
grandes modelos da economia e da sociedade grega contribuíram para mostrar as diferenças
19
pontuais entre o antigo e o moderno, evitando assimilações confusas e estéreis entre épocas
diferentes.
20
PARTE I
O NASCIMENTO DO “PRIMITIVISMO” SOB O
DOMÍNIO DA TRADIÇÃO HISTÓRICA ALEMÃ
21
2 A ALEMANHA DO FINAL DO SÉCULO XIX E A CONTROVÉRSI A BÜCHER
& MEYER
2.1 CONTEXTO SOCIAL, POLÍTICO E CULTURAL DA ALEMANHA DO FINAL DO
SÉCULO XIX ATÉ OS ANOS 20 DO SÉCULO XX.
Ao longo do século XVIII e início do século XIX, o desenvolvimento econômico da
Alemanha foi bem menos acelerado do que de outros países da Europa que já haviam
desencadeado um processo de industrialização, como Inglaterra e França. A produção de
carvão da Prússia de 1846, por exemplo, correspondia à terça parte da produção da França, e o
consumo de carvão era menor do que o da cidade de Londres sozinha.
Nesse ambiente econômico, não se desenvolveu uma burguesia empresarial forte nem
uma tradição de liberalismo de classe média. Enquanto os intelectuais ingleses tinham suas
raízes numa elite industrial independente, em que o liberalismo constituía uma extensão do
utilitarismo empresarial e das teorias econômicas do laissez faire, a classe média alemã estava
preocupada com a ascensão social por meio da instrução, com objetivo de ingressar numa das
burocracias do Estado, no clero, no magistério ou nos setores da medicina ou do direito. Esta
elite mostrou, desde suas origens, “uma propensão a afastar-se da condição de camponeses e
artesãos e a procurar uma posição especial no tradicional sistema de classes.”12 Seu objetivo
era a educação plena e harmoniosa do indivíduo integral. Os temas recorrentes na filosofia e
na teoria social na Alemanha implicavam um afastamento parcial da situação existente:
O puro saber, contemplação absolutamente desinteressada do bem e da verdade, é a principal vocação do homem. Serve melhor a humanidade quem
12 RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000. p. 30.
22
cultiva ao máximo o seu próprio espírito; pois o mundo não tem propósito e realidade em si mesmo, nenhum sentido fora do trabalho criativo da mente e do espírito humano. Comparado a esse trabalho, tudo o mais é insignificante: os conhecimentos práticos da vida cotidiana, os detalhes da organização social e os acidentes da hierarquia e da posição social.13
Os grandes poetas alemães, os neo-humanistas e os filósofos idealistas do final do
século XVIII foram envolvidos por essas idéias. Homens como Wilhelm von Humboldt,
Friedrich von Schiller, Gottlieb Fichte, F.W.J. Schelling e Friedrich Hegel exaltaram a
vocação do intelectual puro e foram os sacerdotes da nova filosofia idealista, constituindo-se,
para as gerações futuras, em uma nova aristocracia da “cultura”. O ideal de liberdade
acadêmica foi redigido por uma série de memorandos escritos por boa parte desses homens. O
Estado deveria apoiar esse ideal sem exercer controle direto sobre as matérias ensinadas, e a
formação de funcionários pelas universidades deveria ser realizada sob o espírito da cultura
filosófica.
Entre 1870 e 1914, a Alemanha passou por tal processo de industrialização –
crescimento sem precedentes em termos de velocidade e amplitude, aumento da população
urbana, de fábricas e indústrias pesadas – que, em algumas décadas, já era uma das maiores
potências do mundo. A esse crescimento, seguiu-se a formação de grandes cartéis, que
concentravam enorme poder econômico nas mãos de poucas empresas gigantescas. De 1870 a
1890, surgiram diversas associações de empresários para defender seus interesses, entre eles,
a proteção tarifária e o combate às greves. O sindicalismo, por outro lado, também cresceu em
proporções impressionantes, atingindo mais de dois milhões de trabalhadores. Todo esse
processo foi perturbador para a antiga classe burguesa, composta de artesãos e pequenos
comerciantes, que se viu ameaçada pelo novo poder político e pela nova força econômica, que
demonstrava grande potencial organizativo. Muito mais a perder tinha a classe alta tradicional
não produtiva: funcionários públicos, profissionais liberais e acadêmicos. Esse grupo
desfrutara de grande poder político antes de 1870, mas, no final do século XIX, já havia
perdido a maior parte de sua influência. As mudanças tendiam a transformar o caráter da
política alemã. Os setores organizados com interesses socioeconômicos fortemente
relacionados ao advento da industrialização ingressaram na arena político-eleitoral e travavam
lutas declaradas com os antigos grupos dominantes, que defendiam uma política “idealista”.
Começava a haver mudança na representação política da Alemanha.14
13 ibid., p. 35. 14 ibid., p. 59.
23
Os cargos não eletivos do governo continuavam sendo dominados pelos setores
acadêmicos, mas a posição dessa elite ficou mais difícil no período entre guerras, quando foi
afetada política e economicamente pela desastrosa inflação e pela enorme carga de reparações
de guerra imposta pelo Tratado de Versalhes. Os primeiros anos da República foram
marcados por distúrbios políticos, que contribuíram, ao lado do conflito franco-germânico de
1923, para o colapso do marco.
Em termos gerais, portanto, a inflação significou a ruína econômica, sobretudo daqueles grupos sociais que já se achavam em desvantagem comparativa numa época de rápida industrialização. Na verdade, ela fortaleceu as novas elites empresariais, administrativas e técnicas e não causou dano à mão-de-obra industrial de forma significativa ou permanente. Seus efeitos mais devastadores concentraram-se, ao contrário, nos dois segmentos mais antigos da classe média tradicional: de um lado, os que viviam de rendas, os funcionários públicos, os profissionais liberais e os acadêmicos e, de outro, os artesãos, os lojistas e os empregados de escritório do escalão inferior.15
O status dos professores universitários ainda continuou elevado por muito tempo, mas
seus gastos eram superiores a sua condição social, o que os levou a uma crescente insatisfação
com o ambiente moderno. Além disso, o período de Weimar acirrou as lutas de classes,
motivadas, em grande parte, pela revolução de 1918 e pela queda da monarquia burocrática. A
República não tinha tradição, era apenas uma arena de discussão das opções políticas. As
dificuldades econômicas trouxeram para o centro do palco as batalhas entre a indústria e a
agricultura e entre empregadores e trabalhadores. As graves tensões sociais e culturais geradas
pela industrialização abrupta depois de 1870 foram percebidas pelos intelectuais com enorme
intensidade. Tanto foi assim que, no começo dos anos 20 do século passado, estavam
convencidos de que viviam uma crise profunda nas áreas da cultura, ensino, valores e,
mesmo, do espírito.16 Quanto aos intelectuais que defendiam uma filosofia “idealista” para a
educação, suas posições foram gradativamente se tornando mais conservadoras e refratárias a
qualquer mudança institucional ou social. Tudo que os ameaçava, da era moderna, era
recusado, incluindo aí a República, a nova política partidária e as transformações sociais
ligadas à industrialização e à inflação. Estavam dispostos a defender seu lugar social e
profissional a qualquer custo, e isto incluía uma batalha contra aqueles que queriam reformar
a educação, pois entendiam que esta reforma pretendia levar as massas a capturar as
15 ibid., p. 73 16 RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000. p. 19-20.
24
instituições de ensino superior, desestruturar sua organização interna, transformá-las em
instrumento de nivelamento social e obrigá-las a abandonar suas tradições eruditas em favor
de um tipo prático de educação moderna.17
Fritz Ringer separa os intelectuais alemães, depois de 1890, em dois grupos. O
primeiro engloba os professores e eruditos que aprovavam a estratificação da sociedade,
toleravam os aspectos pouco liberais do regime político vigente e compartilhavam o medo e a
hostilidade com as classes dominantes, que enfrentavam o movimento social-democrata.
Defendiam, portanto, uma posição “ortodoxa” e constituíam a maioria da comunidade
acadêmica alemã, porém com um discurso político menos sofisticado e intelectualmente
menos brilhante. Já outro grupo de eruditos alemães, formado, sobretudo por cientistas
sociais, desenvolveu argumentos mais complexos e assumiu uma atitude mais equilibrada
acerca dos problemas da época. Reconhecia que a industrialização e a democratização eram
irreversíveis e acreditava que alguns processos da modernização em curso estavam ligados às
necessidades e às vantagens da mudança socioeconômica. Os membros dessa minoria
progressista eram chamados de “acomodacionistas”, porque eram mais submissos às
transformações da vida moderna, que lhes pareciam inevitáveis. Em seus escritos políticos,
estava presente um forte ataque à representação política dos setores rurais no legislativo
prussiano e aos privilégios fiscais e tarifários concedidos à aristocracia agrária. Queriam a
reforma social, mas sem marxismo.18 Foi nesse contexto que boa parte dos intelectuais que
vamos investigar produziu seus trabalhos.
2.2 ILUMINISMO E IDEALISMO NA ALEMANHA NO FINAL DO SÉCULO XIX
O Iluminismo da Europa ocidental, mais especificamente o anglo-francês, nunca foi
totalmente assimilado na Alemanha. Diferente daquele, o Iluminismo alemão (Aufklärung)
rejeitava a tendência utilitarista do conhecimento, a associação entre ciência e educação com a
idéia de manipulação prática, técnica racional e controle ambiental. A aquisição da cultura
relacionava-se a um crescimento interior e autodesenvolvimento integral. Paralelamente, a
palavra alemã Kultur (cultura) tinha o significado de cultura pessoal; referia-se ao cultivo da
17 ibid., p. 90. 18 ibid., p. 129-133.
25
mente e do espírito. Posteriormente, passou a ser usada como síntese de todas as realizações
do homem civilizado na sociedade. Em resumo, cultura refletia cultivo.19
Estas idéias orientadoras do Iluminismo alemão estavam relacionadas à filosofia
kantiana, de caráter idealista, de forte impacto sobre a intelectualidade alemã. No modelo
kantiano, as impressões e as idéias são comparadas entre si, e, não, com objetos físicos ou
com eventos. Tal procedimento é uma operação exclusivamente interior. Na filosofia
idealista, as coisas são produto da consciência. A palavra alemã Geist não significa apenas
“mente”, mas, também, “espírito”, “alma”. Também aparece como o pensamento coletivo da
humanidade e, por vezes, como uma consciência transcendental que garante a concomitância
entre aparência e realidade. O termo Geisteswissenschaft (ciência da cultura) parece implicar,
a partir do século XIX, uma abordagem idealista das disciplinas humanistas que ela
representa.20
O Idealismo (Idealismus) exerceu forte influência sobre os historiadores alemães,
estando presente nas obras de Humboldt, Hegel, Dilthey, Herder e Ranke, entre outros. As
obras desses autores foram as mais representativas da tradição histórica alemã e, similarmente
ao movimento iluminista, opunham-se à idéia de que o passado devesse ser utilizado como
“uma coleção de exemplos a ser usados para glorificar o homem, o progresso e o presente,
para construir máximas genéricas da arte do governante, ou para tabular os avanços da ciência
e da razão.”21
Ranke que foi, durante a maior parte do século XIX, o grande decano e mestre dos
historiadores alemães, combatia veementemente a crença na possibilidade de o historiador
aplicar teorias para o conhecimento histórico e rejeitava como abstratas as idéias puras,
permanentes e metafísicas. Sua extensa obra se caracteriza por uma tensão entre a exigência
de uma investigação objetiva e os supostos políticos e filosóficos que determinavam esta
investigação. Por um lado, insistia nos métodos da crítica filológica, pois uma historiografia
científica não poderia se apoiar na credibilidade das narrativas, sem antes passar pelo exame
crítico, que exigia um conhecimento das línguas em questão e das ciências auxiliares da
História. Assim, os primeiros preceitos de uma História científica para Ranke seriam:
exposição, recompilação, articulação e compreensão dos fatos. Dever-se-iam desvendar as
grandes unidades de sentido dos fatos para encontrar sua verdadeira significação histórica.
19 RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000. p. 93-94 20 ibid., p.98-103 21 ibid., p.104-105
26
Para Ranke, o historiador não deveria julgar o passado, mas expô-lo em sua essência, mesmo
que sempre estivesse insatisfeito com os resultados que alcançasse. Por outro lado, sua
concepção de ciência apoiava-se em valores políticos e culturais de uma cultura burguesa,
para a qual o Estado prussiano aparecia como uma realidade política e ética garantidora das
liberdades. Assim, por trás da idéia de objetividade, escondiam-se uma metafísica e uma
ideologia que impediam aquela aproximação “objetiva” e imparcial da História.22 Sua famosa
observação sobre descobrir apenas “o que realmente aconteceu” propõe uma interpretação
histórica em que épocas, instituições e indivíduos históricos são descritos “em seus próprios
termos”, em vez de julgados por meio de padrões contemporâneos. Este foi o tema central da
tradição histórica alemã.
Já estavam presentes na obra de Ranke dois princípios fundamentais da tradição
histórica: empatia e individualidade. O princípio de empatia ressalta mais as intenções e
sentimentos conscientes do que as regularidades estatísticas ou as leis atemporais do
comportamento. Implica na tentativa de “colocar-se no lugar de” indivíduos históricos. O
princípio de individualidade traduz uma análise em que todos os tipos de sujeitos – uma
época, uma nação, uma idéia ou um governante – devem ser tratados como personalidades
únicas, com ênfase em sua unicidade e concretude indivisa. Ao analisar o passado, o
historiador deve-se voltar sempre para o contexto histórico em que investiga, e, não, procurar
conceitos atemporais. Deve tratar a cultura e todo o espírito de uma época como um complexo
singular e auto-suficiente de valores e idéias.23 Eis as diferenças de método entre a História e
as Ciências naturais. As relações históricas, ao contrário das leis da mecânica, baseiam-se, em
parte, nas intenções humanas. Neste sentido, têm significado.
Entender um homem ou uma época do passado é reconstituir uma individualidade
histórica a partir das “objetivações” remanescentes de seu espírito. Uma vez que esta
reconstituição envolve a reconstrução de padrões significativos de pensamento e atitudes, o
modo de explicar a História depende do elemento de significado.24
Ernest Troeltsch, em 1923, discursando sobre as origens do individualismo,
relacionou-o ao Romantismo alemão e o descreveu como uma reação à Revolução francesa,
como uma revolta contra “a moralidade igualitária universal”, contra todo o “espírito
22 IGGERS, G. La ciencia historica en el siglo XX. Una vision panorámica y crítica del debate
internacional. Barcelona: editorial Labor, 1995, p. 28-30. HOLANDA, S. B. Introdução: o atual e o inatual em Leopold Von Ranke. In: Ranke, Leopold von. Org. (da coletânea) Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1979. Coleção Grandes cientistas sociais, 8, p. 7-61.
23 RINGER, F. op. cit., p.105. 24 ibid., p.105-106
27
científico matemático-mecanicista da Europa ocidental” e contra a árida abstração de uma
humanidade universal e igual. Como produto do Romantismo alemão, está presente também,
nesse conceito de individualidade, um senso místico-metafísico de uma concretização
particular do espírito divino em pessoas isoladas e em organizações comunais suprapessoais.
Os constituintes básicos da realidade não são átomos materiais e sociais semelhantes e leis universais (...) mas personalidades únicas diferentes e forças formativas individualizadoras.(...) O Estado e a sociedade não são criados a partir do indivíduo por meio de um contrato e uma construção pragmática (zweckrationale), mas a partir de forças espirituais suprapessoais que emanam dos indivíduos mais importantes e criativos, do espírito do povo (Volkgeist) ou da idéia ética religiosa. (...) Além disso, essa abordagem leva à concepção de que o desenvolvimento histórico é uma progressão de culturas qualitativamente diferentes, nas quais a principal nação num determinado momento passa a tocha a seu sucessor e nas quais todas (as culturas) juntas em complementação mútua representam a totalidade da vida.25
Esses traços da tradição histórica alemã contribuíram para preeminência dos grandes
indivíduos “históricos”, uma tendência a discutir as culturas, os Estados e as épocas como se
fossem “totalidades” personalizadas, e a convicção de que cada uma dessas totalidades
encarnava seu próprio espírito particular.26
Os pensadores alemães reformularam os conceitos de direito natural e de contrato
social de forma a minimizar suas implicações antiabsolutistas. O Estado deveria ser muito
mais um guardião das liberdades do que um potencial inimigo delas. Os argumentos para tais
premissas amparavam-se nas idéias de que o indivíduo deveria transferir para a sociedade
muitos de seus direitos, e, conseqüentemente, a absorção da sociedade pelo Estado,
conferindo-lhe imensos poderes. O resultado dessas idéias gerou dois conceitos de Estado: o
legal e o cultural. O ideal do Estado legal requeria que o governo agisse com base em
princípios fixos e racionais, expostos de modo claro e público e ajustados às exigências da
ética. São elementos decisivos desta definição: atribuição de propósitos morais ao Estado e
exigência de legalidade. Tal ideal só significou necessariamente um Estado constitucional
após o início do século XIX. Antes disso, o termo legal constituía uma expressão da
campanha burocrática por racionalidade e previsibilidade no governo. Esse conceito não
aspirava limitar o alcance do absolutismo burocrático nem qualquer espécie de participação
25 TROELTSCH, E. Naturrecht und Humanität in der WeltpolitiK: Vortrag bei zwetein Jahresfeier der
Deutschen Hochschule für Politik. In: RINGER, F. op. cit., p. 106-107 26 ibid., p. 107.
28
popular. O ideal do Estado cultural, que desempenhou importante papel no pensamento
político alemão, tinha o desenvolvimento cultural como seu valor supremo, subordinando
outros interesses e problemas às reivindicações da cultura. O Estado tinha a função de um
agente dos valores espirituais e era apoiado e defendido pela elite instruída que o servia no
papel de funcionário público. A doutrina do Estado cultural esteve entrelaçada com a origem
do sentimento de nacionalidade no começo do século XIX. O caráter peculiar desse processo
deveu-se parcialmente à ausência de um Estado alemão unificado. A nação tinha que ser
definida em termos puramente culturais, em razão da ausência de um sentimento
constitucional de nação. Outrossim, este nacionalismo foi uma criação quase exclusiva das
classes instruídas, daí a transferência dos valores culturais dos neo-humanistas e dos idealistas
para o quadro da nação cultural. A nação e, por meio dela, o Estado foram definidos como
criaturas e como agentes ideais culturais daqueles que se consideravam os mais instruídos,
particularmente os professores universitários. Sua linguagem estabeleceu os parâmetros da
discussão política alemã do século XIX. Foi este o verdadeiro significado do casamento entre
Geist e Estado.27
Outro traço desta tradição é a crença de que a História deve constituir-se em uma
disciplina científica. O ambiente político e cultural do processo de cientificização da História
nas universidades alemãs do século XIX refletia uma ordem social moderna, em que a
sociedade burguesa integrava-se a um estado monárquico burocrático. Desta forma, em
consonância com as outras ciências especializadas, a comunidade científica, diferentemente
dos aficcionados e diletantes, acreditava alcançar um conhecimento objetivo por meio de um
conhecimento metódico. Contudo, como ciência cultural, a História distanciava-se do objetivo
cognitivo das outras ciências ao não formular regularidades e ao sublinhar elementos do
singular e espontâneo, preocupada em entender as intenções e os valores humanos.28
Esta particular concepção de ciência histórica foi denominada de Historismo
(Historismus). Tal concepção remonta a Herder, que fundou a idéia de que cada povo tem seu
próprio devir, cujo entendimento não se dá pela projeção do presente no passado, mas, sim,
pela percepção do que é próprio de cada época. Suas idéias representavam uma reação às
tendências generalizantes do Iluminismo e foram retomadas por Meinecke, na segunda
metade do século XIX, que negava qualquer concepção de leis explicativas para o processo
histórico. Como visão de mundo, o Historismo significa que a realidade tem um sentido e só
27 ibid. p. 118-122. 28 IGGERS, G. La ciencia histórica en el siglo XX. Una visión panorámica y crítica del debate
internacional. Barcelona: Editorial Labor, 1995, p. 15-23.
29
pode ser compreendida em seu desenvolvimento histórico, portanto como teleologia social
restrita a um determinado povo.29 No Historismo, todos os enunciados e juízos de valor são
tratados historicamente, como partes de um processo em perpétua transformação. Nada parece
fixo e permanente; tudo flui. Tal concepção está mais próxima de uma “concepção
hermenêutica do método”, em que a pesquisa opera em grande medida com fontes que
documentam ações intencionais. A História é definida como “ciência compreensiva do
Espírito”, entendida como processo cultural evolutivo, que se desenrola na esfera da ação
intencional. É uma concepção idealista, pois
as forças motrizes decisivas da transformação temporal no passado são concebidas como sendo de natureza ideal, como idéias motrizes, que se expressam em intenções condutoras de ações e se manifestam como “cultura” nas formações resultantes da socialização (vergesellschaftung) humana, realizadas através da ação.30
Os princípios de empatia e individualismo estão relacionados com o Historismo.
Ernest Troeltsch31 o identifica com a tradição histórica alemã. Segundo este autor, o
verdadeiro historiador deve compreender os significados e os valores de outras épocas; por
isso, ao escolher sua prova, deve privilegiar o essencial (das Wesentliche), em vez de leis
históricas, e sublinhar aspectos do passado que os próprios homens da época julgavam mais
importantes, descrevendo idéias e valores inerentes à própria estrutura de um determinado
período. O mergulho no passado o leva a perceber o sentido que cada época tem de seu
próprio espírito particular, contestando, assim, verdades eternas e atemporais. Tais afirmativas
deixam um terreno aberto a um extremo relativismo cultural e moral. Troeltsch argumenta
que é possível fugir de um ceticismo ilimitado na estrutura do método histórico, pois o estudo
do passado não é totalmente passivo. Os nossos valores culturais são decisivos para
compreendermos as idéias passadas, sendo, portanto, um fator de julgamento e vontade. Há,
neste sentido, uma estreita ligação entre nossa concepção do passado e nossos valores e
objetivos para o presente e para o futuro.
29 IGGERS, G. op. cit., p. 25-30 e CARDOSO, C.F. Introdução à historiografia ocidental. Mimeografo. s/d. p.
16. 30 RÜSEN, J. Reflexão sobre os fundamentos e mudança de paradigma na ciência histórica alemã-ocidental. In:
BAETA NEVES, A. e GERTZ, R. (Orgs). A nova historiografia alemã. Porto Alegre: Editora da UFRS- Instituto Goethe, 1987, p. 14 – 40.
31 Ringer cita vários trabalhos deste autor, contudo para este tema os mais importantes são Der historismus und seine probleme,Buch 1: Das logishe Problem der Geschichtsphilosophie, Tübigen, 1922 e o artigo Die Krisis des historismus. In: Die neue rundschau, v. 33, p. 572-590, 1920.
30
Nossos próprios valores culturais são, ao mesmo tempo, os produtos do passado e os critérios utilizados para compreendê-lo.(..). Quando estudamos relações significativas na história, estamos também desvelando as dimensões e as potencialidades de nossas próprias mentes. Como todo ato de julgamento histórico, tendemos a descrever nosso próprio lugar na estrutura do mundo intelectual. Nossa escolha final de uma posição é uma síntese ativa, um ato de autodefinição, em que nossas perspectivas com relação ao passado se fundem com nosso senso de identidade e com nossos desejos para o futuro.32
2.3 A ESCOLA HISTÓRICA DE TEORIA ECONÔMICA E A CONTROVÉRSIA DOS
MÉTODOS (METHODENSTREIT)
É necessário agora relacionar os princípios da tradição histórica alemã com a teoria
econômica desenvolvida pela intelectualidade alemã no século XIX. A preferência pelos
métodos históricos com o intuito de historicizar a economia política clássica constituiu o
objetivo mais geral da economia política histórica, presente nas reflexões de pensadores do
início do século XIX, como Adam Müller, Friedrich List e F. K. Savigny. Seus trabalhos
inspiraram os membros da chamada Escola Histórica de Teoria Econômica, que remonta à
década de 1840, cujos primeiros representantes foram Wilhelm Roscher, Bruno Hildebrand e
Karl Knies e, posteriormente, Gustav Von Schmoller, na década de 1870.
O diálogo com a economia política britânica constituiu o vetor programático dos
fundadores dessa Escola. Contudo, os economistas históricos alemães argumentavam que os
economistas clássicos ingleses defendiam axiomas que representavam as leis naturais da vida
econômica e, por isso, a Economia política tinha se tornado uma ciência dedutiva, já que
certas definições eram afirmadas como de aplicação universal, para todos os países sobre a
superfície do globo e todas as classes de sociedade, e, dessas definições, foi deduzido um
sistema completo de proposições, que eram observadas como de validade demonstrada. Em
oposição, os alemães empreenderam um projeto de construir uma ciência histórica, indutiva,
em que a diversidade de circunstâncias econômicas seria reconhecida.33
32 RINGER, F. op. cit., p. 314-318. 33 A contraposição que estamos apontando aqui não quer dizer que na Inglaterra, apesar da predominância da
“Economia clássica”, não tenha havido economistas ingleses simpatizantes de traços historistas. Segundo Tribe, a crítica historista na economia atravessou a Grã-Bretanha durante os anos de 1870-1880, porém seus defensores não conseguiram estabelecer um programa pedagógico dentro das universidades e foram relegados a uma esfera marginal em relação à tendência predominante na virada do século. Para uma melhor compreensão da trajetória dos estudos históricos de economia na Inglaterra, ver TRIBE, K. Historical Schools of Economics: German and English. KERP, v. 02, p. 1-20, 2002, p. 1-20.
31
Durante os anos de 1830, o ecletismo dominou o ensino e as publicações sobre os
estudos de economia na Alemanha, inspirados tanto na economia política inglesa e francesa,
quanto nos trabalhos de economia existentes até então no país. A primeira crítica feita à
economia política cosmopolitana smithiana, embora em tom contencioso, foi apresentada em
Das nationale System der politischen Ökonomie, por Friedrich List, em que ele argumenta
que as leis econômicas geralmente válidas, universais, expostas em Wealth of Nations
fracassaram justamente por não levar em conta as diferenças nacionais e históricas.
Os fundamentos programáticos da Escola Histórica de Teoria Econômica são,
contudo, atribuídos a Wilhelm Roscher, que, em 1843, em uma planilha de aula publicada,
afirmou que seu objetivo não era compreender melhor a riqueza nacional e seu aumento, mas
entender a representação do aspecto econômico do que os povos pensavam, queriam e
sentiam, o que eles aspiravam e realizavam e os motivos desta aspiração e realização. Isto era
uma ciência política que envolvia estágios culturais mais primitivos, pois um “povo não é
simplesmente a massa de indivíduos vivendo no presente.”34 Ele também exigiu um estudo
comparativo de todos os povos, para discernir os traços semelhantes que poderiam se
constituir em lei de desenvolvimento. Apesar de defender uma abordagem indutiva, Roscher
recomendou os trabalhos de Smith e Ricardo e evitou uma crítica geral à economia política.
Seu programa de estudo comparativo não foi realizado e, entre 1854 e 1874, ele devotou-se ao
estudo da história do pensamento econômico. Seus trabalhos são uma fusão da escola de
historiadores culturais com a visão histórico-universal. Ele não abre mão dos velhos
economistas teóricos, como Adam Smith, Ricardo e Malthus, porém acrescenta as explicações
históricas. Neste sentido, Roscher representa um divisor de águas de duas épocas científicas.
Bruno Hildebrand propôs, em seu Nationalökonomie der Gegenwart und Zukunft,
um estudo das leis econômicas de desenvolvimento dos povos em linhas históricas. Sua
crítica a Smith, similar a de Rocher, descreve a escola smithiana como uma ciência natural do
comércio, na qual o indivíduo é uma força puramente egoísta, ativa, semelhante a qualquer
força natural. Para diferenciar-se de List, Hildebrand teceu, em um capítulo inteiro, críticas a
List, ressaltando que os estágios de desenvolvimento de List eram tomados emprestados da
história britânica. Hildebrand esboçou um modelo evolucionário de formas econômicas, mas
suas três formas amplas – economia natural, economia monetária e economia de crédito –
34 ROCHER, W. Grundrib zu Vorlesungen über die Staatswirthschaft. Nach geschichtlicher methode,
Dieterische Buchhandlung, Göttingen. In: TRIBE, K. Historical Schools of Economics: German and English. KERP, v. 02, p. 1-20, 2002, p. 6.
32
também eram similares em tipo e nível de generalidade aos estágios de desenvolvimento
econômico esboçados por Smith no livro III de Wealth of Nations.35
O terceiro membro da Escola Histórica de Teoria Econômica foi Karl Knies, que,
também em seus programas de trabalho, sugeriu que a tarefa da economia política não era a
de ser responsável somente pelo desenvolvimento histórico da teoria econômica, mas,
também, pelas condições econômicas e desenvolvimento em diferentes nações e períodos. Em
suas notas de aula de seu curso de 1886, Knies criticou a teoria socialista, particularmente as
doutrinas de Marx, associando-as, quanto aos conceitos de produção, distribuição, valor e
preço, aos economistas clássicos ingleses. Knies rejeitava a idéia de que o preço é
determinado pelo custo da produção e argumentava que, se isto fosse verdade, os preços não
flutuariam quando os custos da produção ficassem estáveis. Ao contrário, ele identifica a
interação entre oferta e demanda como o fator dominante. Onde a produção não pode se
expandir ou reduzir, os preços aumentam com demanda maior ou diminuem com demanda
menor. Além disso, uma variação da produção não é acompanhada necessariamente por uma
variação dos preços. As idéias de Knies sobre a relação entre demanda e oferta inspiraram
muitos autores pré-marginalistas e, tal como Roscher e Hildebrand, Knies fez referências
constantes aos economistas clássicos.36
O que distingue a “Escola” mais antiga da geração mais nova é que, enquanto a
primeira enfatiza a linha programática, mas falha em realizá-la, a segunda enfatiza o
programa, mas perde a visão mais geral de suas pesquisas. Os membros da antiga Escola não
se engajaram em histórias comparativas sistemáticas de sistemas econômicos que eles tanto
pregavam, enquanto os membros da nova Escola geraram grandes quantidades de estudos
econômico-históricos, deixando, porém, de relacioná-los com o programa originalmente
estabelecido por Rocher em 1843.37 Mas há que se observar um elemento de continuidade
entre as duas Escolas: o traço evolucionista.
Gustav Schmoller, fundador da Escola mais jovem, apresentou-se como o paladino de
uma nova era científica. Propôs abandonar os “velhos dogmas”, substituindo a economia
política clássica por uma ciência social unificada, “que por meio de investigações históricas
cumulativas colocaria fatores econômicos em seu ‘contexto total’.”38 As leis gerais e os
35 TRIBE, K. Historical Schools of Economics: German and English. KERP, v. 02, p. 1-20, 2002, p. 7-8. 36 ibid. p. 8-9. 37 ibid. p. 9. 38 NAFISSI, M. Ancient Athens & Modern Ideology. Value, theory & evidence in historical sciences. Max
Weber, Karl Polanyi & Moses Finley. London: Institute of classical studies, 2005, p. 22.
33
conceitos, em vez de se constituírem ponto de partida, seriam os resultados dos estudos
históricos refletindo a complexidade da realidade empírica. A ciência econômica deveria,
portanto, ser uma ciência indutiva. Para Schmoller, só é possível compreender a vida
econômica de uma nação “no contexto das instituições, dos padrões sociais e das atitudes
culturais em que ela se desenvolveu.”39 Como estas condições estão sujeitas às mudanças no
tempo, seu estudo requer mais as técnicas do historiador do que a dos cientistas naturais. Sem
excluir completamente as generalizações, estas, no entanto, deveriam
basear-se em observações meticulosas e inicialmente assistemáticas das condições reais de produção e comércio em vários países e períodos.(..) Neste sentido, o procedimento devia ser mais puramente “empírico” do que o dos economistas ingleses.40
Na verdade, Schmoller acreditava que a pesquisa dedutivo-histórica prepararia as
bases de uma ciência social dedutiva universal. As objeções metodológicas teóricas de
Schmoller à economia política clássica eram amparadas por oposições políticas. Ele e seus
discípulos faziam objeções às proposições sobre as economias nacionais em diferentes
períodos históricos com fundamento nos pressupostos axiomáticos extraídos da teoria clássica
inglesa. Viam nessas teorias parte de uma ética utilitarista peculiar do individualismo
empresarial. Daí sua crítica à subordinação dos interesses sociais e políticos às exigências da
indústria e do comércio, sem deixar lugar para aspectos intelectuais e culturais, isto é,
aspectos “não-produtivos” da atividade humana. Isto explica sua ênfase metodológica no
contexto não econômico da vida econômica, não aceitando que “o homem econômico”
imponha suas preferências ao restante da nação.41 Schmoller identificou-se não somente com
uma Alemanha reunificada, mas com a dominação prussiana. Em 1872, Schmoller, Adolph
Wagner e Lujo Brentano fundaram a Associação de Política Social, cujo objetivo era
estimular as discussões acadêmicas dos problemas econômicos e sociais da época, de um
ponto de vista ético, visando à reforma social. Para eles, os vocábulos “utilitarismo”,
“materialismo” e “interesses particulares” (Sonderinteressen) quase sempre tinham
conotações negativas. À frente do jornal mais importante de política econômica, Jahrbuch
für Gesetzgebung, Verwaltung und Volkswirthschaft im Deutschen Reich, Schmoller
procurou encontrar uma base comum entre os acadêmicos para reforma das relações sociais,
39 RINGER, F. op. cit., p. 143 40 ibid., p. 142-143. 41 idem.
34
uma posição que pudesse influenciar a opinião pública. As divisões sociais da Alemanha
recém-unificada já se afirmavam como uma ameaça à jovem nação, e somente o Estado
estava em uma posição de reduzir a tensão social e encorajar a unidade nacional, por se
manter acima dos interesses egoístas de classe. Os escritos de Schmoller são distintos de seus
predecessores por seu foco nas forças sociais e econômicas, fundamentadoras do
desenvolvimento do Estado alemão, em vez do foco na discussão contemporânea de comércio
e salários. A investigação histórica e comparativa das condições financeiras, agrárias ou
industriais estava ligada às forças de industrialização e ao papel do Estado em moderar os
efeitos negativos do progresso econômico. Esta abordagem estimulou Lujo Brentano a se
debruçar sobre as uniões britânicas de comércio e comparar os altos salários britânicos com as
reduzidas horas de trabalho das uniões alemãs. Concluiu que o progresso econômico só seria
possível com a redução das horas de trabalho. Os economistas acadêmicos da geração de
Schmoller estavam mais interessados pelos estudos empíricos deste tipo e prestaram pouca
atenção aos pontos mais sutis da teoria econômica.42 Tencionavam assumir uma posição
intermediária entre o capital e o trabalho, tentando superar tanto o “materialismo” marxista
quanto o “egoísmo” empresarial. Com o fito de atingir esses fins, quase todos eles acabaram
por “reconhecer uma justificativa para a interferência do Estado na vida econômica”, para
usar a formulação de Brentano.
Uma divisão entre os intelectuais que tinham vivenciado a unificação emergiu da
Associação de Política Social. Uma geração mais jovem, mais interessada na desintegração
social e política dos anos 1880 e 1890 – Eugen von Bortkiewicz, Carl Grünberg, Max Sering,
Ferdinand Tönnies e, decerto, Max e Alfred Weber – estava mais aberta aos argumentos
teóricos, embora não deixasse a investigação empírica detalhada de lado. Os trabalhos de
Schmoller, contudo, levaram a um acirramento das discussões sobre a relação entre teoria e
História e, conseqüentemente, entre teoria e economia política histórica. Sua orientação
metodológica abriu cada vez mais um fosso entre uma perspectiva nomológica da Economia
política e outra empirista da História. Tal perspectiva resultou em questionamentos de suas
teses, principalmente daqueles que estavam mais preocupados com a teoria econômica. O
primeiro questionamento sério das tradições da Associação de Política Social foi feito pelos
austríacos Carl Menger, E. von Böhm-Bawerk e F. von Wieser. A famosa “controvérsia dos
métodos” (Methodenstreit) irrompeu em 1883, quando Menger publicou Untersuchungen
über die Methode der Sozialwissenschaften und der politischen Ökonomie insbesondere
42 TRIBE, K. Historical Schools of Economics: German and English. KERP, v. 02, p. 1-20, 2002, p.9-12.
35
(Investigações acerca do método das ciências sociais com referência especial à economia), em
que criticava o caráter antiteórico da Escola Histórica Alemã – Schmoller e seus discípulos –
e ressaltava a necessidade da análise teórica.43 Os trabalhos de Menger apresentavam-se como
um contraponto à Escola Histórica de Teoria Econômica e às propostas historistas. Mais
inspirado pela Física do que pela História, Menger buscava as leis gerais, que ele acreditava
serem as mais verdadeiras para um mundo abstratamente concebido, e, opondo-se a Dilthey,
rejeitava a distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais com relação aos métodos.
Para ele, as leis universais abstratas deveriam ser chamadas de exatas e poderiam ser
aplicadas tanto ao mundo natural quanto ao social. No campo da teoria econômica, Menger
distingue as orientações exatas das “realísticas” ou históricas. A primeira está mais próxima
da Física e Química, e a segunda, da Psicologia. Apesar de negligenciar, em sua economia
exata, as determinações políticas e culturais dos fenômenos econômicos, Menger sugere que,
em todas as ciências teóricas, há uma segunda orientação, o “método realístico-empírico”, que
também visa à natureza geral, mas que funciona por meio da observação e do exame direto da
realidade empírica. Tal abordagem restringe-se à descoberta de leis empíricas, pois as leis
exatas ou absolutas estão sob o domínio da abordagem exata. Assim, Menger delimita o
método dos teóricos econômicos e o dos economistas históricos – duas orientações de
pesquisa que não se complementam, pois revelam a compreensão de campos diferentes da
economia. Estavam estabelecidos os cânones da teoria marginalista, que tenta aprofundar os
dogmas da economia clássica e procura redefinir as fronteiras entre a Economia teórica e a
História econômica.44
O pensamento econômico alemão parece apresentar três aspectos comuns e relevantes:
historismo, institucionalismo e intervencionismo, os quais parecem ultrapassar os limites dos
autores da Escola Histórica de Teoria Econômica no século XIX, tendo ressonância nos
trabalhos de Marx, apesar do caráter crítico a ela. O Historismo, como até agora viemos
demonstrando, caracteriza-se pela presença da História nos diversos trabalhos econômicos.
Como veremos mais à frente, esta visão assume, para alguns, um corolorário acentuadamente
empirista, para outros, nem tanto. O institucionalismo é um contraponto à idéia de que as leis
universais da economia eram aplicáveis à realidade alemã, em razão das particularidades
institucionais do povo alemão. Diferentemente da Inglaterra, o pensamento econômico
alemão não foi gestado sob o domínio da instituição básica dos tempos modernos - o Estado
nacional unificado. Compostas por diversos reinos e principados, as instituições estatais – 43 RINGER, F.,op. cit., p. 145-150. 44 NAFISSI, M. op. cit., p. 27-30.
36
exército, burocracia e absolutismo – eram fortes na Prússia, principal reino da Alemanha. As
decisões econômicas estavam subordinadas à lógica expansionista prussiana, associando
crescimento econômico a poderio militar. Portanto, a existência de instituições locais e a
inexistência de outras de caráter nacional propiciaram o fortalecimento de um pensamento
econômico mais voltado para a realidade histórica e institucional, em detrimento de um
pensamento que defendesse, por exemplo, teorias liberais de livre comércio internacional,
vistas como benéficas somente para os interesses britânicos. Finalmente, o intervencionismo.
É natural que uma instituição assuma o premente papel socializador do mercado, tão
difundido entre os liberais. O Estado assumiu este papel. Apesar do aspecto difuso –
abrigando os não liberais, socialistas, positivistas – o intervencionismo constituiu-se em uma
marca distinta do pensamento alemão aos diversos tipos de laissez-faire e daqueles que
defendiam o equilíbrio do mercado.45 Estes aspectos aparecem com mais ou menos
freqüência nos trabalhos dos autores que vamos analisar, contudo são elementos que nos
ajudam a entender as suas reflexões acerca da economia antiga. É neste contexto intelectual
que se desenvolveu um fervoroso debate acerca do lugar do Mundo antigo na historiografia
alemã do final do século XIX, a controvérsia do oikos. Vejamos a seguir o quanto os
princípios da tradição histórica alemã e de seus críticos estão presentes nos trabalhos de Karl
Bücher e Eduard Meyer, os dois principais protagonistas desse fervoroso debate.
2.4 KARL BÜCHER E OS ESTÁGIOS ECONÔMICOS
Maurice Godelier considerou o famoso ensaio do economista histórico Karl Bücher,
Die Entstehung der Volkswirtschaft (As origens da economia nacional), de 1893, como “um
evolucionismo empobrecido.”46 É uma denominação, de fato, verdadeira, para uma coletânea
que se propõe a historicizar a contribuição de vários autores no desenvolvimento da
antropologia econômica, mas oculta a importância desse autor no limiar das discussões sobre
a “economia antiga” na Alemanha. Dez anos depois da publicação do trabalho de Menger,
mas, em meio aos acirrados debates do Methodenstreit, o ensaio de Bücher era uma tentativa
de reconciliar os preceitos nomológicos abstratos da Escola Austríaca e da economia política
inglesa com o Historismo, que, apesar de ainda dominante nas universidades alemãs, já
45 FONSECA, P.C.D. O pensamento econômico alemão no século XIX. In: HELFER, I. (org). Os pensadores
alemães dos séculos XIX e XX. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 9-19. 46 GODELIER, M. Antropología y economía. Barcelona: Anagrama. 1976, p. 85.
37
começava a sofrer ataques de alguns setores da intelectualidade das ciências da cultura. Tendo
as teorias evolucionistas – já desenvolvidas em trabalhos de economistas históricos anteriores
– como elemento fundamental de seu trabalho, Bücher afirma em seu ensaio que o
estabelecimento de estágios econômicos é um procedimento metodológico indispensável,
pois, na medida em que os fenômenos e as instituições econômicas se modificam lentamente
no curso dos séculos, o teórico da economia política deve se restringir a conceber o
aparecimento da evolução nas suas fases principais e omitir os períodos de transição onde
todos os fenômenos estão em vias de formação. Só assim é possível achar as características
fundamentais, ou as leis de evolução.47
As leis que presidem o desenvolvimento econômico só podem ser metodologicamente
descobertas, segundo Bücher, pela abstração e pela dedução lógica. O procedimento indutivo
e estatístico não é suficiente para reunir os fatos e apresentá-los de um ponto de vista
morfológico. Bücher aproxima-se da orientação exata de Menger e distancia-se dos preceitos
de Schmoller; limita, porém, a aplicabilidade da economia política clássica ao estágio da
economia capitalista moderna e preconiza a descoberta de leis específicas – evolucionistas –
às sociedades pré-capitalistas, fazendo o que Adam Smith e Ricardo tinham feito
adequadamente para as economias modernas. As condições de existência de épocas
desaparecidas e das antigas concepções econômicas não serão jamais reconstruídas de
maneira racional enquanto se utilizarem categorias da teoria econômica moderna amparadas
na circulação de bens.
Assim somente as pesquisas histórico-econômicas me parecem poder fecundar as teorias da economia política atual e vice-versa e não há outro meio para chegar a conhecer de maneira mais íntima as leis que presidem o desenvolvimento econômico e a chegada da economia nacional.48
Bücher se volta então contra os seus antecessores da Escola histórica, particularmente
List e Hildebrand, que, apesar de utilizarem os métodos evolucionistas, caíram no erro de
utilizar as categorias da economia política clássica, isto é, da economia nacional moderna.
Bücher os criticava por acreditarem que em todas as épocas havia uma economia nacional
baseada no princípio da troca de bens e que só as formas de produção e de circulação
variavam ao longo do tempo.
47 BÜCHER, K. Les origines de l’économie nationale. In: _____________. Études d’histoire et d’économie
politique. Bruxelas e Paris: Henri Lamertin Éditeur e Félix Alcan Éditeur, 1901, p. 44. 48 BÜCHER, K. op. cit., p. 114.
38
Estavam preocupados em mostrar que a diversidade de medidas político-econômicas ao longo do tempo justifica as características diferentes da produção ou da circulação de bens e que, na época atual, uma ordem de coisas diferentes reclama medidas diferentes.49
Para Bücher, a economia política clássica é uma teoria fundada em uma economia
com divisão do trabalho e circulação de bens, ou seja, fundada na economia nacional. Esta
doutrina estuda os fenômenos e as leis da divisão do trabalho, do capital, dos preços das
coisas, do salário, da renda fundiária, do lucro e do capital. Assim, para os economistas sob a
influência de Adam Smith e Ricardo, não se pode encontrar um regime sem circulação de
bens.
Feitas estas advertências, Bücher estabelece que, em qualquer pesquisa econômica,
para compreender a economia de um povo de uma época recuada, deve-se perguntar se esta
economia é ou não nacional e se os fenômenos que ela determina são ou não análogos àqueles
que aparecem na nossa atual economia à base de trocas. Estas questões remetem ao
verdadeiro tema que o autor se propõe a investigar: a economia nacional (Volkswirtschaft),
definida pelo aparecimento de instituições e procedimentos que requerem a satisfação de
necessidades de todo um povo. Esta economia se subdivide em uma infinidade de economias
particulares e interdependentes ligadas pelo comércio.50
Para entender o contexto histórico da evolução da economia nacional, é necessária
uma abordagem que remeta as categorias da economia clássica ao seu devido lugar temporal,
que adote os preceitos historistas de combate ao anacronismo e que utilize a evolução
histórica como teoria dirigente.
Um estudo penetrante fundado sobre as condições de existência do passado e não julgando os fenômenos econômicos desaparecidos com nossas idéias atuais chegará à conclusão que a economia nacional é o produto de uma longa evolução histórica que abrange milhares de anos, que não nasce antes do Estado moderno, que antes de sua aparição a humanidade conheceu longos períodos econômicos que não se pode designar como de “economia nacional”, pois naquela época as relações de troca ou não existiam, ou revelavam a forma de trocas de produtos e de serviços.51 (o grifo é do autor)
49 ibid. p. 47. 50 ibid. p. 43. 51 ibid., p. 48.
39
Para compreender esta evolução, é necessário, portanto, entender as características
essenciais da economia nacional e penetrar na organização íntima dos estágios econômicos
que a precederam. Isto significa se preocupar com as origens, causas e transformações de uma
dada organização econômica ao longo do tempo. Este ponto de vista não pode ser aquele da
relação entre produção e consumo de bens, ou do caminho que os bens percorrem para passar
do produtor ao consumidor, pois estes são característicos da economia nacional.
A evolução econômica, pelo menos a dos povos da Europa central e ocidental, se
divide em três estágios: economia doméstica fechada; economia urbana; e economia nacional.
A presença ou ausência da troca, definida pelas características da economia nacional, é o fio
condutor de comparação entre os estágios. No primeiro estágio, economia doméstica fechada,
não há troca, pois a produção é pessoal e os bens são consumidos no mesmo local onde são
produzidos. No segundo estágio, economia urbana, a troca é direta, pois os bens passam do
produtor direto para o consumidor. O terceiro estágio, economia nacional, é o período de
circulação de bens, pois os bens passam geralmente por uma série de economias antes de
serem consumidos. Bücher acreditava que, com a utilização desses estágios, era possível
delimitar as leis de evolução, ou melhor, as instituições econômicas “normais”, ou típicas de
cada estágio.52
Abordaremos mais detalhadamente a economia doméstica fechada, cuja ascensão se
dá com o fim do estágio tribal primitivo. Nesse tipo de economia, cuja produção é
determinada pelas necessidades de consumo de seus membros, toda a circulação, da produção
ao consumo, se efetua no círculo fechado da casa (da família, da tribo). Produção e consumo
formam um processo único, indivisível e não se separam da aquisição dos bens de
manutenção da casa.53 Há, portanto, coincidência entre a comunidade de produção e a de
consumo. Todos os produtos têm valor de uso.
Uma economia dessa natureza depende, inicialmente, do solo de que ela dispõe. Os
membros da casa não só fabricam os produtos que necessitam, como, também, transformam
as matérias-primas para sua própria utilização. “Tudo isto gera uma multiplicidade de
ocupações e exige uma diversidade nas capacidades e conhecimentos que o homem moderno
não tem uma idéia exata.”54 Tais procedimentos de trabalho atendem muito mais às
necessidades de cooperação do que à divisão de trabalho entre os indivíduos. Esta cooperação
52 ibid., p. 49. 53 ibid., p. 50 54 ibid. p. 51
40
está amparada no parentesco de sangue. Cada grande família se compõe de muitos grupos de
parentes. Um homem que não tem família é um pária. É no interior das grandes famílias que
se dá a união e divisão do trabalho.55
O crescimento e refinamento das necessidades do círculo familiar foram supridos pelo
alargamento artificial dos seus membros, o que foi realizado pela admissão e incorporação de
elementos estrangeiros. As instituições da escravidão e da servidão foram um meio de
conservar a economia doméstica fechada com a organização do trabalho então existente e de
atender ao aumento das necessidades. O trabalho estrangeiro, na economia doméstica fechada,
com respeito ao produtor, se encontrava em uma relação durável de contrato, e não em uma
relação de serviços. A economia dos gregos, cartagineses e romanos caracterizava-se como
uma economia doméstica fechada com utilização do trabalho estrangeiro. Segundo Nafissi,
Bücher traça uma linha divisória no Mundo antigo com a introdução da escravidão.
O mundo clássico é visto como primitivo não somente porque representa o primeiro, e conseqüentemente o último estágio menos desenvolvido na ascensão da economia nacional, mas também, porque conserva a instituição essencial do estágio tribal universal, embora de forma menos desenvolvida. Grécia, Cartago e Roma requerem uma designação diferente como um resultado da introdução de trabalho servil “estrangeiro”, e registram a inauguração do processo evolucionário de desenvolvimento econômico culminando na “economia nacional” moderna.56
A designação de economia antiga como economia doméstica é uma influência de Karl
Rodbertus, que apresentou a “teoria do oikos” em 1860. O oikos, a casa, o household, a
unidade da constituição econômica não era somente a habitação, era também o grupo de
homens que formavam a comunidade econômica, os oiketas, com exceção dos escravos da
casa. O oikos era uma espécie de modelo ideal, sem uma precisa identificação histórica,
embora tendesse a remeter à grande propriedade escravista da época romana.
Este termo servia, sobretudo, para definir conceitualmente a articulação e o funcionamento estruturais de uma economia natural, sem comercialização ou circulação difundida de mercadorias e dinheiro; e atuava como indicador quase simbólico de uma especificidade produtiva e social que o desenvolvimento moderno teria completamente anulado.57
55 ibid., p. 52-53. 56 NAFISSI, M. op. cit., p, 41. 57 SCHIAVONE, A. Uma história rompida. Roma Antiga e Ocidente Moderno. São Paulo: Edusp, 2005, p. 76.
41
Rodbertus procurou mostrar em seu trabalho sobre crise e superprodução que, na
economia moderna, “a receita social, a fonte da qual é o tempo de trabalho gasto no produto
social, é dividida em arrendamento e salários.”58 Enquanto o arrendamento, aí incluídos os
juros e os lucros (industriais e comerciais), tendia a crescer, os salários tendiam a diminuir,
pois, apesar do aumento de produtividade do trabalho, os salários se mantinham em um nível
de subsistência. Assim, “o capital e a produção aumentam sem haver um número suficiente de
aquisições pelos produtores, pois os capitalistas não desejam consumir mais e os
trabalhadores não têm condições.”59 O resultado disso foi uma crise de superprodução e
subconsumo, só resolvida com a intervenção do Estado, que poderia garantir aos
trabalhadores um retorno adequado por seus trabalhos. Este socialismo de Estado ajusta-se
muito mais à monarquia prussiana do que às idéias de Marx e Engels, que o acusaram de
reformista.60
Rodbertus tinha em mente uma filosofia gradualista da História Econômica Universal.
Para ele, o único meio para se chegar a uma reconstrução verossímil “da vida econômica da
Antiguidade clássica consistia em realçar seu drástico atraso com relação às experiências
produtivas, comerciais e financeiras da época moderna.”61 Em seu trabalho sobre a
Antiguidade, Rodbertus contrapôs o modelo do capitalismo moderno, com sua complexa
estrutura de taxas – taxação de rendimento pessoal e de propriedade – correspondendo a
várias divisões de arrendamento e várias classes sociais, em que os vários estágios de
produção estão ligados por um processo de compra e venda, à economia do oikos que requeria
uma forma simples de tributação realizada pelo senhor do oikos sobre o produto social.
Assim, na economia do oikos, freqüente nas sociedades antigas, a compra e a venda não se
separavam, pois em nenhum lugar as mercadorias trocavam de mãos. Como os dividendos
nunca trocavam de mãos, não havia divisão dos dividendos nacionais em várias categorias
como na era moderna, não havendo necessidade de dinheiro para conduzir o dividendo
nacional de uma fase à outra da produção. Portanto, o oikos define a Antiguidade como um
estágio distinto, e “o movimento de uma economia amplamente autárquica e relativamente
primitiva para uma economia organicamente ligada, complexa e diferenciada caracterizava a
longa atração entre os estágios antigo e moderno da história mundial.”62
58 RODBERTUS, K. Overproduction and crises. Apud NAFISSI, M. op. cit., p. 36. 59 idem. 60 idem. 61 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 77. 62 idem.
42
O conceito de oikos como tipo ideal, salientado por Weber em trabalhos posteriores,
foi ainda mais acentuado nas pesquisas de Bücher, que o sistematizou em um contexto
interpretativo mais amplo. Pela primeira vez, o estudo da economia antiga foi articulado às
pesquisas etnográficas sobre as sociedades primitivas, que viviam à época um grande
impulso.
Bücher enfatizou, em seu modelo, o papel dos escravos na Antiguidade, tanto em
Atenas como em Roma, onde a organização econômica estava fundada no trabalho escravo,
responsável por todas as tarefas, de pedreiro a oficial de polícia, de arauto nas assembléias
públicas a contador do Estado. Por outro lado, as relações econômicas entre o senhor
territorial e seus homens não se encontravam em nenhuma categoria da economia de troca,
pois nesta economia dominial não havia preço, salário, renda, aluguel e lucro de capital. As
manifestações que se produziam eram de natureza particular. Mesmo o desenvolvimento
experimentado com a incorporação de trabalhadores não livres não era suficiente para atender
a todas as necessidades, pois, ou as necessidades são imperfeitamente satisfeitas, ou o
excedente de bens produzidos não é consumido pela economia que o produziu.63
Mesmo com a introdução das trocas e do dinheiro no Mundo antigo, resultado de um
processo evolutivo, a estrutura íntima da vida econômica não foi alterada. O comércio de
trocas se desenvolveu como resultado da limitação ou da ausência de certos produtos em
certos lugares levando a uma procura em territórios vizinhos. Alguns artigos serviam como
meios de troca universais: peles, tecidos, gado, metais preciosos, em seguida, apareceram o
dinheiro, a venda ambulante, os mercados e, finalmente, os traços de uma troca de caráter
creditício. Estas transformações, entretanto, modificaram de forma superficial a economia
doméstica fechada, pois, nem na Antiguidade nem na Idade Média, os produtos
indispensáveis às necessidades dos trabalhadores se tornaram objetos de uma troca regular.
Tanto os produtos naturais, quanto os industrializados de valor considerável eram artigos
raros de comércio. E quando tais produtos se tornaram de consumo geral – como o âmbar, os
objetos de metal e os produtos de cerâmica –, eles eram produzidos em quantidade superior às
necessidades gerais para serem trocados por produtos de valor equivalente com outras
economias, que atendessem também às necessidades mais gerais. São, sob estas condições,
que se encontravam os mercados de comércio de alimentos na Antiguidade clássica.64 A idéia
63 BÜCHER, K. op.cit., p. 63-69. 64 ibid. p. 70-71.
43
de troca equivalente, já esboçada aqui, seria posteriormente um dos argumentos centrais do
modelo polanyiano, para se contrapor aos formalistas.
Mesmo o uso aparentemente difundido do dinheiro não contradiz este modelo. O
dinheiro não era apenas um instrumento que facilitava a troca, ele era também medida de
valor, meio de pagamento e de conservação das riquezas. O dinheiro, na economia doméstica
fechada, era, em grande parte, o retorno de um contra-valor provisório. Seu papel principal
não era o de servir de intermediário nas trocas, mas conservar os valores e as medidas e servir
como meio de transmissão. Os empréstimos serviam apenas para os propósitos de consumo.
Numerosos pagamentos se faziam sem que fosse questão de troca, por exemplo: multa em
dinheiro, tributos, impostos, identidades, presentes para honrar uma pessoa ou o pagamento
de hospitalidade. Estes pagamentos originariamente eram feitos com trigo, carne bovina,
tecido, sal, gado e escravos, indo diretamente para a casa daquele que os recebia. Esse papel
limitado do dinheiro explica por que todas as antigas formas de numerário circulavam sob a
forma de emprego, destinado prioritariamente à satisfação das necessidades de cada
economia, em detrimento do uso para troca por outros produtos de consumo. Enquanto valor
estável, o numerário formava um tesouro, particularmente os metais preciosos, que tomavam
a forma de objetos de adorno grosseiros. Portanto, os metais preciosos poderiam servir como
medida de valor de diferentes bens em situações de troca.65
Em consonância com a teoria de Rodbertus, Bücher afirma que não se encontrava no
Mundo antigo nenhum traço da economia nacional com divisão do trabalho, pois não havia
classes profissionais, não havia empresas nem capital no seio de um aprovisionamento de
bens para servir à aquisição de novos bens, sequer eram encontradas as categorias de capital
industrial e comercial, capital de empréstimo e capital de uso. O que na teoria moderna se
chama de capital circulante, era, na economia doméstica, um simples fundo de utilização que
atendia às necessidades do consumo. Desta forma, no curso regular dessa economia, não
havia mercadoria, preço, circulação de bens, repartição de rendimento e, conseqüentemente,
como espécies de rendimento, salário e lucro dos empresários.66
Apesar da renda fundiária já ter começado a se separar do produto da terra, ela não
aparecia em nenhum momento totalmente pura e era ainda confundida com outros elementos
da renda. A renda na economia moderna é um resultado da troca; na economia doméstica
fechada, era a soma de todos os bens de consumo que produzia a economia, era tudo que o
65 ibid. p. 72-73. 66 ibid. p. 74.
44
senhor do oikos retirava de seus domínios. A idéia de um imposto sobre os rendimentos era
inconcebível naquela economia. O imposto público direto era, em regra geral, uma
contribuição sobre a fortuna. O Estado e as cidades tomavam a fortuna dos particulares e lhes
obrigam a intervir diretamente na construção de navios, na organização de festas e nas
construções públicas. Assim, renda e fortuna formavam um todo, não separado e separável;
contudo a renda fundiária começava a aparecer.
Bücher procura responder com os diversos estágios, fundamento do Historismo da
Nationalökonomie, aos teóricos que colocavam a História em um plano subalterno, mas com
um avanço em relação aos trabalhos de List e Hildebrand, ao não atrelar os diversos tipos de
economia aos períodos históricos e ao não usar categorias da economia nacional nos estágios
anteriores. A economia doméstica, a urbana e a nacional designam uma gradação na qual os
diversos graus não se excluem. Uma espécie de economia sempre predominou aos olhos de
seus contemporâneos. Dessa forma, não se exclui a possibilidade de se encontrarem
elementos constitutivos da economia urbana e mesmo da economia doméstica fechada nas
sociedades em que predominava a economia nacional. Se é possível, porém, encontrar traços
de economias mais simples nas economias mais complexas, o contrário não é mencionado.
Com isso, Bücher já traçava um quadro evolucionista menos linear que seus antecessores e
procurava estabelecer um modelo evolutivo que se constituísse em um meio termo entre os
rígidos preceitos das teorias universalistas abstratas da economia política clássica e a não
menos rígida receita indutiva de acúmulo de informações de Schmoller. Os estágios
econômicos são uma tentativa de encontrar as “leis” gerais de desenvolvimento econômico,
partindo da dedução ou do isolamento de elementos, por meio de informações históricas. A
instituição dos estágios econômicos é a única maneira de explicar os resultados das
investigações de História Econômica. Bücher procurou historicizar a economia política e
teorizar a História. Contudo estas informações históricas, envolvidas em sérios equívocos, e a
unilateralidade de sua tese, serão fortemente combatidas pelos historiadores profissionais,
liderados por Eduard Meyer.
2.5 EDUARD MEYER E A TEORIA DA HISTÓRIA: O PARADOXO ENTRE O
HISTORISMO E O ANACRONISMO
O debate sobre o oikos começou no dia 20 de abril de 1895, no Terceiro Congresso de
Historiadores Alemães, quando Eduard Meyer (1855-1930) fez críticas contundentes ao
45
modelo evolucionista de Karl Bücher. O foco de suas críticas era o primeiro estágio, o dos
households, apontado por Bücher como predominante até o final do mundo antigo. Esta
crítica representava, em primeiro lugar, uma reação às teorias evolucionistas advindas tanto
de economistas históricos quanto de historiadores, como, por exemplo, Karl Lamprecht, e, em
segundo lugar, o desejo dos historiadores profissionais, no caso de Meyer, um “ortodoxo”,
segundo a denominação de Ringer, de reafirmar seu “lugar” no campo dos estudos históricos.
Eles não aceitaram uma teoria, formulada por um economista, que estabelecia estágios
econômicos para longos períodos temporais, sem considerar as diversidades dos fatos
históricos contidos nos períodos. Na verdade, a teoria evolucionária de Bücher e o rigor de
sua teoria serviram para reafirmar as fronteiras entre a História e as outras ciências da cultura.
Eduard Meyer nasceu em Hamburgo em 1855. Foi professor e depois reitor da
Universidade de Berlim a partir de 1918. Meyer escreveu sobre diversas sociedades do mundo
antigo – Grécia, Roma, Egito, Mesopotâmia, Israel – enfocando, em geral, a evolução
econômica e política de tais sociedades. Foi um dos historiadores mais atentos às descobertas
arqueológicas e papirológicas de seu tempo, além de ser um dos mais bem preparados para
enfrentar as questões metodológicas e teóricas da ciência histórica. Seus trabalhos
representam uma defesa dos preceitos historistas, já, naquela época, sob questionamentos de
pensadores das mais diversas áreas das ciências da cultura que difundiam teorias
evolucionistas. Seus escritos apresentam um traço marcante: reação a qualquer tentativa de
aplicar à História os preceitos das ciências naturais e oposição à idéia de um método único
para a História como garantidor do estatuto científico. A prática do historiador, segundo
Meyer, ajustar-se-ia a seus preceitos imanentes, e a técnica combinar-se-ia com a sua
atividade criativa, fator determinante do conhecimento.67 Meyer dirigia seus ataques aos
defensores de uma ciência histórica, que perseguiam o descobrimento de leis e sua
demonstração nos fenômenos concretos estudados, conforme os preceitos das ciências
naturais. Os economistas Karl Bücher e Karl Rodbertus e o historiador Karl Lamprecht eram
os principais alvos desses ataques. Bücher e Rodbertus eram criticados por tentarem reduzir
“a uma fórmula única o segredo do desenvolvimento histórico com o esquema da economia
doméstica, da economia urbana e da economia nacional.” 68 Lamprecht era condenado por
enfatizar os fenômenos de massa, nos quais o singular e o individual davam lugar à exposição
67 MEYER, E. El historiador y la historia antigua. Estudios sobre la teoría de la Historia y la Historia
economica y política de la Antigüedad. México - Buenos Aires: Fondo de cultura económica, 1955, p. 3-4. 68 ibid., p. 9.
46
das grandes mudanças típicas, caracterizadas não por uma determinada manifestação, mas
sim, por muitas.
Meyer, contra-argumentando, enfatiza a importância do singular e do individual na
História e não aceita a oposição entre casualidade e necessidade, pois todo real, pelo simples
fato de ser, é necessário. Dessa forma, a decisão da vontade de um homem e um pensamento
são tão necessários quanto uma sensação qualquer, formando parte da cadeia de causa e
efeito, associada, pelo autor, a fenômenos psíquicos, representados não como algo já
realizado, mas como um processo em desenvolvimento, como resultado de uma entre infinitas
possibilidades.69 Em conformidade com Ranke, Meyer afirma que os fatos concretos são o
centro de gravidade da História, e, como esses fatos já não existem mais no momento em que
o historiador os investiga, resta analisar suas repercussões. É histórico, portanto, o que produz
efeitos. O interesse e a relevância dos acontecimentos são proporcionais a sua repercussão:
quanto maior a repercussão no presente, maior o interesse histórico por eles. Nesta
perspectiva, o interesse histórico recai sobre os povos civilizados, pois “estes povos e suas
culturas têm influído e seguem influindo diretamente sobre o presente muito mais que os
demais.”70
A História política assume uma posição primordial, tendo o Estado como organização
decisiva da vida do homem, a tal ponto que qualquer modificação em seu interior influi de
modo determinante sobre a evolução econômica e social.71 Deixando clara sua concepção
idealista e conservadora em relação às concepções da História mais voltadas para o social, que
naquele momento emergiam, Meyer sublinha a importância da vontade individual na criação
de fenômenos. Daí, a ênfase às decisões tomadas pelos personagens históricos e “a energia
espiritual que levou aos que as adotaram a impô-las contra todas as tendências em contrário e
a submeter estas à sua vontade.”72 O estudo das personalidades, porém, só interessa na medida
em que tenham deixado uma marca histórica. Meyer conclui que o geral não é histórico por si
mesmo, mas somente quando associado a um acontecimento concreto. É, na verdade,
premissa e não objeto da História.
O geral se torna histórico quando passa a formar parte de um acontecimento concreto e cobra uma forma individual (singular), entrando assim em um plano de interdependência e de conflito com os demais fatores da vida
69 ibid., p. 13-15. 70 ibid., p. 45. 71 ibid., p. 36 72 ibid., p. 17.
47
histórica, que são os propriamente individuais. Todo o processo de desenvolvimento histórico discorre através destes conflitos, destes vínculos de interdependência. O geral não é nunca mais que a premissa e suas conseqüências são essencialmente negativas ou, para dizê-lo com maior precisão, restritivas: estabelecem os limites dentro dos quais se encerram as infinitas possibilidades das formas históricas concretas. Dos fatores superiores, individuais, da vida histórica depende qual destas possibilidades chega a ser realidade, isto é, se converte em um fato histórico.73
Do exposto acima, é possível perceber algumas características historistas: a
importância dos fatos, sem questionar a origem das fontes; o papel primordial da História
Política; o interesse pelas grandes civilizações; o caráter idealista de suas convicções acerca
do conhecimento. O critério de seleção do objeto histórico de Meyer parece entrar em
contradição com a oposição a qualquer tipo de anacronismo na investigação histórica, pois
segundo ele, “a seleção responde ao interesse histórico que o presente põe em qualquer efeito,
em qualquer resultado do desenvolvimento e que o leva a averiguar as causas e os fatos que o
têm produzido.”74 Em tal afirmativa, está presente a idéia de que numa História da
Antiguidade, por exemplo, só têm importância aqueles fatos que ainda hoje possuem uma
significação causal em nossa situação atual, seja no setor político, econômico, social, ou em
qualquer outro elemento de nossa vida cultural, cujos efeitos sejam percebidos no presente.
Contudo, mais próximo de uma posição historista, Meyer também afirma, em concomitância
com o método filológico, que, em relação ao passado, devemos imaginar alguns de seus
aspectos como atuais. Esta contradição, um dos principais alvos das críticas de Weber, como
veremos mais à frente, também pode ser explicitada por contradições de natureza similar às
que Ranke viveu, já que o contexto da ciência histórica estava estreitamente associado a uma
ideologização da História a serviço das aspirações nacionais burguesas.
Diante das considerações já feitas, podemos apresentar a seguinte questão: se os
defensores das teorias dedutivas utilizavam as categorias do capitalismo para entendimento
das sociedades em todas as épocas, em uma perspectiva – segundo os membros da Escola
Histórica pós-Schmoller – anacrônica, como se explica a hipótese de historiadores mais
próximos do Historismo enxergarem, no mundo antigo, a presença do capitalismo? Isto nos
parece paradoxal. Um paradoxo que só pode ser esclarecido à luz dos argumentos teóricos dos
próprios autores investigados. No caso de Meyer, o capitalismo responde a uma seleção do
presente, pois, naquele momento, seus efeitos eram sentidos em todos os aspectos da vida
73 ibid., p. 43. 74 ibid., p. 34
48
social. Para ele, a investigação histórica procede sempre à base de dedução de efeito e causa.
Portanto, a premissa é sempre a mesma: apreciar a realidade de um efeito, para investigar,
partindo dele, suas causas. Daí a necessidade de investigar as causas do capitalismo, que não
remontam necessariamente ao mundo moderno, mas a épocas muito mais remotas. Ao
ressaltar os aspectos capitalistas da sociedade antiga, Meyer procura desmontar o edifício
teórico construído pelos economistas históricos evolucionistas, representados por Bücher e
Rodbertus, que também salientavam a importância do capitalismo (ausente do mundo antigo),
além do Estado nacional, só que sob uma perspectiva evolucionista linear, apontada por
Meyer como ahistórica, pois utiliza conceitos que não correspondem à realidade do mundo
antigo. Parece-nos, contudo, que a dedução não está totalmente ausente de seu arcabouço
teórico, o que o aproxima de Bücher. O que está ausente é a procura por leis gerais. Sua
oposição mais contundente a Bücher se dá no estabelecimento dos estágios econômicos.
Meyer, entretanto, seria vítima de um outro tipo de evolucionismo, o cíclico.
2.6 MEYER E A EVOLUÇÃO ECONÔMICA DA GRÉCIA ANTIGA
Em sua conferência na Terceira Assembléia de Historiadores Alemães em Frankfurt,
Meyer pretendia demonstrar que as características da economia nacional estabelecidas por
Bücher estavam presentes em sociedades anteriores àquelas do mundo moderno. Naquela
conferência, Meyer abordou o desenvolvimento econômico de várias civilizações antigas, do
Oriente e do Ocidente, sempre procurando confrontar a realidade, os fatos concretos de tais
sociedades com a “economia do oikos” de Rodbertus, defendida por Bücher. Da sua análise,
abordaremos apenas a sociedade grega, suficiente para esclarecer questões relacionadas às
concepções historistas e às teses modernistas.
No debate com Bücher, Meyer opôs-se à idéia de uma evolução linear da História
dividida em três grandes períodos, Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna, associados
respectivamente à economia doméstica, economia urbana e economia nacional. Ele defendeu
uma outra forma de evolução histórica, não linear, mas, segundo sua visão, homóloga e
paralela ao mundo moderno, que apresenta, em um “plano muito reduzido e sob formas
muitas vezes distintas, as mesmas influências e os mesmos antagonismos que dominavam o
mundo moderno.”75 Meyer estava persuadido que o mundo clássico coincidia com uma
75 ibid., p. 142.
49
exaltação incontrolada de “modernidade” em que, anulando todas as diferenças, apresentava
uma economia já completamente desenvolvida tanto no plano industrial quanto capitalista e
com realce em um Estado onipresente e totalizante.76
Não havia mais qualquer vestígio do sistema primitivo do oikos, nem de uma difundida economia natural. As condições gregas ou romanas não necessitavam, para serem descritas, de qualquer conceitualização específica. Podiam-se usar tranquilamente noções como a de fábrica e de operários, e reivindicar uma semelhança completa entre a economia antiga e a contemporânea.77
Enquanto para Bücher, a troca e o comércio, pensados segundo as categorias do
mundo moderno, inexistiam na economia doméstica fechada, para Meyer, eles assumiam
importância capital, sendo o comércio o fio condutor da evolução histórica grega e um dos
fatores primordiais das culturas antigas. Muito antes da civilização clássica grega, o comércio
já estava presente na civilização micênica, como mediador e agente fundamental desta
cultura, e a descoberta de monumentos dessa época acusou uma forte influência oriental e
colocou em dúvida a concepção do mundo greco-romano como um estágio unitário,
essencialmente estático.
No período retratado pelos poemas homéricos, que ele designa como Idade Média
grega, o comércio retrocedeu em favor da agricultura, refletindo uma economia autárquica da
família como forma de vida fundamental. São encontradas, nesse período, as mesmas
condições características da Idade Média cristã germânica: posição predominante da nobreza
guerreira e divisão entre estamentos hereditários; “sujeição progressiva dos camponeses que
vai das formas mais suaves de submissão ou vassalagem até a plena servidão por gleba, um
artesanato livre, porém pouco estimado;”78 abundância de servos e escravas feitas
prisioneiras, roubadas ou compradas, pela escassez de escravos, quadro típico quando a
agricultura é predominante. Assim, Meyer apresenta o primeiro contraponto às teses de
Bücher, ao afirmar que as características da economia doméstica fechada da Idade Média
grega apareceram depois da estagnação de uma época em que o comércio desempenhou papel
fundamental na cultura.
76 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 78. 77 idem. 78 ibid., p. 152.
50
Comércio e agricultura aparecem como atividades antagônicas. O predomínio de uma
significa a estagnação da outra. Esse antagonismo, em muitos momentos, constituiu uma
marca da trajetória do mundo grego. O século VIII a.C. foi o embrião das grandes
transformações: constituiu-se o auge do comércio marítimo e da colonização e quando se
espalhou a indústria de cerâmica por todo o mundo grego. A introdução do comércio e do
dinheiro transformou as relações sociais e gestou o movimento revolucionário que derrubou a
nobreza. Foram realçados o descobrimento e o domínio comercial – e talvez político – de
zonas comerciais, que pressupunham a produção de mercadorias, em grande parte produtos da
terra. Uma importância muito maior adquiriram os produtos da indústria de exportação – a
indústria milesiana, corintiana, calcidiana, argólida, tebana, siciliana e eginetana. A nova
indústria reclamava o aumento da mão-de-obra. O afluxo da população para as colônias e a
“pouca inclinação de camponeses e artesãos para o trabalho fabril” levaram a uma importação
intensiva de escravos.79
O auge da economia monetária mina e desintegra as velhas relações patriarcais, o camponês vai se endividando e se arruinando, o capitalismo muda pouco a pouco a economia baseada na grande propriedade da terra. O camponês já não pode trocar o que produz pelas mercadorias de que necessita; interpõe-se o dinheiro, e os preços dos mercados são ditados pelas constelações do comércio de grande escala, pela importação de produtos de ultramar.80
O quadro apresentado pelo autor começa a adquirir uma semelhança enorme com o
início dos tempos modernos na Europa e um grande contraste com o modelo de Bücher. O
desenvolvimento do comércio e da indústria, nos séculos VII e VI a.C., propiciou o
surgimento de uma nova classe social: a dos industriais e comerciantes, além de marinheiros e
trabalhadores livres que viviam dos novos ramos produtivos. “Estes setores se unem aos
camponeses para derrubar o domínio da nobreza e instaurar o regime da burguesia.”81 A
contrário dos tempos modernos – uma das poucas diferenças que ele encontra –, a cidade era
o expoente único e exclusivo da vida política, o que levava a uma dispersão nacional em um
grande número de pequenos estados. Por isso, para os gregos, cidade e Estado eram termos
sinônimos. Com o crescimento de novos grupos sociais, a aliança entre camponeses e
comerciantes não perdurou por muito tempo. A tirania tentou, aqui e acolá, compaginar os
79 ibid., p. 86. 80 ibid., p. 87. O grifo é nosso. 81 ibid.
51
interesses comerciais e agrícolas, mas sem lograr sucesso por muito tempo. O crescimento da
produção e a circulação de mercadorias – principalmente nas regiões próximas ao Mar Egeu –
e a crescente divisão do trabalho advinda da industrialização sufocaram os interesses do
campesinato. A aliança entre camponeses e comerciantes permitiu, em muitos lugares, o
surgimento de conflitos extremamente violentos.82
As condições econômicas apresentaram diversas gradações, segundo os lugares. Nas
regiões mais remotas e sem acesso às vias de comunicação, as novas condições impunham-se
lentamente, enquanto, nas costas do Mar Egeu, encontravam-se cidades com forte fisionomia
comercial e industrial. Weber iria ampliar muito esta idéia do desenvolvimento comercial na
costa. Nos lugares onde vingou o regime democrático, Atenas é o exemplo típico: os
interesses da classe dominante capitalista confrontaram-se com os interesses do partido
agrário (formado por camponeses e nobres), que sucumbiu ante o poder dos capitalistas, que,
por sua vez, fizeram uma série de concessões a uma massa proletária, formada por cidadãos
livres pobres, que procuravam crescentemente exercer maior influência no seio do Estado.
São tidos por Meyer como uma classe revolucionária, pois clamam “expulsar ou matar os
ricos, confiscar suas fortunas e repartir suas terras”.83 Mais proximidade com o limiar da
revolução industrial na Inglaterra é impossível! Vejamos uma consideração de Meyer sobre o
período, que, se aparecesse sem referência temporal, ninguém duvidaria que se tratasse da
Europa moderna.
O comércio e a exportação, e conseqüentemente a fabricação para o exterior, são os verdadeiros propulsores da economia: graças a isso crescem as grandes cidades e se concentram nelas riquezas que tornam possível o luxo e a divisão do trabalho.84
Estas transformações na sociedade grega – aumento da importância da troca e do
comércio e, conseqüente desenvolvimento da indústria e da economia monetária –, aliadas às
transformações do Estado – abolição dos privilégios políticos e de classes e implantação da
liberdade política e igualdade jurídica para todos os cidadãos, sendo esta última mais
importante que aquela –, criaram condições para a introdução e expansão da escravidão. As
fontes de produção escravista eram, por um lado, as guerras e, por outro, o comércio com o
Oriente e as grandes zonas não cultivadas do Ocidente e do Mar Negro. Dessa forma, a
82 ibid., p. 90-92. 83 ibid., p. 157. 84 ibid., p. 93.
52
escravidão se estendeu por todo o mundo grego, paralelamente à indústria e ao comércio. Os
grandes centros da vida industrial do século V a.C. – Corinto, Atenas, Egina e Siracusa –
eram também os lugares com maior número de escravos. Apesar das manifestações de
trabalhadores livres contra a escravidão e das tímidas intervenções do Estado, a escravidão se
impôs na mineração e na agricultura e, de maneira mais contundente, na “indústria, na
fábrica”. Meyer lembra que a Antiguidade não conheceu as grandes máquinas nem as
gigantescas fábricas dos tempos modernos, mas pergunta se não se pode chamar de fábrica
uma empresa de armas de Demóstenes, na qual trabalhavam trinta e três escravos
especializados como armeiros.85
Esta trajetória justifica sua comparação entre os séculos VII e VI a.C. da História da
Grécia e os séculos XIV e XV, e entre o século V a.C. e o século XVI de nossa era. Não é
uma ousada e anacrônica comparação, para quem se propunha a explicar a evolução
econômica da Grécia antiga por meio dos fatos concretos? Sim. Esta afirmação é, porém,
emblemática por dois motivos: 1) ao estabelecer esse paralelismo, o autor deixa claro, à luz de
seus argumentos, que é possível não traçar uma trajetória linear do mundo antigo atado a
grandes esquemas, ou estágios de desenvolvimento econômico, apesar de cair em um outro
tipo de evolucionismo; 2) Esta idéia não deveria lhe parecer anacrônica, exatamente porque
ele buscava, nos fatos e acontecimentos concretos do passado, as causas de fenômenos
reconhecidamente históricos, pois seus efeitos estavam ainda presentes. Para o autor, em vez
de simples transposição do mundo moderno ao antigo, aplicando àquela realidade as
instituições de seu mundo, seria mais correto pensar em homologia e paralelismo. Na verdade,
o autor procura demonstrar a longa sobrevivência de traços culturais que estavam presentes
tanto no Mundo antigo como no moderno. Uma justificativa pouco convincente, mas coerente
com seu arcabouço teórico.
É possível perceber que as análises de Meyer e de Bücher acentuam a possibilidade de
aceleração e desaceleração da economia antiga. Meyer, ao comparar o mundo antigo com o
moderno, credita à economia antiga um caráter dinâmico e descontínuo. A intensa
interligação daquela realidade, particularmente nas comunicações, representa uma projeção
conceitual de grandes acelerações históricas. Por outro lado, Bücher e Rodbertus acentuam
bloqueios estruturais que identificam aquela realidade com sistemas imóveis e em tudo iguais
entre si. Estes não conseguem vislumbrar a possibilidade de tais sociedades criarem
condições, mesmo que limitadas, de bem-estar e opulência. A ausência de troca, de um lado, a
85 MEYER, E. op. cit., p. 161.
53
presença de sistemas desenvolvidos de troca, por outro, retratam antagonismos extremos de
visões, que não conseguem perceber a dualidade das realidades investigadas. Ao lado da
economia mercantil, como observou Schiavone para a sociedade romana, mas que pode ser
estendido à sociedade grega em menor escala, existia uma extensa área de economia natural
ou de subsistência, voltada para o autoconsumo direto dos produtores ou para o restrito
comércio local. Nos tempos modernos, a coexistência dos dois níveis – economia natural e
economia de troca – inclinava-se a assumir uma posição instável, com tendência à
incorporação do menos dinâmico pelo mais dinâmico. No mundo antigo, a forma “arcaica” e
a “avançada” estabilizaram-se, sem o predomínio da segunda sobre a primeira.86 A
unilateralidade das duas teses envolveu seus defensores em uma “ilusão de ótica” do muito
próximo e do muito distante. Isto levou a posições inconciliáveis para a mesma problemática:
“a total assimilação entre o antigo e o moderno, ou a descoberta de uma alteridade sem pontos
de contato, que impelia à sistematização das duas economias nos extremos de uma rígida
periodização.”87
O que Meyer não conseguiu perceber, porém, é que a produção mercantil no mundo
antigo se mantinha sob um ambiente de pobreza e escassez e que as inovações européias da
Idade Moderna passaram por mutações relacionadas a melhoramentos tecnológicos,
institucionais, jurídicos, de gestão financeira e de crédito, de mentalidade, além da própria
função “capitalista” e produtiva dos centros urbanos.88 Outrossim, o mundo moderno foi
palco de uma transformação vital em relação à força de trabalho, com a quase total extinção
do trabalho escravo e a progressiva consolidação de um mercado de força de trabalho
praticamente desconhecido no mundo antigo. Meyer procurou provar que o trabalho escravo
não exercia um predomínio absoluto no mundo antigo89 e acusava Bücher de compartilhar os
preconceitos reacionários dos círculos cultos da Antiguidade, que expressavam a idéia de que
o cidadão “com plenitude de direitos deve gozar de uma situação de independência material,
de que o trabalho físico é desonroso e de que o traficar com dinheiro e obter lucro constitui
algo reprovável e desonesto.”90 Em seguida, denunciou a falsidade das opiniões que
86 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 107. 87 ibid., p. 82. 88 ibid. p. 139. 89 Em sua análise sobre a escravidão, feita em uma conferência de 1898, Meyer está empenhado em demonstrar
que a escravidão não é anterior ao trabalho livre, mas, sim, distinta e concorrente. Ver MEYER, E. La esclavitud en el mundo antiguo. In: MEYER, E. El historiador y la historia antigua. Estudios sobre la teoría de la Historia y la Historia económica y política de la Antigüedad. México - Buenos Aires: Fondo de cultura económica. 1955, 139-172.
90 MEYER, E. op. cit., p. 99.
54
creditavam somente aos antigos a origem destas idéias, e conseqüentemente, fez novas
críticas às teorias de Bücher.
A opinião predominante vê nestas idéias atitudes características e específicas da Antiguidade, por oposição às concepções modernas; considera-as como o reflexo da instituição da escravidão, do deslocamento do trabalho físico para os braços dos escravos, a quem se depreciava. Prejulgamento totalmente falso: a mentalidade dos tempos modernos não se diferencia em nada, neste ponto, da dos antigos. Ainda que, hoje como ontem, o regime da democracia apague as diferenças jurídicas, o abismo social entre os ricos e os indivíduos das classes altas e as chamadas profissões liberais, de uma parte, e de outra os subalternos, os artesãos e os operários, segue sendo tão grande como na Antiguidade.91
Apesar de as ocupações serem hierarquizadas (a agricultura e a pecuária consideradas
as mais dignas, e o artesanato em uma escala inferior) e o trabalho muitas vezes ser uma
maldição, o Estado – principalmente a Atenas do período clássico – condenava a ociosidade e
exigia que o cidadão assegurasse o seu sustento por si só. Portanto, diversamente da imagem
de ociosidade do homem livre, o que se via eram os escravos e os homens livres concorrendo
nas mais diversas funções.
Os escravistas sempre foram minoria, e o número de escravos nunca superou o de
homens livres, a não ser em alguma cidade-Estado industrial. A escravidão nunca chegou a
impor-se de modo exclusivo na agricultura e abundavam em todos os lugares os cidadãos que
viviam do seu trabalho e exerciam as mais diversas atividades. O trabalho livre tinha na
escravidão um competidor tão perigoso quanto irresistível, levando o Estado a velar pela sua
existência mediante subsídios e entrega de trigo, bem como a imposição da liturgia aos ricos.
O trabalho livre, longe de ser um tardio sucessor da escravidão, produto de largas etapas intermediárias, surge pelo contrário no mesmo momento em que se manifesta também a escravidão como um fator econômico importante; os dois têm a mesma Antiguidade e são, simplesmente, duas formas distintas e concorrentes que satisfazem a mesma necessidade econômica, em que se expressa uma transformação econômica que é, no fundo, a mesma.92
O que se pretende ressaltar é que, se a servidão da época aristocrática dos épicos
corresponde às condições econômicas da Idade Média cristã, a escravidão da época seguinte 91 ibid., p. 100. 92 ibid., p. 163-164.
55
corresponde ao trabalho livre dos tempos modernos e nasceu sob o calor dos mesmos fatores
que lhe deram vida. Seus argumentos para explicar o fortalecimento do trabalho escravo
repousam, no entanto, em uma lógica ahistórica e universal:
Os trabalhadores livres que se oferecem para trabalhar são caros e rendem pouco. Exigem um salário para viver e estão na mesma situação jurídica e política que seus patrões. A indústria reclama trabalhadores baratos, cujas energias possam ser exploradas sem limitações e que estejam totalmente disponíveis.93
Meyer aqui confunde dois tipos de exploração do trabalho com formalismos
completamente diferentes. No sistema escravista, a relação de dependência ocultava o
trabalho realizado pelo escravo, fazendo-o aparecer apenas como um sustento para o seu
senhor. O formalismo antigo, baseado no status, sustentava-se no domínio pessoal, e não no
domínio do capital ou do trabalho. A sujeição e a anulação total do escravo impediam a
separação entre personalidade (jurídica, política, intelectual, ética) do trabalhador e venda da
força de trabalho. Por outro lado, o formalismo moderno, amparado na relação contratual
entre indivíduos juridicamente iguais, exalta a liberdade do trabalhador, atuando sempre ao
lado do capital e do mercado, ocultando a exploração sob a sombra da igualdade entre as
partes contratantes.94 Sob esta perspectiva, fica claro como Meyer transpõe as características
de um tipo de formalismo – o contratual – para uma realidade baseada em relações de
trabalho regidas por relações de dependência, isto é, por um formalismo amparado no status.
Depois, ele não consegue perceber as profundas modificações advindas das inovações
européias como um elemento completamente novo na História das civilizações.
A preocupação central de Meyer, contudo, era manter a equivalência “entre a Grécia e
a Europa moderna (ou mais precisamente entre a Grécia e a Prússia moderna), mesmo que
para isso fosse necessário obliterar as características e funções da escravidão no mundo greco-
romano.”95 Afirmando uma lógica do capital, Meyer assegurava que a forma jurídica, na qual
a mão-de-obra explorada pelo capital se encontrava, tem uma importância secundária. “Se se
pode escolher entre a escravidão e o contrato de trabalho livre, em igualdade de condições, se
preferirá a primeira.”96 Esta situação restringia o acesso da população livre à indústria e
93 ibid., p. 159. 94 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 139. 95 MOMIGLIANO, A. Introduction to a discussion of Eduard Meyer. In: ________. A.D. Momigliano Studies
on modern scholarship. Los Angeles e London: University of California Press, 1994, cap. 15, p. 218-219. 96 idem.
56
ocasionava a criação de um contingente de trabalhadores livres que dependiam direta e
indiretamente do Estado para sobreviver. Finalmente, parecendo dar uma resposta a um
questionamento acerca da não-utilização de escravos na Europa, no início dos Tempos
Modernos, Meyer aponta a diferença fundamental entre a trajetória cristã germânica e a
trajetória antiga. Enquanto esta partiu do isolamento das nações e dos pequenos Estados para
a aglutinação, a Idade Média partiu da idéia da unidade do gênero humano, herdada dos
tempos antigos, enquadrando-a nos marcos da nacionalidade, impedindo a escravização de
povos vizinhos. Onde a escravidão se difundiu, na América, não houve um desenvolvimento
industrial, razão pela qual a escravidão adquiriu um traço agrícola, semelhante à escravidão
romana.97 Contudo, segundo Shciavone, se, por um lado, as escravidões modernas
desenvolveram-se em cenários rurais relativamente periféricos com relação ao centro cada vez
mais industrial e manufatureiro da nova economia européia e do norte, por outro, o sistema
escravista romano representava a forma econômica mais avançada e unificada das civilizações
antigas: “o verdadeiro centro propulsor de toda a economia mediterrânea”.98 Como pode
aquele sistema ser similar à escravidão romana?
Finalmente, a decadência do mundo antigo. Aqui, o evolucionismo cíclico assume um
caráter mais transparente. Segundo Meyer, as incessantes revoluções, as mudanças constantes
no poder e as lutas entre Estados em torno da hegemonia contribuem para levar a Grécia a
uma miséria cada vez maior. Simultaneamente ao formidável auge da inteligência e da arte,
assistiu-se a uma decadência cada vez maior da vida política e econômica. O grande número
de “proletários” entrega-se às tropas de mercenários, ou à bandidagem e pirataria. Enquanto
Atenas e Siracusa vivem situações semelhantes, Cartago aparece como uma cidade comercial
e industrial e torna-se a grande potência que domina todo o ocidente do Mediterrâneo,
concentrando em sua capital o comércio das cidades tributárias e procurando bloquear toda a
influência estrangeira, à maneira de Veneza ou das potências coloniais européias dos séculos
XVII e XVIII. Apesar dos grandes latifúndios escravistas dos comerciantes cartagineses, a
política e o Estado são dominados pelos interesses do comércio e da indústria, da mesma
forma que “a política inglesa dos séculos XVIII e XIX. Meyer então pergunta: Como pode um
Estado como este ser dominado pela economia do oikos?”99
O advento do helenismo é responsável por um retrocesso da metrópole grega em
virtude do afluxo populacional para as cidades da Ásia Menor e das constantes conturbações
97 ibid., p. 164. 98 SCHIAVONE, A. op. cit., p. 168 99 ibid., p. 107.
57
políticas na Grécia. O fator mais importante desse retrocesso, porém, é a separação da
situação mundial: a Grécia deixou de ser o centro político e comercial do mundo. “Atenas
estava agora à margem da grande rota do comércio.”100 A realidade helenística, com o
comércio marítimo entorpecido, comunicações terrestres lentas, embaraçadas pelos tributos e
salvo-condutos, e coexistência de uma cultura refinada com governos “maus” e
“degenerados”, porém com um comércio mundial altamente desenvolvido, e com uma
“economia nacional”, como entendia Bücher, poderia ser comparada aos séculos XVII e
XVIII. Enquanto o Estado era forte comercial e politicamente, foi possível manter, com
subsídios, a população livre afastada das atividades exercidas pelo escravo. Contudo, com a
diminuição de rentabilidade da agricultura, causada pela penetração da “empresa capitalista”,
e a concentração da terra nas mãos dos ricos, a população camponesa é levada a migrar para
as cidades, exercendo pressão sobre o estado que não a podia suportar por ser fraco comercial
e politicamente. Daí decorre, segundo o autor, a força corrosiva da escravidão, que ocupa os
espaços da população livre e pobre. Meyer, amparado em trabalhos de Beloch, associa o
crescimento da escravidão ao crescimento do comércio e da indústria. Admitindo a presença
de trabalhadores livres, de artífices autônomos, os “modernistas” associaram os oikoi, dos
primitivistas com o comércio e a indústria. Com a estagnação destes, estagna-se a escravidão.
Eis aqui o maior antagonismo a Bücher e Rodbertus, os quais associam escravidão à ausência
de qualquer tipo de comércio e indústria.
Doravante, o fim do mundo antigo, em sua análise da civilização romana, está
associado: 1. à influência da cidade e da vida urbana; 2. ao enfraquecimento do campo e,
conseqüentemente, dos camponeses; 3. ao pleno desenvolvimento do capitalismo, da
economia monetária e do direito capitalista, com todas as conseqüências desintegradoras das
condições de vida do campo e destruidoras do sistema de trocas dos camponeses. Este
processo todo leva séculos, até que se manifestam as desastrosas conseqüências: a pobreza do
campo se transfere para a cidade; o comércio e o tráfico começam a estancar-se; a indústria é
paralisada; os trabalhadores livres permanecem ociosos, e a atividade industrial já não
consegue prover os meios de sustento. O resultado disso tudo é o retorno às condições de vida
primitiva. Meyer se refere às condições do oikos autárquico de Bücher: a restauração dos
estamentos sociais herdados de pais e filhos; o surgimento do colonato; a transformação dos
camponeses em camponeses vinculados à gleba; a volta à economia natural em grande escala.
O fim do ciclo histórico da Antiguidade é o fim da pólis e do governo autônomo, com o
100 ibid., p. 109.
58
surgimento do Estado burocrático bizantino. O Ocidente é arrebatado pelo Império e se
afunda na mais profunda barbárie.101 Chegava-se ao final de um longo período de
desenvolvimento completamente diverso daquele descrito por Bücher. O declínio do comércio
e da indústria e o crescimento das organizações sócio-econômicas próximas dos households
invertiam completamente o evolucionismo dimensional de Bücher. A ascensão da “economia
nacional” moderna não poderia ser retrojetada sobre um processo evolucionista iniciado com
o antigo sistema do household fechado. O Mediterrâneo tinha experimentado dois processos
paralelos de capitalismo urbano, ambos partindo de uma situação inicial que se caracterizava
pela predominância da servidão e da agricultura.102
Assim, Meyer apresenta uma trajetória do mundo antigo diferenciada da de Bücher e
Rodbertus, embora o caráter evolucionista, traço característico dos primitivistas criticados,
também apareça, só que acentuados, em sua regressão causal, o valor que o presente atribui a
um fato e a extensão dos efeitos desse fato, negando a importância de elementos do passado
que não tivessem uma relevância causal para o presente, ou seja, o específico de cada
realidade. Encontramo-nos em nova contradição: se a crítica de Meyer aos “primitivistas” é a
de que estes dilaceravam a realidade do passado ao atrelar lhe esquemas que não
correspondiam aos fatos de acordo com as fontes, ele atrelava uma eficácia, originada no
presente, aos fatos históricos do passado, isto é, o sentido da ação evolutiva repousa na
eficácia de seus efeitos no presente e em fatores culturais.
Como exposto, o início dos Tempos Modernos na Europa reúne as condições para a
instauração da escravidão, mão-de-obra mais “lucrativa que o trabalho livre”, que é,
entretanto, impossibilitada por uma trajetória cultural diferente. Quando esta particularidade
não ocorre, o que se vê é o desenvolvimento da escravidão, caso da América, que é
comparado à escravidão romana. Apesar do grave equívoco, que é o de substituir um
evolucionismo linear por outro cíclico, Meyer consegue demonstrar, com base no crescente
material empírico disponível na época, que a hipótese de Rodbertus e Bücher carecia de
fundamentação histórica.
O ataque dos modernistas suscitou algumas explicações de Bücher em edições
posteriores, como a reafirmação de que os estágios econômicos eram indispensáveis do ponto
de vista metodológico e que, só desta forma, a teoria econômica poderia explicar os resultados
das investigações históricas. Também contra-atacou Meyer, apontando a incompreensão deste
101 ibid., p. 125-128. 102 NAFISSI, M. op. cit., p. 46.
59
no tocante ao economicamente essencial e as conclusões equivocadas acerca das evidências
atenienses, incluindo aí também Beloch.
Apesar da resposta, a hipótese modernista acabou por prevalecer, pois se conciliava
melhor com a massa de dados (arqueológicos, numismáticos, papirológicos e apigráficos) que
os especialistas começavam a oferecer. Tal hipótese também permitia a formulação de uma
percepção mais familiar e um menor esforço conceitual. Nas palavras de Schiavone,
“descobrir o capitalismo era mais fácil do que perdê-lo”.103 Entretanto, a vitória revelou-se
frágil e suscitou novas reflexões partindo de novos argumentos. Cabia aos “primitivistas” se
desvencilharem do evolucionismo linear de Bücher e Rodbertus e procurar desenvolver um
quadro conceitual que removesse os resquícios da economia política clássica de seu
arcabouço teórico. Esse é o grande desafio que Bücher se propunha a resolver, e não
conseguiu, e que se apresenta para os autores que vamos investigar, Weber, Hasebroek,
Polanyi e Finley. Eis aqui a primeira grande questão de fundo da tradição que nos propomos a
investigar.
103 SCHIAVONE, A.op. cit., p. 82.
60
3 A PÓLIS TOMA O LUGAR DO OIKOS. O TIPO IDEAL DE MAX WEBER E O
NEOPRIMITIVISMO DE HASEBROEK
Os autores que vamos investigar agora retomaram e aprofundaram as questões
levantadas por Bücher e Meyer.
Max Weber (1864-1920) imergiu, em um primeiro momento, em um projeto histórico,
discutindo questões prementes da controvérsia do oikos; em um segundo momento, após seu
colapso nervoso, apresentou uma série de estudos teórico-metodológicos, por meio dos quais
procurou solucionar as lacunas teóricas dos membros da “Escola Histórica de Teoria
Econômica”; finalmente, em um terceiro momento, já maduro, desenvolveu um projeto
histórico-sociológico, no qual seus conceitos teóricos são complementados por uma erudição
histórica impressionante, sobre os mais diversos temas. Contudo, desde seus primeiros
trabalhos de História Antiga, o autor já esboça elementos de seu arcabouço teórico.
Johannes Hasebroek (1893-1957) escreveu trabalhos empíricos sobre a Grécia Antiga,
retomou elementos “anti-modernistas” de Weber e deflagrou um novo ataque aos
modernistas, procurando, em primeiro lugar, sanar as lacunas empíricas presentes nos
trabalhos de Bücher e Rodbertus e, em segundo lugar, levando para o centro dos argumentos
primitivistas, a pólis, em vez do oikos.
3.1 OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DOS TRABALHOS DE
WEBER
Os trabalhos de Max Weber (1864-1920), na primeira metade do século XX, sobre a
“economia antiga”, estão inseridos no seio do fervoroso debate iniciado na Alemanha no final
61
do século XIX e início do XX, protagonizado por historiadores e economistas alemães. A
posição de Weber nesse debate encontra-se no liame entre a Escola Histórica de Teoria
Econômica e a Ciência Econômica Austríaca. Em relação à esfera do objeto de estudo da
Ciência Econômica, sua posição está mais próxima à de Schmoller, porém aproxima-se mais
da de Menger quanto ao uso da racionalidade como método da pesquisa econômica e quanto à
idéia que as instituições são o resultado involuntário de ações individuais.104
Após seu colapso nervoso, que durou cinco anos, de 1898 a 1902, Weber escreveu
uma série de trabalhos teórico-metodológicos a fim de, por um lado, alertar os historiadores
sobre a importância da teoria para os estudos históricos e, por outro lado, demonstrar aos
economistas que a História não era uma “serva”, uma simples coletora de dados para os
teóricos. Weber posicionava-se no seio do debate entre economistas e historiadores,
apresentando a História e a teoria como momentos necessários de uma divisão unificada de
trabalho. Seus trabalhos teórico-metodológicos são estudos críticos dos principais autores da
Escola Histórica de Economia Política e respostas teóricas a Eduard Meyer. Nesses ensaios,
de 1903-1906, Weber estava convencido que a teoria dos estágios não contribuía para uma
reconciliação entre teoria e História. A sua estratégia era alcançar um consenso entre
historiadores especialistas, que o viam como um dos seus, e economistas políticos, que
também o respeitavam, demonstrando suas necessidades recíprocas dentro de uma divisão
geral de trabalho.105
Em um artigo de 1904, “A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na
ciência política”, o autor afirma que o papel da Ciência Social é entender o que há de
específico na realidade que nos circunda, “por um lado, as conexões e a significação cultural
das nossas diversas manifestações na sua configuração atual e, por outro, as causas pelas
quais ela se desenvolveu de uma forma e não de outra.”106 Como a realidade não pode ser
esgotada em todos os seus aspectos, em razão da infinita diversidade dos eventos que nos são
apresentados, apenas um fragmento limitado pode ser conhecido de cada vez, e só este
fragmento é “essencial” para o conhecimento. Procurando definir o estatuto das ciências da
cultura, Weber aponta a peculiaridade do método dessas ciências:
104 Para uma consulta do contexto intelectual dos trabalhos de Weber ver SWEDBERG, R. Max Weber e a idéia
de sociologia econômica. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005. 105 NAFISSI, M. op. cit., p. 74. 106 WEBER, M. A ‘objetividade’ do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In: ___________.
Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. São Paulo: Cortez Editora, 1992. p. 124
62
A significação da configuração de um fenômeno cultural e a causa dessa significação não podem contudo deduzir-se de qualquer sistema de conceitos de leis, por mais perfeito que seja, como também não podem ser justificadas nem explicadas por ele, tendo em vista que pressupõe a relação dos fenômenos culturais com idéias de valor. O conceito de cultura é um conceito de valor. A realidade empírica é ‘cultura’ para nós porque e na medida que em que a relacionamos com idéias de valor. Ela abrange aqueles e somente aqueles componentes da realidade que através desta relação tornam-se significativos para nós.107
Sob a influência de Dilthey, Weber valoriza a interpretação racional fundamentada na
relação com os valores, como método para nos fazer compreender, pela causalidade ou
compreensão, “relações significativas entre os fenômenos ou os elementos de um mesmo
fenômeno.”108 Afasta-se de Dilthey, contudo, pois, apesar de não minimizar o papel da
intuição, não considera a experiência vivida como um conhecimento científico. Assim, a
delimitação do tema a ser investigado é subjetiva, pois é determinada por pontos de vista
relacionados com valores, cujas concepções estão submetidas à mudança histórica. Além
disso, a relação com os valores orienta a distinção entre o que é essencial e o que é acessório e
indica quais as relações de causalidade a estabelecer. Esta subjetividade, porém, não nos
impede de alcançar um conhecimento válido e absoluto no que diz respeito às causas de um
objeto histórico. Eis aqui o argumento central da contenda entre Meyer e Weber e o elemento
que pode nos ajudar a esclarecer a posição de Weber acerca da economia antiga.
Para Weber, a cientificidade da História como ciência social exige a aplicação de
conceitos causais. Esta união de ciência e causalidade em Weber se apóia na concepção
neokantiana, segundo a qual as causalidades não se acham radicadas em uma realidade
objetiva, mas, sim, no pensamento científico. Dessa forma, o problema da causalidade é
determinar o papel dos diversos antecedentes na origem de um acontecimento. Esta
determinação pressupõe alguns passos: o primeiro consiste em definir com precisão as
características do indivíduo histórico que se quer explicar, seja ele um acontecimento
particular ou uma individualidade histórica de proporções mais amplas; o segundo convém
analisar os elementos do fenômeno histórico, pois uma relação causal é sempre uma relação
parcial, isto é, construída entre certos elementos do indivíduo histórico e determinados dados
anteriores. Em terceiro lugar, devemos pressupor que um desses elementos antecedentes não
se produziu, ou se produziu de modo diferente. Aplicada a uma seqüência histórica singular, a
análise causal deve passar pela modificação irreal contrafactual de um dos seus elementos e 107 idem., p. 127. 108 FREUND, J. Sociologia de Max Weber. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 1980. p. 46.
63
responder à seguinte pergunta: que teria ocorrido se este elemento não tivesse existido ou
tivesse sido diferente? Finalmente, o último passo é a comparação do devenir irreal,
construído mediante a hipótese de modificação de um dos antecedentes, com a evolução real,
para poder concluir que o elemento modificado pelo pensamento foi de fato uma das causas
do indivíduo histórico considerado no ponto de partida da pesquisa. Deste modo, a construção
do irreal é um meio necessário para compreender, como, na realidade, os acontecimentos se
desenrolam. Para esta reconstrução, basta partir da realidade histórica tal como se apresentou
para demonstrar que, se este ou aquele antecedente não tivesse ocorrido, o acontecimento que
queremos explicar também teria sido diferente. A relação de causalidade pode ser mais bem
compreendida pela idéia defendida por Weber de que a ética protestante poderia ser encarada
como um componente causal significativo para o desenvolvimento do capitalismo moderno.
Já a ausência desse componente significaria um empecilho ao desenvolvimento de uma
orientação da conduta econômica análoga à capitalista racional.109
Os juízos de validade geral são alcançados por meio do “tipo ideal”, um modo de
construção conceitual “utópico”, orientador da pesquisa, peculiar ao método histórico,
destinado a dar o rigor conceitual aos fenômenos em sua singularidade. O tipo ideal é obtido
mediante a acentuação unilateral de um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. É impossível encontrar empiricamente na realidade este quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma utopia.110
Um tipo ideal da estrutura capitalista moderna, por exemplo, “acentuaria diferentes
traços difusos da vida cultural, material e espiritual moderna e os reuniria num quadro ideal
não contraditório, para efeito de investigação” 111, cuja tentativa seria traçar uma “idéia” da
cultura capitalista, dominada unicamente pelo interesse de valorização dos capitais privados.
Segundo Weber, é possível traçar várias “utopias” deste tipo, todas diferentes umas das
outras, mas cada uma poderia pretender ser uma representação da “idéia” na cultura
capitalista e poderia conseguir tal objetivo, desde que solucionasse características da nossa
109 ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes e Ed. UnB. 1987. p. 475-478. 110 WEBER, M. A ‘objetividade’ do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In: _________.
Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. São Paulo: Cortez Editora, 1992. p. 124. 111 ibid., p. 137.
64
cultura, significativas na sua especificidade, reunidas num quadro homogêneo.112 O tipo ideal
é, portanto, um quadro de pensamento, pelo qual se mede a realidade e com a qual é
comparado, a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos
importantes. São, assim, “configurações, nas quais construímos relações, por meio da
utilização da categoria de possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formada e orientada
segundo a realidade, julga adequadas.”113
Podemos dizer que o tipo ideal é um conceito genético, pois designa um indivíduo
histórico que se encontra em relação causal com fenômenos de reconhecida significação
cultural, ou efeitos de uma causa de significação cultural. Além disso, tal conceito designa
objetos de “significação cultural tendo em conta que ele dá a entender ou conota
características essenciais para a ordenação do objeto respectivo no contexto cultural.”114
Weber procurou remover as bases “naturalísticas” das tradições teóricas, advindas da
Escola Histórica de Economia Política, e desenvolveu, pelo menos em parte, a noção de tipo
ideal para combater e substituir a teoria evolucionista proposta por Bücher, pois, seguindo as
críticas dos historiadores, ele percebeu que a teoria do oikos não poderia explicar ou fornecer
leis de desenvolvimento de sociedades antigas. Isto não significa dizer que Weber tenha
descartado os conceitos e classificações de Bücher. Ele considerou o oikos como um tipo ideal
e não o descartou da pesquisa histórica, desde que usado como hipótese empírica a ser testada
na pesquisa. Assim, apesar de concordar com Bücher de que a História e a teoria são
atividades distintas, esta última, contudo, não exaure ou incorpora a essência da “realidade”,
que, para Weber, se confunde com a História.115
Weber escreveu, em 1906, um artigo intitulado “Estudos críticos sobre a lógica das
ciências da cultura”, em torno do entendimento do trabalho histórico, em que trava uma
polêmica com Meyer acerca da concepção de causalidade no âmbito das ciências culturais,
apontando, no trabalho de Meyer, confusões de natureza lógica. Segundo Weber, só são
“significativas historicamente aquelas ‘causas’ em que o regresso que parte de um elemento
cultural ‘valorizado’ inclui em si seus elementos indispensáveis.”116 E estes nada têm a ver
com sua eficácia em relação à nossa cultura, pois os pontos de vista valorizados em cada
momento da História, passíveis de mutações ao longo do tempo, avaliam e convertem em
112 ibid. 113 ibid., p.139-140. 114 JANOSKA-BENDL, J. Max Weber y la sociología de la Historia. Buenos Aires: Editorial Sur, 1972. p. 30. 115 NAFISSI, M.op. cit., p. 83-85. 116 WEBER, M. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In: ________. Metodologia das ciências
sociais. São Paulo: Cortez editora, 1992, p. 184.
65
indivíduos históricos elementos culturais totalmente passados e que não podem ser
reconduzidos a um elemento cultural do presente.117 De acordo com Weber, Meyer confunde
o “eficaz” com o “histórico” porque não diferencia “aqueles componentes da realidade que
são avaliados na sua especificidade concreta como objetos do nosso interesse”118 daqueles
descobertos por nossa necessidade de compreendê-los pela regressão causal.
Weber demonstra afinidades com Meyer em duas questões: 1) rejeição à dedução do
significado dos fenômenos culturais e da causa desta significação mediante qualquer sistema
de leis e conceitos; 2) concordância com a advertência de Meyer sobre o “perigo de
supervalorizar a importância dos estudos metodológicos para a práxis da investigação
histórica”119, isto é, não é tarefa de uma ciência empírica proporcionar normas que se possam
aplicar como receitas para a prática. Apesar das diferenças pontuais, como, por exemplo, a
reivindicação de um rigor conceitual maior para as ciências da cultura, Weber continua, pelo
menos em relação às observações feitas ao trabalho de Meyer, ainda próximo da concepção
historista.
No seu diálogo com os historiadores, Weber procura conciliar uma proposta
metodológica com o espírito “descritivo” dos historiadores. Esta função descritiva não deveria
ofuscar o que as ciências históricas compartilham com as ciências naturais: a explicação
causal. As explicações causais são concebidas como hipóteses que são verificáveis com os
fatos; sua validade é testada em procedimentos que envolvem o uso de conhecimento
empírico já disponível e “formulado” de um modo logicamente correto. Sem negar o papel
dos indivíduos e das idéias nas mudanças históricas, Weber queria pôr a prova esses valores
por meio de um procedimento científico, a avaliação. Assim, no diálogo crítico com os
historiadores, emerge uma divisão do trabalho que envolve os três momentos de construção
do objeto: descrição, explicação e avaliação120.
Com efeito, a análise interpretativa está a serviço da formação de conceitos
historiográficos quando investiga a especificidade de determinadas “épocas culturais”, isto é,
um conceito histórico deve ser gradualmente estruturado de acordo com as partes individuais
tomadas da realidade histórica que o instituiu, mediatizado por valores que não se deixam
117 ibid., p. 188. 118 ibid. , p. 186. 119 WEBER, M. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In: Metodologia das ciências sociais.
Tradução de Augustin Wernet. São Paulo: Cortez Editora, 1992. p. 155– 210. 120 NAFISSI, M. op. cit., passim.
66
universalizar.121 Essa reflexão, considerada por Cohn, como uma espécie de individualismo
metodológico, sustenta-se na idéia de que “no estudo dos fenômenos sociais não se pode
presumir a existência já dada de estruturas sociais dotadas de um sentido intrínseco; (..) e
independente daqueles que os indivíduos imprimem às suas ações.”122 Assim, a Antiguidade é
apropriada em seu conteúdo cultural como meio de conhecimento para a formação de tipos
gerais, pois suas fontes possibilitam-nos a “obtenção de conceitos gerais, de analogias e de
regras de desenvolvimento que são aplicáveis não apenas à nossa cultura, mas a ‘todas’ as
culturas.”123 Eis aqui um elemento importante de diferenciação entre a concepção modernista
e aquela mais próxima da primitivista.
Segundo Tenbruck, as críticas de Weber a Meyer estão restritas ao campo
metodológico, pois estão presentes, nos trabalhos “históricos” de Weber fatos “históricos e
etnológicos que derivam de Meyer, mas também as ‘teorias’ pelas quais Meyer (e outros
historiadores) tinham focalizado a visão deles sobre a História por meios de aplicação de tipo
ideal.”124 O autor ainda lembra que as teorias dos historiadores modernistas formam o
fundamento para os temas e, freqüentemente, para as teses que Max Weber usou para
comparação, criticou e desenvolveu em Economia e Sociedade. Tenbruck, portanto, realça a
influência de Meyer sobre os estudos históricos, e mesmo sociológicos de Weber. Esta visão
não é compartilhada por Finley, que ressalta as diferenças entre esses autores tanto no campo
metodológico quanto histórico, nem por Nafissi, que, apesar de aceitar a influência de Meyer
sobre os trabalhos históricos de Weber, não observa nenhuma influência daquele sobre os
trabalhos sociológicos de Weber, e acentua que os trabalhos de cunho mais sociológicos eram
uma resposta aos historiadores da época, inclusive Meyer. A visão de Nafissi nos parece a
mais razoável.
As considerações de Weber acerca dos trabalhos teóricos de Meyer ainda se
encontram no âmbito do Historismo. Contudo, enquanto Meyer nos parece mais idealista,
ressaltando a importância do individual na criação de pensamentos nascidos de modo
espontâneo, além de afirmar a liberdade da vontade em contraposição às determinações
causais, Weber acredita ser possível estabelecer juízos de validade geral, apostando em
121 MONTEIRO, J.C. S e CARDOSO, A.T. Weber e o individualismo metodológico. [S.l]2002. Disponível em:
http://www.cienciapolitica.org.br/encontro/teopol5.2doc. Acesso em: 10 de maio de 2003. 122 COHN,G. Introdução. In: _________(org.). Max Weber. Sociologia. São Paulo: Ática,1981.col. Grandes
cientistas sociais, p. 26. 123 WEBER, M. Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura. In: WEBER, M. Metodologia das
ciências sociais. São Paulo: Cortez editora, 1992. p. 191-192. 124 TENBRUCK, F. H. Max Weber and Eduard Meyer. In: MOMNSEN, F; OSTERHAMMEL, J. Max Weber
and his contemporaries. London: Allen & Unwin, 1987. p. 243-244.
67
conceitos genéticos. Esta crença o afastava do idealismo historista, porém o levava a uma
contradição: como seu instrumental teórico, o tipo ideal, uma construção intelectual,
“utópica”, deveria ser submetido a regras de experiência previamente dadas, isto é, passar
pela prova empírica? Como pode haver regras de experiência de coisas irreais? Como
procurar uma validade geral de juízos de valor na esfera do estritamente empírico? Os textos
“históricos” de Weber podem nos ajudar a responder a estes questionamentos.
Passemos a investigar a análise de Weber sobre a Grécia Antiga tomando como
parâmetros de investigação três questões: perceber até que ponto Weber se afasta ou se
aproxima de Meyer e de Bücher; relacionar as análises de Weber sobre a Grécia Clássica com
as categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica e os tipos de dominação
associados à noção de racionalidade e de irracionalidade; e procurar entender como Weber
constrói o “tipo” particular de capitalismo no desenrolar da civilização grega.
3.2 A GRÉCIA ANTIGA E SEUS VÁRIOS “TIPOS IDEAIS”
As análises mais específicas de Weber sobre a civilização grega antiga estão contidas
em dois livros. O primeiro, Agrarverhältnisse im Altertum , inicialmente escrito em 1897,
reescrito no ano seguinte e, finalmente, publicado em 1908, foi traduzido para o inglês, em
1909, sob o título The agrarian sociology of ancient civilizations.125 Nele, Weber apresenta
um painel amplo da organização econômica e social das sociedades do mundo antigo, e o que
era pensado para ser um ensaio sobre a Grécia Antiga tornou-se uma obra de ambições muito
mais amplas, última contribuição mais direta de Weber para a controvérsia do oikos.
O segundo livro, a sua grande obra Economia e Sociedade, produto de um outro
momento da sua carreira intelectual, inicialmente pensado como uma coletânea, contém
reflexões dispersas sobre a Grécia Antiga e nele as preocupações de Weber estão voltadas
para o capitalismo moderno e as diversas formas de dominação, e o mundo antigo está
inserido em uma análise comparativa mais ampla. Contudo, há no livro uma seção intitulada
dominação não legítima (a tipologia das cidades),126 escrito entre 1911-1913, com reflexões
mais específicas e sistematizadas sobre a Grécia e Roma. Este texto contém uma série de
125 WEBER, M. Economic theory and ancient society. In: __________. The Agrarian sociology of ancient
civilizations. Tradução de FRANK, R.I. Londres e New York: Verso, 1998. p. 37-79. 126 idem., A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 408-517.
68
reflexões já iniciadas em The agrarian sociology of ancient civilizations, em que Weber
aprofunda sua análise acerca da estrutura da cidade antiga, comparando-a com outros “tipos”
de cidade, de outros períodos históricos, particularmente do período medieval.
Nas suas reflexões sobre a Grécia clássica, Weber não abre mão da construção de
conceitos, porém vincula a vida econômica a outras esferas da sociedade. Tais trabalhos
também demonstram a possibilidade de construir tipos de teorias econômicas para diferentes
estágios da História. É possível perceber, em sua análise, a presença de diversos “tipos”
entrelaçados e misturados no curso da história econômica e social grega. Desde o período
micênico até o final do clássico, estão presentes elementos da dominação tradicional e
carismática e de um capitalismo particular, característico do mundo antigo, o capitalismo
político. Em suas reflexões está presente implicitamente a seguinte questão: por que o mundo
antigo não reuniu as condições necessárias para transformar-se em uma economia capitalista
com as características modernas? A resposta para tal questão permeia toda sua obra: porque
não atingiu a mesma “racionalidade” econômica e política da sociedade capitalista moderna.
Em The agrarian sociology of ancient civilizations, Weber apresenta suas críticas, já
iniciadas nos seus estudos metodológicos, aos estágios lineares, assume algumas críticas dos
historiadores modernos a Bücher e retoma o papel da economia do oikos como um tipo ideal,
porém de importância secundária para compreender os desenvolvimentos econômicos antigos.
Karl Bücher aceitou a explicação de Rodbertus do oikos, mas com uma diferença. Suas visões podem, creio eu, ser interpretadas – a partir de suas próprias afirmações – dessa maneira: ele considerou o oikos como um “tipo ideal”, denotando um tipo de sistema econômico que apareceu na Antiguidade com seus traços básicos e conseqüências características em uma aproximação mais estreita com seu “conceito puro” do que em qualquer outro lugar, sem essa economia do oikos tornar-se universalmente dominante, tanto no tempo como no espaço. Pode-se acrescentar com confiança que mesmo naqueles períodos quando o oikos foi dominante isso não significava mais do que uma limitação no comércio e seu papel de suprir as necessidades do consumidor. Esta limitação foi, esteja certo, forte e efetiva, e casou uma degradação social e econômica correspondente daquelas classes que teriam levado avante um comércio mais extensivo.127
Apesar dessa defesa de Bücher, Weber afirma que o uso da Antiguidade para
exemplificar o conceito de “economia do oikos” o levou a enfatizar aspectos paradigmáticos
da História econômica que resultou em uma impressão errônea. A interpretação de que a 127 WEBER, M. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R.I. Londres e New
York: Verso, 1998. p. 43.
69
economia do “oikos” era característica de toda a Antiguidade foi o alvo principal das críticas
de Eduard Meyer, levando-o a rejeitar completamente o conceito de oikos. A utilização por
Meyer de conceitos econômicos modernos, com o uso de termos como fábricas e indústrias,
tal como na Idade Moderna, é rechaçada por Weber, que não encontra nenhuma evidência no
mundo antigo da existência de fábricas, mesmo no sentido técnico ou operacional do termo.
“O estágio que precedeu o desenvolvimento do sistema de fábrica em épocas modernas não
tem paralelo na Antiguidade.”128 Weber cede às críticas dos historiadores modernistas ao
limitar a importância do oikos na economia do mundo antigo e ao seccionar a Antiguidade em
zonas socioeconômicas e culturais distintas, em civilizações, em que cada uma passou por
formas específicas de desenvolvimento. Finalmente, Weber dá um passo além dos
primitivistas, ao separar a pólis clássica da economia do oikos, associando o declínio do oikos
ao desenvolvimento da polis e, posteriormente, ao capitalismo. O oikos tem um papel de
destaque na Grécia nos estágios iniciais, no Oriente Próximo e, no final da Antiguidade, no
Império Romano. Esse papel do oikos está associado à realeza no Ocidente e Oriente, sendo,
no entanto, interrompido no Ocidente com o surgimento da pólis aristocrática e a abolição da
realeza. A historicidade desses estágios históricos dissolve os conceitos unitários elaborados
por Bücher, em que a visão linear é substituída por uma visão cíclica, diferente daquela de
Meyer, que relacionava períodos da Antiguidade com períodos da Idade Média de forma
homóloga.
Weber, tendo como fonte privilegiada os poemas homéricos, os quais retratam
diversos períodos da civilização, estabelece na introdução do livro The agrarian sociology of
ancient civilizations os estágios de organização dos povos antigos, associando-os ao período
micênico. O primeiro estágio é o das “comunidades camponesas amuralhadas” (construídas
para defesa). Nessas comunidades, os households e a vila eram os centros econômicos; o clã,
o culto e as associações militares, além de serem responsáveis pela segurança, moldavam as
instituições religiosas e políticas; os membros livres detinham uma parte da propriedade da
terra, os escravos não eram numerosos e trabalhavam lado a lado com esses pequenos
proprietários; os chefes eram transitórios, isto é, eram indicados nos momentos de guerra e
sustentados pela sua autoridade moral. No segundo estágio, desenvolve-se um assentamento
de feições mais urbanas, a fortaleza, que se caracteriza pela presença de um rei, sustentado
pela posse de terras, escravos, rebanhos e tesouros e rodeado por uma comitiva pessoal, que o
servia nas guerras e desfrutava das posses reais. Os reis conquistadores formaram grandes
128 ibid., p. 44.
70
reinos com o apoio de seguidores militares, em geral estrangeiros à comunidade primitiva de
camponeses, quase sempre mercenários, que davam suporte aos reis mais poderosos. Estes
reis conseguiam transformar reis menos poderosos em vassalos, dando origem a quase todos
os Estados antigos. As relações entre o rei e os vassalos variavam de uma simples entrega de
dádivas ocasionais por parte dos súditos, em tempos de paz, a tributos, trabalhos forçados e
fornecimento de homens para o exército, caso o monarca tivesse pretensões expansionistas.
Uma terra fértil e o lucro proveniente do comércio são fatores necessários para o
estabelecimento da fortaleza real.129
Primitivamente a posição do governante (anax) era beneficiada por gado e marcada
ideologicamente pelo favorecimento dos deuses nas guerras e nos julgamentos, recebia a
maior parte do espólio, presentes em ocasiões especiais e contava com a ajuda de um
conselho de anciões, oriundo das famílias enobrecidas pela riqueza e coragem militar. Estas
famílias aristocráticas também legitimavam sua posição pelo favorecimento divino, eram
responsáveis pelos cultos comunais e estavam ligadas por laços consangüíneos – o genos,
formando grandes clãs, em que o oikos constituía a base econômica.130 A autoridade do anax
variava de acordo com as circunstâncias, dependendo em grande parte da ameaça de ataque
militar do estrangeiro.
O estabelecimento da cidade-Estado (pólis) é fruto do contato com o Oriente Próximo,
em razão do comércio marítimo monopolizado pelos reis das fortalezas das regiões costeiras e
do avanço da tecnologia militar, com a extensão de táticas de lutas em carros de combate e a
utilização de armaduras somente acessíveis a guerreiros ricos e atleticamente treinados. Tais
aspectos marcaram uma nítida diferenciação, no interior da população, entre os pertencentes a
esta aristocracia militar e comercial e a massa de camponeses subjugada e obrigada a
trabalhos forçados.131
O desenvolvimento de organizações comerciais reais levou as expedições ultramarinas
a ocupar territórios distantes e dar início à expansão colonial, sendo responsável pelo
comércio micênico de exportação de trabalhos em metal e cerâmica, que enriqueceram os
tesouros e os túmulos dos membros da classe governante. A fortaleza micênica era circundada
por artesãos que produziam as mercadorias para a venda.132
129 idem. Economic theory and ancient society. In: The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução
de FRANK, R.I. Londres e New York: Verso, 1998. pp. 69-70. 130 ibid., p. 151-152. 131 ibid., p. 154-155. 132 ibid., p. 156.
71
Segundo Weber, o mundo micênico era formado por grandes Estados, que eram
“essencialmente não mais do que uma aglomeração de ‘feudos’ fortificados sob um grande
rei.”133 Dos vários grupos dependentes da aristocracia das fortalezas, os clientes
representavam o elemento feudal, homens sem terras e provenientes do estrangeiro, enquanto
na costa predominavam homens nascidos livres que, em razão de dívidas, perderam sua
liberdade. Estes formavam o elemento “capitalista” da sociedade e estava em posição superior
aos prisioneiros capturados em guerra e escravos comprados no mercado, naquele momento,
em pequena quantidade.
A análise tecida por Weber da civilização micênica como um exemplo de
comunidades camponesas amuralhadas e, em seguida, de características mais urbanas, a
fortaleza, tendo os poemas homéricos como fonte principal, é hoje, após as descobertas
arqueológicas, totalmente insustentável. Weber, à época, desconhecia os achados
arqueológicos que demonstraram a enorme afinidade das burocracias micênicas com os
Estados burocráticos do Oriente Próximo. Para ele, os poemas homéricos, constituíam-se em
uma fonte ideal para ligar o mundo micênico, sem burocracia, ao nascimento das cidades-
Estados. A decifração do Linear B iria posteriormente quebrar este elo e elucidar, junto com
outros achados arqueológicos, a fratura entre uma sociedade, muito mais próxima das realezas
orientais, burocratizadas, do que com a polis grega, desburocratizada. A identificação de
Weber dos mundos micênicos e homéricos foi determinada por sua visão comparativa entre os
Estados do Oriente Próximo com as poleis greco-romanas: os poemas ajustavam-se à
tipologia weberiana dos reinos de fortaleza e subseqüentes seqüências ocidentais, já a
possibilidade de um Estado micênico, burocrático, não se ajustava a esta lógica. As cidades-
Estados determinaram a lógica micênica. A identificação do Estado micênico com uma
burocracia real próxima do modelo oriental iria romper com um arcabouço geral de
desenvolvimento estrito somente ao Ocidente. Weber começava a esboçar de forma clara
modelos de desenvolvimento diferentes entre Ocidente e Oriente, nos quais o Ocidente, não
continha em suas raízes um traço predominante no Oriente, a burocracia real.
Em Economia e Sociedade, a análise muda, talvez pelo conhecimento melhor do
material arqueológico. Já são encontradas maiores afinidades da civilização micênica com o
Oriente, uma vez que esta civilização pressupunha “uma realeza patrimonial baseada em
133 ibid.
72
trabalho forçado, de caráter oriental, ainda que de dimensões bem menores;”134 a
administração usava um sistema gráfico próprio com fins contábeis de caráter patrimonial
burocrático correspondendo, em pequena escala, às realizações orientais, com trabalho
forçado e uma administração centralizada no palácio.135 Estas observações não contradizem
uma análise mais geral, que agora tem como eixo comparativo não somente o Oriente e o
Ocidente, mas, também, o capitalismo antigo e o moderno, embora não deixem de contradizer
uma das orientações centrais do primeiro trabalho.
Em The agrarian sociology of ancient civilizations, Weber aponta o
desenvolvimento de um particularismo militar urbano da pólis grega como o principal
elemento diferenciador das monarquias burocráticas do Oriente Próximo. Em contraste com o
crescimento de um séqüito real extremamente dependente do rei no Oriente, na Grécia
assistiu-se a uma dominação dos séqüitos reais e, conseqüentemente, ao desenvolvimento de
um exército recrutado entre os pequenos fazendeiros rurais que podiam prover seu próprio
equipamento militar. Esta particularidade levou ao enfraquecimento do poder real e à ausência
de burocracias reais e de grandes Estados, traço marcante do desenvolvimento das monarquias
orientais.136
Outrossim, novas classes sociais estavam começando a existir, como, por exemplo,
soldados mercenários de todas as partes do Mediterrâneo, treinados, e com posses
independentes da monarquia.137 Mesmo aqueles que não eram mercenários, os companheiros
de luta do rei, eram independentes do rei, como os heróis da Ilíada em relação a
Agamemnom. O declínio da realeza micênica está associado: 1) a uma diminuição do
comércio com o Oriente Próximo, principalmente no segundo milênio, quando os Estados
entram em colapso; 2) às características geográficas, responsáveis pelo particularismo militar
urbano; e 3) às mudanças da relação entre rei e exército. O resultado desse processo foi a
intensificação de expedições de pilhagem e a divisão de poderes do rei com seus “senhores
feudais” e com os membros dos grandes clãs – também proprietários de terras e castelos e
habitantes da cidade –, cujos membros aconselhavam-no, compartilhavam o espólio e
dividiam a autoridade política sobre as massas.138 Mais uma vez, Weber mistura informações
134 idem. A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2 p. 457.
135 ibid. 136 idem., The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R.I. Londres e New York:
Verso, 1998. p. 157-158. 137 ibid., p. 159. 138 ibid., p. 159-160.
73
dos poemas homéricos para falar de períodos históricos diferentes, interpretando-os de acordo
com o seu modelo geral, que repousa na continuidade entre estruturas micênicas e políades.
A insistência em universalizar categorias como capitalismo, burocracia, feudalismo e
mesmo “Ocidente” surge em The agrarian sociology of ancient civilizations pela
comparação entre as póleis greco-romanas e as formações do Oriente Próximo. O capitalismo
se tornou dominante no Ocidente, na medida em que o político assume um papel
preponderante na análise das estruturas econômicas. O rompimento com a realeza no
Ocidente, algo que não acontece no Oriente, abre caminho para o surgimento da pólis e do
capitalismo. É só nas cidades-Estados que se desenvolvem novas formas de regra política,
interação econômica, ou legitimação ideológica em entidades geopolíticas claramente
diferenciadas.
Weber também propõe uma série de estágios de desenvolvimento para o Oriente
Próximo, cujos tipos – da fortaleza real aos Estados autoritários litúrgicos ou reinos
burocráticos – são formas de organização política em que a burocracia estatal, ao tempo em
reprime o capitalismo, acentua e consolida o papel do oikos real, monopólio daquele que
detém o poder político, ideológico e econômico e inclui o exército, a burocracia e o templo.
Weber reemprega o oikos, diferente de Rodbertus e Bücher – que o definem como a principal
instituição da civilização greco-romana – como predominante nas realezas burocráticas
orientais e como um obstáculo ao surgimento da polis e desenvolvimento do capitalismo e
feudalismo. A mudança de foco é o papel institucional do Estado – as realezas burocráticas –
que determina o curso das transações econômicas em detrimento das forças mercantis. Weber
rompe com o cerne da teoria evolucionista e abre um caminho de investigação que,
posteriormente, seria explorado por Polanyi.
A linha de continuidade entre The agrarian sociology of ancient civilizations e
Economia e Sociedade é o estudo dos fundamentos da cidade associados ao desenvolvimento
também peculiar ao Ocidente. Contudo, neste livro, Weber deixa de ver as sociedades antigas
sob uma perspectiva de um historiador da Antiguidade, passando a vê-las, prioritariamente,
como elementos comparativos de referência para uma melhor compreensão de peculiaridades
do capitalismo moderno, da sua emergência e de seu futuro. Por isso, nele encontramos
elementos da sociologia de Weber pouco desenvolvidos no primeiro livro, como dominação
estamental, patriarcalismo, carisma, racionalidade e irracionalidade. É necessário, portanto,
antes de explorarmos o nosso tema específico em Economia e Sociedade, apresentar algumas
74
considerações sobre a sociologia política de Weber, desenvolvida também neste livro, para
contextualizarmos melhor o lugar da cidade antiga em nossa pesquisa.
A sociologia política de Weber está amparada em dois pilares: domínio e obediência.
Domínio é a manifestação concreta de poder, definido como a probabilidade de impor a
própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências. É, portanto, “a probabilidade
de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas
indicáveis.”139 Está-se diante de uma associação de dominação quando seus membros “estão
submetidos a relações de dominação, em virtude de uma ordem vigente,”140 e esta associação
se torna política quando sua subsistência e a vigência de suas ordens, em um determinado
território geográfico, são continuamente garantidas mediante ameaça e aplicação de coação
física por parte do quadro administrativo.
No processo de desenvolvimento das relações associativas políticas, a comunidade
política monopoliza a aplicação legítima da força para seu aparato coativo, transformando-se
numa instituição protetora de direitos. Um processo de pacificação crescente ajuda todos
aqueles interessados em taxas a empregar seus meios específicos de poder para dominar as
massas e, paralelamente à pacificação e à ampliação do mercado, ocorre a monopolização do
emprego legítimo da violência, elemento definidor do Estado moderno, além da
“racionalização das regras para sua aplicação, que culmina no conceito da ordem jurídica
legítima.”141 Tais considerações levam Weber a afirmar que todas as formações políticas são
de força.
A ordem jurídica influencia a distribuição de toda forma de poder dentro da
comunidade, quer seja econômico ou não, e os fenômenos dessa distribuição são as “classes”,
os “estamentos” e os “partidos”. Para nossos fins, analisaremos apenas os dois primeiros.
Falamos de “classe” quando uma pluralidade de pessoas tem em comum um
componente causal específico de suas oportunidades de vida representado por interesses
econômicos de posse de bens e aquisitivos em condições determinadas pelo mercado de bens
ou de trabalho (situação de classe).142 Assim, as categorias fundamentais de todas as situações
de classe são a “propriedade” e a “ausência de propriedade”. As classes proprietárias
positivamente privilegiadas são tipicamente os rentistas, que podem ser rentistas de seres 139 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 33. 140 ibid. 141 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 160. 142 ibid., p. 176.
75
humanos (proprietário de escravos), de terras, de minas, de navios, credores (gado, cereais e
dinheiro) e de valores. Já as classes de proprietários negativamente privilegiados são os
objetos de propriedade, desclassificados, endividados e pobres. O antagonismo de classes
proprietárias entre rentistas de terras e desclassificados e entre credores e devedores,
característico da Antiguidade, pode levar às lutas revolucionárias, porém não necessariamente
com o fim de mudar a constituição econômica, mas de obter acesso à propriedade ou à sua
distribuição.143
Os “estamentos” são constituídos por uma pluralidade de pessoas, dentro de uma
associação, que gozam de uma consideração estamental especial e de monopólios estamentais
especiais. Toda sociedade estamental tende à apropriação monopolística de poderes de mando
e oportunidades aquisitivas144 e é convencional e regulada por normas, daí a “situação
estamental” estar condicionada a uma “específica avaliação social, positiva ou negativa de
honra, vinculada a uma determinada qualidade comum a muitas pessoas.”145 Esta honra pode
estar ou não ligada a uma situação de classe, pois possuidores e não possuidores podem
pertencer ao mesmo estamento, por mais precária que esta “igualdade” da avaliação social
possa tornar-se a longo prazo.146
A honra estamental costumava encontrar sua expressão na imposição de limite ao livre
ingresso em seu círculo e na exigência de uma condução de vida específica para aqueles que
queriam dele fazer parte. Para Weber, o princípio estamental era hostil à atividade aquisitiva e
à regulação da distribuição do poder puramente orientada pelo mercado. A monopolização de
bens ou oportunidades ideais e materiais, o monopólio legal sobre determinados cargos e a
subtração ao tráfico livre daqueles bens monopolizados pelos estamentos obstruíam o livre
desenvolvimento do mercado. Além do mais, em contraste com a “liberdade” da ordem
puramente econômica, a honra estamental condenava o elemento específico do mercado: o
regateio.147
Apesar de afirmar que a honra estamental pôde estar ligada a uma situação de classe e
que as diferenças de classes se combinavam das formas mais variadas às diferenças
estamentais, Weber relaciona os estamentos com a provisão de necessidades de tipo
143 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 200. 144 ibid., p. 202. 145 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 180. 146 ibid. 147 ibid., p. 180-183.
76
monopólico-litúrgico, feudal ou estamental, e as classes, com a economia orientada pelo
mercado. Toda sociedade estamental orientava-se pela situação de consumo de bens
economicamente irracionais, enquanto “as classes” diferenciavam-se segundo as relações de
produção e a aquisição de bens, portanto de caráter racional.148
Todas as áreas da ação social, sem exceção, são influenciadas por complexos de
dominação; contudo, seus detentores não pretendiam, exclusivamente, perseguir “interesses
puramente econômicos, como conseguir para si um farto abastecimento de bens
econômicos.”149 O poder econômico era, muitas vezes, uma conseqüência e um dos meios
mais importantes de dominação, porém nem toda posição de poder econômico manifestava-se
como dominação, e nem toda dominação se servia, para sua fundação e conservação, de meios
coativos econômicos. Assim, não se pode designar como dominação qualquer poder
econômico condicionado por situação monopólica, ou seja, “pela possibilidade de ‘ditar’ aos
parceiros as condições de troca, assim como qualquer outra ‘influência’ condicionada por
superioridade erótica, esportiva, argumentativa, etc..”150 Weber parece aqui responder a um
fantasma que o perseguiu por boa parte de sua obra, Karl Marx.
Nenhuma dominação contenta-se voluntariamente com motivos puramente materiais
ou afetivos. Ao contrário, os dominadores procuram influenciar as ações dos dominados de tal
modo que estas ações, num grau socialmente relevante, “se realizam como se os dominados
tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima das suas ações.”151
Devem-se distinguir as classes de dominação segundo suas pretensões à legitimidade,
pois a subsistência de toda dominação depende de justificação pelos princípios da
legitimação: dominação legítima de caráter racional ou legal; dominação legítima de caráter
tradicional; e dominação legítima de caráter carismático.
A dominação legítima de caráter racional ou legal baseia-se na vigência das seguintes
idéias entrelaçadas entre si: a) todo direito pode ser estatuído de modo racional, constituindo-
se em um cosmos de regras abstratas; b) o senhor ou senhores legais típicos e os membros da
associação se orientam e obedecem a ordens impessoais, isto é, “ao direito”; c) As categorias
148 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 202. 149 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 187. 150 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 140. 151 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 191.
77
da dominação racional são um exercício contínuo de funções oficiais dentro de determinadas
competências, denominadas “autoridade institucional”. As categorias fundamentais da
dominação são um exercício contínuo de funções oficiais dentro de determinada competência.
A essas categorias se junta o princípio de hierarquia oficial, a qualificação profissional para a
aplicação das regras técnicas e normas, a ausência de apropriação do cargo pelos funcionários
e a fixação por escrito das decisões, disposições e ordenações.152
O tipo mais puro de dominação racional é a “burocracia”, que se compõe de
funcionários individuais que são pessoalmente livres, nomeados para seus cargos com
competências funcionais fixas e livremente selecionados, ou seja, em virtude de um
contrato.153 A administração puramente burocrática é a mais racional porque alcança
“tecnicamente” o máximo de rendimento em virtude da precisão, continuidade, disciplina,
rigor e calculabilidade. A administração burocrática pressupõe, além de determinadas
condições fiscais, condições técnicas de comunicação e transporte adequadas. O seu caráter
fundamental é o “conhecimento”, e seu espírito é o “formalismo” e o “utilitarismo” de suas
tarefas administrativas.154 O surgimento da burocracia teve por toda parte o efeito
“revolucionário”, pois caracterizou o avanço do racionalismo, isto é, regra, finalidade e
impessoalidade objetiva,155 todos elementos comuns da economia aquisitiva e que constituem
a célula germinativa do moderno Estado Ocidental.
Esse caráter da burocracia no seio da dominação racional parece entrar em contradição
com o papel da burocracia apresentado em The agrarian sociology of ancient civilizations,
embora seja preciso especificar a que burocracia Weber estava se referindo. Em algumas
conferências, proferidas em 1909, ele teceu críticas à burocracia prussiana de forma muito
parecida às críticas feitas em The agrarian sociology of ancient civilizations às sociedades
do Antigo Oriente Próximo e mesmo à Roma imperial. A Grã-Bretanha, os Estados Unidos e
a França forneciam, naquele momento, os pontos comparativos positivos. Apesar de criticar o
ideal burocrático de vida, Weber preferia a burocratização da sociedade capitalista moderna à
paz e segurança da burocracia total prometida pelo socialismo. É à burocracia prussiana e ao
152 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 142-143. 153 ibid., p. 144. 154 ibid., p. 145-147. 155 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 213-233.
78
socialismo que Weber se volta na época de The agrarian sociology of ancient civilizations,
e não às sociedades capitalistas modernas, consideradas por ele mais “arejadas”.156
A dominação legítima de caráter tradicional caracteriza-se pela crença de ordens e
poderes senhoriais tradicionais, isto é, obedece-se ao senhor, ou senhores, em virtude da
dignidade pessoal que lhe atribui a tradição. Há diversos tipos de dominação tradicional: a
gerontocracia, em que o poder cabe ao mais velho e a administração regular está ausente; o
patriarcalismo e sultanismo, em que o poder é objeto de herança no seio de uma família
determinada e há um quadro administrativo (e militar) puramente pessoal do “senhor”;157
portadores de honra (honoratiores), baseada na santidade da tradição, que existe onde a honra
social (prestígio) no seio de determinado círculo se torna a base de uma posição dominante
com poder de mando autoritário. Não está amparada em relações de piedade filial, mas na
honra. Entre estes tipos, há inúmeras formas de transição.158
O patrimonialismo é a forma mais coerente de dominação legítima de caráter
tradicional. Ela se exerce em virtude do pleno direito pessoal e pode significar tipos muito
diversos, como, por exemplo: a) o Oikos do senhor com provisão das necessidades mediante
prestações em espécie e serviços pessoais; b) a provisão de necessidades que privilegia
determinados estamentos; c) monopolista, com provisão de necessidades, em parte, mediante
taxas, ou mediante impostos. Nestes três tipos, o desenvolvimento do mercado é dificultado, e
o desenvolvimento do capitalismo é ou diretamente impedido ou desviado para o campo do
capitalismo político, se houver o arrendamento e a compra de cargos e o recrutamento
capitalista de exércitos de funcionários administrativos.159 A apropriação de determinados
poderes e oportunidades econômicas pelo quadro administrativo caracteriza uma outra forma
de patrimonialismo, a dominação estamental. Tal apropriação pode se dar por parte de uma
associação ou de uma categoria de pessoas, ou por um indivíduo com caráter vitalício ou
hereditário. Com efeito, a dominação estamental significa sempre limitação da livre seleção
do quadro administrativo pelo “senhor”, que pode ser uma associação ou uma camada
estamental qualificada, em razão da apropriação dos cargos ou poderes de mando.160 Um caso
limite da estrutura patrimonial caracterizado pela divisão de poderes é o feudalismo. Feudo é
156 NAFISSI, M. op. cit., p. 122. 157 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 148-151. 158 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v.2, p. 234-236 159 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 156-157. 160 ibid, p. 152.
79
uma concessão de direitos, especialmente de aproveitamento de terras ou de dominação
territorial política, em troca de serviços militares ou administrativos, que proporciona rendas e
cuja posse pode e deve fundamentar uma existência senhorial. Os direitos e deveres
recíprocos se orientam, em primeiro lugar, por conceitos de “honra estamental”.
Entre os diversos tipos de feudalismo delimitados por Weber, um nos interessa mais
de perto. É o “feudalismo urbano”, presente, sobretudo, nos países mediterrâneos, assentado
em uma associação de guerreiros, com distribuição de lotes pelo senhor territorial a cada um
dos guerreiros. Aqui a honra estamental é um elemento fundamental. Weber cita como
exemplo o sentimento de dignidade estamental dos espartanos, baseado na honra e etiqueta do
guerreiro de cavalaria, mas em que falta a relação de fidelidade pessoal. Este feudalismo
urbano helênico encontra seu fundamento na educação como uma “convicção” específica
amparada na honra estamental. Este caráter específico, presente no sistema militar, é um fator
de obstrução às relações racionais “de negócios”.161
Finalmente dominação legítima de caráter carismático, em que o carisma é uma
“qualidade pessoal em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades
sobrenaturais.”162 Tal dominação opõe-se tanto à dominação burocrática, quanto à tradicional,
pois enquanto ambas são vinculadas a regras, discursivamente analisáveis, no caso da
burocracia, e vinculadas aos precedentes do passado, no caso da tradicional, a dominação
carismática não conhece regras e derruba o passado (dentro do seu âmbito), sendo, neste
sentido, revolucionária.163 Não se constitui em um complexo “institucional”, pois tanto o
senhor quanto os discípulos e sequazes, para alcançar seus objetivos, encontram-se fora dos
vínculos deste mundo, das profissões comuns e dos deveres familiares cotidianos.164
Estes são os “tipos puros” de dominação legítima, “cuja combinação, mistura,
adaptação e transformação resultam as formas que encontramos na realidade histórica.”165 O
fato de nenhum dos três tipos ideais existirem historicamente em forma realmente “pura” não
impede a fixação de conceitos para a análise de uma realidade empírica, como no caso da
Grécia Antiga.
161 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, pp. 319-320. 162 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 159. 163 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. 4ª edição. Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 158-160. 164 ibid., p. 325. 165 ibid., p. 198.
80
Estes esclarecimentos são fundamentais para compreendermos as ferramentas
analíticas utilizadas em Economia e Sociedade, que se encontram em fase de maturação em
The agrarian sociology of ancient civilizations.
Em Economia e Sociedade, o nascimento das cidades é um fenômeno circunscrito
inicialmente ao Ocidente, uma vez que ele está atrelado à presença de um exército auto-
equipado, originário de um “estamento de guerreiros”, com autonomia militar do indivíduo
perante o “senhor” e fomentador de uma comunidade política de cidadãos. A ausência de um
aparato coativo burocrático, servil e dependente fortaleceu o grupo de guerreiros autônomos a
quem o rei precisava recorrer para recrutar seus próprios órgãos administrativos, os
dignitários e funcionários locais. Em suma, o nascimento de uma confraternização urbana
sem impedimento de caráter mágico dos clãs ou das castas e a diferença da constituição
militar, em particular a de seus fundamentos econômicos religiosos, surgiram inicialmente no
Mediterrâneo e depois na Europa. As “cidades” são, portanto, definidas como: 1) aglomeração
urbana, com um mercado regular; 2) associação reguladora da economia; e 3) espaço dotado
de uma política de caráter institucional, com órgãos específicos. Weber irá aqui definir “tipos”
de cidades: a cidade de linhagens, a cidade plebéia e a cidade democrática, que estão em
direta relação com os tipos de pólis de The agrarian sociology of ancient civilizations: pólis
aristocrática, pólis hoplita e pólis democrática.
Em Economia e Sociedade, Weber afirma que a cidade nasceu, de fato, como uma
associação estamental dirigida por um círculo de honoratiores. A esses “portadores de honra”
que monopolizavam a administração da cidade, Weber chama de “linhagens” e, ao período de
sua influência, período da “dominação das linhagens”. Em The agrarian sociology of
ancient civilizations, o período de dominação das linhagens corresponde à pólis aristocrática.
O declínio do poder real inicialmente em áreas engajadas no comércio marítimo e, em
seguida, em áreas continentais, onde o desenvolvimento de mercadorias reais e séquitos tinha
sido mais baixo,166 possibilitou a acumulação de riquezas de clãs aristocráticos provenientes
do espólio e de lucros comerciais, investidos em terras e em um número maior de clientes.
Estas são as condições apresentadas em The agrarian sociology of ancient civilizations,
desenvolvidas posteriormente em Economia e Sociedade, para o nascimento da típica
“cidade aristocrática ou de linhagens”, em geral litorânea e centro do poder político e
econômico da nobreza. Composta por uma classe dominante guerreira detentora de terras
férteis e servos, a aristocracia urbana era uma liga de grandes clãs, a princípio uma classe de 166 ibid., p. 160.
81
credores e, posteriormente, proprietária de terras e vivendo de aluguéis, cujo governo era
exercido pelo primeiro inter pares ou por magistrados eleitos. A posição de poder social
dessas linhagens se “fundamentava em bens de raiz e não em rendas procedentes de um
empreendimento artesanal próprio.”167
As póleis gregas eram “‘primariamente’ comunidades de assentamentos fundadas por
guerreiros” 168 que possuíam castelos rurais, mas, em geral eram astoí, isto é, linhagens
residentes nas cidades. O essencial na constituição da pólis “era a confraternização das
linhagens em uma comunidade de culto: a substituição do pritaneu de cada linhagem pelo
pritaneu comum da cidade, onde os prítanes realizavam seus banquetes comuns.”169 Estas
associações cultuais eram rigorosamente exclusivas em relação aos estranhos. Quem quisesse
ser membro da cidade tinha que pertencer às fatrias e aos phyles.
O contraste entre interior e litoral é o primeiro de uma série de outros que vão aparecer
ao longo de sua análise nos dois textos. É no litoral que as condições para o desenvolvimento
do comércio, particularmente o marítimo, foram mais propícias, fato que é fortemente
acentuado em The agrarian sociology of ancient civilizations. O desenvolvimento do
comércio e as mudanças na tecnologia militar resultaram no crescimento de proprietários
fundiários com recursos suficientes para comprar armas e armadura hoplita. O perigo de
invasões estrangeiras levou o Estado a invocar constantemente esta classe para o serviço
militar e, como o serviço militar era privilégio dos economicamente capazes de se auto-
equiparem, a posse de terras tornou-se uma qualificação econômica para admissão à
comunidade. Para garantir a posição dos guerreiros na comunidade, os Kleros (lote de terras)
não podiam ser vendidos ou divididos em muitos Estados gregos. Tal proibição deve ter
forçado a escolha de um herdeiro principal. Tal fato formava o etos da classe militar, e seu
efeito era visto na condenação da venda de terras herdadas.170
O desenvolvimento do poder militar assumiu, nas poleis, diferentes características. Em
Esparta, os interesses militares alcançaram maior amplitude porque estavam apoiados por
uma economia natural, “alimentada” pela contribuição forçada de servos e escravos. Weber
afirma que, após a guerra do Peloponeso, a política militar de Esparta, inibidora das trocas
167 idem. A dominação não legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p.446.
168 ibid., p. 463. 169 idem, The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução FRANK, R.I. Londres e New York:
Verso, 1998, pp. 157-158. 170 ibid., p. 164-166.
82
comerciais, foi enfraquecida em razão da entrada de dinheiro e da criação de fortunas
privadas, que revolucionaram o consumo da casta dominante e minaram a base econômica do
sistema espartano.171 Considera, ainda, o “sistema militar feudal” de Esparta como atípico do
mundo grego, pois não se encontra em outros lugares uma igualdade tão intensa entre a classe
guerreira, obrigando-a, por exemplo, a sobreviver da produção de loteamentos de oito a doze
hectares trabalhados por hilotas. Enquanto Esparta, Creta e outros Estados “feudais” baseados
na conquista mantinham boa parte de sua população escravizada, outros desenvolveram a
servidão por débito, sem eliminar as relações de clientela.172Além dos escravos por débito, a
terra também era trabalhada por locatários. Havia duas classes de latifundiários: a dos
camponeses e a dos grandes proprietários de terras, gado e dinheiro. O endividamento da
primeira pela segunda foi um traço peculiar de toda a Antiguidade, caracterizando os grandes
conflitos sociais do mundo helênico.
A propriedade da nobreza era, sobretudo, de caráter senhorial-territorial, porém os clãs
aristocráticos das cidades gregas, especialmente das cidades costeiras, estavam, em geral,
envolvidos em frotas mercantes. Alguns chegaram a engajar-se diretamente no comércio
marítimo, como Sólon, possuíam grandes bens de produção de grãos e promoviam
empréstimos para os camponeses. Observa-se, portanto, que, apesar do comércio ainda não
predominar em relação à economia de troca, já era possível vislumbrar lucros comerciais
significativos do comércio marítimo.173 O poder senhorial-territorial das linhagens origina-se
em oportunidades lucrativas urbanas, e isto significa que o campo não tinha direito algum.
Quem não pertencia à camada guerreira urbana estava submetido ao senhor urbano em razão
da exclusão do poder político e jurídico.
Em Economia e Sociedade, deixando um pouco de lado a ênfase no papel do
comércio, Weber procura enfatizar os valores das linhagens que constituíam a classe de
rentistas, que, apesar de participarem de empreendimentos comerciais como donos de navios,
comanditários ou prestamistas de comerciantes marítimos, deixavam para outros os riscos, a
realização dos negócios e a viagem pelo mar. Eram, portanto, comerciantes ocasionais,
“financiadores”, que investiam sua propriedade em vários empreendimentos concretos, mais
preocupados com a direção teórica do negócio, proibidos, porém, pela etiqueta estamental, em
alguns casos juridicamente fixada, de assumirem a posição de empresário. Quem ultrapassava
o limite do investimento de bens pelo lucro capitalista era considerado um homem vulgar, já
171 ibid., p. 167-168. 172 ibid., pp. 168-170. 173 ibid., p. 172
83
que a avidez do lucro não era condenada, mas, sim, a sua forma racional, organizada em
empresas, e “burguesa” da atividade aquisitiva, isto é, a ocupação aquisitiva sistemática.174
Reside aqui a oposição com o ethos do capitalismo moderno.
No texto mais antigo, Weber afirma que o desenvolvimento do comércio marítimo
levou a uma crise dos Estados dominados pelos clãs aristocráticos nas cidades costeiras, tendo
contribuído para isso principalmente o incremento da economia monetária, que acarretou uma
diferenciação na renda, e o crescente endividamento do campesinato. Outros fatores também
contribuíram para essa crise: a servidão por débito, que se tornou gradualmente uma ameaça
militar ao poder político do Estado; o radicalismo a que se encaminharam os camponeses em
virtude da perda de direitos políticos e da degradação social; e o desenvolvimento, nas cidades
portuárias da costa, de uma nova classe ligada à indústria de exportação e ao comércio, fora
dos círculos tradicionais daqueles que viviam da terra, formando os setores que estavam
dispostos a derrubar os regimes aristocráticos.175 O comércio, portanto, aqui, começa a minar
o sustentáculo de poder das antigas aristocracias: a terra. Nessa análise, Weber se aproxima
muito de Meyer e se afasta dos primitivistas Rodbertus e Bücher.
Assim, a pólis aristocrática deu lugar a um novo “tipo”: a pólis hoplita, que, em
Economia e Sociedade, corresponde a um novo “tipo” de cidade, a plebéia, onde o domínio
dos clãs sobre a cidade e o campo foi derrubado por um movimento democrático dos cidadãos
não nobres. Na pólis hoplita, a cidadania ainda era condicionada pela propriedade de terra, o
exército era composto essencialmente pela “burguesia” rural, e os seus membros tinham que
prover seus equipamentos. O comércio não era totalmente livre, principalmente o terrestre, e a
expansão da propriedade de bens era bloqueada por limites estabelecidos sobre a quantidade
de terras e o número de escravos que um cidadão poderia possuir.176 Os camponeses e a
pequena “burguesia” capazes de se armarem ocupavam uma função militarmente
indispensável, reivindicavam o fim das formas de vendetas legais e da jurisprudência baseada
no costume e privilégio e demandavam a substituição dessas instituições por códigos legais e
uma administração de justiça igualmente útil para todos os cidadãos. Além disso, também
174 idem. A dominação não legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2. p. 466-468.
175 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R. I. Londres e New York: Verso, 1998. p. 173.
176 ibid, p. 174-175.
84
pressionavam pela eliminação da servidão por débito, pela limitação das taxas de juros e pela
restrição de hipotecas.177
A vitória desses setores significou a realização progressiva do caráter institucional da
associação política: o demos, que se torna subseção de todo o território e fundamento de todos
os direitos e deveres da pólis. Ao mesmo tempo, o direito tornou-se institucional para os
habitantes urbanos e, progressivamente, transformou-se em um direito estatuído,
fundamentado na aprovação daqueles para os quais valia, algo criado artificialmente, e a lei,
resultado da proposta de um cidadão. Atenas deu passos decisivos para a criação de um
direito racional, ao abolir instâncias de cassação religiosa e aristocrática; esse movimento
democrático não significou, entretanto,
a igualdade de todos os cidadãos em relação à capacidade de ocupar cargos ou participar no conselho ou ter direito de voto, nem sequer o acolhimento na associação dos cidadãos de todas as famílias pessoalmente livres e com direito de residência.178
Os cidadãos diferenciavam-se segundo as categorias eleitorais e a capacidade de
ocupar cargos de acordo com a renda do solo e a capacidade militar, posteriormente segundo
a fortuna.179
O resultado das reivindicações e das transformações a que nos referimos está contido,
em parte, no programa dos grandes reformadores, que procuravam suavizar ou remover os
débitos e deter os processos de diferenciação social. O programa mais ambicioso foi o de
Sólon, que cancelou todos os débitos (seissachteia) para os quais terras e pessoas tinham sido
oferecidas como garantia, além de liberar os servos áticos de débitos que tinham sido
vendidos no estrangeiro. Apesar disso, a política de Sólon para favorecer a exportação de
azeite e cerâmica e suas medidas para promover o comércio e proibir a exportação de grão
mostram que elas não foram tomadas para beneficiar o campesinato nem para impedir o
domínio das fatrias pelas antigas aristocracias.
Em Economia e Sociedade, Weber aponta a transformação da administração como
resultado do desenvolvimento democrático. Em lugar dos notáveis, aparecem os funcionários
do demos eleitos ou sorteados, para quem o exercício curto do cargo e a proibição de reeleição
177 ibid, p. 174. 178 ibid., p. 476. 179 ibid.
85
obstruíam a possibilidade de uma carreira profissional. Os cidadãos desempenhavam
atividades ocasionais, em que as receitas constituíam uma fonte de renda acessória: “Os
grandes cargos políticos, sobretudo os militares, estavam reservados aos cidadãos abastados,
pois demandavam tempo integral.”180 Tudo isto impedia a formação de uma burocracia nos
moldes modernos, resultando, diferentemente do que está em The agrarian sociology of
ancient civilizations, na ausência de um elemento positivo ao desenvolvimento do
capitalismo. Em The agrarian sociology of ancient civilizations, em que o Oriente é o
principal eixo comparativo, a ausência de burocracia é positivamente recebida; já em
Economia e Sociedade, esta ausência significa a falta de um elemento para se alcançar um
outro estágio mais complexo.
Também comum às cidades plebéias é o fenômeno da tirania urbana. Em geral, os
tiranos apoiavam-se em setores da classe média e nos atingidos pela usura e tinham como
adversários as linhagens, cujos representantes eram exilados e tinham suas terras confiscadas.
Algumas medidas dos tiranos são comuns àquelas dos legisladores. Ambos representavam a
economia citadina e seus interesses contra o monopólio do poder político dos antigos clãs
aristocráticos e do poder econômico das antigas e novas classes proprietárias de dinheiro e de
homens e, em regra geral, eram apoiados pelos camponeses. Daí a Lei de Periandro contra a
compra de escravos e a de Sólon contra a acumulação de terras.181 Enquanto algumas leis
limitavam a venda de terras para a cidade, isto é, para os aristocratas com interesses
especulativos ou para a revenda, alguns privilégios eram estendidos para metecos na indústria
da Ática, facilitando sua cidadania ou a compra de terra e permitindo a exportação de azeite,
mas não de outros produtos agrícolas. Todas estas medidas representam, para Weber, uma
política de caráter “pequeno-burguesa” muito mais do que de estrito favorecimento aos
camponeses. Um exemplo é a proibição de Periandro aos camponeses de usarem roupas
citadinas ou de emigrarem para a cidade, junto com os esforços de mandar para o estrangeiro
as massas rurais que se dirigiam para a cidade por débitos e desapropriação.182
Apesar do desenvolvimento dessas relações comerciais, Weber afirma em The
agrarian sociology of ancient civilizations que a pólis helênica da época pré-clássica até as
origens da democracia é de caráter feudal, particularmente em Esparta, onde o direito de
180 idem. A dominação não legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p. 477-478.
181 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R. I. Londres e New York: Verso, 1998. p. 176.
182 ibid., p. 176-178.
86
cidadania pressupunha o direito de portar armas e todos os cidadãos eram senhores territoriais
que fundamentavam seu poder nas mais diversas relações de clientela.183 A concessão de um
lote de terras (kleros) inalienável, combinada com o dever de serviço militar, desempenhava
um papel fundamental nesse “feudalismo urbano”, típico do modelo de Esparta. O feudalismo
ocidental contrastava com as burocracias orientais, de caráter político extremamente
centralizado. Não obstante, em Economia e sociedade, Weber iria coadunar os elementos da
dominação tradicional com aspectos da dominação carismática encontrados novamente nos
poemas homéricos. A relação dos heróis homéricos com a divindade e o papel de Aquiles são
aspectos característicos deste tipo de dominação. Esta ancestralidade divina dos heróis é o
aspecto anticotidiano desta forma de dominação, que não rejeitava donativos e outras formas
voluntárias de contribuição. Portanto, todo este período apresenta traços da dominação
tradicional e, de forma mais atenuada, da dominação carismática.
Com as medidas de Clístenes, quando se fez uma nova divisão territorial do Estado,
minando o poder territorial dos grandes clãs aristocráticos – aumento do comércio marítimo,
fim da inalienabilidade da venda e hipotecas de terras e fim das barreiras na posse de
escravos, – ocasionando o aumento do afluxo de escravos comprados, abre-se a possibilidade
para o surgimento de uma
nova classe de cidadãos com “plenos” direitos, descendentes de famílias de cidadãos “plenos”, mas que, economicamente arruinados, endividados, sem propriedade alguma e incapazes de equipar-se para o serviço militar, esperavam de uma revolução ou da tirania a redistribuição dos bens de raiz, a remissão de suas dívidas ou sua sustentação por meios públicos.184
Estas transformações deram origem a um novo “tipo” de pólis: a democrática cidadã
ou a um novo “tipo” de cidade: a democrática. Tanto em The agrarian sociology of ancient
civilizations como em Economia e Sociedade, este novo tipo é caracterizado por uma
transformação fundamental no desenvolvimento dos tipos até então investigados: a irrupção
do capitalismo, ou melhor, de um tipo particular de capitalismo, o político, característico do
mundo antigo.
183 ibid., p.288. 184 idem. A dominação não legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p.495.
87
O fenômeno do capitalismo esteve no centro das preocupações da sociologia
econômica de Max Weber. A diversidade das causas e as distintas tendências típicas de
orientação das atividades aquisitivas, que não cessavam de intervir no curso de seu
desenvolvimento histórico, são os argumentos que o levaram a acreditar que não havia um
capitalismo, mas capitalismos, daí não ser possível reduzi-lo a uma fórmula. Weber, em
diversos trabalhos, definiu os elementos constitutivos da estrutura capitalista, fundamentais
para seu entendimento: empresa e gestão econômica. A empresa é uma “categoria técnica que
designa a forma em que estão continuamente coordenados determinados serviços de trabalho
entre si e com os meios de obtenção materiais.”185 Gestão econômica “é o exercício pacífico
do poder de disposição que primariamente é economicamente orientado,”186 isto é, uma ação
que se refere, quanto ao seu sentido, à satisfação do desejo de obter certas utilidades.
Encontramo-nos diante do capitalismo quando em “uma economia de produção a satisfação
das necessidades de um grupo humano se faz por intermédio da empresa, pouco importando a
natureza das necessidades a satisfazer.”187 Tais elementos constitutivos permitiram a Weber
afirmar que houve embriões ou formas de capitalismo: ora aventureiro, ora mercantil,
orientado para a guerra, para a política ou para a administração, na China, na Índia, na
Babilônia, na Antiguidade Clássica e na Idade Média. Se àqueles traços, porém, forem
acrescentados outros elementos constitutivos, por exemplo, a empresa capitalista racional, ou
seja, aquela baseada no cálculo de capitais, associada às previsões de um mercado regular e à
organização capitalista do trabalho (formalmente) livre, bem como uma distribuição de
serviços orientada puramente pelos princípios da economia de troca, então estamos diante de
um tipo particular de capitalismo: o capitalismo moderno ocidental. Em outras palavras, toda
sociedade capitalista apresenta singularidades que não encontramos em outras sociedades do
mesmo tipo.
Em The agrarian sociology of ancient civilizations, Weber levanta as seguintes
questões para explorar e entender o capitalismo do período clássico: 1. Qual o efeito do
comércio livre na Grécia, onde os direitos democráticos não dependiam da propriedade da
terra, que tinha se tornado em grande parte inteiramente transferível e livre de qualquer
vínculo? 2. Qual o caráter e o significado da escravidão no período clássico? A abolição da
escravidão por dívidas, ainda no estágio hoplita, contribuiu para a criação de condições para o
185 WEBER, M. categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica. In: _______. Economia e
sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 1999. p. 37-138. 186 ibid., p. 37. 187 WEBER, M. Apud FREUND, J. A sociologia de Max Weber. Tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa,
3a edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980. p. 127.
88
desenvolvimento do “capitalismo”, pois propiciou a substituição do escravo por dívidas por
escravo comprado.188 Em Economia e Sociedade, o autor enfatiza o papel da esfera política
sobre o “capitalismo antigo”. Cabe-nos ainda observar que, em sua análise da pólis
democrática cidadã, Weber freqüentemente opera com dois tipos de comparação: a Roma
Antiga e a Idade Média.
A limitação absoluta na venda de loteamento, a proibição de acumular propriedade e a
limitação em dividir e hipotecar propriedades caíram quando a defesa foi confiada a
mercenários. Weber compara, em The agrarian sociology of ancient civilizations, as
condições gerais gregas com a romana e se pergunta se estas transformações promoveram o
tipo romano de concentração de terras e formação de grandes empresas de trabalho escravo.189
Diferentemente do caso romano, não havia na Grécia Antiga grandes edifícios em áreas rurais
em virtude da participação política que levou os camponeses a se transferirem da zona rural
para a cidade. Os capitalistas de cidades costeiras tinham propriedades fundiárias, mas eram
investimentos e estavam em parcelas separadas, não se constituindo, portanto, em domínios
feudais. Dispersas também estavam as propriedades das linhagens, com a divisão territorial
em demoi ou tribus, o que contribuiu para o enfraquecimento de seu poder político, uma vez
que as linhagens não poderiam fazer valer seu poder de forma integral, mas apenas dentro dos
demoi. Mas, se depois do século V, a terra ática podia ser vendida e hipotecada à vontade, era
negado a todos os não-cidadãos o direito de possuir terras e de negociar com hipotecas.190 Eis
aí a permanência de um traço estamental da corporação de guerreiros.
Nos demoi, um quarto dos cidadãos não tinha nenhuma propriedade fundiária, e eram
poucas as posses com mais de cinqüenta hectares de extensão para o cultivo de oliva.
Outrossim, as posses deixadas em arrendamento hereditário eram, geralmente, fazendas de
tamanho médio, e as maiores eram encontradas somente em áreas onde novas terras eram
divididas. Portanto, no século V e IV a.C., não houve tendência à concentração de posse de
terras, e o estilo prevalecente de vida grego foi marcado por grande simplicidade.191
Para compreender as mudanças de abordagem de Weber sobre o tema da escravidão
ao longo do tempo, é necessário retornar ao seu primeiro trabalho sobre a História Antiga, Die
sozialen Gründe des Untergangs der antiken Kultur (As causas sociais do declínio da
188 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R. I. Londres e New York:
Verso, 1998. p. 75. 189 ibid., p. 189-190. 190 ibid., p. 191. 191 ibid., 199-200
89
cultura antiga), publicado em 1896. Nesse trabalho, em que Weber afirma que “a cultura
antiga é uma cultura escravista,”192 a escravidão é o elemento fundamental do caráter distinto
da civilização antiga, e o oikos escravista o centro das relações econômicas antigas. Sob a
influência de termos utilizados por Marx, Weber afirma que, sob a superestrutura comercial,
insere-se uma infra-estrutura em constante expansão, dedicada ao consumo não comercial:
“os conjuntos de escravos que absorviam sem cessar os homens, cujas necessidades não se
satisfaziam comprando no mercado, mas no interior do próprio domínio econômico.”193 É um
texto francamente “primitivista”, em que o autor faz questão de afirmar as especificidades da
cultura antiga.
Já em The agrarian sociology of ancient civilizations, a escravidão é vista como um
entre muitos outros traços distintivos de certas épocas da Antiguidade e, cedendo às pressões
modernistas, Weber não subestima a importância do trabalho livre. Na pólis democrática
cidadã, com o aumento da escravidão houve uma depreciação do salário dos trabalhadores
livres, os quais, em geral, recebiam do Estado o mesmo salário dos escravos. Esta visão de
uma concorrência entre o trabalho livre e escravo é uma influência de Meyer. Segundo
Weber, o Estado nunca se preocupou em assegurar exclusividade para os trabalhos públicos,
em primeiro lugar porque os artífices nativos não eram suficientes para a demanda de grandes
projetos de Estado e, depois, porque os proprietários de escravos lucravam com o emprego de
sua mão-de-obra escrava recebendo parte de seus rendimentos. Assim, o aumento de
produtividade do escravo significava aumento dos ganhos dos proprietários. A tendência aos
baixos salários foi resultado do baixo padrão de vida ao qual eram reduzidos os escravos, na
maioria das vezes, ao mínimo essencial para sua subsistência.194 Tal situação também
enfraqueceu a demanda do consumo, pois como o vestuário e a alimentação do escravo eram
comprados no mercado e exigiam pouco grau de satisfação, não havia estímulo ao
desenvolvimento do mercado.
O uso “industrial” do trabalho escravo foi promovido por importadores de matérias-
primas, não havendo, com o desenvolvimento de atividades industriais associadas ao trabalho
escravo, o desenvolvimento da tecnologia e organização da produção. Os escravos
“industriais” representavam uma forma de investimento de capital, passavam de senhor para
senhor por meio de compra, hipoteca e aluguel ou em grandes unidades de produção. O 192 WEBER, M. As causas sociais do declínio da cultura antiga. In: COHN, G. (org). Max Weber. Rio de
Janeiro: editora Ática, 2004. p. 41. 193 ibid., p. 42 194 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução FRANK, R. I. Londres e New York:
Verso, 1998. p. 202-204.
90
postulado do atraso e da ineficiência do trabalho escravo em relação ao trabalho assalariado já
está presente em The agrarian sociology of ancient civilizations, pois, segundo Weber, não
houve na Grécia, assim como em toda a Antiguidade, o uso de métodos para organizar a
produção com o fim de conseguir melhores, maiores e mais organizadas unidades de
produção. O trabalho escravo não foi adaptado para tal objetivo porque não havia um mercado
consumidor crescente para mercadorias industrialmente produzidas.195
Segundo Weber, as inovações tecnológicas foram poucas na Antiguidade e estavam
restritas à agricultura no interior e à tecnologia militar e de construção. Junto a isto, os
proprietários de escravos foram afetados pelas extraordinárias variações do mercado,
particularmente as freqüentes guerras, e pelo custo de manutenção dos escravos. Dessa forma,
os proprietários queriam sempre dividir as propriedades, preferencialmente alugando-as, ou
convertendo-as em dinheiro de outros modos. Era, portanto, um locador, não um
empresário.196
Em Economia e Sociedade, na seção sobre as categorias fundamentais da gestão
econômica, Weber contrapõe a grande empresa capitalista escravista, com limites ao
desenvolvimento de uma empresa capitalista com o grau de divisão e organização do trabalho
alcançado na modernidade, à racionalidade produtiva do capitalismo moderno. Assim, a
escravidão aparece como um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo nos moldes
modernos. Em primeiro lugar, porque “significa uma limitação do livre recrutamento da força
de trabalho e, portanto, de seleção segundo o máximo de rendimento técnico dos
trabalhadores e, por conseguinte, uma limitação da racionalização formal da gestão
econômica.”197 Toda tentativa de fomentar um incremento de rendimento técnico esbarrava
no pouco interesse dos escravos mais preocupados em conservar a situação de vida
tradicional. Eis aí os motivos de os escravos, em geral usados na agricultura extensiva, não se
interessarem pelo avanço tecnológico ou pelo aumento quantitativo ou qualitativo da
produção. Weber contrapõe esta situação restritiva à das fábricas modernas, em que o
recrutamento é “livre”, enquanto naquela era politicamente condicionada. Por outro lado,
estava vedada a possibilidade de demissão.
195 ibid., p. 208. 196 ibid., p.104-111. 197 idem. Categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica. In: Economia e sociedade: Fundamentos
da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v 1, p. 83
91
Na seção sobre as “tipologias das cidades”, Weber destaca a falta de especialização da
mão-de-obra servil na agricultura extensiva, nas minas e nos quartéis como um obstáculo a
qualquer tipo de coordenação precisa de operações diferenciadas, elemento essencial da
produção industrial moderna. Apesar de falar em empresa capitalista escravista, Weber
destaca o papel dos escravos como fonte de renda para seus senhores, parecendo ser esta
modalidade de exploração muito mais importante no contexto da economia antiga do que
aquela diretamente voltada para o processo produtivo. Tanto assim que Weber destaca a
ascensão da servidão à liberdade, pela atividade aquisitiva no regime de economia monetária,
como um elemento constituinte da cidade ocidental.198
Finalmente, a influência da política no capitalismo antigo. Para entendermos as
características desse “tipo” de capitalismo, é necessário esclarecer a definição de
racionalidade e irracionalidade na sociologia weberiana e sua relação com o capitalismo
moderno. Os escritos sobre esse tema estão espalhados em vários textos produzidos em
épocas diferentes. Em Ética protestante e o espírito do capitalismo, escrito entre 1904 e
1905, e em Economia e sociedade, é possível perceber que Weber define o racionalismo em
direta conexão com o capitalismo moderno. No capítulo II de Ética protestante e o espírito
do capitalismo, intitulado O espírito do capitalismo, Weber afirma que a ausência de um
ethos direcionado para a acumulação indefinida de mais dinheiro, com uma economia estrita
que calcula a possibilidade de altos rendimentos, combinada com o afastamento de todo gozo
espontâneo da vida, no qual o trabalho deve ser executado como um fim absoluto por si
mesmo – como uma vocação –, caracteriza os sentimentos éticos de épocas anteriores ao
surgimento da sociedade capitalista moderna. Para superar esses obstáculos, as forças
motivadoras da expansão do capitalismo moderno tiveram que instituir um novo espírito, que
de forma alguma foi pacífico. Tal espírito, alicerçado em uma economia capitalista
individualista, racionalizada no cálculo rigoroso e direcionada para o sucesso econômico
contrastava com o tradicionalismo do artesão da guilda ou do capitalismo orientado pela
exploração de oportunidades políticas e especulação irracional.199
Segundo Freund, a passagem do tradicionalismo para o racionalismo é o marco divisor
para o surgimento da ética capitalista. Apesar de afirmar que se pode racionalizar a vida de
pontos de vista fundamentalmente diferentes, Weber está interessado em entender a lógica de 198 idem. A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 427.
199 WEBER, M. O espírito do capitalismo. In: A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Editora Pioneira, 1999. p. 28-51.
92
“um” racionalismo, que está associado ao surgimento da sociedade capitalista moderna,
vendo-o como o “resultado da especialização científica e da diferenciação técnica peculiar à
civilização ocidental”.200 É o predomínio da previsão sobre qualquer poder misterioso e
imprevisível no curso da vida. Uma gestão econômica é “formalmente” racional quando se
exprime em considerações de caráter numérico e calculável, isto é, com referências afins e de
acordo com um plano. A troca nem sempre é determinada por motivos racionais, podendo
também ser determinada pela tradição. Quando serve para fins de abastecimento em produtos
de necessidade cotidiana, em geral, em condições individualmente determinadas, assume um
caráter irracional, porém, quando orientada para o abastecimento de um ou vários
participantes com determinado bem, ou por oportunidade de lucro no mercado, assume caráter
racional.201 Nesse sentido, temos mercado quando
pelo menos por um lado há uma pluralidade de interessados que competem por oportunidades de troca. Quando estes se reúnem em determinado lugar, no mercado local, no do comércio a grande distância (anual, feira) ou no de comerciantes (bolsa), temos apenas a forma mais conseqüente da constituição de um mercado, sendo esta, no entanto, a única que possibilita o pleno desdobramento do fenômeno específico do mercado: o regateio.202
Também própria da gestão aquisitiva (um comportamento orientado pelas
oportunidades de ganhar novos poderes de disposição sobre bens) de caráter racional é o
cálculo de capital, que
significa avaliação e controle de oportunidades e resultados da gestão aquisitiva, comparando-se, por um lado, a importância estimada em dinheiro de todos os bens de aquisição....ao fim da respectiva atividade, ou no caso de um empreendimento aquisitivo contínuo, com referência a um período de cálculo, mediante balanço inicial e final.203
200 FREUND, J. op. cit., p. 19. 201 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 44. Na página 52, Weber também utiliza o conceito de racionalidade material, que ele mesmo admite ser inteiramente vago. Assim ele define tal racionalidade: “seus diversos significados só têm uma coisa em comum: que a consideração não se satisfaz com o fato puramente formal e (relativamente) inequívoco de que se calcula de maneira racional, com vista a um fim, e com os meios tecnicamente mais adequados possíveis, senão que estabelece exigências éticas, políticas, utilitaristas, hedonistas, estamentais, igualitaristas ou outras quaisquer, e as toma como padrão dos resultados da gestão econômica – por mais racional, isto é, de caráter calculável, que esta seja do ponto de vista formal -, procedendo assim de modo racional, referente a valores com racionalidade material referente a fins”.
202 ibid., p. 419. 203 ibid., p. 51
93
Mercado e moeda são, portanto, elementos indissociáveis para se alcançar a
racionalidade econômica: a introdução da moeda torna as relações no mercado mais
impessoais, dispensando o conhecimento entre os parceiros. Weber deixa claro que
impessoalidade e lucro constituem uma ética estranha a qualquer tipo de fraternidade e
devoção entre as comunidades humanas, mas são características do mercado, definidas por ele
como objetividade do mercado, que se confunde com racionalidade.
A ampliação da liberdade formal de mercado e a universalização das trocas mercantis
contrapõem-se ao monopólio e a qualquer tipo de limitação. Por outro lado, apesar de Weber
falar em liberdade de mercado, “o grau de autonomia de cada um interessado na troca, dentro
da luta de preços e de concorrência,”204 ele também pressupõe regulamentação do mercado,
isto é, uma garantia jurídica que assegure as condições de regularidade das permutas. Sem a
“quantificação de ordem monetária e sem a regulamentação jurídica, o mercado não seria
possível.”205 Portanto, o mercado pressupõe a existência de condições que viabilizem a troca
como um meio mais racional de orientação econômica. Desta forma, a regulamentação à qual
Weber se refere é aquela orientada para garantir o máximo de lucro possível das empresas
capitalistas. As outras regulamentações são de caráter irracional.
Outro elemento constituinte da racionalidade econômica capitalista é a técnica, que
assume caráter racional pelo princípio do “esforço mínimo”, isto é, “aplicação de meios que,
consciente e planejadamente, está orientada pela experiência e pela reflexão, e em seu
máximo de racionalidade, pelo pensamento científico.”206 Tal princípio deve dar margem
também a uma mecanização considerável tanto na produção, quanto na circulação de bens.
Finalmente, a liberdade do mercado também pressupõe a liberdade do trabalho, “no
sentido em que os indivíduos que vendem suas capacidades não o façam somente por
obrigação jurídica, mas por motivos econômicos.”207 Tal fator está associado à apropriação de
todos os meios materiais de todas as espécies e à especialização interna dos serviços.
Em Economia e sociedade, Weber compara o desenvolvimento econômico e político
do Mundo Antigo com a Idade Média e os Tempos Modernos, demonstrando que um
primeiro elemento diferenciador da política da pólis democrática cidadã grega em relação à
Idade Média é a ausência de corporações. A presença de escravos trabalhando lado a lado
204 ibid., p. 50. 205 FREUND, J. Op. Cit., p. 122. 206 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 38. 207 FREUND, J. op. cit., p. 127.
94
com os trabalhadores livres nas construções públicas, nos ergastérios e no abastecimento do
Estado, impedia a formação de uma corporação de artesãos livres com reivindicações políticas
e econômicas capazes de satisfazer as necessidades estatais. Diferentemente da Idade Média,
a cidade democrática estava dividida em demoi. “A fundamentação exclusiva da organização
política sobre comunidades locais e, sobretudo, a extensão destas a toda região rural
integrante do domínio político da cidade”208 era um traço específico da pólis democrática da
Antiguidade.
Se na Idade Média, predominavam os interesses dos grandes empresários burgueses e
dos artesãos capitalistas, essencialmente urbanos, reunidos em corporações, interessados no
comércio e no artesanato, na Antiguidade predominavam os interesses dos camponeses,
constituintes do exército hoplita, empenhados na conquista de terras para o cultivo, e da
pequena burguesia, interessada em rendas diretas ou indiretas procedentes dos territórios
dependentes, isto é, subsídios financiados pelo Estado com impostos dos súditos. Além disso,
a ocupação dos cargos da administração distribuídos pelos diversos demoi, significou, em
tese, uma ascensão política dos camponeses, e não da burguesia urbana. Em tese, porque a
relação do cidadão com seu demos era hereditária, não o obrigando a residir na localidade de
seu demos,209 “independente do lugar de residência, da propriedade de terras e da profissão,
do mesmo modo que se nascia como membro da fatria e do clã.”210
A política de cidade antiga estava a serviço de um demos, ansioso por obter benefícios
com os tributos e com a pilhagem dos territórios conquistados. A corporação dos cidadãos
interferia em todas as esferas da vida dos indivíduos, diminuindo a força combativa dos
cidadãos: na esfera econômica, penhorava aos credores, em caso de dívida, a propriedade
particular, colocando a “mão” em todos os patrimônios do cidadão, gerando instabilidade na
formação dos patrimônios. A uma crise política, poderia haver fuga de escravos, um dos
componentes principais dos patrimônios. As guerras eram elementos desestabilizadores dos
investimentos, que se concentravam na aquisição de terras (internas e no exterior), de pessoas,
de navios e na participação com capital no comércio marítimo. Tudo isso leva Weber a
concluir que “um demos deste tipo jamais poderia estar primariamente orientado no sentido de
atividades econômicas pacíficas e de uma gestão econômica racional.” 211
208 idem. A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p. 498.
209 ibid., p. 496-501. 210 ibid, p.501. 211 ibid, p. 511.
95
Dessa forma, o desenvolvimento democrático não persegue uma autêntica política
industrial de produtores, mas, sim, dos consumidores urbanos preocupados com as
necessidades do Estado. Não obstante, as medidas ocasionais do Estado grego para favorecer
produções para exportações não estavam relacionadas com ramos de produção industrial, e,
em nenhum lugar, dominavam os interesses de produtores na política da cidade antiga. Os
rumos da política eram decididos pelos patrícios urbanos senhoriais-territoriais, interessados
no comércio marítimo e na pirataria, capazes de auto-equipamento militar, pelos donos de
dinheiro e de escravos e pelas camadas pequeno-burguesas urbanas interessadas “nas
necessidades do Estado e na pilhagem no papel de grandes ou pequenos empresários,
rentistas, guerreiros e marinheiros.”212
Em relação ao capitalismo, Weber rechaça qualquer possibilidade de encontrar na
Antiguidade, de forma dominante, uma empresa capitalista de larga escala, baseada no
“trabalho livre” assalariado, elemento que, como já vimos, é fundamental na constituição da
economia capitalista moderna. Weber não adota um tipo histórico único para o conceito de
capitalismo, isto é, aquele relacionado com capitalismo moderno, mas o define de modo mais
amplo, cujo raio cronológico se estende para além do mundo moderno, não o limita, portanto,
a uma forma simples de valorização de capital, ou seja, à exploração do trabalho sobre uma
base contratual. Se na definição de capitalismo, fossem levados em conta somente fatores
econômicos – como, por exemplo, a existência da propriedade como objeto de negócios,
utilizada por indivíduos com fins lucrativos em uma economia de mercado –, então, seria
possível afirmar que o mundo antigo, principalmente no período clássico, teria sido moldado
pelo capitalismo,213 embora não o mesmo dos tempos modernos, mas um capitalismo
específico, com características próprias.
Na Ática e em outros Estados gregos, as relações econômicas capitalistas assumiram
as seguintes características: 1) os templos eram as fontes normais de empréstimos do Estado,
em vez das fontes privadas, predominantes no período helenístico; 2) as cidades eram
dominadas por locadores (rentiers). Os ricos tiravam suas receitas de aluguéis de terras,
escravos e juros, todos dependentes do comércio; 3) o comércio marítimo era a fonte mais
importante da nova riqueza privada, apesar de limitado em volume; 4) houve aumento das
trocas de produtos agrícolas e de minério, mas decadência da posição social e econômica do
artífice, que tinha de competir com trabalhadores escravos, que recebiam baixos salários; 5) o
212 ibid, p.503. 213 idem. The Agrarian sociology of ancient civilizations. Tradução de FRANK, R. I. Londres e New York:
Verso, 1998. p. 48-50.
96
capitalismo e os mecanismos de troca dependentes do capitalismo estavam circundados por
um passado distante imerso em um “mar de tradicionalismo”; e 6) a orientação “política”
predominava nas atividades econômicas.
Este “capitalismo político” assume um caráter irracional, pois, em razão desta
orientação, as atividades aquisitivas são inibidas, e o cálculo e a acumulação não são objetivos
a serem perseguidos a qualquer custo. A teoria política antiga era hostil ao lucro, pois se
baseava no ideal do “cidadão independente” e nas idéias de igualdade entre os cidadãos e
autarquia da pólis. Daí o baixo status dos homens engajados no comércio – com exceção
daqueles envolvidos no comércio marítimo – traduzido na inelegibilidade para os cargos
públicos.214
Diferentemente da racionalidade da produção capitalista, as possibilidades aquisitivas
no Mundo antigo direcionavam-se para “fornecimentos do Estado, para a expansão política e
conquista de escravos, terras, tributos e privilégios para a aquisição de terras e empréstimos
sobre estas, além do comércio e fornecimento nas cidades submetidas.”215 Ao contrário da
cidade especificamente medieval – continental, burguesa e industrial – orientada por
interesses econômicos, a pólis antiga mantém seu caráter de associação guerreira, gerando um
homo politicus, e não um homo oeconomicus.
A cidade específica da Antiguidade, suas camadas dominantes, seu capitalismo, os interesses de sua democracia, todos estes fatores estão primariamente orientados para aspectos políticos e militares e isto tanto mais quanto mais se destaca o caráter específico da Antiguidade.216
Convivendo com os interesses dominantes, havia uma camada social, os libertos, com
atividades aquisitivas muito mais próximas da burguesia da Idade Média e dos Tempos
Modernos. Pelo fato de estarem impedidos de ocupar cargos e posições reservados aos
cidadãos, concedidos pelo Estado ou de outro modo politicamente condicionados, em
particular pela aquisição de bens de raiz e, com isso, a posse de hipotecas, os libertos estavam
excluídos do capitalismo antigo, politicamente orientado, no qual prevaleciam os interesses
214 ibid, p. 66. 215 idem. A dominação não-legítima (tipologia das cidades). In: Economia e sociedade: Fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p. 500.
216 ibid., p. 504.
97
dos cidadãos plenos, que monopolizavam as rendas politicamente condicionadas.217
Concomitantemente, as cidades helênicas procuravam atrair os forasteiros para arrendamento
de seus fornecimentos, construções e impostos.
Assim, Weber procura demonstrar, particularmente em Economia e sociedade, que a
forma de dominação política em que preponderavam os valores (ethos) de um estamento
guerreiro criava obstáculos ao desenvolvimento das atividades econômicas racionais. Esta
idéia não está ausente em The agrarian sociology of ancient civilizations, contudo, aqui,
Weber procura acentuar o papel pioneiro da pólis na formação de um tipo de capitalismo em
contraposição ao do Oriente, como um estágio de desenvolvimento histórico “avançado”,
enquanto, em Economia e sociedade, o capitalismo representa um momento ainda
embrionário em relação ao capitalismo moderno.
Ao investigar mais atentamente os trabalhos de Weber sobre a Grécia Antiga à luz de
seu instrumental teórico, contextualizando-os no interior dos debates nos quais eles foram
produzidos, percebemos que, particularmente em The agrarian sociology of ancient
civilizations, diminui bastante a distância entre o seu ponto de vista e o dos “modernistas”:
Eduard Meyer enxerga um desenvolvimento homólogo entre o Mundo Antigo e os Tempos
Modernos, contrapondo-se às idéias de Bücher de um evolucionismo linear. Weber também
se opõe a este evolucionismo, em ambos os textos analisados, ao apontar características
dominantes de relações “feudais” até o surgimento da pólis e, posteriormente, “capitalistas”,
sob o domínio da pólis, na Grécia Antiga. Em The agrarian sociology of ancient
civilizations, o oikos deixa de ser a característica dominante de toda a Antiguidade. Foi
possível a Weber encontrar na Antiguidade relações econômicas que foram predominantes em
períodos posteriores. Weber cedia às críticas modernistas aos estágios de desenvolvimento
econômico de Bücher e Rodbertus, embora diferentemente de Meyer, procurasse estabelecer
um caráter específico para o feudalismo e o capitalismo antigos, segundo ele, não eram os
mesmos de períodos posteriores. Esta especificidade, contudo, muda de perspectiva nos dois
textos aqui investigados, por não ter o mesmo eixo comparativo: no primeiro, o capitalismo é
analisado como resultado do desenvolvimento histórico inovador em relação às realezas do
Oriente, vistas, em razão da sua burocracia e estatização, como obstáculos ao livre
desenvolvimento do feudalismo e capitalismo. O autor procura acentuar os aspectos positivos
desse desenvolvimento em detrimento das burocracias sufocantes do Antigo Oriente Próximo,
comparadas à Prússia moderna e aos ideais socialistas, aos quais Weber era extremamente
217 ibid., p. 509.
98
crítico; no segundo texto, o capitalismo antigo é primordialmente, mas não unicamente,
comparado ao capitalismo moderno, com acentuado caráter irracional. A ausência da
burocracia aqui, diferente do que se viu no primeiro texto, é um traço da ausência de
racionalismo do capitalismo antigo. É um capitalismo permeado por valores tradicionais, no
qual o ethos de um estamento guerreiro é dominante e impede qualquer avanço em direção
aos valores do capitalismo moderno. Portanto a especificidade do caráter do capitalismo deve
ser relativizado, pois está inserido, nos textos analisados, em contextos diferentes.
A grande contribuição de Weber em relação à controvérsia do oikos é o
redirecionamento do caráter “primitivo” do mundo antigo, deslocado do oikos, segundo ele,
agora predominante no Oriente, para a pólis. Este redirecionamento levou-o a explorar os
traços distintivos da organização política da cidade-Estado para caracterizar suas formas de
dominação e seu capitalismo. A sua preocupação obsessiva com a racionalidade burocrática,
em Economia e Sociedade, como característica definidora do mundo moderno, limitou seu
interesse e obscureceu sua visão da Antiguidade, dificultando uma melhor construção das
especificidades históricas daquela realidade. Na verdade, Weber abriu um caminho a ser
explorado por aqueles que queriam trilhar pelas pegadas do primitivismo, sem continuar nas
teias do evolucionismo linear de Bücher e Rodbertus. É por este caminho que Hasebroek irá
seguir. Mantendo, assim como Weber, a pólis no centro de sua argumentação, este autor irá
desferir um feroz ataque aos modernistas, procurando mostrar que a política da cidade-Estado
grega não guardava nenhuma semelhança com o desenvolvimento político dos Estados
nacionais modernos.
3.3 JOHANNES HASEBROEK E O NEOPRIMITIVISMO
Johannes Hasebroek, um dos historiadores alemães mais distintos e criativos da
História social e econômica grega do século passado, nasceu em Hamburgo em 14 de abril de
1893 e morreu em 17 de fevereiro de 1957. Como estudante universitário e sob influência de
Geschichte des Altertums de Eduard Meyer, Hasebroek aprofundou seus estudos em
História Antiga, filologia clássica e arqueologia. De 1916 a 1921, Hasebroek dedicou-se ao
estudo do imperador Sétimo Severo. Na Universidade de Berlim, entrou em contato com
sábios que o iriam influenciar em suas novas investidas. Dentre eles está o economista Werner
Sombart. Já em 1920, Hasebroek publicou um artigo sobre transações bancárias e banqueiros
gregos. Um segundo artigo, em 1921, versava sobre o comércio grego. Apesar de ainda evitar
99
grandes generalizações, estes trabalhos já apresentam o interesse pela economia antiga. Em
1926, em uma conferência sobre o imperialismo antigo, revela-se o impacto das tipificações e
conceitualizações histórico-sociológicas de Weber sobre suas reflexões. Esta influência
cristaliza-se nos dois grandes trabalhos posteriores. O primeiro grande livro Staat und
Handel im alten Griechenland, de 1928, já como professor da Universidade de Colônia,
sobre comércio e política na Grécia Antiga, enfatizava a tendência dos anos de Weimar, a
nova ciência social. Este livro reacendeu a polêmica entre “modernistas” e “primitivistas”, e
apesar da sólida base filológica, recebeu críticas pela visão unilateral em relação ao papel do
comércio. O livro foi muito bem recebido na Inglaterra, e recebeu uma tradução em 1933,
com o título de Trade and Politics in Ancient Greece, sendo recomendado como leitura
obrigatória para estudantes de História Antiga grega até os anos 50. Algumas das deficiências
deste estudo foram remediadas em seu livro posterior, Griechische Wirtschafts-und
Gesellschaftsgeschichte bis zur Perserzeit, de 1931, no qual enfatizava a utilidade dos
conceitos weberianos para a estrutura da economia e da sociedade gregas desde épocas
homéricas até o final das guerras persas. O tempo mostrou que apesar de sua morte prematura
e melancólica, afastado da academia por problemas de saúde, seus trabalhos tornaram-se uma
fonte altamente recomendável para todos aqueles que se interessam pela sociedade grega do
período arcaico ao clássico primitivo e pela natureza da economia antiga.218
Os trabalhos de Max Weber sobre a Grécia antiga contribuíram para reorientar as
abordagens acerca da cidade-Estado antiga. Enquanto Weber estava preocupado em
desvendar as diversas formas de dominação das “típicas cidades” antiga, Hasebroek procura
estabelecer a relação do Estado grego com o comércio em todas as suas formas e atividades,
além de descrever sua política comercial. Porém, o papel da cidade-Estado e os meios de
dominação não estão ausentes da análise de Hasebroek, contudo, assumem uma sutil
diferença em relação ao modelo de dominação da cidade-Estado weberiana. Tentaremos aqui
relacionar e perceber os pontos em que Hasebroek aprofunda sua convergência com Weber
acerca do poder da cidade-Estado, e quais são os pontos em que se distancia do modelo
weberiano.
218 BRIGGS, W. W., e WILLIAM, M. C. (eds). Classical Scholarship: A Bibliographical Encyclopedia. New
York: Garland, 1990. p. 142-151.
100
3.3.1 Estado, Política e Comércio
Inicialmente, faz-se mister retomar as definições de Weber sobre “Estado” e
“Política”. Como já dito anteriormente, o Estado moderno e toda associação política são
definidos por um meio específico: a coação física. Todo Estado pressupõe um território, no
qual o Estado reclama para si o monopólio da coação física legítima. “Política” é a “tentativa
de participar no poder ou de influenciar a distribuição do poder, seja entre vários Estados, seja
dentro de um Estado entre os grupos de pessoas que este abrange.”219 Tanto o Estado quanto
as associações políticas historicamente precedentes se constituem em uma associação de
dominação de homens sobre homens, amparada por justificativas internas, isto é, por
princípios de legitimidade tradicional, carismática e ou legal. Outrossim, a forma de
manifestação externa da organização de dominação política, o quadro administrativo, não está
ligado ao detentor do poder por estes princípios de legitimidade, mas sim, por interesses
pessoais: recompensa material e honra social. Além disso, para a manutenção de toda
dominação são necessários certos bens materiais externos. As ordens estatais são classificadas
de acordo com dois princípios: o primeiro é aquele no qual os funcionários, ou outro tipo de
pessoas com cuja obediência precisa poder contar o detentor do poder, são proprietários dos
meios administrativos – dinheiro, prédios, material bélico, carros, cavalos ou outras coisas
quaisquer. Já o segundo princípio é aquele no qual o quadro administrativo está separado dos
meios administrativos, pois o detentor do poder tem a administração em suas próprias mãos,
“organizando-a e exercendo-a mediante servidores pessoais, funcionários contratados ou
favoritos e homens de confiança pessoal que não são proprietários dos meios materiais do
empreendimento.”220 O primeiro caso, no qual os meios administrativos encontram-se integral
ou parcialmente sob poder do quadro administrativo dependente, é uma organização
“estamental”. Em tal organização, o senhor divide com uma “aristocracia” autônoma o poder.
Por outro lado, no segundo caso, o senhor apóia-se em camadas sem propriedade e sem honra
social, totalmente dependentes e sem nenhum poder concorrente. Tal situação ocorre nas
formas de dominação patriarcal e patrimonial, de despotismo sultanesco ou na ordem estatal
burocrática, ou seja, em sua variação mais racional, no Estado Moderno. Portanto, o
desenvolvimento do Estado Moderno caracteriza-se, nesta perspectiva, pela tentativa de
desapropriação, por parte dos detentores do poder, dos portadores “particulares” de poder
administrativo. Tal processo é similar ao desenvolvimento da empresa capitalista, que
219 WEBER, M. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. p. 526. 220 ibid., p.528.
101
desapropria gradativamente os produtores autônomos. No fim, o Estado Moderno concentra a
disposição de todos os recursos da organização política, configurando a separação entre o
quadro administrativo, os funcionários e trabalhadores administrativos, e os meios materiais
da organização.
Vimos anteriormente, com Weber, como o processo de fortalecimento de uma
aristocracia guerreira desde o final do período micênico vai enfraquecendo o poder real na
Grécia Antiga. O poder das “linhagens”, depois dos “hoplitas” e finalmente dos “cidadãos”
constitui uma associação política próxima do primeiro caso, no qual o quadro administrativo é
proprietário dos meios administrativos. É, portanto, uma organização estamental. Porém,
concomitantemente ao desenvolvimento destes tipos de dominação, Weber associa o
engajamento das aristocracias litorâneas em atividades comerciais, principalmente no
comércio marítimo, como elemento desintegrador do poder real, e elemento propulsor do
capitalismo antigo, junto à escravidão e o fim das barreiras para aquisição de propriedade.
Estes são elementos constituintes do capitalismo de orientação política, no qual o estamento
interessava-se primordialmente pelas rendas advindas do Estado.
Em uma resenha de 1934, Short afirma que Hasebroek segue o “mau caminho” de
Weber ao falar do domínio do mundo antigo por motivos políticos, distintos dos motivos
econômicos221. Hasebroek, porém, apesar de afirmar que havia capitalistas na Grécia, que
eram os “prestamistas”, assegura que o comércio não impulsionava e nem engendrava
qualquer forma de capitalismo, era apenas um meio para o suprimento de necessidades,
particularmente de cereais e matérias-primas para construção de navios, e para o
enriquecimento do tesouro por meio de impostos e taxas. Este autor refutava a hipótese
“modernista” da existência de antagonismos entre Estados nacionais gregos lutando entre si
por interesses eminentemente comerciais. Para ele, o comércio era apenas um meio, e não um
fim.
Ao investigar os tipos de mercadores e a atitude adotada pelo “Estado grego” em
relação ao mercado e ao comércio, Hasebroek afirma que a linguagem grega reconhecia três
tipos distintos de mercador ou intermediário: o kapelos, o naukleros, e o emporos.
O kapelos era o negociante local, que se limitava a vender no mercado interno. Se ele
comprasse diretamente dos produtores, era um kapelos, strictu sensu, mas, se comprasse de
outro intermediário, mercador ou importador, ele era um negociante de segunda categoria, o
221 SHORT, G. Review HASEBROEK , J. Trade and politics in Ancient Greece. Antiquity , v. 8. n. 31, p. 358,
1934.
102
palikapelos. Mas em qualquer caso, a produção não era dele. O fazendeiro ou fabricante que
levava o seu produto para o mercado era um autonegociante, autopelos. Quanto aos outros
dois tipos, o naukleros e o emporos, esses estavam envolvidos com o comércio estrangeiro,
isto é, com o comércio ultramarino: o naukleros era proprietário de navios mercantes e
transportava suas mercadorias; o emporos era o mercador que não possuía navios e viajava
transportando suas mercadorias em navios pertencentes a outros.
Esses três tipos de comerciantes limitavam-se a vender as mercadorias de outras
pessoas, não eram produtores, mas intermediários entre um distrito e outro, não entre
produtores e consumidores do mesmo distrito. Constituíam uma classe de comerciantes
profissionais de tempo integral, que navegavam de porto em porto sem destino fixo, vendendo
suas mercadorias sempre e onde quer que uma oportunidade favorável se apresentasse. Estes
três tipos de comerciantes comercializavam com mercadorias manufaturadas e com produtos
agrícolas. No entanto, isto não quer dizer que os produtores não comercializassem seus
produtos. Há evidências abundantes de produtores de oficinas, que vendiam direto para os
consumidores e, também, de produtores que transportavam suas mercadorias para outros
distritos, vendendo-as de casa em casa se fosse o caso.222
Hasebroek alerta que não se podem confundir esses comerciantes estrangeiros com
“capitalistas”, uma vez que eles não tinham capital próprio e precisavam da ajuda de
“prestamistas” para efetuarem seus negócios. A ocupação do comércio marítimo era
essencialmente uma atividade plebéia e não rendia lucros, além de uma mera receita de
subsistência. Apesar de investirem seu “capital” em empreendimentos comerciais, os
“capitalistas” não tomavam parte em atividades comerciais, atuavam apenas como
“prestamistas” e deixavam os riscos do negócio com os comerciantes. Hasebroek não fala de
uma “classe” de “capitalistas”, mas de “capitalistas” individuais.223 A ausência de registros ou
relatos escritos comprova o primitivismo desse tipo de negócios.
Até aqui, fortes semelhanças com Weber. Para este autor, as linhagens que dominaram
as “cidades aristocráticas” constituíam uma classe de rentistas, e não de comerciantes ou
empresários no sentido moderno do termo; participavam de empreendimentos comerciais,
como donos de navios, comanditários ou prestamistas de comerciantes marítimos, deixando
para outros os riscos dos negócios. Eram comerciantes ocasionais. Logo em seguida, Weber
afirma que o desenvolvimento do comércio marítimo levou a uma crise dos Estados
222 HASEBROEK, J. Trade and politics in Ancient Greece. S. l. Biblo and Tannen, 1993. p. 2-6 223 ibid., p.7-11.
103
dominados pelos clãs aristocráticos nas cidades costeiras, estando, entre os fatores que
contribuíram para isso, o desenvolvimento de uma nova classe, nas cidades portuárias da
costa, ligada à indústria de exportação e comércio, que ficava fora dos círculos tradicionais
daqueles que viviam da terra. Assim, os aristocratas, representantes da aristocracia fundiária,
que, no início de sua dominação, parecem assumir aquele papel que Hasebroek atribui aos
“capitalistas”, posteriormente viram nascer uma classe urbana costeira voltada para a indústria
e comércio, que lhes fazia oposição. Portanto, os capitalistas prestamistas de Hasebroek são
para Weber, em um primeiro momento, as linhagens aristocráticas envolvidas com o
comércio marítimo, e, em um segundo momento, os setores urbanos ligados ao comércio
marítimo. Neste sentido, Weber não está muito distante de Meyer quanto à hipótese de uma
“aristocracia comercial” nos séculos VIII e VII a.C, que se envolvia diretamente no comércio,
fundando uma cultura comercial. Hasebroek contesta esta tese, afirmando que, se no período
mais tardio, os comerciantes pertenciam à classe plebéia, como, no passado, teriam sido
aristocratas “capitalistas”? O controle das relações comerciais pelos nobres e os lucros
advindos desse controle não significavam necessariamente um poder originário do comércio;
sua riqueza era derivada, em parte, de suas terras agrícolas e de manadas e rebanhos e, em
parte, da pirataria e pilhagem. Sua força era física, e não econômica. Assim, no período mais
tardio, esses “capitalistas” eram muito mais uma classe de rentier do que de entrepeneur.
Quando tomavam partes nos negócios, era apenas em atividade secundária.224
Os argumentos de Hasebroek, embora muito próximos aos de Weber, permitem-nos
perceber, de forma muito sutil, algumas conclusões complementares ou mesmo novas em
relação às de Weber. Para Hasebroek, não havia competição entre os cidadãos e os
estrangeiros (metecos), quanto aos interesses econômicos, já que estes eram encorajados pelo
Estado a conduzir os negócios entre as cidades-Estados. Os metecos, estrangeiros residentes,
sem status cívico completo ou direitos políticos, porém sujeitos a encargos financeiros, como
a liturgia e o serviço militar, eram responsáveis pelo comércio estrangeiro e podiam negociar
no atacado e no varejo. Por outro lado era pequena a proporção de cidadãos envolvidos
diretamente em atividades produtivas; eles estavam mais interessados em receitas da
propriedade da terra e nas rendas do Estado. Similar à opinião de Weber, Hasebroek afirma
que o cidadão ideal da Antiguidade era um rentier, enquanto os estrangeiros constituíam o
esteio do comércio e da indústria, pois buscavam o ganho pecuniário. Estes constituíam, junto
com os escravos, os proletários, porque eram homens sem direito político, assim como
224 HASEBROEK, M. op. cit., p.16-17.
104
também o eram o proprietário de terras arruinado e o camponês endividado. Além disso, os
trabalhadores urbanos da Antiguidade não tinham o mesmo papel daqueles do Período
Medieval, pois eram servos, escravos e meio cidadãos, o que inviabilizava qualquer tipo de
associação corporativa que pudesse reivindicar interesses comuns contra a nobreza. Um
cidadão não tinha o menor interesse em se juntar a um escravo ou a um camponês, porque,
apesar de poderem estar na mesma situação econômica, não estavam na mesma situação
política, além de os camponeses estarem mais preocupados em acabar com os débitos e a
divisão dos bens. É a esta pluralidade de pessoas, em oposição aos produtores emergentes da
Idade Média, que Hasebroek denomina proletariado de consumidores.225 Portanto “a
separação fundamental do Estado grego foi entre os rentiers que viviam às custas do Estado
ou sobre as rendas de sua propriedade e investimentos e a massa sem cidade de
estrangeiros.”226 (o grifo é nosso).
Tudo isto está muito próximo de Weber, porém este, em nossa opinião, sem negar a
separação citada acima, enfatiza os conflitos entre credores e devedores como o principal
antagonismo das típicas “cidades aristocráticas e hoplitas”. Se repensarmos a hipótese de
Hasebroek, à luz do instrumental teórico de Weber, poderíamos dizer que os cidadãos rentiers
constituíam um estamento positivamente privilegiado, enquanto os estrangeiros constituíam
estamentos negativamente privilegiados. Os escravos fariam parte deste último estamento.
Isto está mais claro em Weber do que em Hasebroek, exatamente porque, para Hasebroek, o
principal antagonismo reside no pertencimento à cidade-Estado ou na exclusão dela. O fato de
não pertencer a uma cidade-Estado, de não ter um lar fixo, pois os estrangeiros estavam
sempre viajando em busca de novas oportunidades comerciais, é que era desprezado pelos
cidadãos, aqueles que tinham um lar fixo. Por isso, a indústria e o comércio e, em particular, o
comércio ultramarino, estão fora da jurisdição do Estado, pois são áreas de influência de
estrangeiros. Daí a ausência de uma marinha mercantil nacional ou uma indústria nacional. O
comércio era apenas um campo para o investimento do capital e uma fonte de receita do
Estado.227 Tanto Weber quanto Hasebroek enfatizam, em suas análises, os conflitos e
antagonismos na Grécia. Esta ênfase será deixada para um segundo plano nas análises
posteriores dos autores desta tradição.
Weber utiliza modelos “típicos” de cidade, delimitando as diversas formas de
dominação em diferentes momentos de seu desenvolvimento: ora o domínio das linhagens
225 ibid., p. 28-32. 226 ibid., p.35. 227 ibid., p. 43.
105
sobre os camponeses; ora o domínio dos hoplitas sobre os antigos clãs aristocráticos, com os
avanços institucionais; ora o domínio da pólis, com a imposição do regime democrático
imposto aos escravos e outros povos. Hasebroek não utiliza esses modelos típicos de cidade,
mas coloca a cidade no centro de sua reflexão, demonstrando seu poder sobre o “estrangeiro”,
que a serve para suprir suas necessidades e explicitando a secundarização do papel do
comércio. Não deixa de ser um modelo. Diferente de Meyer e Weber, o comércio em
Hasebroek não se relaciona com nenhuma forma de “capitalismo”; é apenas um meio para
reforçar o poder do Estado, isto é, da comunidade de cidadãos rentiers sobre os estrangeiros.
Seu trabalho é um ataque aos modernistas, mas não se identifica completamente com as idéias
de Bücher – mesmo citando-o diversas vezes -, que apontava estágios de evolução e não
falava de “capitalistas” no mundo antigo. Podemos dizer, então, que os trabalhos de
Hasebroek representam um recrudescimento do primitivismo, um neoprimitivismo, diferente
dos primeiros primitivistas, porém próximo a Weber, - a pólis, em vez do oikos, é o elemento
central do primitivismo. A pólis e as transações comerciais são colocadas no centro da análise
weberiana. O comércio contribui para desestruturar as relações feudais e fomentar o
capitalismo. Contudo, a pólis e o comércio ainda estão envolvidos em um mar de
tradicionalismo. A pólis não é um obstáculo para o comércio, mas, sim, para as relações
capitalistas modernas, em razão do ethos aristocrático dominante. Hasebroek, procurando
corroborar a tese de Bücher, de que a economia antiga não apresentava os traços da economia
nacional moderna, mas sem colocar o oikos, no centro da análise, vê a pólis como um
obstáculo ao livre desenvolvimento dos interesses comerciais, pois estes estão sob o domínio
dos interesses políticos. A pólis interdita os interesses comerciais e assim assume um caráter
primitivo. Enquanto Weber, em Economia e Sociedade, acentua o caráter primitivo da pólis
em relação às modernas sociedades capitalistas, Hasebroek ressalta o seu caráter primitivo em
relação às economias dos Estados nacionais modernos. O traço primitivo, tanto em Weber
quanto em Hasebroek é a esfera política, não mais a econômica. O econômico está sob o
domínio do político, e os interesses econômicos estão subordinados aos interesses políticos.
Hasebroek contesta os “modernistas”, que defendem a idéia da industrialização e do
florescimento comercial gregos nos séculos VIII e VII a.C. Não acredita que os interesses
comerciais tenham se tornado o fator predominante na política pública e que os Estados
comerciais tenham se tornado líderes no mundo grego com a substituição da velha nobreza
por uma aristocracia comercial.228 Nega que as mercadorias produzidas naquele período
228 ibid., p. 44-49.
106
tenham sido originadas de grandes estabelecimentos ou fábricas em quantidades atacadistas,
pois as mercadorias eram, em grande parte, produtos de luxo, de artes – metal trabalhado,
roupas finas e lãs – com pouca demanda popular. O fato de a mercadoria ter um nome de um
lugar não prova que ela tenha sido fabricada naquele lugar: o nome pode ter sido obtido de
sua forma e qualidade, da origem da matéria-prima, ou mesmo da nacionalidade dos
comerciantes que a negociavam.
Em relação aos vasos de cerâmica, Hasebroek afirma que, apesar da existência de um
tráfego de cerâmica em diferentes partes do mundo grego, a cerâmica decorativa também era
um artigo de luxo, geralmente usada em decoração de tumbas, oferendas votivas ou como
prêmios levados para casa pelo vencedor em disputas internacionais. Era provavelmente
produzida em grande quantidade nos locais onde foi encontrada. A respeito do uso desses
vasos de cerâmica em decorações de tumbas, Short faz uma observação dizendo que os
pertences colocados em tumbas incluíam objetos que eram usados no dia-a-dia e que os vasos
foram encontrados também em vestígios de casas e de templos. No entanto, Short afirma que
a observação não invalidava a hipótese de Hasebroek.229
Hasebroek analisa cada um dos Estados que, supostamente, eram centros da indústria
grega: Egina, Corinto, Mileto e Atenas. Egina era uma comunidade comercial, com forte
presença de vendedores ambulantes itinerantes, que praticavam um comércio interdistrital
atacadista A palavra “eginetana” dada a mercadorias, como ungüento, tinta, ruge, colares e
vidros, significava que elas eram vendidas por negociantes eginetanos, primeiros mercadores
a competir com os fenícios.230 Corinto é descrita como uma importante cidade industrial e o
maior centro comercial da Grécia. Suas guerras tinham objetivos comerciais, e seu império
era uma área de exploração comercial. Tal hipótese é sustentada, em grande parte, pela idéia
de que os próprios nobres corintianos tomavam parte nos negócios, a chamada “aristocracia
comercial”, e que todo o espírito de corpo de cidadãos era essencialmente comercial.
Amparado em dados de Tucídides, Hasebroek afirma que as guerras promovidas por Corinto
não eram guerras comerciais, mas guerras que atendiam a interesses eminentemente políticos
e seu império colonial não era uma área de exploração comercial. A informação de Tucídides
de que os coríntios “limpavam” os mares de piratas significa que um maior número de
mercadores estrangeiros visitava os portos de Corinto, aumentando as receitas públicas. Por
outro lado, muitos dos técnicos e produtores que viajavam realizando os mais diversos tipos
229 SHORT, G. op. cit., p. 357. 230 HASEBROEK, J.Trade and politics in Ancient Greece. S. l. Biblo and Tannen, 1993. p. 51-52.
107
de trabalho eram corintianos. Portanto, Corinto era a cidade do trabalhador especializado.231
Em relação ao suposto centro industrial têxtil grego, Mileto, também não há provas de que os
famosos fios de lã, mantas, cobertores e roupas, encontrados em diversos lugares da Grécia,
eram produzidos em grande quantidade para “exportação”. Na verdade, tais produtos
produzidos em oficinas milesianas (não em fábricas) eram comprados por mercadores
itinerantes, que, de época em época, iam a Mileto e os vendiam em outras partes do mundo.232
O mesmo fim tinham os produtos produzidos pelos oleiros de Naucrátis. Atenas também
aparece na lista dos Estados que vendiam seus produtos em todas as partes do mundo grego,
porém as principais exportações atenienses não eram de manufaturados, mas de vinho e
azeite, talvez as únicas mercadorias produzidas além de sua própria necessidade e que podiam
ser exportadas em grandes quantidades. Era, na verdade, uma cidade-Estado agrícola.233
Vimos, portanto, que são exageradas as descrições do comércio e da indústria grega
nos séculos VII e VI a.C. quanto ao seu volume e importância. Nos épicos homéricos, o
comércio é praticado pelos fenícios; em Hesíodo, é praticado pelos camponeses que vendiam
o excedente de sua produção no estrangeiro; os eginetanos foram os primeiros comerciantes
profissionais. Apesar disso, as mercadorias negociadas não eram, em sua maioria, artigos de
primeira necessidade, mas, sim, de grande valor, como o ouro, a prata, o marfim, os vasos
valiosos, as roupas tecidas, os ornamentos e, principalmente, os escravos, tanto homens
quanto mulheres.
O comerciante as comprava neste ou naquele mercado e deste ou daquele artífice. Se ele as vendia outra vez e obtivesse lucro, ele retornava e assegurava mais suprimentos; e talvez ele pudesse assegurar para o artífice matérias primas valiosas para o seu trabalho – pois além de negociar com artigos acabados ele deve também ter negociado com aqueles produtos naturais que apesar de indispensáveis são em alguns lugares escassos – ferro, por exemplo...234
Tudo isso mostra que, no começo do período clássico, apesar da superação do
household e do avanço das atividades industriais em alguns Estados, não houve a formação de
uma economia nacional entre os Estados gregos. Não havia divisão do trabalho e
especialização de produção entre as cidades nem um comércio marítimo estrangeiro extenso,
231 ibid., p. 54-57. 232 ibid., p.58. 233 ibid., p. 59. 234 ibid., p. 69.
108
com ligações e alianças regulares entre aristocratas comerciais e príncipes mercadores.235 O
modelo evolutivo de Bücher o levou a afirmar que, em nenhuma sociedade anterior à
moderna, seria possível encontrar traços da economia nacional. As críticas modernistas a
Bücher foram desferidas em dois sentidos: pela predominância atribuída ao oikos em todos os
períodos da Antiguidade e pelo desconhecimento do material histórico. Hasebroek retifica a
primeira crítica ao considerar exagerada a proposição de Bücher acerca da importância do
oikos e apresenta um detalhado material empírico para defender sua hipótese de
impossibilidade de se encontrarem nas cidades-Estados gregas as mesmas características da
economia nos Estados modernos.
Hasebroek, em consonância com Oertel, afirma que os métodos capitalistas não
poderiam tornar-se dominantes na manufatura grega por três motivos: impossibilidade de
prever a demanda; dificuldade de acumulação e investimento de capital; e instituição da
escravidão. Para Weber, esses fatores impediriam a formação do capitalismo “moderno”, mas
não de relações capitalistas. A própria escravidão é vista como empresa capitalista escravista,
porém constituiu-se em um entrave para a racionalidade produtiva moderna.
Para Hasebroek, as fontes sugerem que os escravos no final do século V não eram
empregados na produção de mercadorias manufaturadas em larga escala; eles eram utilizados
pelos seus proprietários para gerar renda, nos mais diversos tipos de atividades.236 Mesmo no
século IV a.C., a produção fabril era dirigida para necessidades locais e não havia nenhuma
divisão de trabalho entre os Estados. Tanto as pequenas, quanto as grandes cidades, segundo
Xenofonte, deveriam suprir suas necessidades diárias com o trabalho de seus próprios
habitantes. Contribuía para isso o ideal da cidade-Estado grega de isolamento e auto-
suficiência. Daí as áreas de produção e consumo permanecerem as mesmas durante os séculos
V e IV e não haver uma organização internacional unindo o mundo grego. Segundo Will –
mesmo sendo favorável à hipótese de Hasebroek –, há uma minimização exagerada da
atividade comercial, principalmente em relação à época clássica. Nem todas as cidades gregas
tinham uma estrutura econômica idêntica e nem se pode afirmar que estavam reservadas
exclusivamente aos metecos e escravos todas as atividades de caráter comercial.237
Hasebroek afirma que o proprietário de navios enfrentava enormes dificuldades, entre
as quais, podemos listar: não havia informações sobre os mercados no estrangeiro; os custos
235 ibid., p. 70-71. 236 ibid., p. 77. 237 WILL, E. Trois quarts de siècle de recherches sur L’économie grecque antique. Annales ESC, v. 1, n. 9,
1954. p. 15.
109
do comércio eram grandes, pois a taxa de juros sobre empréstimos comerciais era alta; o
período de viagens estava reduzido a seis meses, de novembro a fevereiro; as enormes
dificuldades no transporte inviabilizavam qualquer possibilidade de formação de companhias
de navio e não havia especialização comercial, característica da época moderna; não havia
encomenda de mercadorias; o mercador colocava-se ao mar sem saber em que porto ele seria
capaz de vender suas mercadorias; os comerciantes estavam à mercê dos piratas e navios de
guerra e das demandas casuais dos consumidores. Tudo isso resultava em altos riscos para o
comércio e contribuía para que os credores, que já cobravam altas taxas de juros, também
demandassem como seguro hipotecas de cargas e quantias bem elevadas do empréstimo.238
As finanças também eram rudimentares. As moedas de vários Estados, até o século III,
tinham validade local e estavam constantemente sendo depreciadas. A ausência de uma
moeda “nacional” dificultava a circulação de dinheiro de um Estado para outro. Em um artigo
de 1933, em que as obras de Hasebroek são o alvo principal da análise, Louis Gernet afirma
que durante a passagem para a democracia, apareceu uma moeda de Estado que, permitindo
ou favorecendo a circulação de produtos agrícolas, deve ter modificado o estatuto econômico
da classe camponesa.239 Tal perspectiva enfatiza uma importância maior para a moeda, em
relação à política, do que aquela dada por Hasebroek.
Segundo Hasebroek, em Atenas, os bancos agiam como intermediários para
pagamento de débito, como fiadores, tomavam objetos e documentos de valor em custódia e
faziam empréstimos de todos os tipos. Não havia negócios internacionais de crédito; o
dinheiro era enviado de uma cidade para outra em espécie. O empréstimo bancário estava
limitado, em geral, ao auxílio ocasional de amigos pessoais. Não havia garantias de
pagamento dos empréstimos, pois não havia uma corte internacional na qual as pendências
pudessem ser resolvidas. Nos períodos de guerra, havia grande número de renúncia de
débitos. Em Atenas, era ilegal emprestar dinheiro a mercadores não engajados no transporte
de mercadorias para ou da própria Atenas. A circulação de capital era prejudicada pela prática
regular de ocultar as riquezas. As responsabilidades públicas e a liturgia levavam os homens
com posses a reverter sua riqueza em ouro e prata não utilizáveis para os propósitos da
produção. Quando o capital não ficava ocioso, era utilizado para empréstimo a juros, pois não
238 HASEBROEK, J. op. cit., 82-84. 239 GERNET, L. Comment caracteriser l’economie de la Gréce antique? Annales. ESC, V. 5, p. 565, 1933.
110
havia limite para a taxa de juros. Não havia necessidade de recibos escritos, mas apenas da
presença de testemunhas.240
Ainda segundo Hasebroek, Atenas não era um centro da indústria grega e nem sequer
um Estado industrial; era um lugar de troca, e não de produção. O comércio fornecia ao
Estado uma parte apreciável de suas receitas, isto é, rendia uma receita substancial aos
investidores privados e explorava os serviços de classe de mercadores profissionais. Assim,
apesar da intensificação de trocas das mercadorias entre cidades, particularmente de trigo, e
das vultosas receitas que este comércio podia propiciar para os investidores, mas não para os
mercadores, a economia grega do período clássico era agrícola, e não comercial e industrial.
Essas considerações de Hasebroek o aproximam muito mais de Bücher que de Weber, uma
vez que este autor relaciona o aumento do comércio e da escravidão, além da liberdade de
transferência da propriedade, ao “capitalismo político”.
Segundo Weber, o comércio, no Ocidente, na medida em que se desenvolvia, parece
ter tido um papel desagregador e fomentador de estruturas novas. A confluência entre
comércio e capitalismo é muito grande, no seu trabalho mais específico sobre História Antiga.
O Estado, nas sociedades do Antigo Oriente Próximo, era um obstáculo ao pleno
desenvolvimento do comércio e, no Ocidente, não permitia que as relações comerciais
avançassem até o capitalismo racional. No modelo hasebroekiano, o Estado – a comunidade
de cidadãos – conseguia dominar e controlar as relações comerciais em proveito próprio de
forma muito mais contundente que no modelo weberiano. A sutil diferença entre esses dois
modelos está no uso dos termos obstaculizar e coordenar. O Estado grego parece concentrar
poderes e recursos suficientes para utilizar o comércio – estando englobados aí os produtos
comerciais, os indivíduos envolvidos no comércio e as rotas e taxas - de acordo com suas
necessidades. Parece-nos, portanto, que o modelo esboçado por Hasebroek elucida uma
contradição existente no modelo weberiano. A concentração de poderes da pólis grega,
apresentada por Hasebroek, está mais próxima da realidade política do Antigo Oriente
Próximo, apresentada por Weber em The agrarian sociology of ancient civilizations. A
pólis grega neste livro, em oposição aos grandes impérios do Oriente, não inviabilizava as
práticas comerciais e se via transformada pelo avanço do comércio. Por outro lado, a
organização “estamental” da sociedade grega dificultava a centralização do Estado e a
existência de um aparato burocrático. A pólis descrita por Hasebroek está mais próxima dos
impérios orientais de Weber do que da pólis grega, que constituiu um elemento de ruptura na
240 HASEBROEK, J. op. cit., p. 88-89.
111
História do Ocidente. Paradoxalmente, a capacidade de organizar e coordenar o comércio da
forma como Hasebroek descreve a pólis grega está, segundo o princípio de organização
estatal de Weber, tanto próxima dos impérios orientais, quanto dos Estados modernos, os
quais apresentam uma concentração de poder ausente nas organizações estamentais.
Em um trabalho recente, Charles M. Reed, analisando o comércio marítimo no mundo
grego, deixando clara sua orientação “substantivista”, afirma que o equívoco de Hasebroek é
pensar que Atenas intervinha no comércio somente para assegurar necessidades vitais para
seus cidadãos sem se preocupar com os interesses dos emporoi e dos naukleroi. Segundo
Reed, Atenas obviamente agia em favor dos comerciantes marítimos, em razão da enorme
sobreposição de seus interesses àqueles do corpo de cidadão ateniense. Este autor, então,
substitui a idéia de desdém dos cidadãos para com os estrangeiros pela idéia de
complementaridade de interesses entre essas categorias. Esta análise, muito próxima da de
Hasebroek e Finley, mas sem descartar os trabalhos dos modernistas atuais, salienta que
Hasebroek percebeu a extensão da pólis sobre as atitudes oficiais, mas falhou na percepção do
impacto da pólis sobre as atitudes da sociedade ateniense em geral. Hasebroek não percebeu
que a dependência cívica de alimentos importados substituía considerações de status social na
mente dos indivíduos atenienses.241
Para explicitarmos melhor estas contradições, é necessário explorarmos mais
profundamente o assunto específico do trabalho de Hasebroek: os meios pelos quais o Estado
deliberadamente promovia ou restringia o comércio, isto é, as diversas manifestações da
política estatal voltadas para o comércio, particularmente o estrangeiro. Aqui, Hasebroek
continua seu combate aos “modernistas”, que acreditavam ter a cidade grega uma política
comercial similar ao do Estado moderno nacional, que objetivava assegurar mercados
estrangeiros e manter seu próprio para beneficiar a produção doméstica. Estas noções de
rivalidade comercial internacional são transferidas para o Mundo antigo, no qual os supostos
Estados nacionais lutam entre si por mercados coloniais e comerciais.242 Esta posição
sustenta-se no princípio de que o Estado estava interessado no comércio e na produção.
Porém, na medida em que boa parte da produção das cidades estava nas mãos dos estrangeiros
residentes, não tendo nem os trabalhadores nem os comerciantes alguma influência de
controle na política doméstica ou estrangeira, não se pode falar de trabalho ou produção
nacional.
241 REED, C.M. Maritime traders in the ancient Greek world. Cambridge: University Press, 2004. 51-77. 242 HASEBROEK, J. op. cit., p. 97-98.
112
As tarifas protecionistas só aparecem no período helenístico. As taxas de exportação e
importação eram impostas para propósitos de receita. A grande maioria dos comerciantes
estrangeiros era politicamente desclassificada, e os que não eram estrangeiros, eram
proletários. O comércio estava divorciado da vida nacional; era, portanto, cosmopolitano. Não
há um comércio “ateniense”, “beociano”, nem uma marinha mercantil nacional. Não havia
nenhuma associação de mercadores que assegurasse seus interesses. Quando existia, era de
caráter puramente religioso.243
As guerras não objetivavam apagar um rival comercial ou beneficiar a classe
comercial ou industrial. Suas causas eram genuinamente políticas. Elas surgiam do desejo de
assegurar pela força e pela dominação política as vantagens de prosperidade nacional. Essa é a
idéia do imperialismo antigo, que procurava controlar o comércio cosmopolitano com o
objetivo de enriquecer os Estados por meio de taxas e impostos. Dessa forma, as guerras eram
políticas, e não comerciais, travadas no interesse do consumidor por suprimento de
alimentos.244
Subjacente a esta separação entre a guerra e interesses comerciais, há um exagero de
Hasebroek quanto à hipótese de Weber de separação entre o homo politicus e o homo
economicus. Segundo Humphreys, Weber não queria dizer que o cidadão antigo estava mais
interessado na guerra do que nas atividades de mercado. Weber não sublinha a existência de
dois sistemas de valores conflitantes, no qual um influencia de forma decisiva o
comportamento do outro. O que ele salienta, segundo Humphreys, é que as instituições que
para nós parecem caracteristicamente econômicas - comércio, produção para o mercado,
circulação de dinheiro, atividades bancárias - são analiticamente dependentes e somente
compreensíveis em termos de instituições que nós caracterizamos como políticas. A questão
de fundo não é se a guerra tem efeitos econômicos, - que sempre tem – mas se esses efeitos
são melhores analisados como elementos internos ao sistema econômico ou como o resultado
de forças externas. Para Humphreys, embora a guerra representasse um papel importante na
circulação de mercadorias, suas principais implicações econômicas em sociedades pré-
industriais estão relacionadas à distribuição da força de trabalho. Para compreender o lugar da
guerra na economia grega antiga, é necessário considerar as implicações da escravidão.245 O
comércio da Grécia arcaica, segundo Humphreys, deve ser visto em um contexto muito mais 243 ibid., p. 99-102. 244 ibid., p. 102. 245 HUMPHREYS, S. Homo politicus and homo economicus: war and trade in economy of ancient and arcaic
Greek. In: _____________. Anthropology and the Greeks. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1978. p. 159-170.
113
amplo de trocas entre o Egeu e o mundo além, no qual a importação e a exportação de força
de trabalho foram muito superiores à troca de mercadorias, não sendo possível fazer uma
distinção entre comércio e transferência de mercadorias por meio da guerra, pirataria,
hospitalidade e troca de dádiva. Por outro lado, o império ateniense representou um novo
caminho para a integração da força de trabalho livre excedente na economia da cidade-Estado
por meio de lucros derivados da guerra e comércio. Guerra e comércio ainda estão
intimamente ligados, mas em lugar de atividades complementares realizadas pelo mesmo
pessoal, elas são diferenciadas e ligadas pelo dinheiro, pelo mercado e pela extorsão de tributo
por Atenas de seus súditos. Portanto, as guerras médicas foram um divisor de águas na
história grega.246
Hasebroek, muito preocupado com a diferenciação de valores entre o mundo antigo e
o moderno, não conseguiu perceber este aspecto fundamental da guerra. Tomando como eixo
comparativo somente modelos modernos de comércio, deixou escapar de sua análise este
movimento particular de mercadorias que se dava no interior das guerras arcaicas e ignorou
qualquer possibilidade de diferenciação de interesses econômicos dos cidadãos atenienses
pós-guerra do Peloponeso.
Weber, em sua análise acerca dos fundamentos econômicos do imperialismo, afirma
que nem sempre o surgimento e a expansão de formações com caráter de grandes potências
estão condicionados, primeiramente, por fatores econômicos, apesar de, em muitos casos, a
exportação de bens contribuir em grande medida para a formação de grandes Estados. No
caso dos grandes impérios ultramarinos do passado - Atenas, Cartago e Roma -, ele afirma
que:
outros interesses econômicos – sobretudo aquele em lucros provindos de rendas do solo, arrendamento de impostos, emolumentos oficiais e outros semelhantes - tinham importância pelo menos igual e, freqüentemente, muito maior do que os lucros mercantis. Dentro deste último motivo da expansão, por sua vez, era muito insignificante o interesse, predominante na era capitalista moderna, de “venda” para os territórios estrangeiros, em comparação ao interesse em possuir territórios a partir dos quais podiam ser importados certos bens (matérias-primas).247
246 ibid., p. 170. 247 WEBER, M. Economia e Sociedade. : Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, v. 2, 2004. 165
114
Nas diversas civilizações que Weber apresenta como exemplo, o tráfico de bens não
costumava indicar o caminho à expansão política, embora, mais à frente, o autor demonstre
que, apesar disso, a estrutura econômica determina em considerável grau tanto a extensão
quanto a forma da expansão política. Além de mulheres, gado e escravos, é a terra o principal
objeto de apropriação violenta, particularmente nas comunidades camponesas conquistadoras.
Assim, na Antiguidade, o interesse na renda do solo é de grande importância, pois “já que os
lucros mercantis eram ‘investidos’ de preferência em bens de raiz e escravos por dívidas, a
obtenção de terras férteis e apropriadas para produzir rendas constituía (...) a finalidade
normal das guerras”.248 Weber cita os privilégios oferecidos pela liga Ática ao demos da
cidade dominadora que, além de tributos de diversas espécies, conseguia a ruptura do
monopólio de solo das cidades sujeitas: “o direito dos atenienses à aquisição de terras por toda
parte e a empréstimos hipotecários.”249
Não há nesta reflexão uma clivagem em relação às ideais de Hasebroek, que parecem
aprofundar esta hipótese. Porém, a idéia de exportação de bens está totalmente ausente do
modelo de Hasebroek, que acredita na proeminência absoluta do interesse de importação
sobre o de exportação. Esta proeminência está presente no processo de colonização.
Para este autor, a colonização grega tinha um ou dois fins: império ou manutenção de
suprimentos. A colônia grega não era comercial; ela era militar (uma colônia de conquista),
ou agrícola. Esta última devia sua origem à iniciativa privada, enquanto a primeira era uma
iniciativa estatal. As colônias gregas freqüentemente se tornavam centros de comércio, pois,
em geral, estavam no caminho de rotas comerciais, levando os colonos agrícolas a assumirem
o controle do comércio como fonte de receita e, posteriormente, deixando este negócio para
estrangeiros que lá chegavam.
A típica colônia grega era agrícola (apoikia) e foi criada para suprir as alimentaraes da
população excedente das cidades-Estados; após duas ou três gerações, tornava-se uma nova e
independente organização política. A fome, não a ambição comercial, era a força motriz da
colonização. O solo escasso e pouco adaptável ao crescimento de grãos (trigo) impossibilitava
alimentar uma população continuamente crescente. O laço entre as colônias e as cidades-mães
era religioso e moral e não político e comercial; os objetos de culto, em particular o fogo
sagrado do pritaneu, chegavam diretamente da cidade-mãe, e os cidadãos da cidade-mãe
recebiam honras especiais quando visitavam a colônia. Sacerdotes poderiam ser convidados
248 idem., p. 165. 249 ibid.
115
para servir como árbitros em causas especiais e graves. Os tipos de moeda da colônia eram
influenciados pela história legendária de sua cidade-mãe, porém não havia uma relação de
submissão política e econômica. Todos estes aspectos configuram uma relação distinta da que
existe entre colônia e metrópole dos Tempos Modernos.250
As colônias militares (clerukias) “eram fundadas em pontos estrategicamente
importantes e serviam tanto para manter os pontos subjugados e aliados sob controle como
para fornecer terra para a população excedente”.251 Diferente das colônias agrícolas, a colônia
militar permaneceu politicamente dependente, porém sem motivos comerciais, apenas os
motivos de dominação militar e manutenção de dependência. Portanto, a colonização serviu
como instrumento da Talassocracia: um meio de controlar extensões marítimas e de obter
pela força suprimentos de alimentos e metais preciosos e de assegurar as rotas para outras
regiões serem exploradas para fins similares. O objetivo da colonização não era comercial,
mas sim, imperial.252
Sob o mesmo raciocínio, Hasebroek analisa os chamados “tratados comerciais”, que
tinham como fim último o suprimento de necessidades, em particular, de trigo, materiais de
defesa e de construção de navios. Tanto que em Atenas era proibido exportar trigo e materiais
de construção de navios, tais como madeira, piche, cera e corda. Nenhum destes “tratados”
serve a interesses de comerciantes e produtores cidadãos. O Estado tentava assegurar
suprimentos evitando a disputa de mercadorias no estrangeiro e aumentando a produção
interna. No entanto, o ideal de auto-suficiência era inviável, e a cidade grega foi obrigada a
procurar ajuda no estrangeiro com “tratados de importação”. Porém, o traço mais essencial
dos Estados gregos clássicos foi a busca deliberada de independência, que estava
condicionada pelo fato de que estes Estados eram cidades-Estados. Mesmo na época de maior
desenvolvimento, não há idéia de solidariedade no mundo das cidades-Estados gregas; e até a
evolução política foi determinada por um separatismo exagerado. A existência do cidadão
estava diretamente relacionada com sua cidade-Estado. Fora de sua cidade, seus privilégios de
cidadão estavam aniquilados. A proscrição ao estrangeiro é comum a toda lei grega primitiva.
E em teoria, mostrou-se notavelmente persistente. Assim, a guerra entre os Estados gregos
era uma coisa normal na mentalidade grega. Os tratados de paz para os períodos de cinco ou
250 HASEBROEK, J. op. cit., p. 108-109. 251 ibid., p. 109. 252 ibid., p. 110.
116
dez anos eram vistos como meras interrupções de um estado de guerra. A pirataria e o corso
eram praticados com a proteção e a autoridade do Estado.253
O estrangeiro, a menos que estivesse protegido por tratados especiais entre as cidades
ou por privilégio pessoal, estava exposto à apreensão em alto mar ou nas águas costeiras de
outro Estado. Ele também era excluído de entrar no porto e no mercado de outro Estado. Os
motivos pelos quais o cidadão abandona sua política de isolamento e envolve-se no comércio
entre cidades são dois: a manutenção de suprimentos necessários e a exploração fiscal do
tráfego quando se refere às suas praias. Uma cidade “abria suas portas” para o estrangeiro
quando lhe convinha, isto é, quando seus serviços eram indispensáveis: artífices, artistas,
escravos e especialmente mercadores estrangeiros. Eis a razão dos privilégios e isenções
especiais dos metecos. Tal fato não invalida a hipótese de que a vida política dos gregos
caracterizava-se pela ausência de solidariedade, e que tal perspectiva também estava presente
na vida econômica. O fechamento de mercados e portos e a existência da pirataria como meio
de sobrevivência comprovam aquela ausência de solidariedade.254
Mesmo em épocas de guerra e na ausência de direitos para estrangeiros, um tipo de
“paz comercial” era, a princípio, tacitamente reconhecido enquanto as mercadorias
necessárias eram trocadas em épocas fixas. É designado para assegurar a proteção daqueles
engajados na troca de mercadorias necessárias. Estes podem ser homens que estão comprando
para seu próprio household ou para outras pessoas privadas. Outra proteção ao estrangeiro era
a instituição da proxenia, que deriva da amizade entre hóspedes. Para proteger seus interesses
e os interesses privados de seus cidadãos, o Estado grego indicava representantes nas cidades
estrangeiras. Eles recebiam privilégios especiais. Sua obrigação era ajudar e proteger os
cidadãos e a propriedade dos cidadãos da cidade de origem. Mas ele não era oficialmente
reconhecido pela cidade na qual residia. A indicação de um proxenos não implicava em
relação oficial ou algum acordo entre duas cidades.255
Os laços entre as cidades eram fracos e inseguros. Os tratados não predominavam
sobre o espírito das cidades de satisfazer suas necessidades por meio, primordialmente, da
força e exploração. O comércio pacífico e as alianças não eram os objetivos primordiais a
serem perseguidos. A ética política grega em nada se confunde com uma solidariedade entre
Estados. Para os gregos, a justiça política não deveria reprimir a força por si, mas sim o abuso
253 ibid., p. 117-118. 254 ibid., p. 121-124. 255 id. ibid, p. 128.
117
da força. A cidade antiga constituía-se em um membro independente de um grupo de cidades
gerais. Esta visão tomou formas nítidas no imperialismo naval – a talassocracia. Desde suas
origens, a existência de uma cidade grega estava ligada ao esforço de assegurar o controle de
mares vizinhos. Os objetivos deste imperialismo não eram econômicos, no sentido de buscar
vantagem para mercadores ou produtores cidadãos, nem nacionais. Eles eram exclusivamente
políticos. A obrigação da cidade grega era fornecer subsistência para seus cidadãos. Era parte
do privilégio dos cidadãos viver às custas do Estado.
A independência econômica foi considerada como uma condição necessária de independência política. A cidade grega desse modo era incapaz de buscar seu ideal econômico por meio econômico e foi levada a resolver seus problemas conquistando e vivendo às custas dos vizinhos256.
O bem-estar da cidade geralmente estava condicionado pelo exercício de poder sobre
seus súditos, não dependendo do desenvolvimento de seus próprios recursos de trabalho,
indústria ou comércio nativo, mas das contribuições de seus súditos. A cidade imperial grega
usou dois métodos de imperialismo: anexava e explorava diretamente o território dominado,
tirando os habitantes originais e assentando o excedente de sua população e compelia os
habitantes do território dominado a pagar tributo em dinheiro ou em espécie. Os cidadãos
constituíam uma casta militar, cujos interesses eram absorvidos por responsabilidades
políticas e obrigações militares, deixando o trabalho para servos, escravos e metecos. As
cidades-Estado procuravam aproximar-se do ideal de independência econômica, daí ser
impensável pensar a cidade-Estado como uma nação257. A cidade grega não estava interessada
em alcançar supremacia comercial e capturar mercados por meio da força: interessava-lhe a
supremacia política.
Na Liga de Delos, os participantes logo se tornaram súditos de Atenas: suas
contribuições tornaram-se um tributo para Atenas e suas receitas, receitas de Atenas. Os
tratados de importação tornaram-se meros arranjos para contribuições forçosas.258 O
crescimento de Atenas não era um crescimento comercial. A talassocracia ateniense era
movida pela busca de suprimentos. Ocuparam-se portos nos quais se podia controlar e
racionalizar os suprimentos dos outros. Os dependentes pagavam tributos e forneciam
256 id. ibid, p. 136. 257 ibid., p. 137-138. 258 ibid., p. 139.
118
alimentos. Ao mesmo tempo colocavam-se guarnições em territórios dependentes para
prevenir–se de revoltas.259
Além da necessidade de garantir suprimentos, o Estado preocupava-se em assegurar
riquezas por meio do comércio. O governo intervinha de todas as formas a fim de encher seus
celeiros e seu tesouro, impedindo o desenvolvimento do comércio e criando inseguranças e
incertezas em um Estado que vivia permanentemente em guerra. O Estado não agia em nome
de uma classe de comerciantes; ao contrário, intervinha em seus interesses, tomando empresas
comerciais em suas próprias mãos e confiscando os lucros para o tesouro. Interferia na vida
econômica de toda a cidade, estando a sua mercê a propriedade, o dinheiro, o crédito, todo o
tipo de transação pecuniária. A causa em todo lugar era sempre a mesma: a cidade nunca tinha
um estoque regular para abastecer a população.260 O resultado disso foi o encobrimento da
riqueza, entesouramento. Todas as posses eram um perigo. Daí constituir-se o solo no
investimento mais seguro. Tal afirmativa complementa a hipótese de Weber acerca da
importância do investimento no solo, com o intuito de obter rendas.
Quanto aos monopólios, não há indicação de monopólios fixos, exceto aquele de troca
de dinheiro, que era o mais importante. O Estado ocasionalmente decretava que toda compra e
venda dentro de suas fronteiras deveria ser feita em moeda corrente local.261
As obrigações de direitos alfandegários estavam de acordo com a visão geral do
Estado para com o comércio: obter uma fonte de receita para o tesouro público. O Estado
explorou o comércio por meio de taxações indiretas, coletadas em dinheiro, não em espécie,
que variavam de acordo com a natureza das mercadorias: as taxas arrecadadas por tráfego por
terra eram pequenas, já aquelas arrecadadas sobre mercadorias trazidas por mar eram bem
mais significativas. Um método lucrativo dos Estados marítimos de aumentar suas receitas,
além dos impostos sobre importação e exportação, eram as taxas de transporte. Finalmente,
havia as taxas especiais do porto do Pireu: a massa de mercadorias que passava através desse
porto deve ter excedido as exportações e importações atenienses.
Os trabalhos de Weber e Hasebroek, ao deslocarem o eixo do argumento primitivista,
do oikos para a pólis, e apresentarem uma preocupação maior com o material empírico,
respondiam, em parte, às críticas dos historiadores aos economistas históricos. Contudo, tal
deslocamento da esfera econômica para a esfera política não significava um retrocesso a uma
259 ibid., p. 144. 260 ibid., p. 151-152. 261 ibid., p. 153-156.
119
historiografia rankeana, mais preocupada com os grandes personagens políticos, mas uma
resposta à teoria evolucionista de Bücher, com estágios de desenvolvimento incompatíveis
com o material empírico disponível. Conseqüentemente, os trabalhos desses autores, Weber e
Hasebroek e, também, do próprio Meyer, ainda sob um “ambiente” historista, já demonstram
traços da História Social, na qual os diversos grupos sociais e sua relação com a estrutura
econômica e política já ocupavam o centro de suas preocupações. A Arqueologia,
particularmente com Hasebroek, começa também a ter um papel importante, sendo já
utilizada para corroborar o modelo geral apresentado pelo autor.
A pólis era primitiva em relação ao racionalismo do capitalismo moderno e às
economias nacionais, mas não em relação às monarquias do Antigo Oriente. Portanto, o
primitivismo da pólis era sublinhado somente em relação a períodos posteriores, mas não
quando comparado a sociedades contemporâneas. Weber, com sua elaboração de
racionalidade e irracionalidade, não conseguiu superar os resquícios neoclássicos de seu
arcabouço teórico. Hasebroek, mesmo seguindo de perto os trabalhos de Weber, ao acentuar
as diferenças da pólis com as economias nacionais modernas, retoma Bücher para demonstrar
que os princípios da economia política clássica eram incompatíveis com a realidade do mundo
antigo. Contudo, a excessiva preocupação em demonstrar as diferenças entre a política das
cidades-Estados e interesses comerciais modernos não lhe permitiu perceber qualquer tipo de
interesse do cidadão que não seja dominado pela esfera política. De acordo com a definição
de Weber de política, podemos dizer, conforme Hasebroek, que a exclusão dos estrangeiros
(metecos, escravos) da política citadina era o elemento fundamental do poder das cidades-
Estados. O comércio era útil apenas como elemento constituinte do objetivo maior da cidade,
o suprimento de necessidades, e não afetava o ideal de independência das cidades-Estados.
Mas não seria este objetivo, o suprimento de necessidades, já um interesse eminentemente
econômico?
Não há uma autonomia do econômico em relação ao político. A reflexão teórica acerca
do engastamento da esfera econômica, no mundo antigo, na esfera política, e a supressão dos
resquícios neoclássicos do seio da tradição que estamos investigando constituiriam o centro
das análises do húngaro Karl Polanyi, inserido em um outro contexto intelectual e amparado
em uma outra ciência social, a Antropologia. Esta mudança de perspectiva é o que iremos
investigar no próximo capítulo.
120
PARTE II
A GUINADA ANTROPOLÓGICA E O SUBSTANTIVISMO
121
4 O ATAQUE AO MERCADO “FORMALISTA”. KARL POLANYI E O
NASCIMENTO DO MERCADO NA GRÉCIA ANTIGA
4.1 INFLUÊNCIAS INTELECTUAIS E CONTEXTO POLÍTICO
Apesar da mudança de referencial científico, não há uma ruptura violenta entre
Polanyi e muitos dos autores paradigmáticos da tradição histórica alemã, dentre eles: K.
Bücher e Sombart, na esfera econômica; Toonies e Max Weber, na sociologia; e de forma
mais direta, Thurnwald, na antropologia, aluno de Weber. Fora da tradição histórica alemã, as
maiores influências de Polanyi são: Aristóteles, Robert Owen, Malinowski – de quem Polanyi
é apenas dois anos mais jovem – Radcliffe-Brown, Durkheim e Marcel Mauss.
Polanyi nasceu em 1886, um ano antes de Lukács, no mesmo ano de Karl Korsh e
cinco anos depois de Gramsci. Seus anos de formação intelectual na Hungria foram moldados
por correntes intelectuais conflitantes e vibrantes. Durante o curso de Direito, na Hungria, o
marxismo e a sociologia do conhecimento despertaram o interesse de Polanyi. Seu
pensamento se distinguiu do marxismo ortodoxo por sua ênfase na subjetividade,
característica comum entre os fundadores do marxismo ocidental. A ruptura com o marxismo
ortodoxo foi facilitada por seus mentores húngaros, Gyula Pikler e o sociólogo Oszkár Jászi.
Polanyi foi um dos fundadores, em 1908, em Budapeste, do Círculo Galilei, um clube
político e intelectual, no qual muitas figuras socialistas e liberais da Hungria marcaram
presença proferindo palestras, como seu irmão Adolph Polanyi e Georg Lukács. O objetivo do
clube era defender a liberdade acadêmica e científica na luta contra preconceitos religiosos,
122
raciais e de classe.262 Os galilelistas, intelectuais modernistas jovens, procuraram sobrepujar
o atraso de seu país com a introdução e disseminação do pensamento e dos valores científicos
ocidentais. Apesar de seus esforços de promover uma ‘cosmo visão científica’, os galilelistas
estavam engajados em uma cruzada moral, com Polanyi aparentemente sobressaindo-se mais
como profeta do que como um presidente fundador.
Segundo Nafissi, Polanyi no período da primeira guerra, aproximou-se do
cristianismo. Durante a guerra, o misticismo cristão dos escritores russos, particularmente
Tolstoi, substituiu o empirismo científico. O cristianismo tolstoyiano contribuiu para o
rompimento, em um momento posterior, com o liberalismo e o capitalismo mercantil, e
acentuou seu individualismo cristão/comunal e socialista, além de potencializar o seu
‘idealismo’ voluntarista.263
Após o final da guerra, Polanyi deixou a Hungria e foi para a Áustria. Depois de um
período de profunda depressão causada pela derrota das forças democráticas na Hungria e do
isolamento espiritual de seus companheiros em virtude de sua conversão ao cristianismo, além
dos ferimentos físicos oriundos da guerra, Polanyi retomou os debates públicos em Viena.
Seu casamento com Ilona Ducyznska, uma jovem ativista comunista também contribuiu para
este retorno. É nesse período que Polanyi voltou-se de fato para o estudo das ciências sociais,
em particular a economia. A preocupação de Polanyi com os problemas do socialismo, pelo
menos em parte, pode ser explicado pelo contexto do mundo pós-guerra, onde, além da
Rússia, partidos socialistas ocupavam posições influentes na Europa Oriental e Central. A
Áustria estava na vanguarda do avanço socialista, dominada por um partido socialista radical
com propostas independentes tanto do bolchevismo russo quanto da democracia social alemã.
A teoria marxista levou muitos sociólogos a se interessarem pelos estudos empíricos
das classes sociais e pelas alternativas para o sistema capitalista, em virtude do
desenvolvimento da crise do pós-guerra e da experiência socialista na Rússia. Polanyi, em
1922, colaborou com um artigo sobre princípios teóricos socialistas para o Achiv für
Sozialwissenchaft, que segundo Humphreys, “expressava sua crença na superioridade social e
moral da economia socialista centralmente planejada, guiada pela ‘demanda social’ ao invés
262 STANFIELD, J.R. The economic thought of Karl Polanyi: lives and livelihood. London: The Macmillan
Press, 1986, p. 3-4 263 NAFISSI, M. Ancient Athens& modern Ideology. Value, theory &evidence in historical sciences. Max
Weber, Karl Polanyi & Moses Finley. London: Institute of classical studies, 20005, p. 137-140.
123
das demandas consumistas individuais.”264 De 1924 a 1933 ele escreveu para o jornal
vienense österreichische volkswit como analista de finanças e política internacional
(especialmente inglesa). Nestes artigos, segundo Nafissi, diferente de Humphreys, Polanyi
critica o planejamento centralizado. Os marxistas ortodoxos acreditavam em oposição entre o
sindicalismo e o coletivismo, pois acreditavam que o sindicalismo era um tipo de “capitalismo
de trabalhadores”. Concomitantemente, a ortodoxia marxista rejeitava a identificação do
sindicalismo com o socialismo.Polanyi se opôs a esta visão, pois acreditava que a oposição
coletivismo versus sindicalismo não representava alternativas significativas para uma teoria
de organização de uma economia socialista. Polanyi, neste período, acreditava que por meio
do socialismo era possível estabelecer um diálogo potencialmente conflitual entre e dentro de
organizações de produtores e cidadãos consumidores, concebendo o socialismo em termos
evolucionários e como uma extensão e consolidação de instituições e processos
democráticos.265
Em 1933, em virtude do crescimento do fascismo austríaco, Polanyi emigrou para a
Inglaterra e dedicou a maior parte de seu tempo proferindo conferências na Associação
Educacional dos Trabalhadores sobre a história do socialismo inglês e as causas do Fascismo,
já em franca ascensão na Alemanha. Neste período, também, proferiu uma série de palestras
nos Estados Unidos, e de 1940 a 1943, não podendo retornar para a Inglaterra, devido à
guerra, escreveu nos Estados Unidos The great transfomation. Estão presentes aqui as
questões e as preocupações da época: a crise do liberalismo, com a ascensão e queda do
capitalismo laissez-faire, a defesa de uma economia socialista planejada e a explicação das
causas do fascismo.266
Segundo Stanfield, o socialismo de Polanyi não era tanto uma matéria de ação política,
mas sim, a crença em uma superioridade moral e a qualidade de vida social do socialismo em
relação ao capitalismo. Acreditava que somente o socialismo poderia superar a atmosfera
desmoralizadora da sociedade capitalista mercantil com sua economia disembedded e permitir
a subordinação da economia para os fins da comunidade humana.267 Esta perspectiva é
compartilhada por Nafissi, que acredita que o socialismo e o primitivismo de Polanyi eram os
dois lados do mesmo argumento. O socialismo era, porém, uma forma moderna de formações
264 HUMPHREYS, S.C. History, economy and anthropology: the work of Karl Polanyi. In: Anthropology and
the Greeks. London, Henley , Boston: Routledge & Kegan Paul, 1978, p.34 265 NAFISSI, M. op. cit., p. 147-148. 266 ibid., p. 37. 267 SATANFIELD, J.R. op. cit., p. 6
124
redistribuitivas (e recíprocas) que em sua visão eram ubíquas em toda a história.268 Contra o
determinismo daqueles que pregavam que a realidade social e as circunstâncias determinavam
o curso da história, Polanyi afirmava que a economia humana era um conjunto de relações
morais que deviam ser estudadas por pessoas que se moviam dentro destas relações. Sua
experiência com as guerras e o contato com os operários ingleses reforçaram sua convicção de
que uma existência humana em uma sociedade industrial só podia ser assegurada por uma
revolução cultural que viabilizasse a subordinação da economia à comunidade humana.
Concomitantemente, ao tentar fornecer uma explicação para o fascismo, ele se debateu com o
problema da liberdade versos ordem em uma sociedade complexa em uma fase historicamente
dramática.269
Tal perspectiva alimentou seu compromisso democrático e sua aproximação com a
Antropologia, na qual ele encontrou uma tradição não essencialista em que a experiência
humana podia ser expressa por meio de um método baseado no conhecimento empírico
concreto. O conceito de cultura possibilitou-lhe trabalhar com os símbolos interpessoais que
controlam o pensamento e a ação dos homens em qualquer grupo dado. Para Stanfield, este
interesse pelas sociedades pré-capitalistas não estava em conflito com o socialismo de
Polanyi, pois se o socialismo era a subordinação da economia à comunidade humana, as
sociedades pré-capitalistas, com sua economia embedded no contexto total do grupo humano,
eram o campo mais fértil para entender aquela subordinação.270
Já em A grande transformação, Polanyi dedicou três capítulos para as sociedades
pré-capitalistas. Após a publicação deste livro, de 1944-1948 parece ter havido uma mudança
nos focos de sua pesquisa. Em 1947, Polanyi se tornou professor visitante da Universidade de
Columbia, e trabalhou em um programa de pesquisa interdisciplinar acerca da origem das
instituições econômicas intitulado “os aspectos econômicos de crescimento institucional” com
um grupo de colaboradores que desembocou na publicação de Trade and market, em 1957.
Neste livro, Polanyi escreveu um capítulo sobre Mesopotâmia e a Grécia, além de capítulos
teóricos sobre o processo de institucionalização da economia. Ele viria, posteriormente, a
escrever artigos sobre porto de comércio em sociedades antigas e sobre a História do Daomé.
Em 1977, Harry Pearson editou uma série de escritos dispersos de Polanyi, nos quais este
268 NAFISSI, M. op. cit., p. 130. 269 SATANFIELD, J.R. op. cit , p. 15-16. 270 ibid, p. 15-17. Esta posição não é compartilhada por Humphreys, que acredita que o interesse de Polanyi pela
Antropologia é acentuado pelas correntes utópicas do período entre guerras, que não mais acreditavam na teoria econômica, e procuravam soluções irracionais para a crise econômica no passado. (Ver Humpreys, op. cit., p. 38)
125
aprofundava muitas das questões teóricas de Trade and market, e teceu uma série de
reflexões sobre a Grécia antiga. Este livro foi intitulado The livelihood of man, e sem dúvida,
é o dos trabalhos que está mais próximo do objetivo de nossa pesquisa.
Até o final de sua vida, em 1964, no Canadá, Polanyi continuou trabalhando no
projeto de uma história e sociologia econômicas que se opunha à tentativa de impingir às
sociedades primitivas e arcaicas os conceitos de uma teoria válida somente para um sistema
de mercado. Polanyi acreditava que tal perspectiva dificultava o desenvolvimento autóctone
daquelas sociedades e era um instrumento do neo-colonialismo.271
4.2 A DEFINIÇÃO DO ECONÔMICO
O estudo de Polanyi leva-nos a uma investigação do debate travado por três correntes
de pensamento da definição de econômico. De um lado os formalistas, que atribuem à
antropologia econômica o estudo de uma variedade de comportamentos humanos que consiste
em combinar os meios determinados e escassos para atingir fins específicos. De outro, os
substantivistas, que entendem ser a economia de uma sociedade as formas e as estruturas
sociais da produção, da distribuição e da circulação dos bens materiais que caracterizam esta
sociedade em um dado momento de sua existência. A terceira corrente é representada pelos
marxistas, que analisam e explicam as formas e estruturas dos processos de vida material das
sociedades com a ajuda dos conceitos elaborados por Marx de “modo de produção” e de
“formação econômica e social.”272 Segundo Godelier, partidário desta última vertente, tanto
os substantivistas quanto os formalistas descendem do empirismo funcionalista, predominante
na economia e na antropologia anglo-saxônica, pois ambos convergem, como empiristas, em
afirmar
que as coisas são o que bem parecem, que o salário é o preço do trabalho, que o trabalho é um fator de produção entre outros, que a fonte do valor das mercadorias não está, portanto, apenas no dispêndio de trabalho social, etc. (...) A diferença, entretanto, está em que os substantivistas se recusam a aplicar à análise de todos os sistemas econômicos estas categorias teóricas empíricas, cuja utilização restringe à análise das economias de mercado273.
271 POLANYI, I. D. Karl Polanyi: notes on his life. In: POLANYI, K _______. The livelihood of man. New
York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. XVIII. 272 GODELIER, M. Horizontes da antropologia. Lisboa: Edições 70, s/d, p. 40-42. 273 ibid., p. 45.
126
Na apresentação de Trade and market (utilizarei aqui a tradução espanhola deste
livro intitulada Comercio y mercado en los imperios antiguos),274 Godelier retoma esta
comparação, ao afirmar que a crítica mais aguda do livro é dirigida a Talcott Parsons e a seu
mestre Max Weber.275 Esta comparação conduz-nos novamente a Weber, e à sua definição de
economia, para entendermos, até que ponto, Polanyi e seus colaboradores distanciam-se e
aproximam-se de Weber, e qual a ressonância disto para o debate que estamos investigando
mais de perto.
Polanyi nunca se encontrou com Weber e referências diretas sobre o trabalho de
Weber nos escritos publicados de Polanyi são raros. Mencionado como um de seus
precursores nos estudos de história econômica, por sua abordagem institucional e histórica,
Polanyi opunha-se à defesa do mercado feita por Weber, pois acreditava ser esta uma ilusão
do século XIX. Para Polanyi não havia nada de inevitável, racional, progressivo ou natural
sobre a ascensão do capitalismo mercantil. A reflexão de Adam Smith sobre o mercado foi
uma ficção produtiva. O capitalismo mercantil foi um projeto utópico e artificial, colocado em
prática, durante todo o século XIX, pelo Estado e por forças interessadas em destruir a
inclinação do homem à comunidade.
Para Max Weber, a economia é, em termos específicos, uma relação humana que tem
por base uma necessidade ou um complexo de necessidades que exigem satisfação. Tal
satisfação exige uma reserva de meios e ações considerados escassos pelos agentes. Além
disso, para que tenhamos um comportamento racional referente a fins, esta escassez deve ser
subjetivamente suposta e as ações orientadas por este pressuposto276. Outrossim, para Weber,
a economia exprime, também, uma relação social, pois implica em uma relatividade
significativa a outrem, na qual a aquisição ou o uso de objetos desejados para satisfazer as
necessidades
dão margem a uma atividade compreendendo de um lado uma exploração sob a forma de produção ou do trabalho organizado e do outro uma previsão com vistas a garantir o atendimento das necessidades sob as formas da
274 POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos.
Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976. 275 Em 1953, Talcott Parsons apresentou em uma série de conferências as grandes linhas do que ele pretendia ser
uma sociologia econômica geral. Em 1956, Talcott Parsons e Neil Smelser publicaram o texto destas conferências sob o nome de “Economy and Society”, tomado diretamente de Weber. Este texto foi enviado a Polanyi e comentado em um capítulo do livro Trade and Market por Harry Pearson. Ver POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 353-365.
276 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 229.
127
provisão, do ganho ou, mais geralmente, de um poder capaz de dispor de bens.277
Desta forma, a gestão econômica pode realizar-se sob dois aspectos. Em primeiro
lugar, a “satisfação de uma dada necessidade própria, que pode referir-se a todos os fins
concebíveis, da comida até a edificação religiosa, desde que sejam escassos os bens ou as
possibilidades de ação exigida.”278 Aqui, é comum acentuar-se a satisfação das necessidades
cotidianas, às chamadas necessidades materiais.
Orações e atos pios podem, de fato, também tornar-se objetos da economia, desde que as pessoas qualificadas a realizá-los e suas ações sejam escassas e, por isso, só possam estar disponíveis em troca de pagamento, assim como o pão de cada dia. Os desenhos dos bosquímanos, aos quais se atribui muitas vezes alto valor artístico, não são objetos da economia, nem sequer produtos de trabalho, em sentido econômico. Ao contrário, outros produtos da criação artística com valor muito menor podem tornar-se objetos de ações econômicas quando se apresenta a situação especificamente econômica de escassez em relação à demanda.279
O outro tipo de gestão econômica está voltado para a aquisição. Aqui aproveita-se da
situação especificamente econômica de escassez de bens desejados para se obter lucro pela
disposição sobre estes bens.280
Segundo Pearson, Weber faz parte de uma tradição de pensamento que acentua a
preocupação pela forma racional de fazer as coisas, sejam quais forem os fins últimos281. Já
demonstramos, na primeira parte de nosso trabalho, a importância atribuída por Weber à
racionalidade capitalista, que, em nossa opinião, assume um caráter teleológico. A leitura de
alguns autores que participaram de Trade and market evidencia e aprofunda com mais
nitidez o que já concluímos anteriormente sobre Weber; todavia, estes trabalhos explicitam-
nos o debate no qual as idéias de Weber estavam inseridas. Terrence Hopkins, por exemplo,
afirma que o enfoque de Weber esboçava versões “ideais” dos diversos tipos de ação social
que se davam nas esferas religiosa, política e econômica. Assim, a sociedade é concebida por
diversas estruturas de relações sociais em que se produzem vários tipos de ações, sendo a
277 FREUND, J. Sociologia de Max Weber. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 1980, p. 112. 278 WEBER, M. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª
edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 229. 279 ibid. 280 ibid., p.230. 281 PEARSON, H. Parsons y Smelser y la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W.
Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 353-365.
128
economia a parte da sociedade constituída por ações racionais no contexto das relações
impessoais.282 Esta concepção acentua, segundo Hopkins, a ação racional. As conseqüências
desta formulação resultaram na idéia de que as economias que não se baseavam no mercado
se apresentavam como meros apêndices compostos por formas aberrantes de partes
correspondentes, em sua essência, à economia de mercado.
Esta corrente de pensamento, cujos mais destacados representantes além de Weber são
Pareto, Marshal e Parsons, tem se dedicado, em primeiro lugar a um “aspecto” determinado
da conduta social, a seu desenvolvimento e às suas conseqüências organizativas. O vínculo
entre este campo de interesse e o problema do lugar das economias nas sociedades constituiu
o surgimento do sistema de mercado, que institucionalizou a ação economizadora de forma
que os movimentos de bens e de pessoas das economias empíricas tendiam a reger-se pela
escolha racional dos indivíduos entre utilizações alternativas de meios escassos. Tudo isto
levou esta tradição e os seus intelectuais a se centrar na economia concebida em sua forma de
mercado.283
Segundo Pearson, tanto a análise de Parsons quanto a de Polanyi e seus colaboradores
(no qual ele se inclui) procuram resolver o problema do lugar mutante que ocupa a economia
na sociedade humana. Convergem com a idéia de que o estudo da economia deve ser feito
dentro do contexto estrutural da sociedade e sua função universal é proporcionar à sociedade
os meios de conseguir seus objetivos, adaptando-se por sua vez ao contexto de um meio
ambiente exterior. Como são muitos os níveis de organização da sociedade que podem
“participar” na realização desta função, nenhuma instituição, nenhuma unidade social
concreta podem ser inteiras e unicamente econômicas: são realidades “multifuncionais”.284
Contudo, para Parsons e Smelser, há uma tendência em todas as sociedades globais de
“diferenciar-se em subsistemas com funções especializadas”. Porém, para Polanyi e seus
partidários, a existência da economia como uma instituição separada, especializada nesta
função, é uma exceção histórica e não o resultado da tendência de toda sociedade global. Essa
282 HOPKINS, T.La sociología y la concepción empírica de la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 327.
283 PEARSON, H. Parsons y Smelser y la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 355-356.
284 PEARSON, H. Parsons y Smelser y la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 353-364.
129
idéia, para Godelier, deriva de uma visão romântica das sociedades pré-capitalistas e que não
vem confirmada pela experiência.285
Hopkins também destaca o chamado “postulado da escassez”, como uma série de
premissas cuidadosamente construída, para definir uma situação na qual se deduz logicamente
o ato de escolha.
Uma situação de escassez pode definir-se como uma situação em que os meios têm usos alternativos e são insuficientes para alcançar todos os fins; como os fins têm de estar classificados segundo uma ordem de prioridades e se supõe que tem de realizar-se alguma ação, a escolha entre os usos dos meios está implicada logicamente.286
Segundo Hopkins, quando este postulado é introduzido na sociologia abandonam-se as
premissas especificadoras, e o termo “escassez” acaba significando simplesmente
insuficiência. O resultado disso pode resultar em um argumento naturalista no qual subjaz a
idéia de que se não há bastante, haverá guerra. Daí a conclusão de que os homens lutam pelo
que está dado na natureza, vivendo ou não em sociedade. Desta forma, o autor nega a
importância universal da “escassez” no funcionamento da economia, sem deixar de negar a
importância de situações de escassez sob condições sociais específicas. Portanto, a presença
de situações de escassez parece ser uma questão de grau.287
Para Pearson, o trabalho de Parsons revela a seguinte posição:
a racionalidade economizadora identifica-se como um dos aspectos universais da conduta humana. Porém, o aparecimento real de dita conduta depende da existência anterior de estruturas sociais que favoreçam esse tipo de ação.288
Tal hipótese é pertinente quando se busca localizar os tipos de estrutura social em que
se possa encontrar ação economizadora. Contudo, caso se pretenda conhecer o sistema pelo
285 GODELIER, M. Presentacion. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y
mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p.13
286 HOPKINS, T. La sociología y la concepción empírica de la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 334. p.13
287 ibid, p. 335-337. 288 PEARSON, H. Parsons y Smelser y la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W.
Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 358-359.
130
qual os homens garantem seu sustento, é necessário avançar nesta proposição, buscando algo
que sirva de ponte entre a ação economizadora e a economia. Parsons e Smelser tentaram
solucionar o problema afirmando que a “economia humana mostra uma tendência a
diferenciar-se de acordo com a necessidade “de adaptação” da sociedade, definida em termos
de economização com meios escassos.”289 Pearson critica a união de uma categoria formal da
ação, a economização, com uma entidade empírica, a economia, identificando assim a
economia com sua forma de mercado. Segundo Pearson, Parsons e Smelser confundem a
“necessidade funcional de adaptação ao entorno no processo de consecução dos fins do
sistema com uma das formas de adaptação, isto é, a economização.”290
Enquanto Weber e Pareto se ocuparam com o grau em que a racionalidade da
economização com meios escassos pode estar presente na sociedade, Polanyi e seu grupo
preocuparam-se com a forma de institucionalização das atividades econômicas reais. Cada
objetivo, segundo Pearson, demanda um método diferente291. Portanto, diante do exposto, o
termo economia designa dois conceitos muito diferentes, um dos quais tem o significado
formal de “economização” e o outro o empírico de “sustento”.292
Passemos às considerações de Polanyi, que, em consonância com Hopkins, afirma que
a economia é uma mescla de dois significados com raízes diferentes, que ele denomina de
“real” e “formal”.293 Esta diferenciação nasceu por volta de 1870 com a teoria econômica neo-
clássica que partiu da premissa estabelecida por Karl Menger, em 1871, de que o econômico
era a distribuição de meios insuficientes para a sobrevivência do homem. Como uma
formulação sucinta da lógica de ação racional com referência à economia, sua importância foi
realçada pelas instituições de mercado. Mais tarde, Menger tentou restringir seus princípios à
economia moderna. Em 1923, ele ressaltou a distinção entre a economia de mercado ou de
troca e as economias de não mercado ou “atrasadas”. Menger apontou duas direções
elementares para a economia: uma derivada da insuficiência de meios, a outra derivada dos
requisitos físicos de produção independente da suficiência ou insuficiência de meios. Devido
às realizações bem aceitas da teoria de preço revelada por Menger, o novo significado formal
289 ibid., p. 359. 290 ibid. 291 ibid., p. 363. 292 HOPKINS, T. La sociología y la concepción empírica de la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 318.
293 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 289.
131
tornou-se o significado de econômico, e o significado mais tradicional de materialidade, que
não necessariamente estava ligado à escassez, perdeu o status acadêmico e foi eventualmente
esquecido.294 Assim, a fusão dos dois significados de econômico, o de “subsistência” e o de
“escassez” passou a ser feita sem consciência dos perigos para a clareza do pensamento
econômico. Tanto Weber, quanto Talcot Parsons foram vítimas desta confusão.
O significado “formal” origina-se do caráter lógico da relação meios-fins, evidente em
termos como economizante ou economização. Se refere à escolha entre os diferentes usos dos
meios, isto é, implica em uma série de normas que regem a escolha entre os usos alternativos
de meios escassos. Um tal significado fundamenta o verbo maximizar (aumentar).295
A ação racional é definida pela escolha de meios em relação a fins. Os meios são
qualquer coisa que sirva para alcançar um fim, seja em razão das leis da natureza ou das
regras de um jogo. Racional é, portanto, a relação entre fins e meios. “Com respeito aos fins, a
escala utilitária de valor foi postulada como racional; e com respeito aos meios, a escala de
teste para a eficiência foi aplicada pela ciência.”296 Portanto, duas escalas diferentes de valor
que ocorrem para adaptarem-se ao mercado. Segundo Polanyi, a variante econômica do
racionalismo é falaciosa, pois defende a idéia de que a escolha é conseqüência da escassez de
meios. Tal falácia postula, em primeiro lugar, que os meios são escassos; e em segundo, que
esta escassez torna necessária a escolha. Contudo, há escolhas de meios sem escassez e
escassez de meios sem escolha. A escolha pode estar determinada por uma preferência entre o
bem e o mal, matéria da ética; ou por uma possibilidade de diversos caminhos (meios) que
conduzam a um fim perseguido, que tenham as mesmas vantagens ou desvantagens. É,
portanto, puramente operacional. Não há insuficiência de meios.297 A escolha moral é
indicada pela intenção do agente de fazer o que é correto. “O costume e a tradição,
geralmente, eliminam a escolha, e se a escolha existir, não necessita ser induzida pelos efeitos
limitantes de alguma “escassez” de meios”.298 A disponibilidade de ar e água ou a devoção de
uma mãe a seu filho pequeno, não são, geralmente limitadas pela escassez. Em algumas
294idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 21-24. 295idem. La economia como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,
H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 289 e POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 19-20.
296 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 13. 297 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,
H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 291 e POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 25.
298 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 27.
132
civilizações, as situações de escassez são quase excepcionais, enquanto que, em outras, é a
regra geral. “Em ambos os casos a presença ou ausência de escassez é um dado, tanto se tem
suas causas na natureza ou no direito.”299
Assim, os termos escolha, insuficiência e escassez deveriam, segundo Polanyi, ser
cuidadosamente vistos em sua relação mútua, pois as reivindicações dos analistas adquirem
formas variadas. O corrente conceito composto de economia, ao fundir a satisfação de
necessidades materiais à escassez, reduzia os termos carência e necessidade somente a escalas
utilitárias de valor dos indivíduos isolados que operavam em mercados. Portanto, a economia
formal aplica-se a uma atividade econômica de um tipo definido, isto é, o sistema de mercado,
mais especificamente os mercados criadores de preço, pois a introdução geral do poder de
compra como meio de aquisição converte o processo de satisfação de necessidades em uma
assignação de recursos escassos com usos alternativos. Disto se depreende que tanto as
condições da escolha como suas conseqüências são quantificáveis em forma de preços.300
A economia “real” deriva da dependência do homem com a natureza e com seus
semelhantes para conseguir seu sustento. Refere-se ao intercâmbio com o meio natural e
social, “na medida em que é esta atividade a que proporciona os meios para satisfazer as
necessidades materiais.”301 O significado “real” ou “substantivo” nasce da dependência
patente do homem pela sua sobrevivência, que se dá por uma interação institucionalizada
entre os homens e seu meio natural. Assim, estudar a subsistência do homem (The livelihood
of man) é estudar o processo que o supre com os meios de satisfazer suas carências (ou
necessidades) materiais. Este é o sentido de econômico para Polanyi.302 A concepção “real”
ou “substantiva” é uma concepção empírica da economia. A economia é portanto uma
atividade institucionalizada de interação entre o homem e seu entorno que dá lugar a um
fornecimento continuo de meios materiais de satisfação das necessidades.303 Não é o
processo econômico como um todo que se institucionaliza, mas sim, a parte composta por
ações humanas. As partes naturais ou não sociais podem ser controladas em diversos graus
pelos homens, porém não institucionalizadas no sentido estrito deste termo. “Assim uma
299 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,
H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 292.
300 ibid., p. 27-28. 301 ibid., p. 289. 302 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 20. 303 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,
H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 293.
133
tentativa de considerar a economia funcionalmente é interpretá-la como um processo que
opera dentro da ‘esfera fronteiriça’ entre o puramente social e o puramente natural.”304
A despeito das fortes críticas do grupo de Polanyi a Parsons, é possível afirmar que a
distinção de Polanyi entre economia formal e real tem uma certa verossimilhança com a
distinção de Weber de racionalidade formal e racionalidade material. Apesar de não ter feito a
mesma distinção de Polanyi quanto ao termo economia, Weber definia a racionalidade formal
de uma gestão econômica como o grau de cálculo tecnicamente possível, na medida em que a
“previdência” podia exprimir-se e de fato se exprimia em considerações de caráter numérico e
calculável. Já o conceito de racionalidade material relacionava-se com o grau em que o
abastecimento de bens de determinados grupos de pessoas, mediante uma ação social
economicamente orientada, ocorresse conforme determinados postulados valorativos. Este
conceito estabelece exigências éticas, políticas, utilitaristas, hedonistas, estamentais,
igualitárias ou outras quaisquer, e as toma como padrão dos resultados de gestão econômica.
Weber afirmava que o conceito de racionalidade formal é inequívoco, enquanto o de
racionalidade material é vago.305 Como vimos anteriormente, Weber deu preferência em seus
trabalhos ao conceito de racionalidade formal. Tal preferência se reflete em sua definição de
economia, que está mais próxima da definição “formal” de economia. Uma forte influência da
escola austríaca, representada por Karl Menger.
A economia “real” ou “substantiva” constitui-se em dois níveis: a interação entre os
homens e seus vizinhos, originando o conceito de “atividade”; e a institucionalização deste
processo, originando o conceito de “institucionalização”. Estes níveis não são inseparáveis.
A interação é responsável pelo resultado material em termos de sobrevivência. O
conceito de “atividade” sugere uma análise em termos de movimento. Os movimentos podem
obedecer a mudanças de situação (locacional) ou de apropriação, que podem caminhar juntas
ou não. O primeiro tipo de movimento consiste em uma mudança de lugar; o segundo, em
uma mudança de “mãos”. Juntos os dois tipos de movimento completam a economia como
um processo.306
304 HOPKINS, T. La sociología y la concepción empírica de la economía. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 342.
305 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 1, p. 52
306 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 294. POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 31.
134
Os movimentos locacionais são a produção e o transporte, que implicam em
deslocamentos espaciais de objetos. Os produtos são de uma ordem superior ou inferior,
segundo a utilidade que tenha para o consumidor. Aqui, produção é sinônimo de “combinação
de mercadorias”. É um fato básico da economia substantiva que as coisas são úteis porque
servem a uma necessidade ou diretamente, ou indiretamente através de suas combinações.
Nesta perspectiva, a preeminência do trabalho como um fator de produção é devido ao fato de
que o trabalho é o agente mais geral entre todas as mercadorias de ordem inferior. Os
movimentos locacionais abrangem caças, expedições e ataques, derrubadas de madeira e
retirada de água; além do sistema internacional de embarque, estrada de ferro e transporte
aéreo. O carregamento podia, em épocas antigas, agigantar-se mais do que a produção; e
mesmo posteriormente, representa uma parte preponderante da produção.307
O movimento de apropriação compreende a circulação dos produtos, determinada por
transações, e sua administração, determinada por disposições. A mudança apropriacional pode
acontecer entre “mãos”, onde “mãos” denotam alguma pessoa ou grupo de pessoas capazes de
possuir. O manejo e a administração, a circulação de mercadorias, distribuição de renda,
tributo e taxação, todos igualmente são campos de apropriação. Uma transação é um
movimento de apropriação entre sujeitos, enquanto que uma disposição é um ato unilateral de
um sujeito, onde a força do costume ou da lei une os efeitos legais definidos. No passado, a
distinção podia estar, na maior parte, relacionada ao tipo de “mão” em questão: pessoas ou
firmas privadas faziam as mudanças apropriacionais por meio de transações, enquanto que a
“mão” pública estava encarregada de fazer as disposições.
As atividades sociais e as instituições são econômicas quando fazem parte das
atividades econômicas. Os elementos econômicos podem agrupar-se como ecológicos,
tecnológicos ou sociais segundo pertençam ao entorno natural, ao equipamento mecânico ou à
sociedade humana. Porém, sem as motivações sociais que determinam as motivações dos
indivíduos, não haveria nada que sustentasse a interdependência dos movimentos e sua
recorrência, necessárias para a unidade e para a estabilidade da atividade econômica.308 Para
adquirir a coerência de uma economia real, o processo de interação deve ser
institucionalizado. É a combinação de elementos humanos e naturais, a interdependência da 307 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 31-33 e
POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 294.
308 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 294-295.
135
tecnologia e as instituições, assim como sua independência relativa, que são compreendidas
pela atividade econômica institucionalizada.
A institucionalização da atividade econômica confere a esta unidade e estabilidade; dá lugar a uma estrutura com uma função determinada na sociedade e modifica o lugar da atividade econômica na sociedade, agregando assim significação a sua história; centra o interesse sobre os valores, as motivações e a atuação prática.309
Portanto, a economia humana encontra-se integrada e submergida em instituições
econômicas e não econômicas. Weber já havia percebido isto. Eis o grande traço que liga o
primitivismo ao substantivismo. Com efeito, a religião ou o governo podem ser tão
importantes quanto às instituições monetárias para a estrutura econômica. O estudo do lugar
cambiante que ocupa a economia na sociedade é a análise de como está institucionalizada a
atividade econômica em diferentes épocas e lugares. O estudo de como estão
institucionalizadas as economias deve começar pela forma como a economia adquire unidade
e estabilidade, isto é, pela interdependência e a regularidade de suas partes. Tal unidade é
resultado de formas de integração, que se manifestam juntas em diferentes níveis e em
distintos setores, impossibilitando-nos selecionar uma delas como dominante para classificar
os diferentes tipos de economias. Contudo, tais formas de integração constituem um
instrumento para descrever a atividade econômica em termos comparativamente simples,
permitindo-nos ordenar as infindáveis variações desta.310
Se a idéia de economia como um complexo de necessidades que exige satisfação é um
traço comum na definição de economia entre Polanyi e Weber, por outro lado, a definição de
Weber se aproxima muito mais dos formalistas ao acentuar a importância dos princípios da
escolha e da escassez, enquanto, Polanyi preocupa-se com a sustentação material do homem.
George Dalton, ao fazer um balanço das críticas à teoria de Polanyi, apresenta as
similaridades entre os postulados dos formalistas e marxistas em contraposição ao
substantivismo. Alfred Marshall, Carl Menger e outros inventaram os conceitos da teoria neo-
clássica para analisar a rede nacionalmente interdependente de mercados de entrada e saída do
capitalismo industrial do século XIX. Marx designou sua terminologia conceitual para
especificar o que ele observou como os atributos centrais do capitalismo industrial do século
309 ibid, p. 295. 310 ibid. p. 296.
136
XIX. Antropólogos e historiadores formalistas e marxistas, ao usar esses sistemas de
conceitos para analisar as ilhas Trobriand de Malinovski, ou o reino de Daomé no século
XVIII, ou o Peru dos Incas, dizem que as similaridades entre essas economias tribais e o
capitalismo industrial são mais importante que as diferenças. Segundo Dalton, a proposta
teórica tanto de formalistas e marxistas é universal ou geral, pois se propõe a explicar todas as
economias mundiais reais, todos os períodos históricos de tempo e todos os tópicos estudados,
enquanto a teoria polanyiana não tem esta ambição. Na antropologia econômica, Dalton acha
que a teoria polanyiana é apropriada para três tipos de economia e períodos históricos:
economias aborígenes (pré-coloniais) em sociedades sem Estado, também pré-colonais, e
reinos tribais. Bandos e tribos que deixam de estar sob o domínio colonial e já em
desenvolvimento pós-colonial estão fora destes estudos. A maioria dos casos, mas não todos
de mudança colonial, exigem a compreensão de mercados modernos, e, portanto, a
necessidade da economia formal.311 Esta reflexão esconde a dificuldade da análise polanyiana
de perceber as mudanças históricas no interior das sociedades.
Em oposição a Dalton, Godelier acredita que o enfoque empírico de Polanyi chega a
conceitos abstratos, formais, que privilegiam as aparentes semelhanças, mas não as
diferenças. Godelier critica Polanyi por não procurar o que está por trás das instituições,
aproximando sua visão dos formalistas. O fundamento das relações de compatibilidade
recíproca entre certas formas de economia e certos tipos de relações sociais só é encontrado
nas propriedades dessas relações sociais. Não basta fazer o inventário das sociedades e
descobrir em cada uma delas a instituição que a domina para poder assim saber que lugar
ocupa e que papel desempenha a economia. É necessário perceber o “papel” desempenhado
pelas relações econômicas e seus “efeitos” sobre o funcionamento e a evolução das
sociedades. Para isto, é necessário analisar a causalidade específica de todos os tipos de
relações sociais sobre a reprodução dos sistemas aos quais pertencem, ou seja, sobre a
reprodução de diferentes modos de vida. O estudo da manutenção da unidade e da
estabilidade dos sistemas sociais só pode ser compreendido por meio de sua História, pois
nem todos os níveis e formas de prática social têm a mesma importância para a reprodução de
um sistema social, para sua manutenção, sua transformação e seu desaparecimento. Esta
hierarquia dos efeitos das formas de prática social revela a existência de uma causalidade
311 DALTON, G. Writings that clarify theoretical disputes over Karl Polanyi’s work. In: POLANYI-LEVITT, K.
The life and work of Karl Polanyi. A celebration. Montreal; New York: Black Rose Books, 1990, p. 164-166.
137
diferencial desses níveis e dessas formas da prática social. Uma hierarquia dos níveis da
organização social. Por isso, se deve descobrir quais são as causas primeiras desta hierarquia e
as relações que determinam a reprodução (funcionamento e evolução) dos sistemas sociais.312
4.3 RECIPROCIDADE, REDISTRIBUIÇÃO, HOUSEHOLD E INTERCÂMBIO
No final dos anos cinqüenta, enquanto a História seguia em sua progressão para a
captação da “totalidade” auxiliada pelas outras ciências sociais, a Antropologia era dominada
por três paradigmas hostis à investigação histórica: o funcionalismo estrutural britânico
(descendente de Radicliffe Brown e Bronislaw Malinowski); a Antropologia cultural e psico-
cultural norte-americana (herdeira de Margaret Mead e Ruth Benedict) e a Antropologia
evolucionista norte-americana (de forte afiliação arqueológica, formada em torno de Leslie
White e Julian Steward). Para estes antropólogos, a Antropologia social era uma ciência
próxima das ciências naturais pela sua tendência a generalização, enquanto a História era
incluída entre as ciências “particulares”. A ruptura do diálogo entre as duas disciplinas levou a
Antropologia a um “empirismo abstrato” e “grandes teorias” que caracterizavam a Sociologia
nesta época. Predominou entre os antropólogos a concepção de que antes da dominação
européia, todas as sociedades “primitivas” eram estáticas. Conseqüentemente, estes
antropólogos acabaram reduzindo o problema da História à dualidade primitivo-moderno.
Mesmo o estruturalismo de Claude Levi-Strauss também subestimava a História ao negar
qualquer impacto significativo do acontecimento na estrutura. Esta tendência, entretanto, não
foi geral. No final dos anos setenta, a chamada escola antropológica de “economia política”,
centrava seus interesses nos sistemas econômico-políticos de “grande escala” e a análise dos
efeitos da penetração do capitalismo nas sociedades agrárias. Para estes autores, os fatores
fundamentais da mudança são o Estado e o sistema capitalista mundial. Não obstante, todos
os antropólogos destas correntes antropológicas, além dos marxistas estruturais, acreditam
que a ação humana e o processo histórico são determinados pela mão oculta da estrutura ou
por forças do capitalismo. Neste sentido, a sociedade (ou a cultura) é uma realidade objetiva
com dinâmica própria, separada da ação humana.313
312 GODELIER, M. Karl Polanyi et la “place changeante” de l’économie dans les sociétés”. In: _________.
L’idéel et le matériel. Pensée, économies, sociétés. Paris: Fayard, 1984. 313 CASANOVA, J. La Historia social y los historiadores. Barcelona: Editorial Crítica, 1991, p. 64-67.
138
Na segunda metade dos anos quarenta, a Antropologia Econômica já era um ramo
vigorosamente desenvolvido da Antropologia Cultural. Esse desenvolvimento foi motivado
tanto pelas tendências culturais inerentes da disciplina quanto por fatores externos. A difusão
de visões estrutural-funcionalistas contribui para o desenvolvimento dos estudos das relações
econômicas, particularmente depois das monografias das ilhas Trobriand de Malinowski. As
exigências de uma exploração mais eficiente das colônias chamaram a atenção dos
antropólogos desejosos de empreender pesquisa sobre os fenômenos econômicos.314
Os estudos de Thurnwald, Malinowski e outros antropólogos levaram Polanyi a
concluir que a economia do homem, em geral, está submergida em suas relações sociais.
Thurnwald e Malinowsky procuraram demonstrar que as relações econômicas confundiam-se
com as relações de parentesco ou políticas nas sociedades primitivas. A partir destes trabalhos
antropológicos Polanyi tomou as sociedades primitivas para formular sua alternativa anti-
mercado evolucionista. Contudo, além de utilizar estes conceitos para as sociedades
primitivas, os ampliou para além das formações primitivas, utilizando-os como uma
alternativa para a teoria geral de desenvolvimento econômico de Bücher ou a teoria de modos
de produção de Marx.
A observação empírica demonstra que as principais formas de integração são a
reciprocidade, a redistribuição e o intercâmbio. Além destas três formas de integração,
Polanyi também analisou o household no livro A grande transformação, porém o excluiu de
Trade and market, pois o household abrangia um grupo menor, caracterizado pela ausência
das relações intergrupais. Polanyi ampliou estes conceitos para além das formações
primitivas.
Thurnwald foi o primeiro autor que falou da relação que existe entre a conduta de
reciprocidade ao nível interpessoal e as agrupações simétricas em um estudo empírico sobre o
sistema matrimonial dos bánaros da Nova Guiné, em 1915.315 Malinowski, em suas pesquisas
nas ilhas Trobriand confirmou a hipótese de Thurwald. Este foi o primeiro passo para
generalizar a reciprocidade como uma das formas de integração e a simetria como uma das
várias estruturas de apoio. Os habitantes das ilhas Trobriand traduziam o autêntico sistema de
reciprocidade quando Malinowski relatou a responsabilidade do homem trobriandês voltada
314 SÁRKÁNY, M. Karl Polanyi’s contribution to Economic Anthropology. In: POLANYI-LEVITT, K. The life
and work of Karl Polanyi. A celebration. Montreal; New York: Black Rose Books, 1990, p. 183. 315 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 297.
139
para a família de sua irmã, sem ser ajudado pelo marido da irmã, mas sim, pelo irmão da
esposa. A provisão de alimentos entre uma vila e outra também está subordinada à
reciprocidade. Os movimentos recíprocos de mercadorias requerem adequações em termos de
dádiva e contra-dádiva. Adequação aqui significa que a pessoa certa, na ocasião certa, deverá
reenviar um tipo certo de objeto. A pessoa certa é a pessoa simetricamente posicionada. O
comportamento adequado é aquele de equidade e consideração, ou uma amostra disto.316
Um intricado sistema de tempo-espaço-pessoa, que cobre centenas de milhas e diversas décadas, e que liga muitas centenas de pessoas em relação a milhares de objetos estritamente individuais, é aqui manipulado sem que existam registros ou administração, e também sem qualquer motivação de lucro e permuta.317
A reciprocidade supõe movimentos entre pontos correlativos de agrupações
simétricas; a redistribuição consiste em movimentos de apropriação em direção a um centro
primeiro e, posteriormente, deste centro para fora outra vez; por intercâmbio entendemos
movimentos recíprocos como os que realizam os “sujeitos” em um sistema de mercado.
Polanyi ressalta que os meros agregados das condutas individuais não bastam para produzir as
estruturas. A conduta de reciprocidade entre os indivíduos só integra a economia se já há
estruturas organizadas simetricamente, como os sistemas simétricos de grupos unidos pelo
parentesco. Do mesmo modo, a redistribuição pressupõe um centro para onde se dirigem os
recursos da comunidade. Finalmente, os atos de troca no plano individual só produzem preços
se estiverem enquadrados em um sistema de mercados criadores de preços; uma estrutura que
não sugere, de forma alguma atos de troca efetuados ao acaso.318
As formas de integração são empregadas pelo autor de forma descritiva, sem nenhuma
associação de caráter motivacional. As formas de integração são relativamente independentes
dos objetivos e do caráter dos governos, bem como dos ideais e modos das culturas em
questão. Uma atitude neutra quanto às implicações morais e filosóficas das políticas
governamentais e valores culturais é um requisito das pesquisas objetivas acerca das relações
316 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 39 317 idem. A grande transformação. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000. 318 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 296-297.
140
mutantes do processo econômico para as esferas políticas e culturais da sociedade como um
todo.319 Posição muita próxima à de Weber acerca do papel do estudioso das humanidades.
Aristóteles afirmava que para cada tipo de comunidade (koinonia), correspondia um
tipo de boa vontade (filia ) entre seus membros que se expressava em reciprocidade
(antipeponthos). Isto era válido, tanto para as comunidades mais permanentes (famílias, tribos
ou cidades-Estados), quanto para as menos permanentes que podem estar compreendidas ou
subordinadas às primeiras. Isto implica uma tendência das comunidades maiores a
desenvolver em uma simetria múltipla que pode ser uma referência para as comunidades
subordinadas.
Quanto mais próximo se sentem entre si os membros da comunidade maior, mais geral será a tendência a desenvolver atitudes de reciprocidade nas relações específicas limitadas pelo espaço, o tempo ou outros fatores. O parentesco, a vizinhança ou o tótem são as agrupações mais permanentes e amplas, dentro delas, associações voluntárias ou semivoluntárias de caráter militar, profissional, religioso ou social criam situações nas que, pelo menos transitoriamente ou de forma limitada a uma determinada localidade ou situação típica, se podem formar agrupações simétricas cujos, membros praticam alguma forma de reciprocidade.320
A redistribuição surge dentro de um grupo, quando a distribuição das mercadorias
(incluindo terras e recursos naturais) está centralizada e se realiza seguindo costumes, leis ou
decisões. Em algumas ocasiões, consiste na arrecadação física do produto, acompanhada de
armazenamento e redistribuição; em outras, a arrecadação não é física, mas sim, jurídica,
como no caso dos direitos sobre a localização física dos bens. A redistribuição pode estar
presente tanto em tribos primitivas como em civilizações de extensos sistemas de
armazenamento, como no Egito, Suméria, Babilônia e Peru.321 “Quanto maior o território e
mais variado o produto, mais a redistribuição resultará numa efetiva divisão do trabalho, uma
vez que ajudará a unir grupos de produtores geograficamente diferenciados.”322
Entre algumas tribos, há um intermediário na pessoa do chefe ou outro membro
proeminente do grupo. É ele quem recebe e distribui os suprimentos, principalmente se
houver necessidade de armazenamento. Esta redistribuição pode ser feita por uma família
319 idem. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 36. 320 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,
H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 298-299.
321 ibid. p. 299. 322 POLANYI, K. A grande transformação. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 68.
141
influente ou por um indivíduo importante, uma aristocracia dominante ou um grupo de
burocratas. Em todas estas situações, estes setores sociais tentarão aumentar seu poder
político pela forma de redistribuição dos bens. O chefe trobriandês tinha o privilégio da
poliginia. Ele podia ter quarenta esposas, tomadas de quarenta subclãs da ilha, que garantiam
o abastecimento de uma grande quantidade de batatas doces por meio de seus irmãos. Desse
modo, a função da liderança política era reforçada pelos costumes do casamento, que lhe
garantiam privilégios como o da poliginia. Uma função importante do chefe era arrecadar e
distribuir riquezas em festivais, solenidades religiosas, festas mortuárias, visitas de estado,
colheitas e outras celebrações. A redistribuição física ou disposicional só se dá na presença de
canais por meios dos quais o movimento em direção ao centro e o movimento subsequente
em direção oposta aconteçam com uma organização central, não somente política, mas
também econômica. Na verdade, o sistema econômico é mera função da organização social.
O household (domesticidade) consiste na produção para uso próprio. O seu padrão é o
grupo fechado. Diferente do que muitos pensam, inclusive Karl Bücher, que foi o primeiro a
observar o caráter inteiramente diferente da sociedade primitiva, não se deve presumir que a
produção para a própria pessoa, ou para um grupo, seja mais antiga que a reciprocidade ou a
redistribuição. “A prática de prover as necessidades domésticas próprias tornou-se um aspecto
da vida econômica apenas em um nível mais avançado da agricultura.”323 A natureza do
núcleo institucional é indiferente: pode ser sexo, como na família patriarcal; localidade, como
nas aldeias; ou poder político, como no castelo senhorial. Em todos estes casos, o princípio é
sempre o mesmo: produzir e armazenar para a satisfação das necessidades dos membros do
grupo.
O intercâmbio como forma de integração requer um sistema de mercados criadores de
preços. Há três tipos de troca: o movimento puramente físico de uma “troca de lugares” entre
os sujeitos (intercâmbio operacional); os movimentos apropriativos de intercâmbio, a uma
equivalência fixa (intercâmbio acordado); ou a uma equivalência negociada (intercâmbio
integrador). Quando a troca se produz a uma equivalência fixa, a economia não está integrada
pelo mercado, mas sim, pelos fatores que fixam dita equivalência. A troca a preços fixos não
supõe mais que um ganho para as duas partes implicadas na decisão de intercambiar. Já a
equivalência negociada é assinalada pela presença do regateio. Aqui para que o intercâmbio
seja integrador, a conduta das partes deve estar orientada a produzir um preço que favoreça o
máximo a cada uma das partes. A barganha não é o resultado da fragilidade humana, mas um
323 ibid., p. 73.
142
padrão de comportamento logicamente exigido pelo mecanismo do mercado. A troca a preços
flutuantes, diferente da troca de preço fixo, tem como objetivo um ganho que só se pode
conseguir por uma atitude de claro antagonismo entre as partes interessadas. Daí a proibição
das transações motivadas pelo ganho, particularmente, no que se refere aos artigos de primeira
necessidade, nas sociedades arcaicas.324 Assim como a reciprocidade, a redistribuição ou
mesmo a domesticidade (household), o princípio da troca pode ocorrer em uma sociedade sem
ocupar o lugar primordial, ocupando um lugar subordinado numa sociedade na qual outros
princípios estão em ascendência.325
Polanyi enfatiza que as formas de integração não representam etapas de
desenvolvimento, pois não implicam nenhuma ordem de sucessão no tempo. Junto com a
forma dominante, podem aparecer várias formas subordinadas; podendo a forma dominante
sofrer eclipses e reaparições.326 Polanyi atacava a teoria das etapas - escravidão, servidão, e
trabalho assalariado - do marxismo vulgar.
Segundo Nafissi, a despeito de muitos insights históricos encontrados no trabalho de
Polanyi, a reciprocidade e a redistribuição foram concebidas como entidades (ou eternidades)
harmoniosas imunes às mudanças históricas. Esses conceitos e as sociedades que eles
designavam eram assim constituídos porque eram ao mesmo tempo concebidos como
manifestações (teóricas e sociais) da essência imutável do homem como um ser social. Neste
sentido, o paradigma de Polanyi, apesar dele mesmo ter afirmado ser uma contribuição
institucionalista para a História econômica, um desenvolvimento do legado de Weber,
permanece não somente pré-weberiano, mas, também, pré-sociológico e transhistórico.327
Acreditamos, que esta postura está intrinsecamente relacionada com a tendência, na primeira
metade do século XX, de proximidade da Antropologia com as ciências naturais e seu pouco
contato com a História. Esta tendência a-histórica de Polanyi se confirma pela sua crença da
imutabilidade da natureza humana, quando ele afirma que
seus dotes naturais [dos homens] reaparecem com uma constância marcante nas sociedades de todos os tempos e lugares e as precondições necessárias
324 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 300-301.
325 idem. A grande transformação. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 76. 326 idem. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON,
H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 301.
327 NAFISSI, M. op. cit., p. 166-167.
143
para a sobrevivência da sociedade humana parecem ser as mesmas, sem mutações.328
Tal passagem reforça o postulado da unidade da humanidade, um dos axiomas da
Antropologia Cultural moderna, cujo crédito particular é atribuído a Franz Boas, e um dos
pontos de partida da Antropologia estrutural-funcionalista. Polanyi tratou as ações de
comportamento de acordo com os princípios de reciprocidade e redistribuição e reconheceu
que essas formas de comportamento estavam ligadas à existência de estruturas sociais
determinadas – um exemplo característico de explicação funcional.329
Segundo Sárkány, a estratégia de pesquisa de Polanyi partiu do princípio de
embeddedness, baseada no caráter poli-funcional de instituições. O conceito de economia
como um processo institucionalizado está ligado às tendências da escola institucionalista
americana e as abordagens da Escola Histórica de teoria econômica. Seus paralelos também
podem ser achados na análise institucional da Antropologia social britânica, na qual o aspecto
de integração social teve um papel central.330
Godelier, na apresentação de Comercio y mercado en los imperios antiguos, afirma
que as formas de integração são conceitos descritivos de aspectos comuns e formais de certas
relações sociais. Polanyi, segundo Godelier, não tentou explicar as razões da presença no seio
de determinada sociedade dessa ou daquela estrutura social, nem tratou de descobrir que
razões fazem com que o processo de produção de meios materiais se encontre “imbricado” em
determinada sociedade. Polanyi se limitou, somente a investigar o efeito concreto dessa
“imbricação” sobre o mecanismo econômico. Quanto à crítica ao evolucionismo, Godelier
concorda em parte com Polanyi, mas argumenta que a questão premente é interpretar a
dominação ou a subordinação das formas de integração, e, portanto, “a presença de uma
hierarquia específica dessas formas como a conseqüência de uma etapa alcançada pela
evolução das formas de organização econômica e social da humanidade.”331 A análise
rigorosa das formas de integração não levou Polanyi a distinguir duas realidades que se
confundem sob o mesmo conceito, as relações sociais de produção e as formas sociais de
circulação dos produtos. Estes aspectos não têm a mesma importância.
328 POLANYI, K. A grande transformação. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 65. 329 SÁRKÁNY, M. Karl Polanyi’s contribution to Economic Anthropology. In: POLANYI-LEVITT, K. The life
and work of Karl Polanyi. A celebration. Montreal; New York: Black Rose Books, 1990, p. 184. 330 ibid., p. 186. 331 GODELIER, M. Presentación. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y
mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976, p. 29.
144
As relações de produção constituem o caráter principal e o traço específico dos modos de produção, e determinam o número, a forma e a importância respectiva das formas de circulação do produto social que existem em cada sistema. Há então uma ordem hierárquica em toda sociedade, uma relação de compatibilidade e de subordinação estruturais entre o conteúdo das relações de produção e as formas de circulação dos produtos materiais.332
Esta crítica a Polanyi foi feita na apresentação de Comercio y mercado en los
imperios antiguos. Em Livelihood of man, há uma seção intitulada “a emergência das
transações econômicas: da sociedade tribal a arcaica”, na qual o autor, se não responde as
questões de Godelier, explicita melhor suas hipóteses de trabalho esboçadas em Comercio y
mercado en los imperios antiguos. Sua questão fundamental é explicitar uma série de
questões do imbricamento (embeddedness). Para isto, o autor faz um estudo da emergência
das transações econômicas das sociedades tribais às sociedades arcaicas.333
4.4 O SURGIMENTO DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS E AS DIFERENÇAS ENTRE
OCIDENTE E ORIENTE
Nas sociedades primitivas, as transações econômicas não estão salvaguardadas em
instituições especificamente econômicas. As transações econômicas estão imbricadas na
esfera do parentesco, do Estado, do mágico e da religião. Estas esferas são originadoras dos
sistemas de status, dos quais as transações econômicas eventualmente tendem a desgarrar-
se.334
A idéia de status é oriunda das análises de Henry Maine e Ferdinand Toennies. Maine,
em 1861, publicou um livro intitulado Ancient Law no qual revela que muitas instituições
modernas estavam baseadas no contrato, enquanto a sociedade antiga estava baseada no
status, estabelecido por nascimento – por posição de família e na família – e determinanador
dos direitos e deveres da pessoa, derivados de parentesco, totem e outras fontes. O sistema de
status persistiu até o século XIX, e foi gradualmente substituído pelo contrato, isto é, por
direitos e deveres fixados por transações consensuais ou contratos. Os trabalhos de Maine
influenciaram o sociólogo alemão Ferdinand Toennies - cujos trabalhos estão ligados à
tradição histórica alemã - que publicou um trabalho intitulado Gemeinschaft und
332 ibid, p. 30. 333 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 47-74. 334 ibid., p. 57.
145
Gesselschaft (Comunidade e sociedade), em 1888. Comunidade era a “sociedade de status”,
sociedade a “sociedade de contrato”. Contudo, entre Maine e Toenies, a conotação emocional
de status e comunidade, por um lado, e contrato ou sociedade, por outro, era muito diferente.
Enquanto para Maine, a condição do pré-contrato era a idade obscura do tribalismo, para
Toennies, a comunidade representava a condição na qual os seres humanos estavam ligados
pelo tecido da experiência comum. Por outro lado, a introdução do contrato, para Maine,
emancipou o indivíduo da servidão da tribo; e a sociedade, para Toennies, representava os
laços comerciais impessoais da sociedade. O ideal de Toennies era a restauração da
comunidade. Weber usou comumente os termos comunidade e sociedade no sentido de
Toennies.335
A emergência do Estado é um marco divisor da sociedade tribal à arcaica. A guerra e o
comércio, elementos que contribuem para a formação do Estado, requerem meios, em termos
de homens, gado, e materiais, cujas coleta e manipulação resultam em instituições novas. A
gradual emergência do econômico de seu engastamento no tecido da sociedade descrita, em
termos de “modo de vida” e “status”, só é possível se as atividades econômicas
diferenciarem-se dos processos gerais da vida; se a terra mudar de mãos, independente da
posição das pessoas envolvidas na negociação; e se a honra não mais for identificada com
riqueza e riqueza com honra. A emergência das transações econômicas permitiu aos
indivíduos usar mais livremente os meios econômicos úteis na sociedade e a possibilidade de
um avanço material quase ilimitado por toda a comunidade. Assim, métodos transacionais e
disposicionais de grande significado econômico foram introduzidos em várias civilizações.
Tanto na Babilônia, sem mercado, quanto na ágora de Atenas, embora de modos diferentes,
as transações de status foram suplementadas por transações econômicas. Como este
desenvolvimento se manifestou e a diferente direção tomada pelo Ocidente e o Oriente são
questões levantadas por Polanyi.336 Tais questões se aproximam com outra comparação de
Weber.
Weber, em sua análise acerca das tipologias das cidades, perguntou-se porque a cidade
nasceu e desenvolveu-se no mediterrâneo e depois na Europa e não na Ásia. Como já
ressaltado anteriormente, o acento de Weber recai sobre a diferente constituição militar e seus
fundamentos econômico-sociológicos entre Ocidente e Oriente. No Oriente, a necessidade de
uma burocracia real levou o rei a submeter à sua própria gestão burocrática a administração
335 ibid., p. 48-49. 336 ibid., p. 58-59.
146
do exército, enquanto no Ocidente, o princípio de auto-equipamento do exército resultou em
uma autonomia militar do indivíduo obrigado ao serviço militar e uma dependência do
soberano à boa vontade dos membros de seu exército. Falta aqui o aparato coativo
burocrático, que lhe obedece cegamente porque depende dele. Diante de cada um, ele é o mais
poderoso, porém diante de todos, ele é impotente. O poder financeiro dos moradores urbanos
obrigava o senhor a pactuar com eles em caso de necessidade. Por outro lado, os mais ricos
das cidades do oriente não eram capazes de reunir-se e enfrentar militarmente os reis,
enquanto, no ocidente, as conjurationes e uniões constituem um traço particular; isto é,
alianças das camadas militarmente capacitadas das cidades.337 Weber, portanto, ressalta o
poder militar e político das camadas sociais do ocidente e oriente. Já Polanyi segue um outro
caminho para responder tais questões.
A emergência das transações econômicas, segundo Polanyi, deve ser procurada a
partir das formas integrativas das sociedades tribais e arcaicas, e não através da dissolução dos
tabus e do nascimento dos instintos aquisitivos naturais dos homens. Diferente do que sugeria
o racionalismo econômico do século XIX, a troca expandiu-se na economia quando podia
servir a validação da comunidade; isto é, quando podia ser feita sem lucro. Isto foi conseguido
por meio de equivalências. A troca era legitimada, na medida em que se estabelecia a
equivalência daquilo que era trocado. Tal processo foi reconhecido pelo Estado
mesopotâmico, no qual as equivalências eram legitimadas inclusive pelos representantes da
divindade. No caso das pequenas cidades-Estados - como Atenas (parcialmente) e Israel, de
tipo camponês, já são permitidas transações lucrativas, como meio de sobrevivência, feitas
abertamente no mercado, sem a exclusão das equivalências. Contudo, a ágora ateniense,
apesar de ter admitido a troca lucrativa entre seus membros, não conheceu a liberdade de
comércio no sentido moderno, e a cidade-Estado continuou a praticar todas as prerrogativas
do corpo tribal sobre seus membros. Tais desenvolvimentos desiguais das transações
econômicas no tecido social resultam em desenvolvimentos políticos e econômicos
diferenciados.338
Equivalências são planos pelos quais as relações quantitativas são feitas entre
mercadorias de diferentes tipos. O termo indica o número de unidades de um tipo de objeto
que, “quando substituído por um número de unidades de outro tipo, resulta em operações
337 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 33. p. 444-445. 338 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 61-62.
147
como reciprocar, redistribuir, ou trocar.339 Quando um presente é reciprocado, o contradom
adequado é, de maneira geral, indicado em termos convencionais. No processo redistribuitivo,
as equivalências também são fundamentais, em geral, definidas como equivalências
substitutivas. As mercadorias arrecadadas pelo centro e redistribuídas, classificadas como
taxas, obrigações feudais ou dádivas voluntárias, são freqüentemente ajustadas à mercadorias
de diferentes tipos. Provisões estabelecidas são o único plano possível para estas operações. A
importância da racionalização em economia de espécie é confirmada nos tabletes sumerianos
e babilônicos que estabeleciam as quantias de cevada para as pessoas, de acordo com a idade,
e rações de animais domésticos. “A operação de racionalizar apresenta uma combinação de
qualidade e quantidade de provisões espelhadas no duplo aspecto da palavra necessidade”.340
As equivalências nos sistemas redistribuitivos, em geral, servem muito mais como um meio
de contabilidade, do que como um padrão de valor.
O aumento das trocas, não necessariamente, exclui as equivalências, podendo produzir
trocas equivalentes. As equivalências no mundo mesopotâmico envolviam quase todas as
transações com mercadorias (preços), serviços (salários), uso de dinheiro ou outros fundíveis
sobre tempo (juros), uso de um bote, da terra ou casa (aluguel), e outros. Não havia, em
nenhuma transação ou disposição, exploração de qualquer lado do tratante em detrimento da
equivalência. O comércio natural, que, segundo Aristóteles repousa na premissa das
exigências de auto-suficiência, equivale às trocas equivalentes.
A equivalência está também diretamente relacionada ao preço justo. As equivalências
entre as unidades de mercadorias diferentes eram pensadas para expressar proporções que
refletissem as condições existentes da sociedade arcaica. Conseqüentemente, o que se pensa
como ganho, lucro, salário, aluguel, ou outras receitas, deve ser compreendido na
equivalência, na medida em que tais receitas servem para manter as relações e valores sociais
existentes. Esta é a racionalidade do preço justo, determinada, ou pela autoridade municipal,
ou pelas ações dos membros do mercado, mas sempre de acordo com os determinantes da
situação social. O uso do padrão dinheiro, não necessariamente exclui as equivalências, pois
ofertas mútuas podem ser combinadas e igualadas.341
A quebra dos tabus nas sociedades tribais quanto às transações econômicas abre
caminho para o aumento da produção e consumo. Tal dissolução na sociedade tribal assume
339 ibid, p. 64. 340 ibid, p. 66. 341 ibid. p. 71-72.
148
dois caminhos: ou a aceitação limitada e controlada de certos tipos de transações; ou a
eliminação dos princípios de ganho de tais transações. O primeiro caminho é típico das
sociedades camponesas pequenas, com a formação de mercados; e o outro, dos impérios
arcaicos de irrigação. Há aqui uma aproximação, ainda que limitada, com Weber, em relação
ao desenvolvimento do comércio. Weber, coerente com sua hipótese de “tipos” de
capitalismo, indica uma atrofia das liberdades comerciais e do próprio capitalismo no Oriente,
em virtude do fortalecimento do papel do Estado, e, por outro lado, enxerga a formação de um
tipo de capitalismo no Ocidente - o político, no qual havia espaço para transações comerciais
com fins lucrativos. Polanyi não trabalha com a idéia de “tipos” de capitalismo, mas sim, com
a hipótese de que o papel econômico da justiça nos impérios arcaicos era sancionar as
transações sem ganho, especialmente na agricultura, o que evitava o desenvolvimento de
mercados. Esta sanção abriu caminho para linhas majoritariamente disposicionais, estando as
formas transacionais senão excluídas, bem diminuídas. Entretanto, tanto as disposições
quanto às transações foram resultados das formas redistribuitivas de integração, e não da ação
das burocracias administrativas estatais. Enquanto Weber acredita que o poder da burocracia
estatal, no Oriente, inviabilizava a formação de cidadãos que pudessem fazer frente ao poder
do soberano, tornado-os muito mais dependentes do poder real que no Ocidente, Polanyi
acredita que, a ausência de mercados era resultado de métodos administrativos poderosos
fortemente mantidos nas mãos da burocracia central, pois, as transações sem ganho e as
disposições reguladas pela lei revelavam uma esfera de liberdade pessoal nunca anteriormente
vista na vida econômica do homem. Parece-nos aqui, que as formas de integração assumem
uma importância superior àquela que Weber dedica à intervenção estatal nas formas de
organização econômica. Por outro lado, tanto Weber quanto Polanyi vêem um incremento das
transações econômicas no Ocidente. Enquanto Weber ver tais transações marcadas pela
ausência de racionalidade econômica voltada para o lucro, principalmente pela ausência de
um mercado livre, não estamental, Polanyi não acentua a questão da racionalidade econômica
para diferenciar o mundo antigo do moderno, mas sim o predomínio de certos tipos de
integração e a presença do caráter transacional no Ocidente e disposiocional no Oriente.
A idéia da ausência de mercados no Oriente tem sido muito criticada por assiriólogos.
Komoróczy acredita que Polanyi estabeleceu um sistema tipológico, pois transformou os
fenômenos substantivos em categorias tipológicas: isto é, ele as formalizou.Traçando um
paralelo ao conceito de Marx de História Antiga, Komoróczy afirma que Marx reconheceu
que as tensões do século dezenove poderiam ser traçadas a partir da estrutura dicotômica da
149
sociedade capitalista. Ele queria eliminar essa dicotomia, mas também explicar a sua
evolução. Se essa dicotomia é histórica, então, ele acreditava que em algum momento ela não
existiu. Marx localizou essa não existência no começo do desenvolvimento histórico,
denominado de comunismo primitivo. Polanyi, segundo Komoróczy, inconscientemente
seguiu essa lógica quando postulou a economia sem mercado na Antiguidade. Em ambos os
casos, a lógica precisava da era histórica mais antiga conhecida. Komoróczy procura
demonstrar que a idéia da ausência de mercado no Oriente é a utopia histórica de Polanyi.342
4.5 KARL POLANYI E A GRÉCIA ANTIGA
Ao longo de sua extensa obra, Polanyi desenvolveu suas hipóteses de trabalho com
estudos empíricos. Ele e seu grupo não mediram esforços para demonstrar, em oposição às
formações capitalistas, que as instituições do comércio, do mercado e do dinheiro se
constituem em unidades separáveis nas sociedades de status. Procuraram evidências empíricas
em diversas sociedades para demonstrar que a presença de comércio e dinheiro não
necessariamente está atrelada à existência de mercado. E mesmo quando este existe não
necessariamente se constitui em um mercado estruturado sobre o preço, a oferta e a demanda,
elementos constituintes do mercado capitalista. Os seus trabalhos sobre a Grécia antiga são
extremamente profícuos no desenvolvimento destas hipóteses. Ao apresentar suas reflexões
sobre a Grécia antiga, continuaremos comparando a abordagem polanyiana com as conclusões
dos autores já investigados aqui, a fim de perceber o que foi conservado, acrescentado e ou
transformado à tradição “primitivista”. Com isto, procuraremos demonstrar como a
incorporação de novos elementos teóricos, em um estudo de caso, engendra uma nova
nomenclatura à tradição que vimos investigando até agora.
Em relação ao debate do oikos, Polanyi posicionou-se favorável aos primitivistas e,
mesmo questionando a teoria evolucionista de Bücher e Rodbertus, foi simpático à idéia da
limitação do papel dos mercados (como o principal mecanismo de alocação) ao período
moderno. Polanyi voltou-se para Weber, apesar de considerá-lo um defensor dos mercadistas
em relação à teoria econômica. A historiografia institucional comparativa de Weber
incorporava os insights dos primeiros primitivistas, deixando de lado, o evolucionismo e o
342 KOMORÓCZY, G. Karl Polany’s Historical Utopia. In: POLANYI-LEVITT, K. The life and work of Karl
Polanyi. A celebration. Montreal; New York: Black Rose Books, 1990, p. 191.
150
reducionismo econômico do oikos como característica definidora da Antigüidade. Estes
fatores aproximaram muito mais do que os motivos que podiam afastá-los, Polanyi de Weber.
A principal fonte para demonstrar que o conceito moderno de economia não se aplica
à Antigüidade é Aristóteles. Polanyi escreveu em Economía y mercado en los imperios
antiguos um artigo intitulado “Aristoteles descubre la economía”, no qual argumenta, por
meio dos escritos de Aristóteles, que o postulado de escassez e a idéia de não limitação das
necessidades humanas são totalmente distintos daqueles formulados pelos “formalistas”. O
conceito de economia para Aristóteles – assunto da casa (do oikos) - concerne diretamente às
relações entre as pessoas que compõem a instituição natural da família. Tal idéia aspirava
enfatizar sua ligação com o conjunto da sociedade, pois o marco de referência era a
comunidade - tal como existia em seus diferentes níveis dentro de todos os grupos -, a auto-
suficiência e a justiça. Os membros da comunidade (koinonia) estão ligados pelo vínculo da
boa vontade (philia), que se expressa em uma conduta de reciprocidade (antipeponthos), isto
é, na divisão das obrigações sociais. A auto-suficiência, (autarkeia), capacidade de sobreviver
sem depender de recursos externos, é natural e intrinsicamente boa, pois contribui para a
continuidade e manutenção da comunidade. Também necessária para a continuidade do grupo
é a justiça, que garante a desigualdade entre os membros da comunidade, no que diz respeito à
distribuição de privilégios e à regulação de serviços mútuos.343
Para Aristóteles, as altas honras e as raras distinções (aghata), principal fonte da
riqueza, são escassas, porque no topo da pirâmide social não há lugar para todos aqueles
desejam alcança-las. A imunidade e a riqueza não se constituiriam em aghata se estivessem
ao alcance de todos. Daí a ausência, na sociedade antiga, da “conotação econômica” da
escassez, independentemente do fato dos bens de consumo escassearem realmente ou não,
pois os prêmios mais seletos não pertencem a esta ordem de coisas. A escassez deriva da
esfera extra-econômica. Já a auto-suficiência está assegurada pelo abastecimento do
necessário, ou seja, pelos bens que servem de sustento e que se podem armazenar, por
exemplo, o trigo, o vinho, o azeite, a lã e determinados metais. A quantidade destes bens
necessária para a família e para a pólis é determinada pelas pautas da comunidade. Como a
idéia de equivalência, estabelecida pelo costume e pelas leis, era predominante para os bens
de subsistência, a noção de quantidade necessária estava ligada às reservas armazenadas
343 POLANYI, K. Aristóteles descubre la economía. In: POLANYI, K; ARENSBERG, M; PEARSON, W.
Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976. p. 111-140.
151
normalmente. O caráter ilimitado dos desejos e necessidades humanas era um conceito alheio
a este enfoque.344
Escasso aqui é a possibilidade de se alcançar uma boa vida, como um desejo de se
alcançar maior abundância de bens físicos e prazeres. O elixir da vida prazerosa - o teatro, os
cargos públicos, as festas e os combates – não pode ser armazenado ou possuído fisicamente.
Para se alcançar esta vida é necessário tempo livre para os trabalhos da pólis. Estes trabalhos
são viabilizados pela escravidão e no pagamento de todos os cidadãos pelo desempenho nos
cargos públicos, além da exclusão de artesãos da prerrogativa da cidadania.345
4.5.1 O Comércio
Segundo Polanyi, o comércio é um método relativamente pacífico de conseguir
produtos, não aproveitáveis imediatamente, que não se encontram em um determinado lugar.
É uma atividade externa ao grupo, similar a atividades que nós tendemos a associar com
esferas completamente diferentes da vida, como caçadas, expedições e ataques piratas. O
objetivo fundamental da ação do comércio é a aquisição e o transporte de produtos de certa
distância. Porém, diferente da busca de presas e do butim é o caráter bilateral do movimento,
que assegura seu desenvolvimento pacífico e regular. Outrossim, o comércio é uma atividade
de grupo mais que individual e centraliza-se no encontro de grupos pertencentes a
comunidades diferentes, com a finalidade, entre outras, de trocar mercadorias. Estes encontros
não produzem taxas de trocas, mas as pressupõem.346
Diferente do ponto de vista cataláctico, Polanyi não vê o comércio como um
movimento de produtos através do mercado, controlado por preços. Comércio e mercado não
estão indissoluvelmente ligados entre si. Weber afirma que em toda a economia de troca, há
mediação na troca de poderes de disposição, próprios ou alheios. Em seguida, o autor
demonstra cinco formas desta mediação realizar-se:
1.pelos membros do quadro administrativo de associações econômicas, por remuneração fixa ou graduada, em espécie ou dinheiro; 2. por uma associação criada propriamente para atender às necessidades de troca dos
344 ibid. p. 124-125. 345 ibid. p. 127. 346 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K; ARENSBERG, M;
PEARSON, W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976.p. 303. POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 81.
152
membros de uma cooperativa...; 3. como aquisitiva profissional, por remuneração, sem aquisição própria do poder de disposição...; 4. como atividade aquisitiva profissional de natureza capitalista (comércio próprio) por compra atual na espera de uma venda lucrativa no futuro ou venda a prazo futura na espera de compra lucrativa anterior; e isto a. livremente no mercado ou b.materialmente regulado; 5. por expropriação indenizada e continuamente regulada de determinados bens, e venda –livre ou forçadamente imposta – destes, por parte de uma associação política...; 6. por oferecimento profissional de dinheiro ou obtenção de crédito para pagamento de obrigações surgidas em empreendimentos aquisitivos ou aquisição de prêmios de obtenção, por meio de concessão de crédito......347
Destes casos, Weber chama de comércio apenas os casos 4, “comércio livre” e 5,
“comércio monopólico forçado”. O comércio livre é sempre empreendimento aquisitivo
nunca gestão patrimonial, e em condições normais, uma atividade aquisitiva, mediante a
troca, efetuada por dinheiro. O autor ressalva, entretanto, que este tipo pode ser
empreendimento acessório da gestão patrimonial. O comércio realiza-se no mercado e sem
ele, porém neste caso último caso, está relacionado com a gestão patrimonial. Portanto, a
visão de Weber é muito próxima do ponto de vista cataláctico, pois atrela os diversos tipos de
mediações de troca às gestões patrimonial e aquisitiva; portanto, ao uso de dinheiro e à
presença de mercado. Junto à existência do capitalismo, não está ausente no tipo 4, o que ele
considera como mercado livre. Mesmo assim, os diversos tipos apontados por Weber de
comércio contribuíram para a classificação de Polanyi sobre o comércio.
Como implica no transporte de produtos entre lugares distantes e em duas direções
opostas, o comércio tem quatro fatores: pessoal, mercadorias, transporte e bilateralidade, que
nos ajudam a analisar suas enormes variedades de formas e organizações ao longo da história.
A aquisição de produtos longínquos pode ser feita por motivos diferentes quanto à
posição do mercador na sociedade: por status ou por lucro. No primeiro caso, os benefícios
materiais, amparados pelo caráter honorífico e de obrigação, são reforçados pelos presentes e
pelas concessões fundiárias efetuadas pelos reis, templos ou mesmo pelos senhores como
forma de recompensa; enquanto, no segundo caso, os ganhos transacionais geralmente
indicam somas insignificantes que não admitem nenhuma comparação com a riqueza que o
senhor concede ao mercador audaz e afortunado. Assim, quem comercializa por dever e honra
torna-se rico, enquanto aquele que troca com ânimo de lucro não sai da pobreza. A motivação
de lucro não está ausente da sociedade de status, pois, enquanto se espera dos grupos de status
347 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 103
153
mais altos atitudes guiadas por motivos de dever, obrigação, e amor próprio; por outro lado,
os grupos de status mais baixo, são encorajados a entregarem-se às atividades lucrativas que
são desprezadas e de pouco retorno. Neste sentido, a sociedade antiga conhece apenas dois
tipos de mercadores: um situado na esfera superior da pirâmide social e outro na esfera
inferior. O primeiro está ligado com os governantes e o outro depende do trabalho manual
para sua sobrevivência. Não há, portanto, uma classe de mercadores, no sentido moderno,
entre os cidadãos.348
Os tipos de mercadores da Antiguidade eram o tankarum, o meteco ou residente
forasteiro e o “estrangeiro”. O tankarum dominava a região mesopotâmica e o vale do Nilo.
Este é o tipo de comerciante que comercializa por obrigação e honra. Tornava-se um
mercador por meio hereditário ou por indicação do rei, do templo, ou “por uma grande
pessoa”. Sua sobrevivência era assegurada por receitas de status, na maior parte através da
propriedade fundiária, ou da provisão real ou do templo. Já o meteco e o “estrangeiro”
objetivam o lucro, e se encontram na esfera inferior da sociedade. Estes tipos originam-se na
Grécia clássica, e advém, em geral, de uma população flutuante de pessoas deslocadas –
refugiados políticos, exilados, criminosos fugitivos, escravos fugidos. A ocupação do meteco,
em geral, é a de pequeno comerciante, capitão de um navio ou de cambista com uma banca no
mercado. Tanto como cambista, como comerciante de grão ou como capitão mercantil, o
meteco estava sempre sob estritas restrições da autoridade pública. Mesmo quando
acumulavam muito dinheiro, estavam proibidos de possuir terras e casas.349
Desde os primórdios do período arcaico grego, o comércio era conduzido por reis e
chefes em busca de metais preciosos e produtos para o household. Estes comerciantes
parecem estar mais próximos dos nobres, apresentados por Meyer e Weber, que viajavam à
procura de produtos de luxo. Tinham um alto status dentro da sociedade. Até aqui, o comércio
nada tinha a ver com o mercado. Contudo, com a introdução do mercado (ágora), tipos
diferentes de comerciantes engajam-se no comércio local e estrangeiro.350 O comerciante
local era o kapelos, e o comerciante marítimo era o emporos. Polanyi apóia-se em Platão e
Xenofonte para afirmar que os kapeloi são aqueles comerciantes que se instalam na ágora,
provavelmente cidadãos, pois, de acordo com uma lei de Sólon, não eram permitidos a
348 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K; ARENSBERG, M;
PEARSON, W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976.p. 304-305. e POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 84-86.
349 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 88. 350 Weber já havia feito esta distinção entre comércio local e estrangeiro.
154
estrangeiros comerciar no mercado local, a menos que pagassem uma taxa. Porém, apesar de
terem um status político superior aos não cidadãos, tinham status econômico inferior aos
cidadãos envolvidos em outras atividades. Já os comerciantes de longa distância, diferente dos
períodos pré-clássicos, eram agora majoritariamente não cidadãos, estrangeiros ou metecos.
Praticavam o comércio também por motivo de ganho e não de status. Seus lucros eram
baixos, e objetivavam juntar dinheiro para tornarem-se financiadores de comerciantes. Os
emporoi estavam envolvidos neste comércio, em grande parte, devido as guerras entre
cidades-Estados e intra cidades-Estados que “liberavam” grande número de viajantes pelo
mundo grego. Segundo o autor, não havia concorrência entre estrangeiros e cidadãos (estes
em número reduzido) envolvidos no comércio marítimo, pois, o grande número de
estrangeiros no ramo era uma fonte de receita para o Estado.
Até aqui, entre Polanyi e Hasebroek há muita convergência. Os dois autores parecem
concordar quanto ao baixo status do comerciante em geral, enquanto Weber acredita que os
homens engajados no comércio marítimo tinham um status superior. Porém, Polanyi
aprofunda as hipóteses de Hasebroek ao mostrar uma diferença entre o comerciante local e o
marítimo. O papel do comerciante no mercado local parece ter sido alijado da análise de
Hasebroek, mais preocupado com o comércio marítimo. Não obstante, Polanyi exagera em
relação a Weber e Hasebroek, sobre a presença de metecos como financistas do comércio
marítimo, enquanto Weber afirma que este papel estava sendo ocupado por cidadãos com
“espírito” capitalista.
As mercadorias e o transporte são fatores importantes para determinar a especificidade
do comércio sem mercado, pois a presença deste homogeneíza as diferenças entre aqueles
dois elementos. Contudo, sem mercado, estes elementos são distintos. A decisão de adquirir
um tipo de mercadoria em uma região é feita sob circunstâncias diferentes daquelas sob as
quais outro tipo de mercadorias é adquirido em outro lugar. Transportar escravos e gado é
diferente de carregar enormes rochas e ou troncos por centenas de milhas. Às vezes, a
aquisição e o transporte de mulas, cavalos, ou carneiros, exigem também, a presença de seus
cavaleiros ou pastores, criando um problema social complexo. Quando a economia não está
regida pelo mercado, as importações e as exportações tendem a ser submetidas a regimes
distintos. A arrecadação de mercadorias a serem exportadas é distinta do processo de
“distribuição” de mercadorias importadas. No primeiro caso, é uma questão de tributo,
taxação, presentes feudais ou qualquer outro mecanismo pelo qual as mercadorias fluem para
155
o centro, enquanto a “distribuição” pode ocorrer por canais hierárquicos completamente
diferentes.
As mercadorias comercializadas podem ser necessárias para pessoas de diferentes status, cujos interesses são expressos através de diferentes canais, que têm meios diferentes a sua disposição para alcançar seus fins, e que, portanto, originam tipos de comércio para desenvolver-se cuja organização tem muito pouco em comum.351
Concomitantemente, as rotas comerciais e os meios de transporte podem ter tanta
importância para as formas institucionais do comércio como os tipos de produtos
transportados. Nos dois casos, as condições geográficas e tecnológicas estão entrelaçadas com
a estrutura social. A embarcação utilizada para o comércio marítimo deve, em muitos casos,
estar preparada para enfrentar tanto os problemas naturais como os de guerra. Neste sentido, a
tripulação de uma embarcação marítima também deve ser recrutada para propósitos bélicos.352
O comércio é uma forma pacífica de envolvimento da comunidade em relações
externas por um lado, e de transporte das mercadorias, por outro lado. Estes são os dois lados
do comércio. Em relação à bilateralidade de comércio, são encontrados três tipos principais: o
comércio de presentes, comércio administrativo e comércio mercantil.
No comércio de dádivas, as partes estão unidas por relações de reciprocidade. A
organização do comércio é geralmente cerimonial envolvendo presentes mútuos, embaixadas
e negócios políticos entre reis e chefes. As mercadorias são, na maioria das vezes, objetos de
circulação restrita à elite: escravos, metais preciosos, vestuário. Este tipo de comércio é muito
difundido em sociedades tribais e entre impérios.353
O comércio administrado pressupõe corpos comerciais relativamente estáveis e
ampara-se em tratados mais ou menos formais, isto é, em relações tradicionais ou
costumeiras, ou por meio de tratados explícitos. Tanto a importação, como a exportação são
organizadas por canais governamentais, que arrecadam as mercadorias para exportação e
distribuem as mercadorias importadas. Em geral, há predomínio dos interesses importadores.
Os métodos administrativos se estendem à toda a atividade comercial, como os
acordos sobre as “taxas” ou proporções em que se intercambiam as unidades, as facilidades
351 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 91. 352 idem. 353 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 94.
156
portuárias, o intercâmbio físico das mercadorias, a vigilância, o controle do pessoal comercial,
a regulação dos “pagamentos”, os créditos e as diferenças de preços. O regateio não é parte
dos procedimentos, pois as equivalências predominam. Contudo, em virtude das
circunstâncias mutantes, pode haver regateio, porém, só sobre os elementos alheios ao preço,
como as medidas, a qualidade do produto e os meios de pagamento.354
A instituição específica, local de todo o comércio estrangeiro administrado, é o “porto
de comércio”, geralmente situado na costa, nas fronteiras do deserto, na nascente do rio, ou no
encontro de planícies e montanhas. A função do “porto de comércio” é oferecer segurança
militar para o anfitrião; proteção civil para os comerciantes estrangeiros; facilidades de
ancoramento, desembarque, estocagem e armazenamento; servir como autoridade judicial.
Polanyi e seus colaboradores preocuparam-se em procurar em diversas sociedades,
primitivas e arcaicas, a presença desta instituição. Este é o tema de alguns dos artigos de
Trade and Market. Em 1963, Polanyi escreveu um artigo intitulado Ports of Trade in Early
Societies (portos de comércio em sociedades antigas), publicado posteriormente por George
Dalton, no livro Primitive, Archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi. Neste
artigo, ele afirma que um esboço mais simples das origens e desenvolvimento do porto de
comércio resulta em um número de formas tão variadas quanto às instituições de mercado, às
quais, o porto de comércio parece ser uma alternativa funcional. Os portos de comércio
freqüentemente são encontrados no norte da costa da Síria desde o segundo milênio a.C.- Al
Mina e Ugarit -; em algumas cidades–estados da Ásia Menor e do Mar Negro, no primeiro
milênio; nos reinos de Widah e Dahomey; na região asteca maia do Golfo do México; no
Oceano Índico, na Costa de Malabar, em Madras, Calcutá, Rangoon, Burma, Colombo,
Batavia, e na China.355
No caso da Grécia antiga, desde o período pré-clássico, já se têm informações da
instituição do porto de comércio, o emporium, que significa um lugar de encontro de
comerciantes, localizado fora dos portões de uma cidade, ou mesmo em uma costa desabitada.
No período clássico, o emporium era destinado ao comércio estrangeiro e tinha seu próprio
354 ibid., p. 95 e POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K;
ARENSBERG, M; PEARSON, W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976.p. 307.
355 POLANYI, K. Ports of Trade in Early Societies. In: DALTON, G. Primitive, Archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi. Boston: Beacon Press, 1968.
157
porto, cais, armazéns, hospedarias de marinheiros e edifícios administrativos. O emporium
clássico, em geral, tinha seu próprio mercado de alimento.356
Para Polanyi, a configuração geográfica e política das regiões da Grécia, nas quais os
suprimentos de grãos e as rotas de comunicação estavam situados foi fundamental para o
desenvolvimento do uso de métodos administrativos de comércio, em vez do comércio de
mercado. Apesar de trabalhar com autores diversos, inclusive alguns modernistas, como
Rostovtezef, Polanyi aprofunda a tese já apresentada aqui de Hasebroek, de que o comércio
de grão foi resultado de uma política de Estado e não de uma política comercial. De acordo
com tal idéia, Polanyi afirma que a provisão de suprimentos e suas rotas comerciais, foram
garantidas pelos meios militares e políticos. A política estrangeira ateniense nunca foi
inspirada por interesses comerciais, mas sim, para garantir o suprimento de grãos para seus
cidadãos, posto que a Ática não tinha um solo propício para a produção de grãos, mas sim, de
azeite e oliva. A dependência da importação de grão refletiu-se no pensamento social e
político grego. A necessidade sempre insatisfeita por um suprimento alimentar adequado fez
do princípio da auto-suficiência – autarquia – o postulado de sua existência e de sua teoria do
Estado. Tal princípio está presente em algumas legislações, como a de Sólon, preocupadas
em extrair as maiores quantias possíveis de grão para Atenas e evitar o movimento de grão
para fora de Atenas. Não era permitido a nenhum residente ateniense transportar grão para
qualquer lugar, exceto para Atenas. Portanto, o controle militar ateniense sobre o comércio de
grão era completo. Para garantir sua supremacia, Atenas proibiu todos os navios, a não ser
aqueles que levavam grãos para Atenas, de entrar no Mar Negro.357
No entanto, o comércio administrado do século IV distinguiu-se do século V, quanto
ao grau de controle ateniense. No século V, Atenas administrou o comércio quase sem ajuda,
posto que as cidades bosforianas estavam sob seu domínio. No século IV, o comércio pôntico
era administrado como comércio de tratado entre grandes forças, pois Atenas dominava os
mares somente a oeste do Bósforo tracio. Os tratados que regulamentavam o suprimento de
grãos, em sua maioria, traduziam o direito de comprar mercadorias em um certo porto ou
portos e objetivavam obter vantagens no transporte, isenção de taxas, e prioridade de
carregamento.
356 ibid., p. 244. 357 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 199-
216.
158
A ameaça da perda do suprimento de grão do Peloponeso foi o motivo principal da
entrada de Atenas na Guerra do Peloponeso, resultado do objetivo ateniense de controlar o
suprimento ocidental de grão.
Portanto, o comércio de grãos dominava a política estrangeira ateniense, como
comércio administrado, e não como comércio de mercado. O comércio administrado estava
perfeitamente ajustado à política naval ateniense, interessado no controle de rotas e nos
suprimentos vitais de importação, e aos objetivos redistributivos do Estado. Neste sentido,
não somente o comércio de grãos, mas o comércio, em geral, era comércio administrado.
O comércio de madeira, do qual Atenas era extremamente dependente, e o de ferro,
bronze, cera, estavam regulamentados por monopólios e tratados que beneficiavam Atenas. O
comércio de escravos, – gênero de primeira necessidade no período clássico - principalmente
em seu primeiro estágio, era comércio administrado. Como era, em sua grande maioria,
oriundo de fornecimento externo, gerava diversos problemas físicos, tal como,
armazenamento e deslocamento, como também, problemas de avaliação financeira. Já o
comércio de artigos de luxo era um subproduto derivado do comércio administrado de
mercadorias de primeira necessidade. Existia em função da talassocracia ateniense.
Podemos afirmar que o modelo polanyiano de comércio administrado completa as
impressões de Hasebroek, em relação a duas questões: 1. comércio apenas como um campo
para o investimento do capital e uma fonte de receita do Estado; 2. intervenção do Estado no
comércio para encher seus celeiros e seu tesouro. Estes são elementos do modelo polanyiano
de comércio administrado, com todas as suas variantes no tempo e no espaço. Os traços deste
tipo de comércio, apresentados por Hasebroek e Polanyi, não carecem de racionalidade, como
pensava Weber, pois têm uma dinâmica peculiar e estão presentes em outras sociedades,
mesmo que com variações de grau e forma em várias dessas sociedades. Dessa forma, o
modelo apresentado por Polanyi de comércio administrado resulta em um avanço e em uma
mudança de perspectiva em relação ao modelo weberiano, e em uma primeira grande
transformação da tradição que estamos investigando. Além disso, Polanyi ao conceitualizar
outros tipos de comércio, a luz de modelos antropológicos, consegue ampliar os argumentos
dos primitivistas, não ficando restrito a comparação do comércio antigo com as economias
nacionais modernas.
159
4.5.2 O Mercado
O mercado tem dois significados correntes: 1. um lugar tipicamente aberto, no qual os
gêneros alimentícios ou alimentos preparados podem ser comprados em pequenas
quantidades, em geral, por taxas fixas; 2. um mecanismo de oferta-demanda-preço, por meio
do qual o comércio é conduzido, porém não necessariamente ligado a um local definido ou
restrito ao varejo de alimentos. Na verdade, estes significados são distintos. No primeiro, o
fenômeno empírico tangível é um lugar físico, onde multidões encontram-se para o propósito
da troca. O segundo, é um mecanismo específico, uma variante do comércio. Obviamente o
mercado como um lugar precedeu a qualquer mecanismo competitivo do tipo oferta–
demanda. Este mecanismo apareceu provavelmente dois mil anos depois da aparição do
mercado como um mecanismo de distribuição de grãos no mediterrâneo oriental.358
Do ponto de vista formalista, o segundo significado tornou-se a definição institucional
de mercado. Tal definição é oriunda da idéia de que o mercado é o lugar do intercâmbio. Estes
elementos nunca estão dissociados. A vida econômica se reduz a atos de intercâmbio
realizados através do regateio que se cristaliza no mercado. Assim, o intercâmbio é a relação
econômica e o mercado é a instituição econômica.
Weber em suas considerações sobre o mercado, escritas em um capítulo inacabado de
Economia e sociedade, se aproxima muito da visão exposta acima. Segundo Weber, os
membros do mercado “competem por oportunidades de troca”. Em seguida, afirma que o
fenômeno específico do mercado é o regateio.359 Weber chegou a ver diferentes tipos de
mercado (local e externo), mas a idéia de racionalidade e impessoalidade, atrelada à troca, ao
regateio e ao dinheiro são os elementos fundamentais na sua definição de mercado.
Polanyi, como já esboçado no capítulo anterior, nega peremptoriamente que o
mercado e o intercâmbio (troca) estejam inextricavelmente ligados. O intercambio é um
movimento mútuo de apropriação de produtos entre sujeitos, feito por equivalências fixas ou
negociadas. Só neste último caso há regateio entre as partes. Portanto, se há intercâmbios, há
358 ibid., p. 124. 359 WEBER, M. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 419.
160
equivalências. Porém, somente o intercâmbio a preços negociados está limitado
especificamente a uma determinada instituição, aos mercados criadores de preço.360
Neste sentido, o termo mercado não é definido necessariamente pelo mecanismo de
oferta-demanda-preço, mas sim, por uma conjunção de características institucionais,
chamadas de elementos de mercado. Em primeiro lugar, o mercado é constituído por um
lugar, fisicamente presente; em segundo, por uma multidão de ofertantes e ou de
demandantes. Essas multidões se definem como uma multidão de sujeitos desejosos de
adquirir ou de desfazer-se de produtos no intercâmbio. A separação das multidões de
ofertantes e demandantes configurou a organização de todos os mercados pré-modernos. Os
intercâmbios podem se dar por equivalências fixas sob formas de integração caracterizada
pela reciprocidade ou redistribuição, ou por equivalências negociadas, gerando uma forma
específica de integração, o intercâmbio, com mercados criadores de preços. Só com estes
elementos é que se pode falar de mercado. Finalmente, há os elementos funcionais, como a
situação geográfica, os produtos que se trocam, os costumes e as leis.
A instituição de mercado tem dois desenvolvimentos diferentes: um externo à
comunidade e o outro interno. O primeiro está intimamente ligado à aquisição de mercadorias
de fora, enquanto o segundo, à distribuição local de alimentos.
4.5.3 A Ágora e a Pólis
O desenvolvimento do tipo de mercado local, a ágora, na Grécia clássica, é, em
primeiro lugar, uma reação às formas de distribuição feitas pelos households senhoriais, que
contribuíram para enfraquecer as relações de reciprocidade tribais; e, em segundo, um meio
pelo qual a democracia mantinha a subsistência de seus cidadãos.
O enfraquecimento dos laços tribais já aparece nos poemas de Hesíodo, que retrata a
transição de dois eventos díspares: o primeiro é uma catástrofe política, a invasão dos Dórios;
e o segundo, é uma revolução tecnológica, a chegada do ferro. É neste contexto que Hesíodo
descreve o enfraquecimento dos laços de parentesco e o lento fortalecimento dos laços de
vizinhança. Contudo, Hesíodo procura reforçar em seus poemas a necessidade de manutenção
360 POLANYI, K; ARENSBERG, M; PEARSON, W. Comercio y mercado en los imperios antiguos.
Barcelona: labor universitaria, 1976. p. 311.
161
dos laços de reciprocidade existentes anteriormente. Na Grécia homérica, já há evidência da
existência de households senhoriais, organizados em torno da propriedade familiar, fora da
esfera tribal, constituindo uma força dilaceradora das relações tribais. Segundo Polanyi, a
pólis herdou as tradições tribais, tanto aristocráticas quanto democráticas, e estabeleceu as
condições para um tipo de redistribuição que se contrapôs aos efeitos demolidores dos
households senhoriais auto-suficientes.
Estas condições foram criadas, em primeiro lugar, pela convicção dos gregos de que
pólis era sinônimo de civilização. Conseqüentemente, a subordinação do indivíduo à pólis, ao
Estado, era completa tanto na esfera política quanto militar, impedindo qualquer idéia de
direitos individuais. Tal idéia, de uma responsabilidade total da polis sobre os cidadãos,
estendeu-se ao plano econômico. Era vital para a pólis o controle da subsistência de seus
cidadãos. O Estado coletava mercadorias, serviços, dinheiro, tesouro e grãos e os armazenava
nos armazéns do Estado ou, em casos emergências, nos households. Mas, como redistribuir
estas mercadorias em um sistema democrático? Como manter a igualdade e a participação dos
cidadãos na política, sem deixá-los ficar a mercê de homens ricos sedentos de uma clientela
própria por meio de distribuição de alimentos em seus próprios households? Finalmente,
como evitar a instalação de uma burocracia, considerada como antítese da participação direta
de todos os cidadãos na vida política?
A resposta foi o pagamento em dinheiro a todos os cidadãos que participavam nos
cargos do Estado – tribunais, boulé e forças armadas - ou mesmo apenas nas assembléias, e a
utilização deste dinheiro em um mercado local que vendesse alimentos a varejo. Porém, a
distribuição de alimento por meio de um mercado não foi facilmente aceita pelas facções
políticas mais conservadoras, que viam no mercado local uma forma de fortalecimento da
facção política democrática e um enfraquecimento de seu poder político, pois criava uma
alternativa à distribuição de alimento além dos households senhoriais. O contraste entre os
dois centros de redistribuição: o oikos senhorial e a pólis democrática é mais claramente
expresso no conflito entre Címon e Péricles. O primeiro, um rico líder conservador, convidava
seus vizinhos e dependentes para refeições livres em seus domínios, além de um generoso
desempenho de liturgias, enfraquecendo o poder político de Péricles, também um rico
membro da aristocracia, que via nestas práticas um obstáculo para o desenvolvimento do
sistema democrático. Daí o incentivo de Péricles às práticas do mercado local, a ágora.361 Eis
361 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 178.
162
aqui, a junção do caráter político da pólis, - manter a subsistência de seus cidadãos -, com o
papel redistributivo da agora.
A ágora, apesar de ser considerada como o “mercado de cidade” mais antigo do
Ocidente, não foi historicamente um local de mercado, mas um lugar de encontros.362 Desde o
século VI a.C., Atenas possuía um tipo de mercado onde o alimento era vendido a varejo.
Leite fresco e ovos, legumes frescos, peixe, e carne eram oferecidos para a venda. Em geral,
os artigos eram produtos da vizinhança, vendidos por homens e mulheres camponeses, ou por
dinheiro ou por barganha. O freguês, que procurava por sua comida no mercado, era o
trabalhador pobre ou transeunte que não tinha household próprio. Nem o comerciante recém-
chegado, nem o residente próspero freqüentavam o mercado local primitivo, uma prova de
que ele servia às necessidades das pessoas comuns. Também figuravam como características
da ágora: as fronteiras rígidas, especificações de quem pode e quem não pode comercializar e
com quem; os inspetores oficiais de mercado e os tipos de mercadorias a serem vendidas.
Tudo isto nos mostra a preocupação da pólis com o tipo de mercado que funcionava em seu
interior. Portanto, diferente do planejamento burocrático em larga escala do Egito, o mercado
local representava em Atenas um planejamento em pequena escala, contudo ocupava um lugar
crucial para a constituição política da democracia da pólis.363
O mercado de alimentos era a resposta para a distribuição de alimentos sem uma
burocracia. Tal distribuição era realizada com o pagamento em dinheiro aos cidadãos por
serviços militares, políticos ou mesmo um pagamento cotidiano. Este pagamento era
viabilizado pelo Império, que significava, em primeiro lugar, o controle da importação de
grão; e em segundo, receitas adicionais para sustentar seus cidadãos. Tais garantias
possibilitaram o incentivo da mudança de habitantes rurais para Atenas. A conexão de poder
naval (talassocracia) ateniense e democracia alcançou seu ápice com as políticas de
Péricles.364
Polanyi, semelhante a Weber, também acredita que o mercado local nada tem haver
com o comércio estrangeiro. Têm suas origens separadas e independentes. Havia uma
separação institucional, não somente de comércio e comerciantes internos e externos, mas de
seus lugares e preços. O empório estava localizado no porto de Atenas, no Pireu. A separação
362 POLANYI, K.On the comparative treatment of Economic Institutions in Antiquity with Illustrations from
Athens, Mycenae, and Alalakh. In: DALTON, G. Primitive, Archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi. Boston: Beacon Press, 1968, p. 312.
363 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 167. 364 ibid., p. 178.
163
do empório do resto da cidade era simbolizada pelas pedras fronteiriças que a circundavam e a
separavam do próprio Pireu que legalmente e institucionalmente era uma parte de Atenas.
Apesar de não haver dados concretos sobre o movimento de preços de grãos, é possível inferir
que os preços dos grãos vendidos na ágora não variavam de acordo com as flutuações de
preços no empório. Na medida em que o movimento de preços de grãos estava diretamente
relacionado com eventos políticos, sua variação era proporcional ao poder naval de Atenas em
relação ao resto do mundo grego. Desta forma, quanto maior o controle de Atenas, maior a
possibilidade de monopólio sobre a compra de grãos, e conseqüentemente, maior a
possibilidade de preços baixos.
Atenas sempre se preocupou em manter o preço do grão na ágora abaixo do preço do
empório, inclusive com mecanismos rígidos de controle, como por exemplo, a proibição de
intermediários e a imposição de um limite quantitativo de compra de grãos no empório.
Porém, um dos artifícios mais utilizado foi o apelo feito pela cidade ao desejo de status e
orgulho dos comerciantes e metecos. Os magistrados persuadiram, ou tentaram persuadir, os
comerciantes a venderem seu grão a um “preço justo”, cinco dracmas, independente de
quanto estivesse o preço no empório, em troca de honras especiais oriundas de decretos da
cidade. Na verdade, tais procedimentos eram uma extensão do sistema litúrgico para o
estrangeiro e meteco. Além de vender a preços mais baixos, o comerciante era induzido a
contribuir com dinheiro, para a cidade comprar grãos, para serem revendidos a cinco dracmas
para a população. O resultado dessas políticas era “unir” o preço da ágora ao do empório, o
que para Polanyi, constituía um traço de continuidade do passado redistributivo de Atenas.365
Os escritos de Aristóteles, mais uma vez, constituem a principal fonte para corroborar
as idéias que estão por trás de tais práticas. Segundo o filósofo, todo o intercâmbio que fosse
feito para manter a autarquia, era natural e, conseqüentemente, justo. Este intercâmbio deve
manter a coesão da comunidade, atendendo aos interesses da comunidade, e não dos
indivíduos. O “preço justo” ou fixo identifica-se com o comércio natural, e é fruto dos
costumes e de fatores extra-econômicos. Já o intercâmbio com ganho é antinatural, e a
flutuação de preços, indesejável. Assim, a troca derivava da instituição da distribuição dos
bens necessários com o propósito de abastecer aos membros da família para que chegassem
ao nível de auto-suficiência. Na medida em que se podiam aplicar termos legais a condições
tão primitivas, a transição se referia a uma transação em espécie, limitada em quantidade às
necessidades reais do solicitante, realizada em termos de equivalência e com exclusão do
365 ibid., p. 236-238.
164
crédito. O intercâmbio é, neste contexto, parte de um comportamento de reciprocidade, em
contraste com os critérios comercias de ganho.366
As considerações de Polanyi sobre os mercados gregos acentuam sua recusa em
associar “liberdade econômica” do capitalismo mercantil com liberdades pessoais e políticas.
Apesar dos gregos terem inventado os mercados criadores de preço, com alguma expressão no
final da Atenas Clássica, eles sempre tiveram um papel subordinado, pois foi somente no
século XIX, que eles adquiririam autonomia. Dessa forma, não houve nenhuma ligação entre
mercados e liberdades pessoais e políticas e outras realizações da Grécia clássica.
Vimos aqui, que Polanyi se diferencia de Weber, por entender que no mundo grego há
mercados, contudo não com as mesmas características do mercado definido por Weber, que
estava atado a uma visão formalista de mercado. Neste sentido, Polanyi avança, pois
consegue encontrar uma “racionalidade” própria no mercado local grego, algo inconcebível
na visão weberiana. Os elementos políticos não são, na concepção polanyiana, fatores de
entrave para alcançar a “racionalidade” de mercado. Em comum, com Weber, Polanyi
acredita na integração da esfera política e econômica, ou “material”, porém, este modelo não
carece de racionalidade. Por outro lado, em ralação a Hasebroek, Polanyi avança, porque
consegue integrar a ágora; o comércio local, ao comércio externo, elemento que foi
privilegiado por Hasebroek. Neste sentido, ele complementa o modelo de Hasebroek, muito
preso ao comércio externo.
4.5.4 Dinheiro
Finalmente, o último elemento da tríade cataláctica, que Polanyi analisou, o dinheiro.
Segundo os formalistas, o dinheiro é o meio de intercâmbio indireto, utilizado como
pagamento e como “padrão”. Desta forma, o dinheiro é dinheiro para todos os usos. Não
obstante, todos os usos de dinheiro dependem da existência do mercado.367 Tal perspectiva é
semelhante a de Weber, que denomina dinheiro como um “meio de pagamento cartal que
serve de meio de troca.”368 Em seguida, Weber afirma que, do ponto de vista técnico, o
366 POLANYI, K. Aristóteles descubre la economía. In: POLANYI, K; ARENSBERG, M; PEARSON, W.
Comercio y mercado en los imperios antiguos. Barcelona: labor universitaria, 1976. p. 135-137. 367 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 309. 368 WEBER, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004, v. 1, p. 46.
165
“dinheiro é o meio de cálculo econômico mais perfeito que existe, isto é, o meio formalmente
mais racional de orientação da ação econômica.”369
Porém, para Polanyi, a definição real de dinheiro é independente do mercado. Deriva
de usos definidos que se dá a alguns objetos. Ele serve a vários fins, que são tradicionalmente
descritos como meios de pagamento, padrão de valor, reserva de riqueza e meio de troca.
Apesar destes usos serem oriundos da teoria monetária da economia de mercado, eles
representam um papel muito distinto nas sociedades primitivas.
A sociedade primitiva não conhece todo o propósito do dinheiro. Nenhum tipo de
objeto merece o nome de dinheiro. Na verdade, o termo aplica-se a uma multiplicidade de
objetos: escravos usados como padrão de valor; conchas podem ser empregadas para medir
pequenas somas em situações diferentes; metais preciosos como reserva de riqueza.
Outrossim, o dinheiro primitivo pode, em casos extremos, empregar um tipo de objeto como
meio de pagamento; outro como padrão de valor; um terceiro para armazenar riqueza; e um
quarto para propósitos de troca. Os diferentes usos de dinheiro são institucionalizados
separadamente e independentes um do outro.
Na sociedade primitiva, um uso de dinheiro pode predominar em relação a outro uso.
Enquanto, nas sociedades modernas, a unificação dos vários usos de dinheiro é regularmente
feita tendo como base seu uso de troca, nas sociedades primitivas, os diferentes usos podem
preceder a troca. É por este motivo que não se pode descartar as funções primitivas do
dinheiro, tais como a mágica e a ornamental. Desta forma, “a definição funcional de dinheiro
começa dos objetos quantificáveis comumente designados como dinheiro e as operações
observáveis que são realizadas com estes objetos.”370
O pagamento no sentido moderno é a desobrigação de uma obrigação pela cessão de
unidades quantificadas. Aqui, a idéia de pagamento associa-se a dinheiro e a de obrigação
com transações econômicas. Contudo, as origens do pagamento estão relacionadas com uma
época em que os objetos quantificados não eram empregados na desobrigação de uma
obrigação relacionada às transações econômicas. O pagamento de multas, taxas, tributos, dons
e contra-dons para honrar os deuses ou os mortos são obrigações não econômicas. Não
obstante, a principal prática de pagamento era a diminuição de poder e status do pagador. Na
sociedade arcaica, uma multa exorbitante desgraçava uma pessoa, enquanto um homem rico
poderia efetuar pagamentos sem debilitar seus status e poder, devido à importância política e
369 ibid., p. 53. 370 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 100.
166
social da riqueza acumulada.371 Daí a importância política do tesouro, transformado-se em
fonte de poder.
O uso do dinheiro como padrão, com fins contáveis, é a equiparação de quantidades de
diferentes tipos de produtos, com propósitos determinados. Comumente usado em situações
de troca ou armazenamento e na administração de alimentos, sua operação consiste em
atribuir valores numéricos aos diversos objetos para facilitar a manipulação.372
A utilização do dinheiro como padrão é essencial em um sistema redristibuitivo de
larga escala. A equiparação de produtos de gêneros alimentícios – cevada, azeite, etc – com os
que se tem de pagar impostos ou rendas, rações ou salários permite ao pagador e ao credor
escolher entre os diferentes bens. Nenhuma taxação e arrecadação de taxas, nenhuma provisão
e balanço de households de propriedades rurais, e nenhuma contabilidade racional abrangendo
uma variedade de mercadorias são possíveis sem um padrão. Os valores das coisas
submetidos à aritmética exigem a fixação de taxas relacionadas a vários gêneros alimentícios
de primeira necessidade com outras taxas equivalentes fixadas pelo costume ou estatuto.373
O armazenamento de riqueza é a acumulação de objetos quantificáveis, seja para
disposição futura, por exemplo, gêneros alimentícios; ou não, como por exemplo, o tesouro.
Tais riquezas, no primeiro caso, ou não são consumidas, ou são destruídas no presente. No
segundo, se prefere as vantagens da pura posse, especialmente o poder, prestígio, e influência
proveniente desta posse. Operacionalmente, a exibição ostentosa pode resultar em crédito ao
possuidor e daqueles que ele pode representar.374
O armazenamento de riqueza tem sua origem parcial na necessidade de pagamento,
contudo tanto aquele que possui a reserva de riqueza, e que está capacitado a pagar multas,
taxas e etc, por razões sacras, políticas e sociais, quanto os súditos que alimentam esta reserva
com taxas, aluguéis, dádivas, por motivos de gratidão e admiração, estão envolvidos em
pagamentos por razões não econômicas.
O tesouro é uma forma distinta de outras formas de riqueza armazenada. A diferença
consiste basicamente em sua forma de subsistência. O tesouro é formado por mercadorias de
prestígio, incluindo objetos “valiosos” cerimoniais cuja mera posse dota o possuidor de poder
371 ibid., p. 106. 372 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. P 310 373 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 119. 374 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. P 310
167
e influências sociais. Tanto dar como receber os tesouros realçam o prestígio. O alimento
raramente funciona como tesouro enquanto os metais preciosos são quase universalmente
avaliados como tesouro, e não podem ser trocados por objetos de subsistência, visto que a
exibição de ouro por pessoas comuns é oprobiosa. Doravante, o tesouro, como outras fontes
de poder, pode ser de grande importância econômica, na medida em que chefes e reis podem
colocar à disposição do doador os serviços de seus dependentes, garantindo-lhe alimento,
matérias e serviços de trabalho em larga escala.375
Portanto, os gêneros de primeira necessidade e o tesouro explicam o funcionamento de
vários usos de dinheiro na ausência de um sistema mercantil. O tesouro como pagamento
serve para inchar as reservas do tesouro, e não entram necessariamente na cadeia de troca
econômica. Já os alimentos de primeira necessidade, - mercadorias de subsistência - quando
usados para quitação de obrigações são produtos de pagamentos do centro implicados na
redistribuição.
O uso do dinheiro como meio de troca é o emprego de objetos quantificáveis em
situações de troca indireta. A operação deste uso de dinheiro consiste em adquirir unidades de
objetos através de transações diretas, a fim de adquirir produtos desejados por meio de um
ulterior ato de intercâmbio. Na ausência de mercados, a utilização do dinheiro como meio de
troca não é mais que um traço secundário.376
Para os formalistas, o uso de dinheiro como meio de troca é seu critério essencial tanto
nas sociedades modernas, quanto primitivas. Somente objetos quantificáveis servindo como
meio de troca podem, nesta visão, ser observados como dinheiro, enquanto os outros usos não
são decisivos, pois somente aquele uso unifica o sistema, visto que permite uma ligação
consistente das várias funções do dinheiro. Sem isto, não pode haver dinheiro verdadeiro. Tal
abordagem, segundo Polanyi, não encontra apoio na história primitiva dos usos de dinheiro,
em virtude da institucionalização separada e independente dos vários usos do dinheiro.377
Enquanto, nas sociedades modernas o dinheiro serve para todos os propósitos, isto é, o
meio de troca é empregado para os outros usos de dinheiro, o dinheiro nas sociedades
primitivas tende a ser dinheiro para “propósito limitado”, pois objetos diferentes são
utilizados nos diferentes usos de dinheiro. Daí o papel diverso das instituições monetárias das
sociedades ocidentais modernas, por um lado, e das primitivas, por outro. O dinheiro para 375 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 109. 376 POLANYI, K. La economía como actividad institucionalizada. In: POLANYI, K.; ARENSBERG, M.;
PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. p 310. 377 POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic press, 1977, p. 109.
168
todo propósito favorece formas mais homogêneas de organização social, enquanto o dinheiro
para propósito limitado tende à diferenciação de sua estrutura de classe e de parentesco.378
As estruturas sociais primitivas eram mutuamente reforçadas pelas situações de status
e padrões de integração. O dinheiro arcaico criou e manteve o prestígio, separando a riqueza e
a pobreza por meio da circulação restrita de um tipo de dinheiro à elite, e outro tipo de
dinheiro ao homem pobre. Na Grécia homérica, a circulação de certas mercadorias como
cavalos rápidos, metais preciosos, jóias, objetos de tesouro, escravos habilidosos ou heranças
em usufruto era restrita à elite. Na Mesopotâmia, os empréstimos dos templos destinados aos
camponeses eram feitos em cevada, enquanto para os cidadãos livres era com prata, com taxas
de juros diferentes.
Na Grécia antiga, o tesouro era uma forma de riqueza que circulava entre poucos.
Trípodes e tigelas, feitas de ouro e prata, eram alguns dos tipos de tesouro. A disposição era
ou em troca de outro tesouro, ou por itens de prestígio tal como acesso a deuses e seus
oráculos, a reis, chefes, e potentados. Mercadorias como cavalos, marfim, escravos
habilidosos, trabalhos de arte ou roupas finas eram trocadas por outras mercadorias de
prestígio. O tesouro era também uma forma portátil de poder. Quem possuísse o tesouro, era
poderoso, honrado e temido. O poder conferido pelo prestígio era uma antecipação de
vantagens econômicas de longo alcance. Porém, é muito pouco nítida a diferença entre poder
político e econômico, em um mundo em que os serviços pessoais de vários graus formavam o
recurso econômico, e a disposição sobre este recurso particular era organizada através de
relações de um caráter não econômico, tal como parentesco, clientela, ou dependência semi-
feudal. Todavia, algumas formas de riqueza, tal como terra ou gado, eram mais imediatamente
econômicas do que outras, porém, mesmo nestes casos, os benefícios econômicos e políticos
ainda estavam tão estritamente entrelaçados que não se podia admitir uma simples
separação.379
Apesar de familiarizados com o comércio, com multidões específicas de mercado, e
com os usos primitivos de dinheiro de pagamento e padrão, estes elementos não parecem
pertencer a um conjunto institucional na Grécia antiga, posto que, a reciprocidade e a
redistribuição predominavam. Quanto aos assuntos econômicos, a ética grega procura a
maneira mais inteligente de discutir as atitudes recíprocas e redistribuitivas ligadas ao
378 ibid., p. 120. 379 ibid., p. 111.
169
costume e à moralidade, por meio de uma técnica para efetivá-las. Assim, o pensamento grego
segue uma visão racional de costumes, suplementado por uma descrição de dispositivos.380
O pó de ouro era o meio comum de troca no mercado de alimentos, e não levou à
introdução de moedas de ouro. A distinção fundamental sobre os usos gregos de dinheiro era
a distinção entre dinheiro local e dinheiro externo. As moedas de prata de pequena
denominação e, particularmente depois do século IV, as moedas de bronze, eram usadas para
o comércio local; enquanto as moedas de prata de maior denominação tal como as estáter
eram usadas no comércio externo. Mas a distinção não é simplesmente do tamanho da moeda.
O que dava à moeda seu valor, era a autoridade da cidade emitente. Se um pedaço de metal
recebesse o selo que foi emitido como um dracma pelo corpo governante de uma cidade,
pouco valia para o comércio desta cidade o valor do metal. Em alguns lugares, as moedas
chapeadas circulavam juntas com as moedas de bom metal, e com o mesmo valor. Isto é uma
prova de que seu valor era fixado pela autoridade do Estado. Há completa ausência de
qualquer indicação de depreciação de moeda corrente ou inflação de preço, de moedas “boas”
sendo retiradas de circulação por outras “más”.381
A distinção entre moedas locais e estrangeiras não deve ser exagerada. Apesar de
institucionalmente separadas as moedas, eram intercambiáveis. Tal intercambialidade não era
limitada ao relacionamento entre cunhagem interna e externa de uma cidade, mas entre
cunhagens externas de duas cidades. O operador desta intercambialidade foi o banqueiro
trapezista, que não apareceu antes de 400 a.C. em Atenas. Seja sentado em sua mesa na ágora,
o banqueiro trocava largas estater de prata ou tetradracmas por pequenos óbolos de cobre ou
meio óbolos; ou em sua mesa no deigma, trocava moedas estrangeiras por moedas atenienses
e atenienses por estrangeiras. Uma outra função do banqueiro era a de ser depositário de
dinheiro, artigos valiosos e erário, bem como documentos legais. Provavelmente, os depósitos
não eram usados pelo banqueiro, a menos que ele fosse autorizado pelo depositante. Quanto
aos empréstimos, ou era dos seus fundos ou a pedido do depositante. Os banqueiros, em sua
maioria libertos, ou estrangeiros, não tinham segurança quanto as garantias de seus credores,
pois não podiam ter propriedade fundiária, e não podiam fazer hipotecas. Sua função principal
era mesmo de facilitar pagamentos.
A análise dos trabalhos de Polanyi indica um novo redirecionamento da tradição que
estamos analisando. Podemos conceituar esta tradição, a partir de agora, como primitivista-
380 ibid., p. 253-254. 381 ibid., p. 258-264.
170
substantivista. Sem dúvida, a principal inovação da introdução do substantivismo foi a crítica
ao formalismo (mesmo com todos os limites apontados por Godelier) e, particularmente, na
esfera do debate que estamos investigando, aos elementos formalistas do trabalho de Max
Weber. Em um primeiro momento, poderíamos associar os elementos formalistas à corrente
modernista, contudo, a presença destes traços nos trabalhos de Weber, principalmente em
relação ao comércio, dinheiro e mercado, demonstra a complexidade de influências teóricas e
ideológicas presentes em uma mesma tradição.
A incorporação destes novos elementos à tradição investigada foi fomentada, em
primeiro lugar, pela entrada em cena da Antropologia econômica. Graças às formas de
integração social - reciprocidade, redistribuição e intercâmbio -, tributárias do funcionalismo;
e das análises comparativas, Polanyi conseguiu ultrapassar a dicotomia entre racionalismo e
irracionalismo das sociedades antigas, hipótese cara às reflexões weberianas. Além disso,
mesmo ainda falando de feudalismo no mundo antigo, ele rejeitou a hipótese de qualquer tipo
de capitalismo no mundo antigo, tal como imaginou Weber, por entender, que o mercado
auto-regulável, principal elemento característico do capitalismo, estava ausente do mundo
antigo. De acordo com Weber, o capitalismo moldou o período clássico da Antiguidade e foi
sufocado pela burocracia. A ligação causal entre economia de mercado e as realizações da
Grécia clássica não podia também ser aceita por Polanyi, pois este não associava em seu
projeto geral a liberdade com a economia de mercado disembedded.
Segundo Nafissi, Weber sublinhava a dicotomia entre a pólis capitalista mercantil
versus economias estatais burocráticas do Oriente Próximo. Polanyi não seguiu Weber nesta
lógica, porque não via capitalismo na Atenas clássica. Também não utilizou o conceito de
modo de produção, mas as formas de integração conservavam a mesma função do projeto
totalizante e holístico do marxismo, diferente dos argumentos de Dalton apresentados no final
da última seção. Para Nafissi, Polanyi permaneceu um holista e reducionista, pois cada
mecanismo de integração social era identificado com um tipo particular de “homem”.
Reciprocidade e redistribuição, embora predominantemente dominantes em formações
primitivas e de Estados imperiais, foram identificadas com ‘planejamento’. Tais expressões se
confundiam, na visão de Polanyi, com a natureza essencialmente comunal do homem. A
economia de mercado, a diferenciação da economia da política representaram, por outro lado,
a perversão deliberada, individualista , da verdadeira natureza do homem. O mercado foi
favorecido com a mesma qualidade sistemática homogeneizante como as sociedades
171
redistributivas do passado e do futuro. Neste sentido, uma economia de mercado não podia ser
associada com valores não individualistas.
Podemos dizer, também, que as formas de integração desenvolvidas por Polanyi
constituem um modelo muito próximo da idéia de tipo ideal. Outrossim, sua idéia de
embeddedness e disembeddedness também é passível das mesmas críticas feitas a Weber
anteriormente sobre a intervenção do político no econômico. Polanyi associa embeddedness
com as sociedades pré-capitalistas, e disembeddedness com as sociedades capitalistas. O
caráter utópico da análise de Weber também está presente no modelo polanyiano. Por que não
se pode inferir que o embeddedness também não é intrínseco a todas as ordens sociais,
incluindo todas as variedades de capitalismo moderno? Será que de fato houve uma sociedade
totalmente disembedded? Quanto à Grécia antiga, Mohamed Nafissi faz uma observação
relevante:
A descoberta ou invenção dos gregos da política é um resultado do mesmo processo complexo que para sua invenção da economia, qualquer que seja o resultado da disputa sobre o valor e o significado do pensamento econômico de Aristóteles. A economia não pode se embedded na política sem que o regime caia na armadilha da economia. Reciprocamente, a política não pode dominar a economia sem uma prévia diferenciação das duas.382
Nafissi compartilha com Christian Méier a idéia de que à medida que os cidadãos
buscavam interesses econômicos na política, estes surgiram de seu desejo, como parceiros da
cidade, de se assegurar das necessidades de subsistência, de remuneração para sua atividade
política, e de uma parte nas receitas da cidade. Concomitantemente, Nafissi observa que as
lutas empreendidas no período arcaico pelos camponeses pressupuseram um processo de
disembedding de atenienses como agentes autônomos com a capacidade de construir e buscar
coletivamente interesses materiais e ideais.383
Estas observações apenas realçam a pouca atenção dada por Polanyi aos conflitos
sociais na sociedade grega. Na verdade, há grande silêncio em suas análises envolvendo os
grupos sociais no mundo grego. De fato, como já dito anteriormente, as teorias antropológicas
tributárias do funcionalismo, com ênfase nos processos de integração social, não privilegiam
as contradições sociais. Isto é um elemento diferenciador da análise de Weber, que
382 NAFISI, M. Class, Embeddedness, and the modernity of Ancient Athens. Comparative Studies in Society
and History, Volume 46, n. 02, 2004, p.402. 383 ibid. p. 404.
172
apresentou a luta entre pobres e ricos como o principal elemento das lutas de classes do
mundo greco-romano.
No paradigma polanyiano, a liberdade tornou-se um interesse residual,
normativamente bem como historicamente e conceitualmente. Polanyi virou-se para a História
econômica para provar que não havia nada de natural sobre os mercados livres, que o laissez
faire foi planejado, e o planejamento distributivo não era. Este objeto tornar-se-ia o foco
principal da análise de Moses Finley, já sob a influência mais sólida da História Social.
Aproveitando muito das reflexões dos autores já investigados, Finley iria reinterpretar os
modelos até então existentes, dando contornos finais a esta longa tradição, porém, sob um
novo contexto historiográfico.
173
PARTE III
A CONSOLIDAÇÃO DA HISTÓRIA SOCIAL NO SEIO DA
TRADIÇÃO PRIMITIVISTA-SUBSTANTIVISTA
174
5 O DOMÍNIO DO SOCIAL. MOSES FINLEY E A ECONOMIA AN TIGA
Um historiador que pensa que seu ofício consiste em descobrir fatos poderia da mesma maneira colecionar borboletas, selos ou caixas de fósforos. Trata-se de atividades privadas que contribuem para uma satisfação pessoal (coisa que não critico em absoluto), mas que não desempenham nenhuma função social.
Na verdade, todo historiador estabelece uma relação entre os fatos. Até os mais positivistas, aqueles que negam se interessar por algo mais do que a simples descoberta de fatos, não se contentam nem podem se contentar só com isso. É preciso parar com a ilusão de que um historiador parte dos fatos (ou, num erro conexo, das fontes). Milito por uma tomada de consciência e por um melhor controle por parte do historiador das generalizações, relações e conexões que ele emprega constantemente. Em suma, por uma atividade autocrítica.384
Moses I. Finley.
O texto acima demonstra o espírito de um dos historiadores mais brilhantes e
polêmicos do século XX, que, durante boa parte de sua vida, no bojo da consolidação da
História Social, não poupou energias para combater os resquícios, considerados por ele
retrógrados, do Historismo, sem, contudo, abdicar de alguns de seus princípios; e, por outro
lado, polemizar com aqueles que utilizavam a Antigüidade de forma deturpada e a-histórica.
Nosso objetivo neste capítulo é demonstrar que os trabalhos de Finley constituem uma defesa
dos princípios da História Social no campo da História Antiga, particularmente pela
exploração de três temas de sua historiografia: a discussão sobre os fatos e as fontes,
utilização de modelos e a defesa da História total.
384 PAIXÃO, F. Moses I. Finley. In: Idéias contemporâneas. Tradução de Maria Lúcia Blumer.Entrevistas do
Le Monde. São Paulo: Editora Ática. 1989. p.120.
175
5.1 A CRISE DO HISTORISMO CLÁSSICO E O CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO
DA HISTÓRIA SOCIAL
As transformações do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos, no início do
século XX, expressas na Europa pela insatisfação de várias classes sociais e nos EUA pela
maior independência da sociedade burguesa em relação ao Estado, se comparada à Europa,
contribuíram para uma viva discussão acerca dos fundamentos dominantes da historiografia.
A ampliação do objeto da História e uma reflexão mais profunda sobre um novo conceito de
ciência se apresentavam como questões prementes diante da nova realidade social.
Como já dito anteriormente, o Historismo é um paradigma de pensamento e prática
históricos que enfatiza a singularidade e a individualidade dos fenômenos históricos. Neste
sentido, os fenômenos históricos deveriam ser compreendidos em seu próprio tempo, em
detrimento de uma análise amparada em leis gerais ou de princípios morais presentes. Tal
concepção sublinhava a impossibilidade de comparação significativa entre épocas históricas.
Apesar de ter conhecido cenários muito distintos, o resultado de tal concepção, em geral, foi
uma História centrada no relato dos acontecimentos políticos e militares, com especial
atenção nas relações internacionais entre os Estados, em oposição à intromissão a qualquer
dimensão do social ou econômica para a compreensão dos fatos históricos e as generalizações
e abstrações das ciências sociais. Em suma, uma História política, a serviço dos poderes
legitimados, que rechaçava a teoria e que tinha a narrativa como fio condutor.385
Os desdobramentos da evolução do Historismo resultaram em uma versão mutilada de
Ranke e Droyssen de que a História era uma mera reconstrução dos acontecimentos. Esta
versão se estendeu aos outros países europeus e foi responsável pela confusão entre
Historismo e História positivista. Os sociólogos positivistas buscavam a explicação histórica
em termos de generalizações e leis de desenvolvimento, acreditavam que a cientificidade da
sociologia era homóloga às disciplinas das ciências naturais, com uma preferência pela
quantificação e pelas explicações sociais estruturais. Esta versão perde totalmente o sentido
quando percebemos que os herdeiros de Ranke, aqueles que o compreenderam melhor,
tomaram a nascente sociologia, que então sofria forte influência da doutrina positivista de
Augusto Comte, como o grande adversário da História, pois, insistiam que as intenções e
objetivos humanos não podiam ser reduzidos a fórmulas abstratas. Assim, dado que a História
385 CASANOVA, J. La Historia social y los historiadores. Barcelona: Editorial Crítica, 1991. p. 10-15.
176
só podia ser compreendida por meio do comportamento humano guiado por idéias
conscientes, havia certos setores da existência humana que estavam fora do raio de
investigação do historiador, como: as massas, as classes sociais e a cultura popular. Somente
aqueles que tomavam as decisões constituíam um assunto legítimo da História.386
Estes pressupostos dominaram o cenário acadêmico até o final da segunda guerra
mundial. Nesta época, contudo, as inovações historiográficas, mesmo que ainda não
dominantes, minavam este predomínio, pois, refletiam o impacto retardado de mudanças
fundamentais nas estruturas políticas, sociais e econômicas do século XX. O monopólio
político e social das elites tradicionais havia sido destruído por duas guerras e uma revolução,
que se estendeu por outros países. O domínio europeu no mundo se exauriu e as extensas
áreas antes consideradas fora da História alcançaram sua independência, subvertendo os
valores racistas dominantes. Outras disciplinas, além da História, começavam a reivindicar
espaço na investigação das forças que determinavam a estrutura do mundo social e seu
desenvolvimento, em especial, a economia, a sociologia e a psicologia. Mesmo no ambiente
acadêmico, um ambiente democrático começava a ser sentido com a ascensão de uma nova
geração de professores a cargos que antes eram ocupados por historiadores conservadores.
Assim, a vitalidade inicial da História social derivou de seu caráter opositor. Esta nova
História se erguia como uma tripla rebelião, ou melhor, uma rebelião dirigida contra a
História das elites, outra contra a história política e uma terceira contra a especialização da
História em uma disciplina distinta. A primeira rebelião, com o intuito de estender a História à
todas as esferas da atividade humana, era resultado da demanda pela sua democratização. A
segunda rebelião impregnou a História de um caráter negativo: a História que omite a política.
E a terceira rebelião, dirigida fundamentalmente contra a prática Historista, convidava os
historiadores a manter uma amizade com as outras ciências sociais.387 Com estes pressupostos
e com as transformações que o capitalismo e a industrialização haviam produzido, em
particular, as fortes distorções sociais, é compreensível que se produzisse uma reação em
favor de uma nova História.
A oposição à História política tradicional apresentava uma homogeneidade de
temática e do método da História por parte de seus defensores, mas, em comum com o
Historismo, permanecia a idéia de que a História era uma ciência orientada para uma
386 ibid. 387 ibid., p. 31-40.
177
realidade objetiva que procedia de um modo metódico, além, da crença de que era possível
realizar seu estudo de forma científica.
Abordaremos as temáticas e tendências da História Social por dois caminhos: o
primeiro é buscando uma definição para o termo; o segundo é explorando seu
desenvolvimento em alguns países: Alemanha, França, Estados Unidos e Inglaterra. Mas
antes de seguirmos estes caminhos, é necessário fazer uma breve menção a uma forma
alternativa de escrever a História, que, fora da área de erudição especializada, no final do
século XIX, apresentava grande afinidade com estas novas tendências historiográficas: o
marxismo.
O desenvolvimento da industrialização e as profundas transformações do capitalismo
geraram intensos conflitos de classes. A teoria propagada por Marx, em meados do século
XIX, pretendia ser uma teoria geral da sociedade direcionada para a compreensão das
mudanças sociais resultantes do desenvolvimento capitalista e das revoluções políticas do
século XVIII. A esfera de análise de Marx e suas ambições continham fontes intelectuais
similares aos sistemas sociológicos de Comte e Spencer: as histórias da civilização, as teorias
do progresso e a nova política econômica. Por outro lado, Marx defendia uma concepção da
sociedade mais estrutural que orgânica, com um espaço mais amplo para a ação humana; uma
concepção menos determinista das fases de evolução social; e mecanismos dialéticos e
internos de mudança. Tratava-se de situar o modo de produção e a sociedade capitalistas em
um esquema teórico de desenvolvimento social. A História era concebida como um
movimento social, como história da sociedade que incluía todos os setores da atividade
humana. Esta perspectiva se constituiu na teoria social dominante da classe trabalhadora
organizada, e foi difundida principalmente nos sindicatos e partidos socialistas. Já no campo
acadêmico, sua difusão encontrou maior resistência, apesar do forte impacto sob as ciências
sociais, especialmente na Economia e Sociologia. Antes da primeira guerra mundial, o
marxismo já estava consolidado como uma teoria social no movimento socialista e em alguns
círculos acadêmicos.388
A partir dos anos sessenta e setenta, a História Social consolidou-se nas universidades
como uma tendência dominante. A definição de História Social, contudo, é ampla e ambígua.
Todos os esforços de definição de seu objeto e vocabulário oscilam entre definições mais
amplas – “a história dos homens que vivem em sociedade” – e definições mais restritas que a
reduzem as descrições de grupos sociais. No primeiro caso, toda História é História Social, 388 ibid., p. 18-20.
178
uma idéia que remete a idéia de totalidade. No segundo, a História Social é vista como um
campo de estudo parcial, comparável a outros âmbitos da História como o econômico,
demográfico, político ou militar. Uma primeira dificuldade, nos dois casos, é a própria
definição de sociedade e como ela pode ser abordada historicamente. Uma abordagem
concebe a sociedade como uma coleção de indivíduos distintos e fragmentados, com uma
relação mais ou menos casual entre estes indivíduos. A “sociedade”, aqui, é um termo
instrumental e não se refere a um termo real que exista independentemente das pessoas que a
constituem. Há uma forte preocupação com as ações individuais. No extremo oposto, uma
outra abordagem apreende a sociedade por meio de estruturas, conceito utilizado pelas
ciências sociais para referir-se a toda sociedade ou parte dela e que existe independentemente
dos indivíduos. As teorias estruturalistas se dividem em dois grandes grupos: a holista, que
concebe a sociedade como uma entidade histórica estreitamente integrada, com existência,
caráter, necessidades, princípios e poderes de ação próprios. Suas análises partem de
instituições de grande escala e de suas relações, e não do comportamento de indivíduos. Esta
visão contrasta com historiadores preocupados com a inter-relação no tempo entre estruturas
da sociedade e a ação coletiva e individual. A sociedade não está simplesmente constituída de
indivíduos, mas sim de uma organização, propriedades e poderes próprios, que surgem das
ações coletivas, e das motivações e características de muitos indivíduos através do tempo.
Aqui, o objetivo é atingir um meio termo entre as versões extremas do estruturalismo e do
individualismo, com o fito de evitar tanto a idéia de que a estrutura determina as
características e ações dos indivíduos como a de que são os indivíduos os que criam
independentemente seu mundo.389
Esta última perspectiva remete a um outro problema: como explicar as causas e os
processos particulares das estruturas sociais. Como buscar as causas dos fenômenos. Segundo
Casanova, se a sociedade pode ser conceitualizada de diversas formas, a explicação causal
também dependerá da teoria que guie a prática investigativa do historiador. A solução gera,
também, controvérsias, pois, enquanto alguns historiadores recorrem às diversas sugestões
teóricas das ciências sociais, outros, de forma reativa, preconizam a busca de uma teoria
própria da História. Tudo isso depõe a favor de uma História Social plural e diversa. A
ausência de uma única teoria, de um único paradigma, ou de um único aparato conceitual para
tratar cientificamente os fenômenos sociais, ampliam o conhecimento histórico e legitimam
novas áreas de investigação. A tendência a um retorno do empirismo e a um ecletismo teórico
389 ibid., p. 36-46.
179
deve ser substituída por um entendimento mínimo do vocabulário e conceitualização teórica
indicados para explicar o real significado dos fatos selecionados. Dessa forma, diferente de
uma História total, a História Social constitui-se em uma dimensão presente em qualquer
forma de abordar o passado.390
A relação com as outras ciências sociais é outro elemento constitutivo da História
Social. Em oposição ao Historismo, alérgico a teorizações, os historiadores sociais
estabeleceram desde o início de sua trajetória um intenso diálogo com as outras ciências
sociais. O problema é que a trajetória e a disposição dos cientistas sociais nem sempre
estiveram afinados com a dos historiadores.
O objeto das nascentes ciências sociais modernas, e em especial da sociologia, foi a
compreensão das origens, natureza e conseqüência do capitalismo e da industrialização na
Europa. Este foi o tema dos fundadores da sociologia moderna: K. Marx, Aléxis de
Tocqueville, E. Durkheim e M. Weber. Todos estes autores combinaram um interesse pela
construção histórica acerca da estrutura social com uma compreensão da história da
sociedade. Apesar de não operarem da mesma forma esta combinação, nenhum deles elaborou
abstrações teóricas, conceitualizações e uma filosofia da evolução universal a margem da
História. Desde o século XIX, contudo, o conteúdo histórico da Sociologia foi perdendo
espaço para uma “ciência natural da sociedade”, como pregava Augusto Comte, preocupada
com o estudo do presente e com a pouca importância atribuída à História. A
institucionalização acadêmica da Sociologia, principalmente nos EUA, veio acompanhada de
um rompimento com a tradição histórica; da perspectiva evolucionista da história; um
fortalecimento do anti-historicista do “empirismo abstrato” e da “grande teoria” representada
por Talcott Parsons; e do funcionalismo estrutural.
Foram os historiadores dos Annales que iniciaram o diálogo com as modernas ciências
sociais, reagindo contra a história política do Historismo. Nos anos cinqüenta e sessenta,
com a segunda geração dos Annales, esta tendência foi consolidada, paradoxalmente em um
momento em que imperava na Sociologia, e em alguns setores do marxismo, as tendências
estruturalistas e antihistoricistas. Apesar deste predomínio, alguns sociólogos procuraram
análises histórico-comparadas da industrialização e das revoluções, desiludidos com os
modelos de modernização e desenvolvimento que não explicavam as mudanças sociais.391
390 ibid., p. 46-48. 391 ibid., p. 51-53.
180
A História científico-social, em seu apogeu, caracterizava-se pela formulação de
problemas, por sua precisão empírica, pelo uso de teorias, modelos e tipos ideais, por seu
interesse em estudos interdisciplinares e comparativos e pela orientação de seus pesquisadores
para a compreensão de sociedades inteiras. O que subjazia essa “fome” por conceitos e
hipóteses era a idéia de que a História carecia de um corpo teórico próprio e de que na
Sociologia poderia se buscar seu status científico. Tal perspectiva apresentava de imediato
dois questionamentos: a simples incorporação destes conceitos e teorias parecia ser a resposta
à herança hermenêutica, voltada para os grandes personagens e anti-teórica, porém, não se
questionava a neutralidade de tais conceitos, modelos e teorias. Por outro lado, como resolver
o problema da mudança social em um enfoque sociológico-estrutural? Como passar de uma
estrutura a outra? Como descobrir a gênese de uma estrutura? E como explicar a evolução da
humanidade desde as comunidades pré-históricas até às industrializadas?
Tal preocupação nasce nas ciências sociais a partir das conseqüências sociais da
industrialização sobre as sociedades européias e da ausência da aparente evolução social nas
denominadas sociedades “primitivas”. Para dar conta de tal tarefa surgiram dois grandes
modelos para explicar a mudança social: as teorias do conflito e as teorias evolucionistas. A
primeira, cujo expoente mais representativo é Karl Marx, tem como dado básico a localização
da mudança social na estrutura da sociedade e a convicção de que esta tensão estrutural
resulta em um conflito de classes que é a força motora da mudança social. Os historiadores
que seguiram esta linha, principalmente, Luckás, Korsh e Gramsci, nos anos vinte,
rechaçaram a escrita de uma história puramente teórica, e mantiveram um lugar para a relativa
autonomia da evidência empírica, a variabilidade da experiência histórica e o poder
transformador da ação coletiva e individual que conduz a conseqüências não deliberadas.
Historiadores sociais marxistas britânicos, franceses e norte-americanos, no início dos anos
cinqüenta, discutiram temas - transação do feudalismo ao capitalismo, revoluções e formação
histórica da classe trabalhadora – a partir de investigações históricas concretas e não de
especulações filosóficas.392
As teorias evolucionistas alcançaram maior eco sobre os trabalhos dos historiadores
sociais – principalmente dos franceses – que buscavam na sociologia um refúgio teórico. Os
evolucionistas clássicos, representados por Comte, Spencer e Durkheim, defendiam a
concepção de que o “desenvolvimento histórico” das sociedades humanas era constituído por
etapas básicas que progrediam de uma organização simples e primitiva a um modelo de
392 ibid., p. 58-60.
181
crescente complexidade e perfeição. As mudanças da estrutura social, então, eram inevitáveis,
resultados de forças internas e inerentes de toda sociedade, no entanto, descritas de forma
demasiadamente unilateral, com poucas evidências empíricas, funcionando mais como uma
“lei geral da história”. Uma versão mais recente destas teorias é o funcionalismo, muito
presente nos EUA, em grande parte devido ao macarthismo e a perseguição aos comunistas. O
funcionalismo sustenta a hipótese de que toda a mudança se deve a forças exógenas. A
mudança social é uma adaptação de um “sistema social” a seu entorno por meio de um
processo de diferenciação mental e de crescente complexidade estrutural. É, na verdade, uma
teoria do equilíbrio, na qual a mudança social é um movimento de um estado de equilíbrio a
outro. Desta forma, os distintos componentes de um “sistema social” são, em princípio,
compatíveis, e sem a interferência externas, não há mudança de posição de nenhum
componente. As possíveis tensões e conflitos são desajustes que formam parte do processo,
que a sociedade elimina por meio de mecanismos reintegrativos.393
Muitas das observações traçadas até aqui são também pertinentes para a ralação entre
Antropologia e História, pois, a Antropologia, em seu nascedouro, também se apresentou
como uma ciência social hostil à análise histórica. No final dos anos cinqüenta, enquanto a
História seguia em sua progressão para a captação da “totalidade” auxiliada pelas outras
ciências sociais, a Antropologia era dominada por três paradigmas hostis à investigação
histórica: o funcionalismo estrutural britânico (descendente de Radicliffe Brown e Bronislaw
Malinowski); a antropologia cultural e psico-cultural norte-americana (herdeira de Margaret
Mead e Ruth Benedict) e a antropologia evolucionista norte-americana (de forte afiliação
arqueológica, formada em torno de Leslie White e Julian Steward). Para estes antropólogos, a
Antropologia social era uma ciência próxima das ciências naturais pela sua tendência a
generalização, enquanto a História era incluída entre as ciências “particulares”. A ruptura do
diálogo entre as duas disciplinas levou a Antropologia a um “empirismo abstrato” e “grandes
teorias” que caracterizavam a Sociologia nesta época. Predominou entre os antropólogos a
concepção de que antes da dominação européia, todas as sociedades “primitivas” eram
estáticas. Conseqüentemente, estes antropólogos acabaram reduzindo o problema da História
à dualidade primitivo-moderno. Mesmo o estruturalismo de Claude Levi-Strauss também
subestimava a História ao negar qualquer impacto significativo do acontecimento na estrutura.
Esta tendência, entretanto, não foi geral. No final dos anos setenta, a chamada escola
antropológica de “economia política”, centrava seus interesses nos sistemas econômico-
393 ibid., p. 61-62.
182
políticos de “grande escala” e a análise dos efeitos da penetração do capitalismo nas
sociedades agrárias. Para estes autores, os fatores fundamentais da mudança são o Estado e o
sistema capitalista mundial. Não obstante, todos os antropólogos destas correntes
antropológicas, além dos marxistas estruturais, acreditam que a ação humana e o processo
histórico são determinados pela mão oculta da estrutura ou por forças do capitalismo. Neste
sentido, a sociedade (ou a cultura) é uma realidade objetiva com dinâmica própria, separada
da ação humana.394
Nos finais dos anos setenta, uma intensa fragmentação teórica tomou conta da
Antropologia. Não havia um conjunto de termos no qual todos os profissionais podiam
dirigir-se, tanto quanto uma linguagem comum. Muitos dos métodos e teorias questionados no
seio da disciplina foram adotados por historiadores sociais, que as utilizavam sem um real
conhecimento da teoria utilizada. O resultado disso foi a adoção acrítica e indiscriminada de
métodos e teorias que não serviam para explicar a evolução, funcionamento e transformação
das sociedades humanas, ocasionando falhas na elaboração de premissas próprias e na
reflexão sobre os problemas históricos. Esta atitude fortaleceu o discurso de que a História
tinha que viver de empréstimos teóricos, atribuindo um caráter passivo a História, em vez, de
uma perspectiva em que estas teorias pudessem servir para localizar novas questões e iluminar
os problemas históricos.
Esta evolução da História Social não foi igual em alguns países onde ela fincou raízes.
Na Alemanha, berço do Historismo, Karl Lamprecht foi o primeiro a questionar dois
princípios da ciência histórica estabelecida pelo Historismo: o papel central do Estado na
exposição histórica e a narração direcionada para grandes personagens. Em vez do estudo dos
fatos, sem nenhum método científico para a apreensão de inter-relações mais amplas,
Lamprecht pregava que a História, como qualquer ciência, deveria promover a aproximação
ao objeto de sua investigação com questionamentos teóricos e princípios metodológicos. A
“nova ciência histórica” deveria equiparar a História às ciências empíricas sistemáticas.
Também na Alemanha, o primeiro impulso para uma História que se ocupasse dos problemas
desencadeados pela industrialização foi, como já vimos, a Nova Escola de Economia, que
ampliou o objeto da História para além da política e da cultura espiritual, a fim de englobar a
sociedade e a economia, mesmo adotando dos Historistas elementos substanciais do conceito
de ciência. Para M. Weber e Otto Hintze, a distância entre a História e a Sociologia não era
tão grande como defendiam os historistas. Estes autores, em oposição a Ranke, Droysen,
394 ibid., p. 64-67.
183
Hegel e Dilthey, romperam com o núcleo idealista do Historismo ao não contemplar as
instituições históricas, sobretudo o Estado, como “poderes éticos”, como objetivações da
vida.395 Contudo, mesmo nos anos dourados da História Scocial, o Historismo nunca foi
totalmente abandonado pelos historiadores alemães.
A França é o locus privilegiado das origens da História Social. Desde o início do
século, Henri Berr, com a Revue de synthèse historique, incentivou os laços com outras
ciências sociais e o ataque à História política. Os dois fundadores dos Annales, Lucien Febvre
e Marc Bloch, seguiram atentamente a historiografia social alemã no final do século XIX,
tendo Bloch inclusive estudado em Leipzig e Berlim nos anos de 1908 e 1909. A revista
Annales d’histoire economique et sociale, fundada em 1929, tinha como finalidade inicial
oferecer um foro às diversas correntes e aos novos enfoques historiográficos. Uma reação
frente a historiografia existente e uma reconstrução da História sobre bases científicas a partir
de conceitos tomados de empréstimo a outras ciências sociais são as características iniciais
dos primeiros números. Em suas origens, esse protesto dirigia-se contra o trio formado pela
História política, a História narrativa e a História episódica (evenementielle). Bloch e Febvre
queriam substituir este trio por uma “História profunda”, uma História econômica, social e
mental que estudasse a inter-relação do indivíduo com a sociedade.396
O conceito de ciência e a prática dos historiadores dos Annales são complexos. Por um
lado, compartilham com o Historismo, as possibilidades do método e do conhecimento
científicos, por outro relativizam estas idéias. Bloch criticou os historiadores “positivistas”,
cujo principal representante era Charles Seignobos, que influenciados pela filosofia de
Augusto Comte, elaboraram um pensamento específico no domínio da História marcado pela
procura de fundamentos científicos à démarche histórica, contudo, empobrecido em relação
ao historismo alemão, por limitar a História à estrita observação dos fatos.
As gerações que vieram logo antes da nossa, nas últimas décadas do século XIX e até os primeiros anos do XX, viveram como alucinadas por uma imagem muito rígida, uma imagem verdadeiramente comtiana das ciências do mundo físico. Ao estender ao conjunto das aquisições do espírito esse prestigioso esquema, parecia-lhes então não existir conhecimento autêntico que não devesse desembocar em demonstrações incontinenti irrefutáveis, em certezas formuladas sob o aspecto de leis imperiosamente universais. Esta era uma opinião praticamente unânime.397
395 IGGERS,G. La ciencia historica en el siglo XX. Una vision panorámica y crítica del debate
internacional. Barcelona: editorial Labor, 1995. p. 33-34. 396 CASANOVA. J. op. cit., p. 24-25. 397 BLOCH, M. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 2002. p. 47.
184
Esta crítica, contudo, não impediu Bloch de acreditar que a História era uma ciência,
diferente das ciências naturais, mas capaz de suprir as condições de uma verdadeira ciência:
estabelecer as ligações explicativas entre os fenômenos por meio de uma classificação
racional e uma progressiva inteligibilidade dos fatos. A História pode não definir leis, devido
ao acaso, mas só é válida se for penetrada de razão e inteligibilidade, “o que situa sua
cientificidade não do lado da natureza, de seu objeto, mas da démarche e do método do
historiador.”398 Febvre, mesmo não definindo a História como uma ciência, a definia como
um estudo cientificamente conduzido, das diversas atividades e das diversas criações dos homens de outrora, tomados na sua data, no quadro de sociedades extremamente variadas e contudo comparáveis umas as outras (é o postulado da sociologia), com as quais encheram a superfície da terra e a sucessão das épocas.399
O termo “estudo cientificamente conduzido” implica duas operações, as mesmas que
se encontram na base de qualquer trabalho científico moderno: “pôr problemas e formular
hipóteses”. Isto tudo significa rejeitar a idéia de que a História é um simples registro dos
fatos, ou de que estes fatos são dotados de uma existência perfeitamente definida, irredutível.
Os fatos históricos, mesmo os mais humildes, é o historiador que os chama à vida. Sabemos que os fatos, esses fatos diante dos quais nos intimam tantas vezes a inclinar-nos devotadamente, são outras tantas abstrações – e que, para os determinar, é preciso recorrer ao testemunho mais diversos, e por vezes mais contraditórios – entre os quais necessariamente escolhemos.400
Para Bloch, o historiador não consegue constatar os fatos que ele estuda, pois o
conhecimento do passado é indireto e feito por meio de vestígios. Este passado é um dado que
não se modifica, mas seu conhecimento está incessantemente se modificando. “Sabemos
melhor interrogar as línguas acerca dos costumes, as ferramentas acerca do artesão.
Aprendemos, sobretudo a mergulhar mais profundamente na análise dos fatos sociais”401, pois
os textos não falam senão quando sabemos interrogá-los. Naturalmente, “é necessário que
essa escolha ponderada de perguntas seja extremamente flexível, suscetível de agregar, no
caminho, uma multiplicidade de novos tópicos, e aberta a todas as surpresas.”402 Contra o
398 LE GOFF, J. Prefácio. In: BLOCH, M. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 2002. p.
20. 399 FEBVRE, L. Combates pela História. Lisboa: Editorial presença. 1985. 400 ibid., p. 32. 401 BLOCH, M. op. cit., p. 75. 402 ibid., p. 79.
185
domínio do documento escrito, Bloch afirmava a infinidade e a diversidade do testemunho
histórico, que para ele era a expressão de lembranças.
À medida que a história foi levada a fazer dos testemunhos involuntários um uso cada vez mais freqüente, ela deixou de se limitar a ponderar as afirmações [explícitas] dos documentos. Foi-lhe necessário também extorquir as informações que eles não tencionavam fornecer.403
Além disso, reafirmou a procura da veracidade dos documentos como fundamental
na pesquisa, sendo a crítica, uma arte racional e uma prática metódica do espírito, a maior
prova de veracidade.
Ora, se nossa imagem do universo pôde hoje, ser limpa de tantos fictícios prodígios – porém confirmados, parece, pela concordância das gerações -, certamente devemos isso antes de tudo à noção, lentamente deduzida, de uma ordem natural comandada por leis imutáveis. Mas essa própria noção não conseguiu se estabelecer tão solidamente, as observações que pareciam contradize-la só puderam ser eliminadas graças ao paciente trabalho de uma experiência crítica empreendida pelo próprio homem enquanto testemunha. Somos agora capazes ao mesmo tempo de desvendar e de explicar as imperfeições do testemunho. Adquirimos o direito de não acreditar sempre, porque sabemos, melhor do que pelo passado, quando e por que aquilo não deve ser digno de crédito. E foi assim que as ciências conseguiram rejeitar o peso morto de muitos problemas.404
Em relação a Ranke, Bloch observava que compreender não pode significar
neutralidade, nada tem a ver com passividade, mas sim com análise e abstração. Nenhuma
ciência seria capaz de prescindir da abstração, tampouco da imaginação. A História não é
exceção. Seu objeto, o homem no tempo, contudo, dificulta a compartimentalização das
ciências naturais. Em História o conhecimento dos fragmentos, sucessivamente estudados,
cada um por si, jamais propiciará o conhecimento do todo; não propiciará sequer o dos
próprios fragmentos. A idéia de totalidade está presente na forma de abordagem da sociedade
e do tempo, que não podem se seccionados.
Reconhecemos que em uma sociedade, seja qual for, tudo se liga e controla mutuamente: a estrutura política e social, a economia, as crenças, tanto as formas mais elementares como as mais sutis da mentalidade. O tempo humano, em resumo, permanecerá sempre rebelde tanto à implacável uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do
403 ibid. , p. 95. 404 ibid., p. 109.
186
relógio. Faltam-lhe medidas adequadas à variabilidade de seu ritmo e que, como limites, aceitem freqüentemente, porque a realidade assim o quer, conhecer apenas zonas marginais.405
Em conformidade com o Historismo, o estatuto científico próprio para a História
parece ser uma preocupação dos fundadores dos Annales. Voltando-se contra os
“positivistas”, que só acreditavam na cientificidade da História a partir das ciências naturais,
ou contra aqueles que não acreditavam que a História poderia ser uma ciência, estes autores
procuraram uma especificidade para a ciência histórica, por meio de princípios racionais. A
defesa de modelos e hipóteses é, contudo, uma defesa de princípios da ciência moderna,
tributária das ciências naturais. O alinhamento com as outras ciências sociais, contribuição
essencial dos Annales, os distanciava do Historismo, que defendia de uma distinção da
História em relação às outras ciências humanas. Nos Annales há, portanto, elementos da
ciência moderna – hipótese e modelos - e a ambição de Dilthey e Droysen, que procuraram
dar a História um estatuto científico próprio. Mas, enquanto Dilthey defendia a interpretação
em detrimento da explicação, Bloch afirma que interpretar é analisar. Estamos diante de uma
fusão de elementos legitimadores das ciências naturais - explicação e hipóteses - com a
afirmação de métodos próprios das ciências do espírito.
Todas estas questões que envolviam a natureza do conhecimento histórico adquiriram
relevância na França e nos Estados Unidos. Neste último, floresceu a idéia de que a História
era uma ciência social e devia contribuir para o descobrimento de leis do desenvolvimento
humano. O conceito de História científica refletia essa tendência de unir a História às ciências
sociais. Contudo, muitos estudantes americanos foram para Alemanha a fim de prosseguir o
doutorado, porque antes de 1880 eles não tinham muita escolha. O resultado disso foi a fusão
do conceito de individualidade de cada período histórico de Ranke com as leis de causalidade
de Lamprecht, algo totalmente inimaginável na Europa. Um destes estudantes James Harvey
Robinson que em 1912 proclamou em um manifesto os princípios da Nova História (New
History). Suas principais idéias conclamavam os historiadores a 1. ampliar os termos de sua
indagação e afastar-se de uma história política limitada; 2. buscar uma abordagem genética
para seus problemas; 3. aplicar os instrumentos desenvolvidos dentro das várias ciências
sociais na indagação histórica e ampliar as fronteiras com a Sociologia, Psicologia, Economia
405 ibid., p. 152-153.
187
e assim por diante; finalmente, 4. fazer de seu assunto um instrumento para o progresso
social.406
A discussão metodológica iniciada nos Estados Unidos, no final do século, resultava
da convicção de que a ciência histórica tradicional nas universidades já não correspondia às
exigências científicas e sociais de uma moderna sociedade industrial democrática. Os “novos
historiadores” insistiam na ruptura com o passado europeu pré-moderno. Para os “novos
historiadores”, Charles Beard, James Robinson, Vernon Parrington e Carl Becker, a
associação entre História e ciências sociais é distendida e eclética. Estas últimas devem
oferecer conhecimentos e possíveis modelos de explicação; porém, não se pretende converter
a ciência histórica em uma ciência social sistemática.407
Após a segunda guerra mundial estabelece-se um novo consenso nacional nos Estados
Unidos. Diferente da Europa, a América é exaltada como uma sociedade sem conflitos de
classe e os conflitos ideológicos tornam-se insignificantes no desenvolvimento social
alcançado. Boa parte dos historiadores está afinada com este consenso. O caráter altamente
racionalizado da moderna sociedade industrial capitalista é acompanhado por uma concepção
racionalizada da ciência. Na História estes métodos traduzem-se na introdução de métodos
quantitativos, que se espalham também na Inglaterra, França e outros países. Desde a década
de cinqüenta, nos Estados Unidos e em outros países se trabalha cada vez mais com a recém
desenvolvida tecnologia de ordenadores e com métodos quantitativos para analisar processos
econômicos. Nos anos setenta, a investigação histórica baseada na estrita quantificação
desempenhou importante papel, partindo da concepção de que a ciência histórica, como todas
as ciências, só poderia obter sua cientificidade, se suas afirmações pudessem adotar uma
forma matemática. Era “naturalização” das ciências históricas no seu grau mais agudo.
Na Grã-Bretanha, com um sistema de pactos coletivos que desmontaram a
possibilidade de uma revolução social, predominou a interpretação Whig (liberal) da História,
“uma ciência que devia averiguar os fatos, proporcionar lições morais e ratificar a idéia de
progresso, entendido como a manifestação da razão, do conhecimento e do avanço
tecnológico da industrialização.”408 Os fatos, em tal interpretação, resultavam das ações dos
indivíduos que os “produziam” através dos sistemas institucionais. Estas realidades empíricas
verificáveis deveriam ser julgadas pelo historiador. Por outro lado, havia realidades
406 BENTLEY, M. Modern Historiography . An Introduction. Londres e Nova York. Routledge, 2003. passim. 407 IGGERS, G. op. cit., p. 44. 408 CASANOVA, J. op. cit., p. 82.
188
imperceptíveis para o historiador como as classes sociais, os modos de produção ou algumas
atitudes culturais, não prováveis empiricamente, por meio de documentos, nem passíveis de
proporcionar critérios retos de declarações morais. Em suma, a História era a interação entre
os grandes personagens e as instituições que eles criavam, modificavam ou combatiam. Esta
concepção da História, com uma forte tradição empírica, foi um dos fatores que retardaram o
desenvolvimento da História Social no mundo acadêmico da Grã-Bretanha.
A disciplina histórica ocupou um lugar proeminente na cultura do imperialismo
britânico, proporcionando uma exposição racional do capitalismo britânico e uma justificativa
triunfante do imperialismo antes de 1914. O fim da era vitoriana, contudo, deixou a disciplina
histórica sem um núcleo aglutinante. À História política e constitucional, se juntaram diversas
Histórias com diferentes qualificativos (administrativa, econômica, eclesiástica, militar, local
etc). Nos anos trinta aparecem as primeiras formulações embrionárias da História Social: a
História econômica e do movimento trabalhista. Seus logros, no entanto, não abalaram os
princípios da historiografia dominante. A História econômica consagrou o “econômico” como
um objeto autônomo de estudo e estabeleceu como método preferido de análise o “empirismo
acrítico”. Os métodos de trabalho dos historiadores do movimento trabalhista constituíram-se
em uma espécie de variante da teoria Whig da História, relatando as ações do sindicalismo e
das classes trabalhadoras da mesma forma que seus antecessores enfocavam a história dos
reis, batalhas e tratados.409
Frente a essas tradições de empirismo e individualismo metodológico se consolidou
nos anos sessenta uma História Social de diferentes direções. Uma direção, a marxista, tem
sua origem na versão liberal radical da “História popular” decimônica e na obra de
democratas radicais do primeiro terço do século. Os mais famosos historiadores marxistas
começaram seus estudos universitários nos anos trinta, mas suas grandes obras só foram
publicadas nos anos sessenta – com exceção do trabalho de Maurice Dobb, Studies in the
Development of Capitalism (1946) - no momento em que o rápido desenvolvimento do ensino
superior possibilitou a investigação de novos temas. Outra direção foi seguida pelos
historiadores que seguiram os Annales e um outro grupo, também sob influência dos Annales,
recorreu à Sociologia e depois à Antropologia.
A relação entre História e a Sociologia na Grã-Bretanha não foge aos padrões gerais
estabelecidos nas linhas anteriores. No momento em que os historiadores, a partir dos anos
sessenta, iniciaram um processo de aproximação com a Sociologia, particularmente por seus 409 ibid., p. 85-88.
189
métodos e interesses, esta estava ainda sob a influência de três tradições científicas
profundamente anti-históricas: a Antropologia Social britânica, a teoria social européia e a
Sociologia empírica norte-americana. Mesmo a Sociologia marxista, sob a influência do
estruturalismo althusseriano, mostrou pouco interesse pela investigação histórica. Só em
meados dos anos setenta, há uma renovação na sociologia britânica, com uma maior
preocupação com os métodos da investigação histórica, aferidos nas publicações do periódico
British Journal of Sociology, com artigos de claro conteúdo histórico de P. Lasllet, E.P.
Thompson, G. Roth, entre outros. Paradoxalmente, neste período, muitos historiadores que
iniciaram este diálogo, começaram a se afastar desta perspectiva e retomaram velhas tradições
narrativas e políticas, buscando novas vias de antecipação frente à sociologia.410
Quanto a Antropologia, a história não muda muito. A Antropologia, na primeira
metade do século XX, tendo como expoente máximo Radicliffe-Brown, esteve mais próxima
dos parÂmetros teóricos das ciências naturais. Foi só no final dos anos cinqüenta que
assistimos uma aproximação entre a História e a Antropologia, com Evans-Pritchard, sucessor
de Radicliffe-Brown, em Oxford, pelo lado da Antropologia, e por outro lado, vários
historiadores começam a se aventurar nos “mares” da Antropologia, com mais ou menos
rigor.411
A fronteira entre a História e as ciências sociais ficaram fechadas em grande parte
devido à resistência da tradição liberal individualista e empírica, da insensibilidade dos
sociólogos em relação à investigação histórica e a inclinação anti-historicista da Antropologia.
Não obstante, a ausência de uma ruptura teórica com os supostos métodos da interpretação
Whig da História: gosto pelo empirismo, averiguação documental dos fatos, desprezo pela
teoria e pela construção de totalidades históricas subsistiram durante a transição da História
liberal-individual à História Social.412
5.2 MOSES FINLEY E A HISTÓRIA SOCIAL.
O norte-americano Moses I. Finley (1912-1986) escreveu boa parte de sua obra
durante o desenvolvimento e consolidação da História Social. Finley nasceu e viveu nos
Estados Unidos até 1954, país onde, como já vimos, a História Social encontrou campo fértil
410 ibid., p. 88-91. 411 ibid., p. 92-93. 412 ibid., p. 94-95.
190
para o seu desenvolvimento, indo depois morar e lecionar na Inglaterra, após sua demissão da
Universidade de Rutgers. Finley foi um militante ardoroso de muitos dos princípios da
História Social, combatendo a História “tradicional” nas resenhas, artigos, livros, entrevistas e
uma série de palestras na Europa e Estados Unidos, tanto no campo mais geral dos estudos
históricos, quanto no campo especifico da Antigüidade.
5.2.1 A Crítica ao Historismo e a Discussão das Fontes.
Em 1985, em um livro intitulado Ancient History, traduzido para o português em
1994, intitulado História Antiga, Finley escreveu um capítulo sobre Ranke e Tucídides,
“Como realmente aconteceu”, no qual discute a importância do trabalho de Ranke e Tucídides
para a “História científica”. O autor passa, então, a elencar algumas das características da
historiografia rankeana: não julgar, mas apenas contar “como realmente aconteceu”; esforço
pela auto-anulação ao apresentar os fatos; e o estudo crítico das fontes autênticas. A primeira
contestação que Finley levanta é a crença na auto-anulação de Ranke e Tucídides como fator
primordial para uma história “objetiva” ou “científica”. Esta objetividade de Ranke em nada
se confunde com os cânones das ciências naturais, fato que Finley tratou logo de chamar
atenção, criticando a interpretação deturpada de muitos historiadores que confundem a
“objetividade” de Ranke com um positivismo vulgar. Em consonância com a crítica dos
historiadores sociais à História “tradicional”, Finley afirma que os fatos não são coisas brutas
que jazem “ali” para serem descobertos pelo historiador. Nem o próprio Ranke acreditava
nisso, pois o termo Wie es eigentlich gewesen (o que realmente aconteceu) significava o
retrato preciso das relações. É a Humboldt, que Finley atribui o pioneirismo deste papel de
passividade do historiador, fundado no pressuposto da descrição pura e completa. Humboldt é
classificado como intuicionista, por defender a intuição, a inferência e a conjectura para tornar
visível um acontecimento. A todo acontecimento deveria ser adicionado uma parte invisível
de todo fato. Eduard Meyer foi também incluído neste grupo. Meyer defendia a intuição do
historiador, não o diferenciando do artista, e afirmava que a objetividade residia naquilo que o
historiador considerava verdadeiro. Diferente desta postura, Droysen, apesar de ter dito que
aprendera com Humboldt o caminho da compreensão da prática histórica, defendia a
interrogação dos fatos para que eles nos dessem uma resposta e métodos próprios para
controlar a intuição e outras espécies de subjetivismo. Finley não acreditava na objetividade
rankeana da História amparada na auto-anulação do historiador e na fé dos documentos
oficiais - mesmo acreditando, da mesma forma que Ranke, que a crítica das fontes é um
191
elemento essencial da pesquisa histórica - pois qualquer narrativa histórica traz consigo um
juízo de valor. “A objetividade na História é pura ilusão”, disse ele, sem cair no intuicionismo
idealista-romântico, que ele combateu por meio da defesa de modelos não matemáticos.413
Finley corroborava estas idéias no mesmo livro, nos capítulos mais específicos sobre a
Antiguidade, mostrando-nos o quanto a prática historiográfica moderna acerca da Antiguidade
continuava retrógrada. Não aceitava o fato de historiadores modernos dedicarem pouca
atenção à distinção entre fontes primárias e secundárias e aceitarem tudo o que era escrito em
latim ou grego como verdadeiro e contemporâneo aos fatos narrados. É subestimada, pelos
historiadores modernos, a capacidade dos antigos em inventar, pois aqueles não toleravam
lacunas em suas narrativas. O próprio Tucídides, um dos ícones da História “objetiva”,
bastião de honestidade e veracidade, afirmava que seu método se apegava ao sentido geral das
palavras que eram realmente pronunciadas, mas, também, em fazer com que os oradores
dissessem aquilo que, em sua opinião, era pedido por cada situação. Tudo isso, porque o
estudo e a escrita da História feitos pelos gregos e romanos eram bem diferentes dos padrões
da História atual. Daí a dificuldade de comparar Ranke à Tucídides, tomando como
parâmetros princípios da historiografia moderna.
Finley promove uma discussão dos documentos escritos, lembrando que, no mundo
greco-romano, os documentos estão dispostos de forma aleatória tanto em termos de tempo
quanto de espaço, por mais numerosos que pareçam ser. Além de escassos, falta-lhes um
contexto significativo. A falta de fontes primárias bloqueia a análise das instituições, devido à
natureza aleatória do material de certos períodos, resultando em períodos bem documentados
e outros não. A primeira pergunta a ser formulada, o que comumente não é feito, em relação a
qualquer documento refere-se aos motivos e propósitos de sua produção, posto que, estes não
são evidentes por si mesmos. Na Antiguidade o objetivo de todos os documentos “era
comunicar algum tipo de informação (ou desinformação) ou registrar alguma coisa, mas não
fornecer dados para a definição de políticas ou para uma análise passada, presente ou
futura.”414 Contudo, no caso das fontes ditas “literárias”, o que se conservou não tem nada de
aleatório, mas, sim, de deliberado: as escolhas dos monges da alta Idade Média sobre o que
deveriam copiar (e portanto) preservar o que não achavam que deviam copiar (e, portanto, se
perdeu).
413 FINLEY, M. Como realmente aconteceu. In: __________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São
Paulo: Martins Fontes, 1994. passim. 414 FINLEY, M. Os documentos. In: ______________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo:
Martins Fontes, 1994. p. 44.
192
Quando se começou a escrever a História do mundo greco-romano, os homens viram-
se as voltas com grandes lacunas na informação sobre o passado, ou com grande quantidade
de “dados” que incluíam ficção ou semificção misturados aos fatos. Modernos historiadores
procuraram resgatar, para preencher tais lacunas, a tradição oral, atribuindo-lhe um rótulo
positivo. Entretanto, a tradição oral implica em perdas irrecuperáveis de dados ao longo do
tempo, que tornam absolutamente impossível o controle de qualquer coisa que tenha sido
transmitida quando não se dispõe de nada escrito que possa confirmar estes dados. Não
obstante, os objetivos da tradição oral não eram históricos.
A tradição oral, portanto, não é um instrumento com que o historiador possa contar ‘na natureza das coisas’. Ele sempre deve perguntar Cui bono? Em minha opinião, com respeito ao período pós-heróico próprio do século V, a sobrevivência do tipo de tradição que venho discutindo deve ser amplamente creditada às famílias nobres das várias comunidades, inclusive às famílias reais, onde elas existiam, e, o que equivale à mesma coisa numa variação especial, aos sacerdotes de santuários como Delfos, Eleusis e Delos. Somente eles, pelo menos na maioria das circunstâncias, tinham tanto o interesse de “lembrar” os eventos e incidentes que lhes convinham (por alguma razão) quanto a posição social para sugerir essa lembrança, quer verdadeira quer falsa, de modo a convertê-la numa tradição pública. É desnecessário dizer que nem o interesse nem o processo eram históricos – talvez eu devesse dizer historiográfico – em qualquer sentido significativo. O objetivo era imediato e prático, fosse ele completamente consciente ou não, e visava ao aumento de prestígio, à garantia do poder, ou a justificação de uma instituição.415
Esta citação demonstra as dificuldades de se trabalhar com a perspectiva
historiográfica rankeana para o mundo antigo, ou melhor, aplicar o pensamento histórico
moderno a um relato mítico, a-histórico. Finley acreditava ser impossível escrever uma
história da Grécia primitiva devido à ausência de documentos que registre eventos ou relate
quem fez as coisas, quais coisas e por que.
A ausência de documentos escritos levou Finley a discutir a importância do artefato
arqueológico no mundo antigo. Finley escreveu um artigo específico sobre a relação de
“Arqueologia e História”, em 1971, publicado posteriormente no livro Uso e abuso da
História, e em alguns capítulos do livro História Antiga. No artigo mais antigo, apesar de
ressaltar que os historiadores não deveriam negligenciar os materiais arqueológicos, afirmava
que é “impossível deduzir organizações ou instituições sociais, atitudes ou crenças tomando-
415 FINLEY, M. Mito, memória e história. In: __________. Uso e abuso da História. São Paulo: Martins
Fontes, 1989. p. 21.
193
se por base unicamente objetos materiais.”416 Em seguida, afirma que a contribuição da
Arqueologia é inversamente proporcional à quantidade e qualidade das fontes escritas
disponíveis. A importância dada ao registro escrito é maior que o artefato arqueológico, tendo
a Arqueologia o papel de avaliar se, e até que ponto, a literatura tem algum valor. Aqui o
autor parecia se referir à tradição oral e as lendas, extremamente numerosas nos períodos mais
primitivos da Antiguidade. No livro História Antiga, a perspectiva muda, mas não muito.
Finley acredita ser falsa a relação entre História e Arqueologia, pois entende que não são duas
disciplinas qualitativamente distintas, mas dois tipos de testemunhos históricos. Os dois tipos
de testemunhos se complementam, porém podem estar em conflito, tendo o testemunho
escrito (mas nem sempre) que ceder ao arqueológico. Contudo, os testemunhos arqueológicos
por si mesmos continuam não preenchendo todas as lacunas do nosso conhecimento.417
Esta reflexão sobre as fontes é uma crítica à idéia de que os testemunhos “falam” por
si só, e revelam um dado absolutamente novo no desenrolar da tradição que estamos
investigando, pois nenhum dos autores, até agora analisados, fez qualquer análise crítica das
fontes antigas e dos seus limites. Em nenhum momento se contestou a autoridade das fontes
literárias, algo que Finley alertava com muita contundência, clamando pela elaboração de um
quadro conceitual para a análise destas fontes, elemento que, segundo ele, faltava ao
historiador antigo, e que era fundamental para estreitar as relações dos diversos tipos de
testemunhos.
Os historiadores historistas acreditavam que a História era uma matéria científica,
contudo, criticavam a perspectiva de historiadores que tentavam aplicar à História modelos
gerais. Acreditavam em uma ciência do particular e não do geral, e na preeminência da
compreensão sobre a explicação. Finley, influenciado pela História Social, acreditava que sem
teoria, não há desenvolvimento, não há mudança fundamental.418 “O corolário da acumulação
da experiência histórica é uma mudança, ou pelo menos, uma possível mudança, na ênfase e
nos modelos explanativos.”419 A função do historiador não era recapturar os acontecimentos
isolados e concretos de uma época passada, mas compreender, generalizar, pois toda
explicação implica uma ou mais generalizações.
416 FINLEY, M. Arqueologia e História. In: ________________. Uso e abuso da História. São Paulo: Martins
Fontes, 1989. p. 95. 417 FINLEY, M. O estudioso da História Antiga e suas fontes. In: ____________. História Antiga. Testemunhos
e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 26-35. 418 FINLEY, M. O “progresso” na Historiografia. In: ____________. História Antiga. Testemunhos e modelos.
São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 9. 419 ibid., p. 6.
194
Toda tentativa de ordenar os eventos únicos da História envolve generalizações do mesmo jeito que tentar estabelecer propostas gerais sobre opinião pública e guerra, ou sobre as conseqüências da escravidão ou o declínio do Império Romano. Afora considerações epistemológicas e metafísicas, todo historiador lança-se em explicações, em generalizações, tão logo deixe de se limitar a denominar, inventariar ou datar.420
Desta forma, os classicistas que se prestam a seguir o que os historiadores antigos
afirmam, não conseguem generalizar. Sem um esquema conceitual o testemunho escasso e
duvidoso se presta a todo tipo de manipulação. Finley afastava-se, assim, do historismo ao
defender a utilização de conceitos e hipóteses em História, mas também, das ciências naturais,
preocupada com o estabelecimento de leis gerais e das regularidades, enquanto a História
preocupava-se com o estudo das particularidades.
...reconheço que o conceito de história científica é aplicável somente em sentido restrito, de tal forma que é duvidoso que cumpra um propósito mais útil do que o de dar ao historiador a satisfação estética ou moral que ele puder extrair do rótulo “científica”.421
A crítica a uma História científica de acordo com os cânones das ciências naturais foi
revelada na discussão sobre a História quantitativa ou “cliométrica”, muito presente nos EUA
e Grã-Bretanha. Finley não censurou o uso da quantificação de dados em História, contudo, a
História Cliométrica nada informava sobre os casos individuais e não explicava o
comportamento humano e as instituições do passado. Assim, ao reduzir a números as varáveis
a serem examinadas, a Cliometria omitiu a maior parte do que se conhece sobre as vidas
passadas. Apesar dos números darem a aparência de “objetividade”, de “ciência”, a análise
quantitativa não era muito útil na Antiguidade devido à dispersão dos documentos, de
registros contínuos. Por isso o historiador da Antiguidade não pode ser um cliométrico, mas
também não precisa cair na subjetividade total, pois pode fazer uso de modelos não
quantitativos.422 O controle das variáveis selecionadas se não podia ser feito por estatísticas
em História Antiga, podia ser feito por modelos. Finley abstrai sua idéia de modelo de
Chorley e Hagget, definido por eles como:
420 FINLEY, M. Generalizações em História Antiga. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo:
Martins Fontes, 1989. p. 95. 421 FINLEY, M. Como realmente aconteceu. In: __________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São
Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 75-76. 422 FINLEY, M. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. passim.
195
aproximações altamente subjetivas nas quais não se incluem todas as observações ou medições associadas, mas enquanto tais são úteis para ocultar pormenores incidentais e permitir o afloramento de aspectos fundamentais da realidade. Essa seletividade significa que os modelos têm graus variáveis de probabilidade e se aplicam sobre uma gama limitada de condições.423
5.2.2 A Utilização de Modelos e o Diálogo com a Sociologia e a Antropologia.
Ao longo de sua produção historiográfica, Finley não se furtou de aplicar modelos
explicativos elaborados em outras ciências sociais. Os tipos ideais de Weber eram os mais
familiares aos historiadores. Diferente dos modelos matemáticos, os modelos utilizados nas
ciências sociais teriam poucos limites, estavam sujeitos a constantes ajustes, correções,
modificações ou substituições.424
...qualquer hipótese pode ser modificada, adaptada ou descartada quando
necessário. Sem uma hipótese, entretanto, não pode haver interpretação
alguma, só pode haver reportagem e taxionomia bruta, estudo de
antiguidades no sentido mais estreito.425
O historiador não deveria se preocupar em acumular massas de fatos dispersos, mas
sim, em se concentrar na experiência típica dos fatos concretos que trouxessem à tona um
conjunto geral mais amplo. A experiência, junto com suas massas e interconexões, faria
aflorar idéias gerais.426 Um exemplo disso são as possibilidades de construção de modelos
explicativos e hipóteses simplificadoras para as guerras no mundo antigo. Para Finley, o lugar
da guerra e conflitos particulares só podiam ser compreendidos pelas suas conseqüências.
Finley parte dos lucros da guerra e de sua distribuição para construir os rudimentos de dois
modelos diferentes de império antigo:
423 CHORLEY, R.J. e HAGGET, P. Apud FINLEY, M. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo:
Martins Fontes, 1994. p. 80. 424 ibid., p. 87. 425 ibid., p. 88. 426 SHAW, B. D. e SALLER, R. P. Introdução à introdução inglesa. In: FINLEY, M.I. Economia e sociedade
na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. XX.
196
O império marítimo, com limitadas oportunidades de expansão territorial, dependente da marinha e, por isso, forçado a dar às pessoas comuns, o demos, um papel dominante na elaboração de decisões políticas; e o império baseado na terra, quase sem limites em sua capacidade de expansão, no qual a oligarquia dominante conservou os maiores benefícios materiais da conquista e ainda o vigoroso controle político. Ambos os modelos, quando devidamente planejados, também conteriam um elemento dinâmico essencial. Por outro lado, seriam incuravelmente defeituosos, pois não conseguiriam sugerir como e por que o Império Ateniense ultrapassou a si mesmo, enquanto o Império Romano provocou, no final, uma mudança tão grande no equilíbrio interno de forças que foi capaz de destruir a República.427
Este é um exemplo de como Finley utilizava um modelo para o mundo antigo.
Segundo o autor, é inerente à construção de modelos a concentração unilateral e o isolamento
de certos fatores em detrimento relativo ou total de outros. Um modelo falho, porém, era
melhor do que nenhum, pois os historiadores – citando Droysen – “devem conhecer o que
procuram, e só encontrarão respostas, interrogando as coisas corretamente.”428 As respostas
não estão dadas nos documentos, é necessário levantar questões. É no seio deste complexo de
perguntas e respostas, que Finley define a História como um “relato sistemático de um
período de tempo suficientemente longo para se estabelecer relações, ligações, causas e
conseqüências, mas também para se mostrar como a mudança ocorre e sugerir por que isso
acontece.”429 Apesar de não excluir da sua definição de História elementos constitutivos da
ciência moderna, ele não a incluía como uma matéria capaz de estabelecer leis gerais,
conforme as ciências naturais, pois acreditava que tanto a História, quanto a Sociologia e a
Antropologia eram consumidoras de leis. Muito mais preocupado com este complexo de
perguntas e respostas, ele também não excluía da pesquisa histórica a avaliação crítica
sistemática dos elementos do passado, que fomentasse “um exame racional e consciencioso de
determinado assunto, suas dimensões e implicações” para que não aceitássemos
automaticamente hábitos e opiniões herdados430. Se por um lado, Finley afastava-se das
ciências naturais, aproximando-se do historismo, por outro, definitivamente afastava-se da
idéia de uma história historizante, preocupada somente com a estética e com a reconstrução
dos fatos. 427 FINLEY, M. Guerra e Império. In: __________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo:
Martins Fontes, 1994. p. 111. 428 DROYSEN. Historik. Apud FINLEY, M. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo: Martins
Fontes, 1994. p. 111. 429 FINLEY, M. O progresso na historiografia. In: __________. História Antiga. Testemunhos e modelos. São
Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 9. 430 FINLEY, M. A constituição ancestral. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo: Martins
Fontes, 1989. p. 51.
197
Finley combateu o individualismo metodológico historista defendendo o diálogo dos
historiadores com os cientistas políticos, sociólogos, antropólogos e psicólogos sociais.
Afirmava que os historiadores voltados para os estudos clássicos eram desestimulados desde a
época da graduação, pelo mundo formal de ensino, a manter um diálogo com outros
especialistas de outras ciências humanas e mesmo de outras áreas da História. Relatava sua
própria experiência pessoal, quando ultrapassou os muros do formalismo acadêmico e se
reunia com colegas para ler Weber, Pareto, Marx, Bloch e Pirenne. O historiador deveria se
apoiar nas outras ciências humanas, pois acreditava que a História não tinha um objeto
próprio. Diante do já exposto sobre a História Social, cabe-nos interrogar como Finley se
posicionou em relação às tendências a-históricas da Sociologia e Antropologia? Ele defendeu
a absorção incondicional dos modelos teóricos destas disciplinas ou fez algumas restrições?
Em um ensaio de 1966, para o Times Literary Suplement, intitulado Unfreezing the
classics, se referindo a formação em demografia e sociologia de Keith Hopkins, Finley
afirmou que a análise sociológica tanto complementava e ampliava meras abordagens
tradicionais, quanto introduzia correções radicais à investigação da estrutura social imperial
romana. Em relação aos períodos sem testemunhos literários de qualquer tipo ou
contemporânea à época, que tornavam impossível a escrita de sua história, devido à
predominância do mito, o autor considerava importante o trabalho de Maurice Halbwachs,
para outras sociedades, que ele mesmo utilizara para tirar conclusões para a pré-história e a
história arcaica grega. Acreditava serem os dados arqueológicos, tomados em si mesmos,
insuficientes para uma contextuação histórica dos poemas homéricos. As falsificações
mitológicas podiam ser substituídas pelas evidências antropológicas. Neste sentido, se a visão
dos antropólogos não era obrigatória para entender os gregos antigos, também não podia ser
rejeitada. Citava os trabalhos de E. R. Doods, The Greeks and the irrational; de Artur
Adkins, Merit and responsability e de Geoffrey Lloyd, Polarity and analogy; como
exemplos de que o “estudo comparativo” era perfeitamente compatível com os estudos
clássicos e com a erudição mais rigorosa.431 Uma visão francamente favorável, portanto, ao
diálogo da História Antiga e a Sociologia e Antropologia.
Posteriormente sua visão mudou um pouco. Em 1972, em uma conferência
comemorativa de Jane Harrison, publicada posteriormente no livro Uso e abuso da História,
sob o título de A antropologia e os clássicos, Finley mostrou maior simpatia pela
Antropologia, em virtude de seu foco - as pequenas sociedades que não dominam a escrita -
431 FINLEY, M. Unfreezing the classics. Times Literary Suplement. 65, p. 289-290, 1966.
198
em detrimento da Sociologia, cuja prioridade, as sociedades modernas, pouca utilidade
oferecia aos classicistas em termos comparativos.432 Apesar disso, Finley gostava de afirmar
sua simpatia por uma História direcionada por caminhos mais teóricos, mais sociológicos.
Não há dúvida que Finley acreditava serem os “tipos ideais” os melhores modelos a
serem utilizados na investigação histórica. Em um artigo dedicado a Max Weber no livro
História Antiga, ressaltou que seu próprio trabalho vinha provocando vivas discussões sobre
Weber entre os estudiosos da História Antiga, contudo, este artigo apresenta críticas aos
modelos weberianos acerca da cidade-Estado e sua política. A crítica mais contundente é ao
modelo de dominação da cidade-Estado grega. Segundo Finley, Weber classificou a pólis
grega, por eliminação, com a dominação carismática, pois não foi nem tradicional, nem
racional. Em seguida, afirma que os tipos ideais de Weber nos seus últimos anos, nos quais
estava preocupado com as formas legítimas de dominação, tornaram-se extremamente formais
e a-históricos (marcados por alterações de linguagem). Dessa forma, a avaliação weberiana da
polis como organismo político era inaceitável devido a sua distância da realidade.433
Esta crítica, apesar de corroborar uma preocupação dos historiadores sociais com
modelos teóricos a-históricos das outras ciências humanas, particularmente, o tipo ideal -
modelo que, paradoxalmente, Finley passou boa parte de sua vida afirmando ser o mais
conveniente para os historiadores - apresenta um grande equívoco ao demonstrar este caráter
a-histórico e irreal. Vimos anteriormente que a análise de Weber sobre as formas legítimas de
dominação não nos leva em nenhum momento a acreditar que a dominação carismática tenha
sido a forma dominante na pólis grega. Weber acreditava que era possível encontrar diferentes
formas de dominação na cidade-Estado grega, – Finley não discordou disso – e que o carisma
era um dos elementos presentes, mas não majoritário. Para Weber a democracia de Péricles
apresentava características de dominação carismática, seja pelo domínio do demagogo,
amparado no seu carisma de espírito e discurso, seja na eleição de um único estratego.
Diferentemente do que afirmou Finley, Weber ressaltou o caráter estamental daquela
sociedade, tendo a aristocracia guerreira como estamento dominante. O caráter honorífico e
exclusivo do estamento dominante e a apropriação de determinados poderes e oportunidades
econômicas estão nas mãos de uma associação amparadas na tradição que não foge ao caráter
cotidiano. Todos os “tipos” de dominação da cidade-Estado: aristocrática, hoplita e 432 FINLEY, M. A Antropologia e os clássicos. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo:
Martins Fontes, 1989. p. 51. 433 FINLEY, M. Max Weber e a cidade-Estado grega. In: __________. História Antiga. Testemunhos e
modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 122-123.
199
democrática cidadã são dominadas por uma associação estamental de portadores de honra e
monopolizadores de privilégios. Portanto, a forma de dominação que parece estar mais em
consonância com os tipos de dominação analisados por Weber em relação à polis é a
dominação tradicional.
Mais estranho ainda é quando Finley afirma que The City não constitui um terreno
seguro para conclusões sobre as formas de dominação legítima. Amparado em Wolfgang
Mommsen, Finley afirma que Weber nunca considerou possíveis tipos de dominação
ilegítima e que em sua análise não havia espaço para formas ilegítimas de dominação. De
fato, o texto sobre as tipologias das cidades, que é um subtítulo, pois o título é A dominação
não legítima, investiga os diversos “tipos” de cidade, mas também as formas de dominação da
cidade antiga sobre o campo. Este tipo de dominação foge aos tipos de dominação legítima,
mas se Weber dedicou uma parte tão extensa de sua investigação sobre dominação, a esta
tipologia, é porque esta forma de dominação também constitui um elemento importante em
sua análise geral. Concomitantemente, nos diversos “tipos de cidade” estão presentes as mais
variadas formas de dominação legítima.
As críticas de Finley ao modelo weberiano de luta pelo poder na cidade-Estado sob o
jugo da liderança carismática, levam-no a inferir sobre a contribuição de Weber à teoria
elitista. Finley discordava da hipótese de que a competição entre os demagogos pela liderança
era conduzida exclusivamente em termos de apelos “emocionais”, e defendeu a hipótese desta
disputa se dar em torno de programas e políticas. Segundo Finley, o povo esperava resultados
das promessas feitas pelos demagogos, e caso estas não se concretizassem, a liderança caía.
Para Weber, segundo Finley, esta perda de liderança se dava pela perda do carisma, para
Finley pelos programas e pelas políticas, e não na fé essencialmente “mística”. Nos parece
incontestável que Weber tenha inspirado intelectuais da teoria elitista, até mesmo pela sua
trajetória de vida política. Contudo, acreditamos que Finley procurou reafirmar sua hipótese
de trabalho, contrária a apatia política dos gregos, muito mais pelas conseqüências da teoria
weberiana do que pela teoria em si mesma. E partiu das conseqüências para “enxergar” o
carisma como majoritário na polis grega. E aí se encontra o seu maior equívoco.
Em relação à Antropologia, Finley esboçou no artigo já citado, Antropologia e os
clássicos, posterior ao ensaio Unfreezing the classics, grande preocupação em relação ao
diálogo entre os classicistas e a Antropologia. O primeiro questionamento é direcionado a
afirmação de Radicliffe-Brown, que como já dissemos, era o grande mentor da Antropologia
na Grã-Bretanha, de que a “‘tarefa da antropologia social enquanto ciência natural da
200
sociedade humana’ é ‘descobrir as uniformidades subjacentes às diversidades, através de um
cuidadoso exame’”. Em seguida, critica os editores do livro, Fortes e Evans-Pritchard, por
pretenderem falar por todos os antropólogos sociais quando dizem que um estudo científico
das instituições políticas deve visar unicamente o estabelecimento e à explicação das
uniformidades existentes entre elas. Finley não consegue entender como se pode achar
uniformidades entre formações tão díspares como os pigmeus e os norte-americanos. Acredita
que tal perspectiva é extremamente reducionista, pois compara sociedades sem Estado com
sociedades estatais. Procurar uniformidades nas diferenças é procurar leis gerais para
diferentes instituições políticas. Comparar sociedades sem cidadãos, sem Estado, que não vão
além da chefia, com as sociedades gregas e romanas pós-primitivas era inútil. Tal comparação
só tem algum sentido com as sociedades gregas e romanas primitivas, e mesmo assim com
muitos cuidados.
Só porque a antropologia esclarece um período (ou aspecto) do mundo clássico não significa automaticamente que ela também esclareça todos os outros períodos (ou aspectos). As sociedades e suas culturas são complexas, e a simples presença de algumas similaridades não é em si mesma base suficiente para nos apressarmos a conclusões sem uma investigação completa no local dessas similaridades em relação à totalidade, a estrutura das sociedades que estão sendo examinadas.434
No caso específico da Grécia antiga, o autor, diferente do artigo de 1966, não via
muita utilidade no trabalho dos antropólogos, preocupados com sociedades pré-estatais, para o
período clássico, ou mesmo para o nascimento da cidade-Estado. A importância do diálogo
residia muito mais no cultivo de uma abordagem, um hábito de pensamento:
a cuidadosa formulação de conceitos e modelos, da qual resulta uma precisão na escolha das questões importantes a serem estudadas e, se possível, respondidas, questões que em geral não são diretamente provocadas pelas fontes (em nosso caso, escritores gregos e romanos); uma clareza e consciência sobre as generalizações que empregamos constante e inevitavelmente, mesmo na mais prosaica narrativa ou análise literária,....o fato histórico é que a antropologia moderna desenvolveu métodos sofisticados e satisfatórios, ao passo que os clássicos não o fizeram.435
434 FINLEY, M. A Antropologia e os clássicos. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo:
Martins Fontes, 1989. p. 119-121. 435 ibid., p. 124.
201
A procura de leis gerais em sociedades de natureza diferentes (sociedades estatais e
não estatais) e a comparação de sociedades pré-estatais com a Grécia clássica constituíam a
dificuldade do diálogo entre as duas disciplinas. Apesar da crítica ao comparativismo a
qualquer custo, Finley acreditava que os antropólogos estavam a frente dos estudiosos da
Antiguidade por formularem conceitos e modelos que viabilizavam as generalizações. Mais
uma vez, nosso autor enaltecia a utilização de modelos e conceitos nas outras ciências sociais
como um fator a ser seguido pelos classicistas. A ausência de um objeto próprio, como ele
afirmara, o fazia ver a História como um campo de experimentação crítica dos modelos
sociológicos, econômicos ou antropológicos. Diferentemente de muitos historiadores sociais,
Finley deu um passo a frente, ao procurar evidenciar os limites dos modelos antropológicos,
econômicos e sociológicos em outros campos. Criticava os classicistas por não utilizarem
nenhum modelo, mas, ao mesmo tempo, não aceitava sua utilização de forma acrítica.
É nesta perspectiva que devemos entender a utilização dos modelos polanyianos por
Finley. A influência dos trabalhos de Polanyi sobre Finley tem sua origem no início da década
de 50, em Columbia quando Finley, no final de sua tese de doutorado, travou um estreito
contato com o grupo organizado por Polanyi que desenvolvia um projeto interdisciplinar
intitulado “aspectos econômicos do crescimento institucional”. Não somente a afinidade
ideológica com Polanyi contribuiu para o diálogo, mas também, o foco de pesquisa deste
atendiam as necessidades de Finley. Antes de encontrar Polanyi, Finley já tinha ‘lido’ muitas
das fontes de pensamento de Polanyi. O contato com Polanyi fez Finley ver o potencial destas
leituras para o seu trabalho, dentre estas, Mauss e Homero. Dessa forma, antes de sua
inclinação polanyiana, ele já tinha lido Weber e publicado trabalhos interessantes. Em vez de
um simples seguidor de Polanyi, Finley, na verdade, manteve um diálogo crítico com
aquele.436 Apesar da recepção crítica das idéias polanyianas, e da natureza sugestiva, segundo
Finley, de tais trabalhos, eles são nitidamente visíveis e mesmo aprofundados nas análises da
sociedade descrita por Homero e do mundo greco-romano clássico.437
Na década de 50, Finley publicou The World of Odysseus (O mundo de Ulisses),
livro que revolucionou os estudos acerca dos poemas homéricos e que apresenta influências
dos trabalhos de Mauss, Malinovsky e de Polanyi. Finley combate a idéia de que o mundo
descrito por Homero corresponderia ao micênico. Não há dúvida de que houve um núcleo
micênico nos poemas, mas era mínimo, e o pouco que existia teria sido distorcido até tornar-
436 NAFISSI, M. op. cit. P. 209-213. 437 FINLEY. M. Economia e sociedade na Grécia Antiga. Martins Fontes; São Paulo, 1989. p. XXI-XXII.
202
se irreconhecível.438 Toda a investigação procura demonstrar, além da diferença, a ausência
de uma linha de progresso uniforme entre a sociedade micênica e a sociedade homérica. Sob
muitos aspectos a sociedade homérica representa um regresso em relação à micênica. Era uma
contundente crítica ao evolucionismo. O autor advogava a idéia de que todas as operações
econômicas fundamentavam-se num sistema de trocas de presentes. O ato de dar era sempre a
primeira metade de uma operação recíproca, cuja outra metade era uma contra-dádiva,
imediata ou não. O termo “dádiva” cobria toda uma gama de ações e transações que mais
tarde viriam a diferenciar-se e a adquirir uma designação própria. Compreendia o pagamento
por serviços prestados, desejados ou gozados antecipadamente; é o que designaríamos pelo
nome de honorários, remunerações, prêmios e, por vezes, suborno.439 Este modelo baseado no
modelo de Maus e Malinovsky levou Finley a afirmar que Homero, apesar das incongruências
e dos arcaísmos, descrevia uma sociedade real, que não foi nem a micênica, nem a arcaica,
mas sim intermediária, entre os séculos IX e X. Portanto, Finley conseguiu transferir para o
mundo antigo um modelo antropológico, utilizado em outra sociedades, mas que ele
acreditava ser comparável com o mundo antigo. E mesmo sem documentos escritos, extraiu
de uma fonte proveniente em última análise da tradição oral os elementos para a “construção”
de um mundo real, amparado na Antropologia.
Finley limitou o comparativismo a qualquer custo com um maior empirismo em
relação ao mundo antigo. Este empirismo levou Finley a afirmar que os estudos de Polanyi e
seus seguidores, apesar de sofisticados e numerosos, “geravam mais confusão do que
esclarecimento” para seus propósitos.440 Tal afirmativa, se refere aos conceitos polanyianos de
“comércio administrado”, portos de comércio”, que pareciam demasiado abstratos, ou melhor,
de difícil utilização no mundo antigo. Era uma resposta empirista a conceitos gerais muito
utilizados em outras sociedades pré-industriais, que Finley considerava importante, mas que
não se “aplicavam” ao mundo greco-romano. Além disso, revela-se uma crítica ao
“funcionalismo”, por sua proximidade com as ciências naturais. Finley, aqui, nos mostrava
um lado “naturalista, na tradição que estamos estudando, apesar de Polanyi ter sido um crítico
feroz do “formalismo”, acabou, também, segundo Finley, apresentando um lado próximo das
ciências naturais, a abstração excessiva, pouco preocupada com aspectos empíricos.
438 FINLEY, M. O mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presença, 1982. p. 43. 439 ibid., p. 60-66. 440 FINLEY, M. A Antropologia e os clássicos. In: ______________. Uso e abuso da História. São Paulo:
Martins Fontes, 1989. p. 123.
203
Vimos, então, que Finley, ao longo de seus trabalhos mais teóricos promoveu uma
discussão em relação à Antropologia criticando nesta disciplina os princípios das ciências
naturais, a procura de leis gerais em formações sociais heterogêneas, utilizando como
principal argumento, o “comparativismo” inadequado. É com esta perspectiva que podemos
avaliar o diálogo com Polanyi, apesar de, como veremos mais a frente, as idéias gerias sobre
economia como um processo institucionalizado estarem muito presentes nos trabalhos de
Finley, uma influência derivada de Weber, que foi sistematizada por Polanyi.
5.2.3 O Marxismo. A Influência do Instituto de Pesquisa Social e a História Total
Em um artigo intitulado Class Struggles, publicado em 1967, ele afirmou que na
Universidade de Columbia, onde estudou História antiga, os seminários e as palestras dadas
pelos professores de História estavam totalmente desconectados da realidade em que se vivia
na época.
As mesmas palestras e seminários podiam ser dados – e sem dúvida foram – em uma geração anterior, antes da Primeira Guerra Mundial. Havia certas mudanças de ênfase, tal como o maior interesse em História econômica, mas havia a mesma impressão penetrante que o estudo de História era um fim em si mesmo.441
Em seguida, Finley afirma que ele e seus colegas procuravam na História explicações
para o presente, pois viviam em um mundo muito difícil com problemas que demandavam
soluções urgentes. É nesta perspectiva que as leituras de Marx e dos historiadores marxistas
contribuíram para a crença de que o estudo da História não era uma atividade autônoma e
isolada dos vários aspectos do comportamento humano – econômico, político, intelectual,
religioso. Finley relembrou que no primeiro dia de aula da disciplina História intelectual da
Europa renascentista, o professor desenhou um círculo no quadro e dividiu em setores a
história econômica, intelectual e assim por diante. Quando ficou claro que o curso seria
restrito rigorosamente aos “fatos” da história intelectual, Finley imediatamente abandonou a
disciplina.442
441 FINLEY, M. Class Struggles. The Listener, n. 78, p. 201,17 de ago. 1967, p. 201. 442 ibid., p. 201.
204
Apesar do grande desenvolvimento econômico e da acumulação de recursos
financeiros na década de 1919-1929, a crise de 1929 abriu espaço para grandes perturbações
sociais na Europa e no resto do mundo.Nos Estados Unidos cresceu o anti-semitismo e
racismo contra os negros, principalmente com o fortalecimento da Ku-Klux-Klan, e um pavor
contra as organizações comunistas. Por outro lado, no final dos anos trinta, para se salvarem
da crise econômica e constitucional, os americanos concedem plenos poderes ao presidente
Roosevelt, resultando em uma maior ingerência do Estado na vida política e econômica do
cidadão e na formulação do New Deal.443 Nos anos cinqüenta, os EUA foram invadidos por
uma onda de fanatismo e chauvinismo, mas já com sinais nos anos anteriores com a
campanha do senador Joseph McCarthy, que acusava e denunciava indiscriminadamente
como comunistas membros do governo e da intelectualidade.444
Foi neste ambiente que Finley iniciou sua carreira acadêmica nos Estados Unidos. A
mudança de seu nome em 1941 de Finkelstein para Finley, rompendo com a tradição judaica,
deu-se numa conjuntura anti-semita nos EUA. Em 1952, nos anos áureos do macartismo,
Finley foi acusado de comunista por seu colega de trabalho, Karl Wittfogel, e convocado a
depor na Comissão de Segurança Interna do Senado americano.Evocando a quinta emenda
constitucional para não responder se fora ou não filiado ao partido comunista, foi licenciado
de seu cargo da Universidade de Rutgers, mudando-se, dois anos depois, para a Inglaterra,
para lecionar na Universidade de Cambridge.445
Finley, portanto, como ele mesmo afirmava, é um produto dos anos trinta, das
conseqüências da Grande Depressão, da Guerra Civil espanhola, do Fascismo e das frentes
populares. Talvez isto tudo tenha influenciado para que ele adquirisse uma “atitude popular
frontista não dogmática” em sua carreira. E o marxismo teve um lugar privilegiado nesta
conduta. Principalmente quando Finley entrou em contato, no final de 1934, com intelectuais
judeus exilados, em virtude do nazismo, que se instalam na Universidade de Columbia, e
retomaram os trabalhos do Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisas Sociais), lócus,
institucional da chamada Escola de Frankfurt.
Em 1934, o Institut für Sozialforschung, se transferiu para Nova York em virtude da
perseguição dos nazistas. As origens do Instituto datam de 1922, quando Felix Weil, doutor
443 DE SANCTIS, M. Moses I. Finley. Note per uma biografia intellectuale. Quaderni di Storia. 10, 1979,
passim. 444 SILVA, R. F. V. Categoriais de análise na constituição do conceito de “pólis”: uma leitura de Moses
Finley. Assis, 1999. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de São Paulo, p. 13-15. 445 ibid., p. 18.
205
em ciência política, negociante e milionário que havia feito fortuna na Argentina, organizou a
“Primeira Semana de Trabalho Marxista”, na qual participaram, dentre outros, Lukcás,
Korsch, Pollock, Wittfogel, e que devia lançar a noção de um marxismo “verdadeiro” ou
“puro”. Daí nasceu a idéia de uma instituição permanente, sob a forma de um Instituto de
investigação independente. O Institut für Sozialforschung foi criado por um decreto do
ministério da Educação de três de fevereiro de 1923. Seu primeiro diretor foi Carl Grumberg,
que levou adiante um projeto sociológico e econômico, mas, paradoxalmente levado a cabo
por filósofos. Contudo, tal ambigüidade dissipa-se com a assunção de Max Horkheimer à
direção do Instituto, em 1931, no qual nasce uma nova exigência metodológica, designada
como “filosofia social”. Tal expressão remete à história das idéias na Alemanha, que desde o
final do século XIX é palco do surgimento de uma nova disciplina que nem a sociologia e
nem a filosofia esgotam suficientemente. Trata-se de uma aproximação da filosofia
especulativa com a observação sociológica, dando lugar a uma imensa literatura em que se
mistura sociologia, história e uma reflexão sobre a civilização. São correntes muito diversas
em que estão contidas as idéias sociais, a ética neo-kantiana e a filosofia dos valores,
incluindo-se aí Max Weber, Max Scheler , Wilhelm Sombart, Georg Simmel, Karl Jasper. A
filiação da Escola de Frankfurt se situa neste amálgama de ciência social, ética e filosofia da
história que são os Moral-Sozial-Wissenschaften, e da cultura, psicologia coletiva e economia
política. No período dirigido por Max Horkheimer, o programa do Instituto, jazia em uma
combinação de filosofia e de ciências sociais especializadas, de teoria e empirismo,
simultaneamente abstract and concrete sciences. Horkheimer ambicionava a reunião em uma
comunidade duradoura de filósofos, sociólogos, especialistas em economia política,
historiadores, psicólogos que visassem incitar a interpenetração dialética da teoria filosófica e
da prática da pesquisa especializada no domínio da teoria da sociedade, que segundo ele, não
era mais possível para um homem só.446
Horkheimer e seus colaboradores, dentre eles, Adorno, Pollock, Marcuse, Walter
Benjamim, para ficar nos mais conhecidos, sentiam a necessidade de reatualizar o pensamento
de Marx sem erigi-lo em doutrina definitiva. Há um desinteresse pelos debates sobre a mais-
valia ou sobre a passagem do socialismo ao comunismo, todavia, em torno da herança de
446 WIGGERSHAUS, R. A Escola de Frankfurt: História, desenvolvimento teórico, significação política. Rio
de Janeiro: Difel, 2002. p. 194-207.
206
Marx, repensam a ideologia, a alienação, a reificação, a dominação, em outras palavras, o
jovem Marx e o ângulo mais existencial de sua teoria.447
Nos Estados Unidos, o Instituto associou-se à Universidade de Columbia e passou a
intitular-se International Institute of Social Research. Finley, então pesquisador no
Departamento de História desta Universidade, envolveu-se em várias atividades do Instituto,
participando inicialmente dos seminários deste, e posteriormente sendo utilizado como
tradutor para inglês das obras escritas em alemão. Os temas cobertos pelo Instituto na época
são extensos e envolvem discussões de teorias do capitalismo, da estrutura do Estado, da
ascensão da razão instrumental, análises de desenvolvimento em ciência, tecnologia e técnica,
da indústria da cultura e da cultura de massas, da estrutura da família e do desenvolvimento
individual, da suscetibilidade das pessoas à ideologia, assim como considerações da dialética
de esclarecimento e de positivismo como modo dominante de cognição. A esperança dos
membros do Instituto era que seu trabalho ajudasse a estabelecer uma consciência social
capaz de penetrar na ideologia existente. As questões que se tornaram centrais para o Instituto
foram: (i) Como se poderiam entender melhor as crises do capitalismo e qual era a relação
entre política e economia; (ii) Como poderiam ser compreendidos os crescimentos do
autoritarismo e da burocracia; (iii) Como a manipulação da cultura afetava a vida diária.
Todas essas questões giravam em torno da necessidade de uma teoria social que explicasse as
mediações que possibilitavam a reprodução e a transformação da sociedade, da economia, da
cultura e da consciência.448 Não há dúvida que muitas destas questões estiveram no centro das
preocupações de Finley nos seus primeiros trabalhos, constituídos basicamente de resenhas.
Estas resenhas iniciais (1935-1941) foram publicadas em periódicos não clássicos e lhe deram
a oportunidade de expressar uma abordagem holística e interdisciplinar. Contudo, além das
influências dos componentes da Escola de Frankfurt, classicistas, como Meyer e Beloch,
surpreendentemente também são citados nos seus exemplos de uma História total.
Na primeira resenha de Finley, escrita em 1935, para a revista do Instituto, Zeitschrift
fur Sozialforschung, os autores do primeiro volume da Cambridge Ancient History são
criticados por não conseguirem articular a arte, a literatura, a filosofia, e, sobretudo, a história
social e econômica.
447 ibid., p. 15-16 448 HELD, D. Introduction to critical theory. Berkley and Los Angeles: University of California Press, 1980. p.
35-38.
207
Embora o propósito declarado seja o de fazer uma síntese completa da História Antiga em suas diversas fases, grande parte da obra é dedicada a pormenores políticos e militares. A arte, a literatura, a filosofia e, sobretudo, a história social e econômica são tratadas como detalhes isolados, nunca como partes coordenadas da história global do mundo antigo.449
O autor já esboça uma crítica que estará presente em muitos momentos de sua obra,
isto é, aquela contra o tratamento isolado das diversas facetas da vida, sem integrá-los ou
relacioná-los. E já aqui, o autor cita Meyer e Beloch como exemplos de integração de
materiais históricos:
Em suma, apesar da Cambridge Ancient History ser em muitos aspectos um grande trabalho bem elaborado, não se vê a integração de materiais históricos como encontrados em Beloch e Meyer.450
Na sua terceira resenha, sobre o livro de Ciccoti, La cività del mundo antico, escrita
em 1937, na American Historical Review, a influência do marxismo, que o autor afirmara
fazer parte de sua Paidéia, já está muito presente. Finley informa-nos que desde Eduard
Meyer ninguém havia tentado examinar a estrutura completa da sociedade antiga ou, mais
corretamente, a concepção corrente daquela estrutura. Ciccoti, devido a sua educação em
economia estaria em condições de corrigir Meyer, acentuando as premissas de trabalho
daquele, ou seja, de que o homem é e sempre será uma criatura social e que a história do
homem é a história da “associação”, “cooperação” e “luta de classes”. Finley elogia Ciccoti
por apresentar uma análise bem integrada da inter-relação das forças materiais e morais, um
trabalho de síntese de extremas coragem e imaginação, com um conhecimento detalhado da
experiência humana. A falta de tais atributos era o que Finley muito criticava em suas outras
resenhas do período. Ciccoti era qualificado para desenvolver tal trabalho pela sua experiência
pessoal, assim descrita por Finley:
ele também foi um militante ativo do partido socialista italiano e por um tempo deputado... ele foi jornalista prolífico, editor das traduções italianas
449 FINKELSTEIN, M. Review: The Cambridge Ancient History. Vol I-X. In: Zeitschrift für Sozialforschung.
IV, p. 289, 1935. 450 ibid., p. 290.
208
padronizadas de Marx, Engels e Lassalle, e, com Pareto, editor da biblioteca di storia econômica.451
Finley ainda realçava, no trabalho de Ciccoti, a firme compreensão da natureza da
escravidão, o seu entendimento do papel e sua discussão do caráter preciso do “capitalismo”.
Tudo isso credenciava Ciccoti a estabelecer as bases para uma história econômica real da
Antigüidade. No mesmo tom elogia o capítulo sobre política, por atacar os problemas
fundamentais, isto é, o crescimento do Estado, suas várias formas e base de controle.452
Na resenha sobre o décimo primeiro volume da Cambridge Ancient History, voltam
as duras críticas feitas aos autores do primeiro volume, agora acrescidas de novas questões.
Eis as opiniões, presentes no volume resenhado, que Finley critica:
1) Fenômenos como o império romano são tão transcendentais que o homem não pode realmente entende-los ou explicá-los.
2) De alguma maneira tudo é tocado pelo império romano torna-se direito. Há lei e ordem, estabilidade, liberdade… Os oponentes do sistema imperial são canalhas a quem os governantes nobres romanos tratam com paciência
3) A ideologia oficial do império deve ser aceita como uma descrição completa e acurada das realidades da sociedade.
4) Instituições como o senado ou o exército são entidades autônomas, agindo independentemente de outras forças sociais. (…) A religião é similarmente autônoma. O capítulo da crise do cristianismo, por exemplo, não contém uma sentença das implicações sociais da ética cristã ou de sua história.
5) Grandes indivíduos são responsáveis por todo o verdadeiro progresso.453
Ao final do artigo, Finley afirma que o leitor que tenha familiaridade com a literatura
do imperialismo moderno não terá dificuldade em reconhecer o pensamento britânico no
volume analisado:
O leitor que esteja familiarizado com a literatura do imperialismo moderno não terá dificuldades em identificar esta abordagem. Em uma breve nota
451 FINKELSTEIN. Review: CICCOTI, E. La civiltà del mondo antico, 2 vols. (1935), American Historical
Review, XLII, p. 277, 1937. 452 ibid., p. 278-279. 453 FINKELSTEIN, M. Review: The Cambridge Ancient History, vols. XI, (1936), Political Science Quartely,
LIV, p. 610-611, 1939.
209
conclusiva os editores dizem: ‘ a tônica do período coberto por este volume foi a lealdade a Roma, não meramente porque esta lealdade não tinha rival, mas porque Roma desejou recebê-la’.454
Em todas estas resenhas, além da crítica do caráter ahistórico e da desarticulação das
instituições sociais, há uma preocupação em relacionar a posição política dos autores com o
conteúdo de seus trabalhos. Na resenha do livro de Will Durant, The life of Greece, escrita em
1941, Finley critica o autor por este afirmar que “um dos fatores imutáveis da História é a
raça”. ‘Isto é quase uma lei da História’”.455 O racismo do autor era acompanhado pela noção
do herói líder que moldava a História. A conexão entre as premissas fundamentais de tal obra
e a corrente política em que ela estava envolvida geraram uma escola de “salpicadores” da
História que lutavam contra a democracia política no ocidente.
A Revolução Francesa, a Revolução Americana e a Guerra Civil são os alvos principais desta história intensivamente ‘política’. Ao estender este ataque à Grécia e reter o tempo presente por toda parte, Mr. Durant faz seu ataque mais radical... ‘Liberdade e igualdade não estão associadas, mas sim inimigas.’ 456
Nestas resenhas, Finley esboça com clareza sua proximidade com o marxismo e
mostra-se um crítico feroz das transposições anacrônicas de instituições do mundo
contemporâneo ao mundo antigo. Estes traços de sua escrita, contudo, parecem-nos ainda
superficiais para estabelecermos uma relação com o “ambiente intelectual” em que os
pensadores da Escola de Frankfurt estavam envolvidos. Como já salientamos, tais pensadores
eram filósofos, e, naquele momento, travavam acirrados combates contra os representantes da
filosofia idealista. Durante os anos 1930, Horkheimer e Marcuse publicaram artigos cujas
temáticas giravam em torno de questões sobre metafísica, idealismo, racionalismo,
irracionalismo, materialismo e dialética. Tais discussões, no campo filosófico, contribuíram
para que Finley pudesse, de um lado, filtrar as informações que provinham do mundo antigo
e, por outro lado, se posicionar em relação ao mundo contemporâneo.
Horkheimer, por exemplo, discutindo o racionalismo na filosofia contemporânea,
afirma que esta tendência, iniciada com Descartes, tem como um de seus pressupostos a idéia
454 ibid. p. 611. 455 FINKELSTEIN, M. Review: DURANT, W. The life of Greece, Political Science Quarterly. LVI, 1939, p.
127. 456 ibid., p. 129.
210
da divisão do universo em dois domínios independentes entre si, a substância espiritual (res
cogitans) e a espacial (res extensa). A conseqüência deste axioma teria sido a independência
da substância espiritual da realidade física. Sob tal perspectiva, o espírito desligado da matéria
seria capaz de criar por si só conhecimentos válidos. Reconhecia-se, assim, a fé em uma
estrutura estática do mundo, pois seus contornos deveriam ser absorvidos por estruturas
conceituais fixas. Juntamente com toda a filosofia idealista, este racionalismo pressupunha
uma relação entre conceito e realidade constante e independente da práxis humana. O caráter
idealista de tal doutrina repousava na crença de que o homem podia proporcionar a si mesmo,
através de qualidades interiores, um acesso à essência original do universo e, com isso,
adquirir a norma de suas ações. Tais determinações definitivas do pensamento e do seu
objeto, que deixam de lado a situação histórica e as tarefas nelas expostas, formavam a base
de toda a filosofia idealista.457 Horkheimer, em um artigo de 1933, Materialismo e metafísica,
recorreu a Kant para explicar o caráter atemporal da filosofia idealista. Segundo Kant, a
necessidade temporal não está fundamentada nas coisas em si, mas em uma vulnerabilidade
do sujeito finito.
O tempo é...meramente uma condição subjetiva das nossas percepções humanas(...), e como tal fora do sujeito nada é...o tempo não é algo em si mesmo, tampouco uma determinação objetivamente inerente às coisas.458
Sob a égide do idealismo, Horkheimer incluía, além do racionalismo cartesiano, o
empirismo inglês e a filosofia da vida. Desta forma, identificava traços idealistas tanto em
correntes racionalistas quanto em correntes irracionalistas, além de contrapor à tais correntes a
filosofia materialista, que de acordo com Horkheimer, era incompatível com a idéia de uma
postulação absoluta, pois,
embora o conhecimento adquirido mediante práticas e fins definidos esteja em reciprocidade com o atuar dos homens, ele participa da estruturação da realidade exterior e interior, mas não fornece exemplos, normas ou diretrizes para uma vida verdadeira, mas apenas os meios para isso.459
457 HORKHEIMER, MAX. Da discussão do racionalismo na filosofia contemporânea. In: Teoria crítica: uma
documentação. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1990, p. 95-101. 458 KANT, Kritik der reinen Vernunft, A 35. Apud HORKHEIMER, M. Materialismo e metafísica. In: Teoria
crítica:uma documentação. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1990. cap 3, p. 46. 459 ibid., p. 38.
211
Portanto, segundo Horkheimer, no materialismo dialético o sujeito do pensamento não
é um ser abstrato como a essência do homem, mas homens de uma determinada época
histórica, que não são hipostasiados como unidades isoladas umas das outras e do mundo,
como mônadas. Todas as unidades isoladas em relação às quais for esquecido o processo pelo
qual foram adquiridas assumem um caráter metafísico. Contrapondo-se a idéia da identidade
entre sujeito e objeto, cara ao pensamento hegeliano, aqui há uma tensão que varia de acordo
com o papel que a teoria representa na sociedade, com o grau de domínio dos homens sobre si
mesmos e sobre a natureza extra-humana.460 Portanto, esboçava-se aqui a tese filosófica
fundamental da “teoria crítica”, ou seja, a de que no pensamento sobre o homem, sujeito e
objeto divergiam um do outro. “A suposição da invariabilidade social da relação entre sujeito,
teoria e objeto distingue a concepção cartesiana de qualquer tipo de lógica dialética.”461
Esta questão foi exaustivamente desenvolvida no artigo de Horkheimer e Marcuse,
Teoria tradicional e teoria crítica, o manifesto que esclarece o projeto histórico–crítico da
Escola de Frankfurt, publicado, em 1937, no periódico do Instituto. Neste texto os autores
afirmam que o cientista e sua ciência estão atrelados ao aparelho social. A ciência, como
função social, reflete as contradições da sociedade contemporânea. Na medida em que a vida
da sociedade é resultado da totalidade do trabalho nos diferentes ramos da profissão, a
ciência, como um dos ramos, não pode ser vista como autônoma e independente. É um
momento do processo produtivo. Sendo a sociedade dividida em classes e grupos, as
construções teóricas mantêm relações diferentes com a práxis social geral, conforme a sua
filiação a um desses grupos ou classes.462 A ciência formal ao elaborar um conhecimento
pragmático, se afasta da compreensão da sociedade como totalidade e desempenha uma
função conservadora da ordem existente, convertendo-se em ideologia, pois, em sua relação
com a totalidade social, oculta a dinâmica econômica e classista. A teoria crítica, distinta da
teoria tradicional, considera
como sujeito a um indivíduo determinado em seus relacionamentos efetivos com outros indivíduos e grupos, em seu confronto com sua classe determinada, e, por último, mediado por este entrelaçamento, em vinculação com o todo social e a natureza.463
460 HORKHEIMER, MAX. Da discussão do racionalismo na filosofia contemporânea. In: _______. Teoria
crítica: uma documentação. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, p. 119. 461 HORKHEIMER, M; MARCUSE, H. Teoria tradicional e teoria crítica. In: Textos escolhidos. Max
Horkheimer, Theodor W. Adorno. São Paulo: Nova Cultural. Coleção: Os pensadores, 1991. p. 46. 462 ibid. p. 36-39. 463 ibid., p. 46.
212
Na resenha seguinte, sobre o livro de Benjamin Farrington, Science and Politics in
the Ancient World, de 1941, percebe-se com mais clareza o quanto o autor estava imerso
neste ambiente intelectual. As principais questões abordadas no livro de Farrington como, por
exemplo: ciência e sociedade, iluminismo e obscurantismo, religião e ideolologia, constituem
um ótimo pretexto para Finley integrá-las, a partir dos debates travados pelos filósofos da
Escola de Frankfurt na primeira metade do século XX, com a realidade social do mundo
antigo. Nesta resenha Finley analisa, além de Farrington, o livro de Martin Nilsson, Greek
Popular Religion e o de H. W. Parke, A History of the Delphic Oracle. Ao longo do artigo-
resenha, Finley, a todo momento, reafirma a indissociabilidade entre teoria e prática,
relacionando a ciência do mundo grego com o tecido social que o envolve. O fracasso da
ciência grega ante o obscurantismo do Império romano, questão inicial do livro de Farrington,
encontrava sua resposta não na ciência ou na religião, mas na sociedade. Tal luta era
basicamente política.464 O obscurantismo, segundo Farrington era associado às classes
oligárquicas gregas. A relação entre ciência e política começa a ser exemplificada a partir do
advento da democracia política em Atenas no século V a.C., com a antinomia de interesses
dos filósofos jônicos, que estavam minando os mitos oficiais e os aristocratas que resistiam a
estes ataques legitimando o culto do estado, oráculos, profetas e suas cosmologias.465 Nesta
perspectiva, Finley vai além da análise de Farrington e classifica a filosofia de Platão como
um bastião dos interesses aristocráticos. Compara-o a Hegel, afirmando
Platão, assim como Hegel, desenvolveu uma filosofia social reacionária através de uma série de conceitos que eram devastadoramente críticos da sociedade de sua época e que transcederam os limites daquela sociedade em vários pontos cruciais.466
Ao final destas palavras, Finley insere uma nota de pé de página, comenta o livro de
Marcuse, Reason and revolution, como “um livro que oferece valiosos insights para nosso
problema apesar de somente tratar do pensamento do século dezenove e vinte.”467 Ao
qualificar de reacionária a crítica feita por Platão à cidade-Estado grega, comparando-a com a
crítica de Hegel à sociedade em que vivia, Finley possibilita-nos inferir para além do texto,
464 FINKELSTEIN, M. Review: FARRINGTON, B. Science and Politics in the Ancient World; NILSSON, M.
Greek Popular Religion; PARKE, H.W. History of the Delphic Oracle. Zeitschrift für Sozialforschung, IX, 1941, p. 502.
465 ibid., 503. 466 ibid., p. 509. 467 ibid.
213
hors-texte, alguns argumentos da crítica de Marx à filosofia idealista alemã. Parece aqui bem
presente a contundência das palavras de Marx, em oposição aos neo-hegelianos, de que é
partindo das atividades reais que se apreende o que os homens dizem, imaginam e pensam.
É a partir de seu processo de vida real que se representa o desenvolvimento
dos reflexos e das repercussões ideológicas deste processo vital.(...) Assim,
qualquer ideologia perdia imediatamente toda a sua autonomia.468
Em oposição à filosofia hegeliana, o materialismo dialético de Marx; em oposição a
Platão, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo. Mas, até que ponto tais correntes filosóficas
foram revolucionárias? O estoicismo, segundo Farrington, apesar de constituir-se em uma
doutrina potencialmente revolucionária, cujos princípios, repousavam, segundo Zenão, em
uma república ideal abarcando toda a humanidade, com leis prescritas pela natureza e não por
convenção, sem divisões de classe, sem imagens ou templos, não oferecia, contudo,
resistência efetiva às filosofias aristocráticas. Sua teologia astral teria aberto caminho para a
superstição. O homem fora afastado da luta com a natureza para um espírito de negativismo e
resignação.469 Já no epicurismo, o atomismo é o ponto de partida para o conhecimento da
natureza, remédio para os males da sociedade. Apesar de constituir-se em uma ameaça
reconhecida ao obscurantismo oligárquico, e com um público amplo e crescente, Finley
afirma, de acordo com Farrington, que seus conceitos não revelam uma filosofia social
revolucionária, pois
Epicuro parece menos preocupado com as questões sociais imediatas do que Platão. Sua ênfase recai na realização de um conhecimento próprio do mundo natural, com sua conseqüência, a eliminação da rede do obscurantismo e do irracionalismo com os quais as pessoas estavam atadas aos cultos e às crenças tradicionais.470
Finley associa também o fracasso revolucionário daquelas correntes filosóficas devido
à onipresença da religião. Para isto investiga a história do oráculo de Delfos. Segundo o autor,
468 MARX, K. A ideologia alemã. Lisboa, São Paulo: Editorial Presença; Martins Fontes, 1965. p. 25-26. 469 FINKELSTEIN, M. Review: FARRINGTON, B. Science and Politics in the Ancient World; NILSSON, M.
Greek Popular Religion; PARKE, H.W. History of the Delphic Oracle. Zeitschrift für Sozialforschung, IX, 1941. p. 503.
470 ibid., p. 509.
214
em consonância com Parke, os segredos do sucesso do oráculo foram às declarações
desonestas e o oportunismo. “Delfos apoiou os tiranos quando eles estavam no poder, os
condenou depois que eles foram derrubados.”471 A força e o prestígio do oráculo teriam sido,
na verdade, produto do trabalho dos governantes de toda a Grécia.
Muitas cidades gregas, especialmente as mais importantes como Esparta e Atenas, mantinham “embaixadores sagrados” ou funcionários de ligação com Delfos.Seus reis, tiranos, e aristocratas faziam questão de freqüentar o conselho. Seus ideólogos espalharam sua fama em drama e estória, inventando oráculos onde não havia, explicando satisfatoriamente as adivinhações equivocadas dos sacerdotes ou seu silêncio prejudicial.472
Em seguida, Finley apresenta uma preocupação tipicamente marcusiana: o monopólio
da literatura por setores dominantes. A literatura antiga era monopolizada e manipulada pelos
escritores antigos e restrita ao círculo estreito da aristocracia, pois grande parte da população
era anlfabeta.
Desta forma tornou-se fácil entender o cinismo ostensivo e quase ingênuo com o qual os escritores antigos …revelaram os motivos e os mecanismos da manipulação de símbolos e superstição.473
Em sua última resenha do período que estamos analisando, sobre o livro de Henri
Frankfort, Kingship and the gods, escrita em 1948, continuam as preocupações com a
ideologia, com uma violenta crítica à filosofia positivista, e mais explicitamente à
fenomenologia. Finley logo no início da resenha assim define o livro como:
O livro é uma tentativa de aplicar o método de fenomenologia ao estudo de um modelo histórico em uma cultura ampla: a ideologia (mais propriamente, a teologia) da realeza no Egito e Mesopotâmia antigos.474
471 ibid., p. 505. 472 ibid. 473 ibid., p. 506. 474 FINKELSTEIN, M. Review: FRANKFORT, H. Kingship and Gods: A study of Ancient Near Eastern.
(1948), Political Science Quartely, LXIII, 1948, p. 275.
215
Tal abordagem, segundo o próprio Frankfort, preocupada somente com o que aparece,
desconsidera verdades históricas e cronologia, a fim de evitar a armadilha de atribuir
importância exagerada a modificações insignificantes de uma idéia básica. Na verdade,
segundo Finley, não havia no livro uma discussão da realeza como uma instituição política, de
administração, poderes e prerrogativas reais, leis, disputas por poder e coisas parecidas. O que
Frankfort analisava era a teologia da realeza. Daí a crítica à abordagem estática e ahistórica
proposta por Frankfort, assentada na aceitação da ideologia divulgada por sacerdotes e
escribas como um retrato verdadeiro da teologia egípcia e da teoria política. Rejeitava-se a
idéia de que a crença religiosa podia ser produto de desenvolvimentos seculares, negando-se
as contradições existentes nesta teologia e deixando de explicá-las como o produto de
desenvolvimentos sociais e políticos.475 Segundo Finley, Frankfort induz-nos a crer que a
autoria dos textos religiosos é produto de toda a comunidade:
Nós somos levados a acreditar que todos os egípcios, todos os mesopotâmios, ou a comunidade toda defendiam uma crença particular, pois qualquer diferenciação introduzida de imediato, possivelmente o conflito, inexistentes segundo a pressuposição adotada. Decerto, é evidente por si mesmo que algum texto particular era registrado por alguém, uma pessoa concreta, real, presente. Presumivelmente quem aquela pessoa foi, o que ela representou, e quão representativa ela tenha sido é irrelevante, pois tais problemas são geralmente ignorados no livro.476
Por procurar somente o que aparece, Frankfort incorria em uma série de
inconsistências, convertendo-as em uma simples doutrina unificada. Por enfatizar a idéia que
tais verdades deveriam ser sentidas ao invés de conhecidas, ele bloqueava a possibilidade de
uma análise crítica. Seu erro fundamental na análise destas duas sociedades era o conceito de
“conjunto integrado”, insistindo na idéia de que o conjunto determinava as partes, e aceitando
como axiomática a unidade cultural e espiritual destas duas civilizações. Daí o postulado de
que a realeza constituía o coração da cultura.477
Aqui Finley compartilhava com os ideólogos da Escola de Frankfurt a crítica à
filosofia positivista. Em Razão e Revolução, Marcuse aponta a manutenção da autoridade
dominante contra qualquer investida revolucionária como um aspecto essencial da filosofia
475 ibid., p. 276-313. 476 ibid., p. 277. 477 ibid., p. 276-280.
216
difundida por Comte. “A meta última é justificar e fortificar a ordem social.”478 O princípio da
filosofia positiva, que fazia dela a defensora da ordem estabelecida, era a subordinação da
imaginação à observação, ou seja, uma tendência à subordinação aos fatos. “Os fatos e suas
conexões representavam uma ordem inexorável que compreendia os fenômenos sociais e
naturais.”479 Observação no lugar de especulação, eis a receita de Comte para afirmar a ordem
em lugar de qualquer ruptura. O progresso era uma evolução harmoniosa da ordem social sob
leis naturais perenes. Na ciência, os juízos de valor deveriam ser excluídos. A “estática social”
era o elemento central da correlação do texto de Frankfort com a crítica à filosofia positivista
feita por Marcuse. Outro artigo, The concept of essence, de 1936, complementavam estas
críticas. Aqui Marcuse associava o destino da sociedade burguesa com sua filosofia. O
conceito de essência assumiu, na teoria burguesa, inicialmente com Descartes, uma forma
transcendental subjetiva. Diferentemente das fenomenologias posteriores, no cartesianismo, a
autonomia crítica da subjetividade baseava sua verdade última na essência. Já nas diversas
fenomenologias, o conhecimento das essências tem a função de vincular a livre crítica do
indivíduo às necessidades de fato. A fenomenologia husserliana, alvo das principais críticas
de Marcuse, cujo conceito de essência assenta em uma invariância das infinitas e múltiplas
variações. A fenomenologia, além da descrição, é uma aceitação do que existe carente de
qualquer significado crítico.
O conceito de essência na fenomenologia é até aqui removido de qualquer significado crítico que encara tanto o essencial e o não essencial, o objeto de fantasia, bem como aquele de percepção, como “fatos”. O anti-positivismo epistemológico dessa doutrina dificilmente esconde sua orientação positivista.480
Diferentemente de tal perspectiva, o conceito concreto de essência, para Marcuse, é
visto como processo, como história. A essência é a totalidade do processo histórico, tal como
se apresenta em uma determinada época histórica. Cada um dos momentos particulares é, em
si, parcial, isolado, não essencial; sua essência assenta na demonstração de suas relações com
o processo em sua totalidade. Dentro da totalidade deste processo se perfila uma ordem
estrutural de fundo, que determina as características dos distintos momentos ou partes do
478 MARCUSE, H. Razão e Revolução. Hegel e o advento da Teoria Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 479 ibid., p. 315. 480 MARCUSE, H. The concept of essence. In: __________. Negations. Essays in critical theory. Boston:
Beacon Press. 1969. p. 60.
217
social.481 Em lugar da relação gnosiológica histórica entre essência e fato, se coloca a relação
crítico dinâmica de essência e fenômeno, como momento de um processo histórico. A
essência do homem se estuda à luz de uma futura comunidade humana, realisticamente ligada
a concretos meios materiais de liberação de que a sociedade realmente dispõe. Desta forma, a
essência é sempre essência de um fenômeno que aparece tal como ele é, mas poderia ser
diferente. Certamente um a priori está presente e ativo, porém não exclui a historicidade do
conceito de essência.482
Parece-nos que estes princípios da “teoria crítica” municiavam Finley a dirigir sua
crítica à idéia de que a sociedade não se constituía em uma totalidade contraditória. Finley
procura demonstrar, nesta resenha, a partir do próprio texto, que o autor, ao tentar estabelecer
um padrão comum e “estático” entre as realezas egípcias e mesopotâmicas, acaba envolvido
em contradições. Finley aborda uma passagem do texto em que o autor não consegue explicar
porque, durante o Reino Médio, todos os homens depois da morte tornavam-se o deus Osíris
em contraposição ao Reino Antigo, quando somente o faraó desfrutava deste privilégio. Para
uma tal mudança ter ocorrido, Frankfort admitia que a barreira que separava plebeus e reis
estava enfraquecida, daí as usurpações de prerrogativas reais de hábitos funerários pelo
homem comum. O problema é que Frankfort escreveu mais de 200 páginas tentando provar
que isto era impossível, pois:
Não somente não podia haver mudança na essência, mas o rei era uma divindade transcendental, inacessível para meros humanos. Agora nós aprendemos que o homem comum até usurpou as prerrogativas reais deste deus transcendental.483
Contrapondo-se à filosofia idealista, na qual o eterno passado domina o conceito de
essência, Finley, nesta resenha, “refazia” a crítica da filosofia materialista dialética ao
positivismo e ao idealismo, associando-os, naquele momento, implicitamente, à ideologias
autoritárias.
O exame dos textos dos autores frankfurtianos incita-nos a uma reflexão sobre a
relação entre marxismo e historismo, filtrada pelos escritos de Finley. A abordagem historista
da Escola de Frankfurt rejeitava o determinismo implícito da II e III Internacionais. Desde 481 ibid., p. 70-71. 482 ibid., p. 72-74. 483 FINKELSTEIN, M. Review: Frankfort, H. Kingship and Gods: A study of Ancient Near Eastern. (1948),
Political Science Quartely, LXIII, 1948, p. 278.
218
Lukcás, estes intelectuais acentuaramo caráter relativista do marxismo, em oposição ao
mecanicismo reducionista das ciências naturais. Como já dissemos anteriormente, o marxismo
também esteve próximo, nesta época, de uma perspectiva a-histórica. O historismo será
renovado nos escritos de Lukcás e Korsch, e com a contribuição da Sociologia. Além disso,
os frankfurtianos compartilhavam com a idéia de que a História deveria ser ao mesmo tempo
uma ciência interpretativa e filosófica, impregnada de valores, além de engajada e ativa. O
homem é resultado do processo social ao longo da História e os fatos históricos são
possuidores de historicidade pelo objeto percebido e pelo sujeito cognoscente. Finley, já nesta
época, se distancia do historismo idealista do tipo meineckiano, que interpreta a História de
forma teleológica e providencialista, e aproxima-se de um marxismo anti-reducionista e
mesmo anti-evolucionista, muito forte nos anos vinte.
Finley mostrou, em resenhas da época, dois elementos fundamentais das preocupações
frankfurtianas: a crítica contra o idealismo e contra o positivismo. A própria idéia de crítica é
fundamental no desdobramento de sua obra. A crítica como um esforço intelectual e prático,
que leve a não aceitar sem reflexão nem por hábito as idéias, os modos de atuar e as relações
sociais dominantes.484 Estas idéias horkheimianas estarão permanentemente presente em seus
trabalhos. A crítica contra o idealismo o afastará do mais poderoso princípio filosófico do
Historismo, e a crítica contra o positivismo rechaça a possibilidade de preponderância dos
axiomas das ciências naturais na esfera das ciências humanas. Contudo, apesar das violentas
críticas ao racionalismo cartesiano, associada ao idealismo, a linguagem “frankfurtiana” e o
discurso de Finley não passam ao largo do paradigma moderno da História, caracterizado por
uma concepção de racionalidade e método. A utilização de construções teóricas, advindas
tanto da Sociologia como da Antropologia, como meios de interpretação da História,
característicos não só da historiografia marxista, como da Escola dos Annales, rompe com o
Historismo, mas também com tendências ahistóricas da própria História Social. Finley dava
um passo a frente neste diálogo.
O embate contra a história compartimentalizada é uma influência dos filósofos
frankfurtianos e de suas leituras dos escritores dos Annales. A crítica feita ao positivismo é
direcionada contra esta compartimentalização da História, contra uma ciência que isola os
fatos em sua pureza. A utopia marcusiana, de caráter transformador, em contraposição a uma
utopia estática e sustentadora da ordem social aproximam Finley da tradição contestadora do
484 HORKHEIMER, MAX. La funcion social de la filosofia. In: Teoría crítica. Buenos Aires: Amorrortu
editores, 1974. p. 287-289.
219
marxismo dos anos vinte. Apesar disso, Finley recorreu a Meyer e Beloch, já nesta época para
exemplificar trabalhos de História Antiga não voltados somente para um aspecto da
sociedade. Este é apenas um exemplo de que alguns elementos da História Social já estão
presentes nos trabalhos de historiadores envolvidos no ambiente cultural do historismo,
mesmo na obra de Meyer, autor que combateu ferozmente os trabalhos de Karl Lamprecht.
Apesar de sua ênfase na explicação das contradições e mudanças, a idéia de que os
fenômenos históricos devem ser explicados a partir do momento em que ocorriam, muito
presente nos textos de Finley, mais próxima de uma abordagem historista, demonstram uma
oposição à idéia evolucionista de que o passado se move necessariamente em direção ao
presente. Tal traço parece ser acentuado principalmente porque Finley estava combatendo
uma historiografia acerca da antigüidade de características muito conservadoras e de caráter
extremamente ahistórico. Por outro lado, porém, Finley parecia “usar” o mundo antigo como
um meio de combater correntes próximas de ideologias autoritárias, já que tais escritos foram
produzidos no entre guerras e sobre influência de intelectuais que haviam fugido da
perseguição nazista. É bom lembrar que Finley também sentiu nos EUA a perseguição aos
judeus.
O marxismo parece ter sido uma forte referência intelectual e política para Finley, mas
não engendrou um programa de pesquisa reconhecidamente marxista. Seus trabalhos
posteriores não refletiram as reflexões programáticas destas resenhas. O confronto com o
material empírico, tal como foi entendido e empreendido por Finley, acabou o afastando da
análise marxista da História, mas não de temas caros à historiografia marxista: a dominação
ideológica de setores dominantes – Marcuse -, escravidão; e o estudo de grandes estruturas
históricas como a economia antiga.
5.3 MOSES FINLEY E A ECONOMIA ANTIGA
Abordaremos agora os trabalhos de Finley relacionados com a economia antiga. Em
virtude de sua extensa produção sobre o tema, escrita ao longo de toda a sua carreira,
cobrindo as mais diversas questões e com nuances de opinião ao longo do tempo, decidimos
tomar o livro The Ancient Economy (utilizaremos a tradução portuguesa, intitulada A
Economia Antiga, editada em 1980) como referência de análise. As grandes questões
investigadas por Finley sobre a economia e sociedade grega, desde os anos 30, estão presentes
220
nos capítulos de A Economia Antiga, daí a importância deste livro, escrito na fase mais
madura de Finley, sua maior contribuição ao debate do oikos.
Dando continuidade à metodologia seguida até aqui, iremos apresentar as reflexões
de Finley sobre a economia da Grécia Antiga procurando, em primeiro lugar, perceber como o
autor insere as grandes questões da tradição primitivista-substantivista no seio da História
Social; e, em segundo lugar, comparando-as com as idéias dos outros autores paradigmáticos
daquela tradição: Bücher, Hasebroek, Weber, Polanyi. Procuraremos, então, demonstrar que a
análise de Finley se encontra no ponto culminante da inserção e crítica dos temas
desenvolvidos nesta tradição no campo da História Social, em razão do contexto social e
teórico em que nosso autor desenvolveu seus trabalhos. Na verdade, desde Bücher, ainda no
contexto do Historismo, esboçam-se temas e análises de uma História preocupada com setores
da sociedade que ultrapassam os muros de uma estrita história política.
Escrito em 1971 para as conferências de Sather, em 1972, o livro A Economia
Antiga foi publicado pela primeira vez em 1973, reeditado em 1985 e 2005. Aclamado por
muitos como o livro de maior impacto sobre o estudo da história econômica romana e grega
no século XX, o livro foi traduzido para o italiano, francês, espanhol, alemão, português e
grego moderno, além de discutido e criticado em diversas resenhas e artigos.
Segundo Descat, o livro A Economia Antiga funda uma nova ortodoxia e seu
conceito de “economia antiga” prevaleceu, mesmo com oposições aqui e ali485. Em nossa
opinião esta “nova ortodoxia” é, na verdade, resultado de uma maturação de suas leituras dos
autores paradigmáticos da tradição primitivista-substantivista. Desde os anos 30, Finley
escreveu sobre os trabalhos de Hasebroek, Weber, Bücher e Polanyi. Com este último,
inclusive, manteve um contato intenso na universidade de Columbia. Apesar de em alguns
momentos anteriores, até a publicação do livro, Finley ter se afastado destes autores,
apontando equívocos e falhas empíricas, pois dispunha de maiores informações empíricas que
seus antecessores, em A Economia Antiga, ele explorou e aprofundou, com uma
contundência impressionante, os argumentos teóricos de autores como Weber e Polanyi. Estes
dois, sem sombra de dúvida, são as grandes referências intelectuais do livro, além de uma
defesa crítica aos postulados gerais de Hasebroek.
No primeiro capítulo do livro A Economia Antiga, intitulado “os antigos e sua
economia”, Finley afirma que os livros dos escritores antigos sobre economia eram obras
485 DESCAT, R. L’économie antique et la cite Grecque: um modèle em question. Annales ESC, n. 5, 1995, p.
961.
221
práticas, não havia nenhum princípio econômico ou mesmo uma análise econômica, sobre
eficiência de produção, escolha racional, ou comercialização das colheitas. Apesar de
trabalharem a terra, negociarem, fabricarem objetos, escavarem minas, decretarem impostos,
cunharem moedas, fazerem empréstimos, os antigos não combinavam estas atividades
particulares conceitualmente em uma unidade, isto é, em “subsistema diferenciado de
sociedade”. Esta ausência não é uma falha intelectual, mas sim um comportamento
institucional.486
Eis aqui um primeiro ataque aos modernistas, aos defensores de uma transposição da
teoria econômica neoclássica ao mundo antigo. Finley tomava partido da cruzada polanyiana
contra os formalistas e reafirmava o caráter distinto do mundo antigo, eliminando qualquer
possibilidade de análise que partisse de princípios da ciência econômica moderna. A citação
de Parsons, “um sistema diferenciado de sociedade”, demonstrava a impossibilidade de
autonomia da esfera econômica e seu caráter dependente de outras esferas institucionais.
Finley irá procurar provar, por meio de autores como Xenofonte e Aristóteles, que sem um
conceito de economia, as ações e atitudes dos antigos não poderiam ser guiadas por motivos
econômicos. A utilização de Aristóteles como fonte privilegiada para tal discussão foi tema de
um artigo escrito por Finley publicado em 1970, Aristotle and economic analysis
(utilizaremos a tradução espanhola Aristóteles y el analisis econômica), motivo de
controvérsia entre analistas que estudam a obra de Finley. Enquanto Hindess usa o artigo para
demonstrar as fortes afinidades de Polanyi.487 Nafissi, por outro lado, utiliza o artigo para
mostrar o início de um passageiro rompimento de Finley com o programa de pesquisa de
Polanyi. A comparação é estabelecida com o texto de Polanyi sobre Aristóteles, já investigado
aqui, Aristóteles descubre la economia. Apesar de aceitar a visão polanyiana do papel
fundador de Aristóteles de uma sociologia do estabelecimento de equivalências, Nafissi
afirma que Finley discorda de Polanyi no ponto crucial da análise deste: qual o tema que
verdadeiramente Aristóteles está tratando. Enquanto Polanyi acredita que a ausência de uma
análise sobre o mecanismo de mercado de oferta e demanda por Aristóteles corrobora a
inexistência de troca de mercado disembedded em Atenas no século IV, Finley acredita que
Aristóteles estava tratando sobre um primeiro estágio na evolução da sociedade grega e sobre
os problemas éticos de justiça, virtude e amizade. Além disso, Nafissi ressalta a passagem do
486 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 20-23. 487 HINDESS, B. Extend review: FINLEY, M. Democracy ancient and modern; politics in ancient world.
Sociological Review , n. 23, 1975, p. 15-17.
222
texto em que Finley afirma a existência de variações de preço de acordo com um mecanismo
de oferta e demanda, lugar comum na vida grega no século IV a.C.488
Segundo Polanyi, Aristóteles abordou a questão do lugar ocupado pela economia na
sociedade. E mais, que é possível buscar em suas obras formulações sobre questões
econômicas mais consistentes e significativas que as que no passado se tem atribuído a elas.
Polanyi foi ao extremo, e viu Aristóteles como o filósofo da Gemeinschaft (comunidade). Ele
comparou os pensamentos de Aristóteles sobre koinonia, philia, e autarkeia com as
instituições de reciprocidade dos ilhéus trobrianos e o povo Arapesh de Papua-Nova Guiné.
“Estes são exageros lamentáveis”, segundo Meikle, que vê o interesse de Aristóteles em
assegurar os laços da pólis não por meio de reciprocidade arcaica, mas, como uma tentativa de
especificar reciprocidade como uma relação de igualdade entre proporções de produtos
trocados, isto é, encontrar alguma forma de philia para compra e venda.489 Cartledge acredita
que Aristóteles escreveu sobre uma gama enorme de temas, mas não sobre Economia. Quase
tudo que escreveu sobre transações sociais interpessoais pode ser substituído pela rubrica
geral de ‘política’. Contudo, Cartledge crê que os gregos antigos tanto tiveram uma economia,
quanto estabeleceram uma análise econômica, de uma natureza incomensuravelmente
diferente de qualquer coisa familiar ou reconhecível por nós como tal.490 Mesmo que Finley
tenha negado o caráter originário de Aristóteles às teses substantivistas de Polanyi, e admitido
a presença de mercados caracterizados pela oferta e demanda em Atenas, o fato é que, em A
Economia Antiga, ele não só não retoma estes questionamentos, como reafirma a
inexistência de mercados interdependentes no mundo antigo.
Mas que aconteceria se uma sociedade não estivesse organizada para a satisfação das suas necessidades materiais através de uma ‘enorme conglomeração de mercados interdependentes’? Seria, neste caso, impossível descobrir ou formular leis (‘uniformidades estatísticas’ se preferirem) do comportamento econômico, sem as quais o desenvolvimento dum conceito de ‘economia é improvável e a análise econômica impossível.491 (Grifo nosso)
488 NAFISSI, M. op. cit, p. 230-232. No texto de Finley, Aristóteles y el análisis economica. In: FINLEY, M.
(org) Estudios sobre historia Antigua. Madri: Akal Editor, 1981. p. 50. Ao final desta passagem, Finley insere uma nota de pé de página na qual afirma que este tópico foi levantado em virtude da estranha passagem de Polanyi de que o “mecanismo de oferta-demanda-preço escapou à Aristóteles”.
489 MEIKLE, S. Modernism, economics and the Ancient Economy. In: SCHEIDEL,W., VON REDEN,S. (org) The Ancient Economy. New York: Routledge, 2002. p. 238
490 CARTLEDGE, P. The economy (Economies) of Ancient Greece. In: SCHEIDEL,W., VON REDEN, S. (org) The Ancient Economy. New York: Routledge, 2002. p. 15-18.
491 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 24.
223
Esta passagem deixa bem claro que a ausência de mercados interdependentes
impossibilita a formulação de leis e de um conceito de economia. Finley aqui estava
convencido de que não havia meio termo entre um mercado nos moldes modernos ou uma
outra forma de mercado. Parece, portanto, não aprofundar o modelo polanyiano de mercados
locais, no qual a ágora ateniense exerce um papel fundamental. Tal generalização bloqueou a
possibilidade de investigar com mais cuidado o funcionamento de mercados parciais. É sobre
estes mercados que os modernistas começaram a se deparar com mais atenção, e a crítica a
Finley tem sido mais contundente em relação ao império romano do que à Grécia antiga. Por
outro lado, a afirmação de Finley parecia refletir uma posição ideológica na época, isto é, um
combate contra os dogmas capitalistas, isto é, mercadistas.
A passagem que grifamos da citação de Finley: descobrir ou formular leis
(‘uniformidades estatísticas’..), demonstra que Finley rejeitava a possibilidade de utilização
de qualquer modelo da economia neoclássica, particularmente aqueles relacionados com a
cliometria, pois, qualquer tentativa de organizar dados antigos seria infrutífera diante dos
poucos registros conservados relacionados à séries temporais tanto no setor público quanto no
privado. Esta ausência de números dificultava informações sobre produtividade ou estatísticas
sobre a população. Não se trata apenas de fazer perguntas que os antigos não fizeram, ou de
imaginar novos métodos, mas de fazer as perguntas adequadas.492 Eis aqui uma forte
proximidade com Bloch.
Necessário agora era procurar conceitos e modelos diferentes, apropriados ao mundo
antigo. A caracterização deste modelo começa pela definição de “antigo”. Finley procura esta
definição partindo de uma comparação com o Antigo Oriente Próximo, apontando as
diferenças culturais, sociais e políticas entre o mediterrâneo e as civilizações do antigo
Oriente Próximo. Sua delimitação parece ser coerente com os modelos weberiano e
polanyiano na utilização do Antigo Oriente Próximo como parâmetros diferenciadores ao
mundo greco-romano.
Englobar os dois mundos sobre a mesma etiqueta de “antigo” em um mesmo modelo,
seria ocultar profundas divergências quanto à propriedade, comércio e indústrias privadas.
Delimitando o mundo greco-romano como seu objeto, e tomando as condições climáticas e os
tipos sociais e políticos dominantes, o mundo greco-romano a ser explorado concentra-se no
período entre 1000 a.C. e 500 d.C., se configurando, contudo, em uma abstração bastante
492 ibid., p. 25-29.
224
fluida.493 Finley reconheceu a diversidade de arranjos econômicos dentro desta enorme
extensão de tempo e espaço, mas coerente com uma proposta weberiana, insistiu na idéia de
que era necessário se concentrar nos tipos dominantes, nos modos característicos de
comportamento.494
As justificativas para falar de economia antiga não são os elementos que caracterizam
as economias modernas, mas sim a unidade política e o quadro cultural-psicológico comum
nos séculos finais do mundo antigo.495 Em escritos posteriores sobre o livro A Economia
Antiga, Finley continuou defendendo esta categoria e insistindo nas razões não econômicas
para falar de economia antiga. As exceções não invalidavam seu modelo, pois a existência de
exceções era inerente ao conceito de tipo ideal. Os erros de sua análise não deveriam ser
atribuídos aos exageros ou exceções esporádicos, mas aos exageros que pudessem invalidar
seu modelo como um todo. Finley continuava defendendo o uso de modelos, tipos ideais e
teorias de forma explícita, em detrimento do acúmulo de evidência.496 Paradoxalmente, nos
anos noventa, as críticas ao livro A Economia Antiga, provenientes de autores da Nova
História Cultural, retomou uma crítica filológica pré-finleyniana, apontando erros factuais,
chamando atenção para a variedade e singularidade dos indivíduos, instituições e estados do
mundo antigo. O econômico passou a ser tratado como uma categoria de representação, um
campo de negociações para atores instruídos na busca de seus próprios objetivos.497 Finley
acabou recebendo as mesmas críticas de Hasebroek, sendo acusado de omissões sistemáticas e
de ter subestimado a escala do comércio, indústria, negócios bancários e outras atividades
econômicas não agrícolas.498 Finley era extremamente áspero contra os militantes de uma
história local, mas, se vivo provavelmente justificaria estas críticas, como ele mesmo afirmara
em História Antiga. Testemunhos e modelos, em virtude das mudanças das ideologias, que
acarreta consigo transformações na escrita da História. O que nos parece contraditório nesta
discussão, de acordo com Nafissi, é que Finley não parece querer unir a teoria com a pesquisa
‘antiquária’, ou evidências, realçando muito mais uma antinomia entre estes.499
493 ibid., p. 15-20. 494 ibid., p. 34. 495 ibid., p. 23. 496 FINLEY, M. The study of the ancient economy. Further thoughts. Opus, III, 1984, 5-11 e FINLEY, M. The
ancient economy and its critics. Mimeografo. S/d. 1-7. 497 CARTLEDGE, P. The economy (Economies) of Ancient Greece. In: SCHEIDEL,W., VON REDEN, S. (org)
The Ancient Economy. New York: Routledge, 2002, p. 30. 498 MORRIS, I. Foreword, In: The Ancient Economy. Update edition. Berkley, 1999, p. xxv-xxvi 499 NAFISSI, op. cit., p. 239.
225
Este capítulo introdutório do livro A Economia Antiga nos parece mais próximo de
Polanyi, apesar de em nenhum momento Finley utilizar os termos embedded ou disembedded.
A defesa do substantivismo aparece pela negação aos cânones formalistas. É menos
weberiano porque, como já afirmamos, Weber manteve posições dúbias em relação ao
formalismo, ao opor-se ao “modernismo” do mundo antigo com argumentos formalistas,
desprovendo este mundo da racionalidade moderna. Contudo, a idéia da economia antiga
como um modelo guarda maiores afinidades com o tipo ideal weberiano.
Ian Morris afirma que “o coração analítico do modelo de Finley é o status.”500 Grande
parte dos sábios considera que neste capítulo a influência weberiana é mais presente, com um
ruidoso debate com os marxistas em torno do conceito de classe social. Entretanto, neste
mesmo capítulo, o autor faz a mais forte menção à idéia de embedded citando Luckás:
‘A consciência de status..oculta a consciência de classe’. Queria assim dizer, como ele próprio explicou que ‘a estruturação da sociedade em castas e estados significa que os elementos econômicos se encontram inextricavelmente ligados a fatos políticos e religiosos’, que ‘as categorias econômicas e legais estão objetivamente e substancialmente tão interligadas que chegam a ser inseparáveis.501
Em nossa opinião, este capítulo reúne influências weberianas, polanyianas e
frankfurtianas ao negar um conceito de classe para o mundo antigo mais próximo do, na
época, denominado marxismo ortodoxo. Na verdade, Finley, ao utilizar o status, “uma palavra
admiravelmente vaga com um elemento psicológico considerável,”502 como forma dominante
em todas as sociedades pré-capitalistas, estava combatendo fundamentalmente uma percepção
modernista do uso de classe social, que ele associou ao marxismo. Este combate alinhava-se a
um elemento fundamental da teoria weberiana de classe: a relação de classe com o mercado.
“Mas sempre vale para o conceito de classe que a oportunidade no mercado é o condicionador
comum do destino dos indivíduos.”503 Concomitantemente, cerrava fileiras contra o conceito
marxista de classe ao afirmar que
500 MORRIS, I. Foreword. In: FINLEY, M. The Ancient Economy. Update edition. Berkley, 1999. p. xx. 501 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 64. 502 ibid., p. 65 503 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 177.
226
qualquer que seja a aplicabilidade desta classificação na sociedade contemporânea, para o historiador da antiguidade há uma dificuldade óbvia : o escravo e o trabalhador assalariado livre seriam, neste caso e numa interpretação mecânica, membros da mesma classe, da mesma forma que o mais rico dos senadores e o proprietário de uma pequena oficina de cerâmica (desde que este não trabalhasse). Não parece uma maneira muito inteligente de examinar a sociedade antiga.504
Logo em seguida, Finley afirma que a “pressão da economia capitalista de mercado
sobre o historiador revela-se muito grande neste ponto.”505
Esta defesa do status – na terminologia weberiana, estamento – começa pela separação
entre cidadãos e não cidadãos e o acesso à terra restrito a cidadãos. Este era um elemento
importante para travar o desenvolvimento da economia, no sentido moderno, pois resultou na
concentração de não-cidadãos em atividades comerciais, manufatureiras e financeiras.
Seguindo Cícero, o autor afirma que as fontes antigas ressaltam o baixo status moral e social
dos comerciantes e industriais profissionais ao longo de toda a história romana506 e,
concomitantemente, o papel politicamente marginal, mesmo que socialmente respeitável, dos
metecos ricos de Atenas, em virtude da inibição por valores fundamentais da elite política. Os
metecos eram condenados pelos seus vícios e maus costumes e nunca como rivais de
oportunidades econômicas. Qualquer modelo de “investimento” econômico daria considerável
peso ao fator status. Ao ressaltar o papel positivo da agricultura, do grande comércio e de
algumas profissões: medicina, ensino, e negativamente dos peixeiros, cozinheiros,
negociantes de galinhas, pequenos comerciantes, os assalariados, cobradores e prestamistas,
Cícero afirmava os aspectos honoríficos de algumas ocupações sociais, que resultavam na
ausência ou monopólio de privilégios sociais e políticos.Tudo isto lembra o ethos aristocrático
salientado por Weber, que condenava a avidez pelo lucro de forma racional e qualquer
ocupação aquisitiva sistemática. A honra estamental relacionada com uma condução de vida
específica. Eis aqui como Finley interligava a citação de Lukcás com a teoria weberiana de
estamento. Valores não econômicos obscureciam interesses econômicos. Retomemos,
contudo, de forma mais detalhada a análise de classe de Weber.
Weber em sua conceituação de classe, no volume I de Economia e sociedade, chamou
de situação de classe
504 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 62-63. 505 ibid., p. 63. 506 ibid., p. 77.
227
a oportunidade típica de 1. abastecimento de bens, 2. posição de vida externa, 3. destino pessoal, que resulta, dentro de determinada ordem econômica, da extensão e natureza do poder de disposição (ou da falta deste) sobre bens ou qualificação de serviço e da natureza de sua aplicabilidade para a obtenção de rendas ou outras receitas.507
Classe, portanto, é todo grupo de pessoas que se encontra em igual situação de classe.
Junto a isto, dividiu o termo em três categorias: 1. classe proprietária: aquela em que as
diferenças de propriedade determinam a situação de classe; 2. classe aquisitiva: determinada
primariamente pelas oportunidades de valorização de bens; 3. classe social: a totalidade
daquelas situações de classe entre as quais uma mudança pessoal ou na sucessão das gerações
é facilmente possível e costuma ocorrer tipicamente.508 Os rentistas são típicos representantes
das classes proprietárias positivamente privilegiadas, enquanto os pobres, endividados,
desclassificados e os dependentes são negativamente privilegiados; os empresários são
representantes típicos das classes aquisitivas e os trabalhadores, em suas diversas categorias,
são os representantes típicos das classes aquisitivas negativamente privilegiadas; os
trabalhadores em seu conjunto, a pequena burguesia, os intelectuais sem propriedade e os
especialistas profissionais, as classes dos proprietários e privilegiados por educação
constituem as classes sociais. A partir desta classificação, Weber afirma que as classes
aquisitivas crescem com base na economia orientada pelo mercado, e, entre as classes, a
“classe aquisitiva” é a que mais se afasta do “estamento”, enquanto a “classe social” é a mais
próxima. Os “estamentos” são constituídos basicamente por classes proprietárias. No livro II
de Economia e sociedade, Weber não se furtou de historicizar suas categorias de classe. Em
primeiro lugar, Weber relativizou a idéia de “situação de classe” e “interesse de classe”. O
conceito de “interesse de classe” não é unívoco e nem mesmo inequivocamente empírico,
quando se compreende por ele outra coisa que a tendência efetiva, resultante, com certa
probabilidade da situação de classe, dos interesses de certa “média” dos que a ela estão
submetidos. Concomitantemente, também varia conforme se tenha desenvolvido ou não, a
partir da “situação de classe”, uma ação social de uma parte maior ou menor dos
coletivamente atingidos. Não é um fenômeno universal o desenvolvimento de uma ação social
a partir da “situação de classe” comum.509
507 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. vol 1, p. 199. 508 idem. 509 WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa, 4ª edição, Brasília: UnB, 2004. v. 2, p. 177-178.
228
Toda classe, portanto, “pode” ser portadora de uma “ação de classe”, possível em
inúmeras formas diferentes, mas não o é necessariamente. É aqui que Finley, tece sua crítica
mais violenta ao conceito de classe, pois combate o entendimento de “classe” como
necessariamente portadora de uma “ação de classe” para o mundo antigo. Weber ressalta que
devem ser claramente reconhecíveis a condicionalidade e o efeito da “situação de classe”,
pois somente nesse caso pode o contraste das oportunidades de vida ser sentido não como
algo simplesmente dado, mas sim como algo resultante ou da distribuição existente da
propriedade, ou da estrutura da ordem econômica concreta. Historicizando a evolução dos
antagonismos de classe, até a cristalização do mercado, Weber acredita que do passado até a
atualidade, a luta que atua sobre a situação de classe, resultado da ação social entre membros
de classes diferentes, deslocou-se progressivamente, a partir da esfera do crédito, primeiro
para a da luta de preços no mercado de trabalho, em seguida, para as lutas pelo acesso ao
mercado e fixação dos preços dos produtos até aos antagonismos de classe, condicionados
pela situação do mercado. Dessa forma, as lutas de classe da Antiguidade - ligados à primeira
categoria, formas de protestos irracionais e intermitentes - eram lutas de devedores
camponeses (e, provavelmente, artesãos) ameaçados pela servidão por dívidas, contra
credores residentes nas cidades. Este foi o início das “lutas de classes”, com um mercado de
crédito - muito primitivo – com taxas de juros, que aumentavam de acordo com a necessidade,
e com uma monopolização efetiva dos empréstimos por parte de uma plutocracia.510
Finley conhecia muito bem os conflitos entre devedores e credores da Grécia primitiva
e Roma arcaica. As stásis foram temas constantes de seus estudos. Ao abandonar o conceito
de “classe” marxista, e “classe aquisitiva” de Weber - no livro economia Antiga, mas não em
artigos anteriores - em pró somente do termo status (ou estamento), ancorado em Weber,
Finley estabeleceu uma divisão entre sociedades capitalistas e pré-capitalistas, de
embeddedness e disembeddedness, por meio da diferenciação entre classe e status. Não
conseguiu, ou não quis, perceber as nuances das relações entre classe e estamento, mesmo
com a ausência do mercado formador de preços. Neste ponto ele reforçou a hipótese de
trabalho de Polanyi, de relacionar embeddedness com status e disembeddedness com classe.
Além disso, interpretou os conflitos de classe por uma ótica ora funcionalista, ora com ecos
do marxismo frankfurtiano, passando a conviver com contradições sérias entre uma visão
estruturalista e pouca histórica e outra mais histórica. Isto fica patente em sua análise da
escravidão antiga.
510 ibid., p. 177-180.
229
O tema da escravidão antiga ocupou no livro A Economia Antiga, o maior espaço,
resultado de uma série de estudos, publicados desde 1959 e, que, mesmo depois da publicação
de A Economia Antiga, ainda continuou sendo uns temas centrais de Finley, desembocando
no famoso livro, Ancient Slavery and Modern Ideology (Escravidão antiga e ideologia
moderna), um dos seus últimos livros, publicado pela primeira vez em 1980. Segundo Morris,
a escravidão foi para Finley o fundamento da passagem da reciprocidade hierárquica,
dominante na sociedade homérica, para uma reciprocidade igualitária, dominante na pólis
clássica.511
Seus estudos sobre escravidão ao longo deste período acirraram seus debates com os
marxistas e com os modernistas, particularmente com Eduard Meyer. Ao historicizar os
estudos sobre escravidão, Finley condena, em primeiro lugar, os juízos morais, que nos levam
a subestimar ou ignorar o papel da escravidão. Em segundo lugar, não aprova o uso da
escravidão como um campo de batalha político entre marxistas e não-marxistas desde a
publicação do Manifesto comunista. No seu primeiro artigo sobre escravidão, Was the Greek
civilization based on slave labour? (A civilização grega era baseada no trabalho escravo?),
escrito em 1959, Finley rompe com as propostas programáticas de suas resenhas, e
conseqüentemente com uma orientação marxista. Ressalta as discussões consideradas por eles
improdutivas pelo marxismo, como por exemplo, aquelas sobre as causas da escravidão, que
naquele momento pareciam estar conduzindo a questões falsas, impostas por um tipo ingênuo
de pensamento pseudocientífico.512
Em seu artigo de 1984, The study of the ancient economy. Further thoughts,
Finley reafirma sua oposição à utilização do conceito de modo de produção escravista para o
mundo antigo. Elencou alguns fatores para esta rejeição: 1. a ausência do emprego, no tempo
e no espaço, no mundo greco-romano do trabalho escravo produtivo em grande escala; 2.
impossibilidade de coadunar modos de produção diferentes no mundo antigo. Finley rejeita a
hipótese de que o modo de produção escravista da sociedade americana tenha sido dominado
pelo modo de produção capitalista, mas sim incorporado. O modo de produção perde assim
seu significado para uma mera categoria particular de trabalho.513
Em vez de avaliar a evolução das formas de produção, Finley mostrou-se muito mais
preocupado em explicar a situação dos escravos dentro das diferentes sociedades do mundo
511 MORRIS, I. op. cit., p. xviii. 512 FINLEY, M. A civilização grega era baseada no trabalho escravo? In: ________. Economia e sociedade na
Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 119. 513 FINLEY, M. The study of the ancient economy. Further thoughts. Opus, III, 1984, p. 6.
230
clássico e entender como foi possível separar os escravos dos homens livres. Isto indica
entender graus e variedades da liberdade, não somente graus e variedades da escravidão.514 O
seu argumento principal contra os marxistas na época estava baseado nas diferenças sociais e
econômicas que o estatuto legal do escravo ocultava entre eles. No seio de tal categoria
encontramos escravos por dívidas, hilotas, escravos propriedade, a instituição do peculium e
as diferenças de natureza de trabalho dos escravos (escravos domésticos e escravos que
trabalhavam nas minas). Os hilotas, diferente dos escravos–propriedade (chattel slaves) de
Atenas, não eram propriedade de espartanos individuais. Não eram comprados nem vendidos,
só podiam ser libertados pelo Estado e auto perpetuavam-se. O escravo possuidor de um
peculium podia comprar sua liberdade com os lucros obtidos. Eram, sobretudo, artífices
autônomos, penhoristas, prestamistas e comerciantes. “Faziam o mesmo tipo de trabalho que
os seus contemporâneos livres, da mesma forma e nas mesmas condições, apesar da diferença
formal no estatuto legal.”515
Finley contesta a possibilidade de se pensar a sociedade antiga em dois extremos
polares de liberdade jurídica. Em um extremo o escravo como propriedade e no outro o
homem livre, cujos atos são todos executados livre e voluntariamente.516 No seu primeiro
artigo sobre escravidão, Finley se contrapõe a esta asserção afirmando que a “sociedade
antiga deve ser pensada como um espectro de classes sociais, com o cidadão livre em um
extremo e o escravo no outro, e com um considerável número de graus de dependência no
meio.”517 Classe social nesta perspectiva foi definida em um artigo posterior, escrito em 1960,
como
um acúmulo de privilégios e poderes, etc., e portanto a definição de qualquer classe social em particular, ou da classe social de qualquer indivíduo, a partir da posse e localização dos elementos do acúmulo de direitos.518
Todos os homens são, portanto, um aglomerado de reivindicações, privilégios,
imunidades, responsabilidades e obrigações em relação aos outros. A categoria social de um
514 MOMIGLIANO, A. Moses Finley and slavery: a personal note. In: FINLEY, M. I. Classical slavery.
London: Frank Cass, 1987, p.5 515 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980, p. 70. 516 idem., p. 88. 517 FINLEY, M. A civilização grega era baseada no trabalho escravo? In: Economia e sociedade na Grécia
Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 105. 518 id. As classes sociais servis da Grécia Antiga. In: Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:
Martins Fontes, 1989, p. 159.
231
homem define-se pela posse ou ausência deste aglomerado. Tal aglomerado não pode ser
expresso em termos numéricos: “Não é uma questão de um homem ter um privilégio ou uma
responsabilidade a mais que outro. É mais uma questão de localização em um espectro ou
numa série contínua de categorias sociais.”519 É a combinação destes direitos, ou sua
ausência, que determina o lugar do homem no espectro.
As reflexões destes artigos sobre escravidão pavimentaram o caminho para Finley
definir a “luta de classes” na antiguidade como “conflitos entre grupos em pontos diferentes
do espectro disputando a distribuição de direitos e privilégios específicos.”520 Finley
encontrava uma forma de explicar os conflitos sociais da antiguidade no seio de seu modelo
de status. Opondo-se à idéia de uma “ação de classe”, no sentido weberiano, ou “consciência
de classe”, no sentido marxista, Finley no artigo Entre a escravidão e a liberdade, afirma que
os escravos (propriedade), enquanto escravos, não demonstravam nenhum interesse na
escravidão como instituição. A liberdade para eles, como indivíduos, incluía o direito de
possuir outros indivíduos como escravos. Portanto, estar do lado livre do espectro não
significa necessariamente estar em melhores condições que um escravo.521 Um homem livre
não cidadão (meteco) poderia perder sua liberdade, por algum tipo de delito. Somente os
cidadãos (estamos aqui nos referindo mais especificamente aos atenienses) com todos os seus
direitos cívicos e políticos, não podiam ser escravizados. Na Atenas clássica, é a cidadania
que se encontra na ponta do espectro da liberdade, e não o simples fato de ser livre.
Foi com este modelo, que Finley ao longo de sua carreira procurou entender as
categorias sociais da Grécia antiga. Procurou estabelecer generalizações por meio das
variáveis encontradas no espectro: 1. o escravo por dívidas e o hilota podiam ser encontrados
em sociedades arcaicas, em termos de desenvolvimento da democracia: Creta, Esparta e
Tessália no mesmo período da Atenas clássica ou na Atenas arcaica; 2. os escravos
propriamente ditos estavam espalhados por todas as atividades, enquanto os hilotas e as
demais formas de servidão adaptavam-se melhor à agricultura, pastoreio e serviços
domésticos. Esta tipologia, estabelecida em seu primeiro artigo sobre escravidão, A
civilização grega era baseada no trabalho escravo, de caráter mais sincrônico, seria
aperfeiçoada no artigo As classes sociais servis da Grécia antiga, de caráter mais diacrônico,
com a assertiva de que este modelo ajudaria a ver o desenvolvimento histórico e as tendências 519 FINLEY, M. Entre a escravidão e a liberdade. In: Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:
Martins Fontes, 1989, p. 159. 520 id. A Economia Antiga. p. 89. 521 FINLEY, M. Entre a escravidão e a liberdade. In: Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:
Martins Fontes, 1989, p. 126
232
das estruturas e dos conceitos sociais gregos em sua adequada relação com a história da pólis
como estrutura política. Finley começava a encontrar um lugar de proeminência da escravidão
no surgimento da pólis, ao lembrar que a consolidação desta se deu com o triunfo da
escravidão, como bem pessoal, sobre outras categorias de trabalho servil, apesar de ressaltar
que boa parte do mundo grego não adotou a escravidão (ou não o fez totalmente), afirmando
que as primeiras sociedades genuínas de escravos na história estavam “circundadas por (ou
inseridas em) sociedades que continuavam a basear-se em outras formas de trabalho
dependente.”522 Mesmo observando estes casos de ausência ou de formas alternativas de
servidão, Finley encontrava o elemento central para o estabelecimento da unidade e
singularidade do mundo antigo clássico, a escravidão como bem móvel ou melhor o escravo-
propriedade, predominante no mundo greco-romano clássico. Enquadrava-se, assim, a
escravidão, como forma econômica dominante, com a organização política típica do mundo
antigo clássico.
Este modelo, contudo, leva-nos a alguns questionamentos quanto ao acento dado ao
papel das lutas camponesas arcaicas. Finley lembra-nos, no artigo Entre a escravidão e a
liberdade, que os escravos por dívidas e os hilotas lutavam, quando o faziam, para mudar de
uma categoria para outra e também para abolir este tipo particular de servidão, mas não todas
as formas de escravidão523 (o grifo é nosso). Finley avança na análise destes conflitos em
relação a Weber, que também os considera como conflito de classes, mas de caráter irracional
e intermitente, enquanto para Finley, tais conflitos traziam consigo um programa
“revolucionário permanente”. A análise feita aqui por Finley será posteriormente abandonada
em favor de uma postura que associa o disembeddedness com o mundo moderno, traduzido
por uma ação de classe atrelado à classe operária e a uma ideologia de uma classe
trabalhadora moderna. Em todos os seus escritos sobre escravidão, Finley ressalta a ausência
de qualquer ideologia positiva do trabalho, de um conceito de trabalho como uma “função
social geral”. Mesmo que a habilidade profissional fosse honrada, como os escritores antigos
o fizeram, nunca o trabalho foi avaliado positivamente enquanto tal. Não há um programa
trabalhista dos homens livres ou de escravos. E estes nunca se uniram em torno de uma causa
comum. Estes são elementos fundamentais para inviabilizar qualquer possibilidade de
disembeddedness na Grécia antiga. Entretanto, a partir da análise de Finley parece-nos que
estes camponeses, se, por um lado, não empunharam bandeiras da classe trabalhadora, por
522 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 93. 523 FINLEY, M. Entre a escravidão e a liberdade. In: Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:
Martins Fontes, 1989, p. 126.
233
outro, vislumbraram vantagens sociais e econômicas, ao reivindicar o fim da escravidão por
dívidas, um lote de terra e privilégios advindos da condição de cidadania. Eis um elemento
contraditório em programa geral de associação de embeddedness com classe e
disembeddedness com status.
Abandonando posteriormente qualquer reflexão sobre a natureza de uma “luta de
classes” em algum período da antiguidade, mas partindo dela – uma influência marxista-
Finley preferiu realçar o papel destes camponeses na consolidação de uma sociedade
democrática e na viabilização da escravidão.
...a escravidão como a forma de trabalho para outrem é uma idéia radicalmente nova. Creio que essa decisão foi imposta, não pelos que precisavam de mão-de-obra, mas por aqueles atenienses que poderiam tê-la fornecido.524
Esta luta do campesinato, resultando em uma liberdade pessoal que lhe rendeu a
cidadania, o direito de pertencer à comunidade, à polis, foi algo historicamente novo,
conduzindo a outra inovação: a escravidão. Por isso, a utilização maciça da mão-de-obra
escrava, como bem móvel, não gerou nenhum conflito na sociedade grega. Não criou, por
exemplo, o conflito ou a concorrência entre o homem livre e o escravo, que Meyer tanto
propalava. Os trabalhadores livres não tinham nenhuma especialização nos ramos do trabalho.
Faziam as mesmas atividades que os escravos. Finley chegou a admitir posteriormente que
havia uma simbiose entre o trabalho livre e o escravo em todos os ramos.525 Liberdade
significava não trabalhar para outrem e ter acesso a um lote de terra. O avanço, lado a lado, da
liberdade e da escravidão é uma característica da história grega.526 Esta percepção das
conseqüências dos conflitos sociais arcaicos, Weber não explorou. Weber esteve mais atento
para um avanço político, no Ocidente, dos homens capazes de se armar, restringindo o poder
real, e possibilitando uma distribuição mais eqüitativa do poder. Este desenvolvimento
histórico é fundamental para o nascimento da pólis democrática. Finley, por outro lado,
afirma que, no Oriente, em nenhum momento uma classe inteira foi escravizada por dívida,
realçando sua pouca importância, e aponta a inexistência da luta das várias categorias de
escravos “nacionais” pela liberdade, obstaculizando qualquer desenvolvimento da escravidão,
524 FINLEY, M. Escravidão antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991, p. 91. 525 FINLEY, M. The study of the ancient economy. Further thoughts. Opus, III, 1984. p. 7. 526 FINLEY, M. A civilização grega era baseada no trabalho escravo? In: Economia e sociedade na Grécia
Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 122.
234
como bem pessoal, como uma instituição essencial. A conseqüência disto: a definição de
propriedade no Oriente não assume o mesmo papel que no Ocidente. Concomitantemente, a
liberdade não se constitui em uma categoria útil, “tornando sem sentido perguntar onde se
traça a linha divisória entre o livre e o não livre.”527 Finley, assim como Weber, comparava o
Ocidente e o Oriente, para reafirmar seus modelos de constituição da pólis. Nos dois modelos
há uma procura de reafirmação da “liberdade” ocidental em relação ao Oriente, mas, enquanto
para Weber, esta liberdade fundamenta-se em um desenvolvimento histórico, no qual já se
observa os germes de uma racionalidade própria do Ocidente, em Finley, a luta de toda uma
“classe”, e sua vitória, com a posterior introdução da escravidão estrangeira, abrirá o caminho
para uma sociedade no qual o sentido de liberdade será fundamental enquanto alicerce
cultural e ideológico, tendo a escravidão como sua característica primordial.
Outro tema controverso entre Weber e Finley é o rendimento qualitativo da produção
escravista. Para Weber, a escravidão é um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo
porque limita o livre recrutamento dos trabalhadores, não selecionando os trabalhadores de
acordo com o seu máximo rendimento técnico e impedindo a racionalização formal da gestão
econômica. Isto tudo resulta em um pouco interesse do escravo no processo produtivo e em
suas inovações. Finley contra argumenta que apesar da ausência de dados quantitativos, os
senhores de escravos estavam extremamente satisfeitos com o trabalho de seus escravos e
com as riquezas que eles geravam. Finley adota uma postura anti-modernista ao não aceitar o
julgamento do progresso técnico no mundo antigo a partir de uma mentalidade moderna. Se a
mentalidade moderna for tomada como referencial, pode-se afirmar que o mundo antigo
jamais atingiu uma produtividade crescente e um racionalismo econômico. Contudo, Finley
não aceita estes valores – eficácia, produtividade crescente, racionalismo econômico e
crescimento - como fundamentais para o mundo antigo. Esta produtividade não foi atingida e
nem procurada em virtude de um divórcio entre ciência e prática no mundo antigo. “O
objetivo da ciência antiga era saber, não fazer. Entender a natureza, não domesticá-la.”528 O
problema não era de caráter técnico, mas de estilo cognitivo e de organização social,
corrobora Schiavone. Havia um bloqueio entre conhecimento e transformação da natureza. O
pensamento antigo não conseguia reconhecer o “mundo sensível como território da razão, a
ser dominado e controlado por meio da verificação experimental, sem deixar que se perdesse
527 id. Entre a escravidão e a liberdade. In: ____________. Economia e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo:
Martins Fontes, 1989. p. 140. 528 id. Inovação técnica e progresso econômico no mundo antigo. In: ____________. Economia e sociedade na
Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 195.
235
na transcendência da metafísica.”529 É, portanto, a ausência do vínculo entre inteligência e
produção transformadora que explica a ausência do maquinismo no mundo antigo e não o
desinteresse do escravo na produção. Se os argumentos que Finley apresenta para contrapor-
se a Weber e aos modernistas são convincentes quanto à utilização de uma racionalidade
moderna, são por outro lado insuficientes na explicação da racionalidade específica dos
antigos. Cartlegde, também se contrapondo à utilização de uma racionalidade econômica para
o mundo antigo, destaca que a racionalidade econômica antiga significa o oposto da moderna,
pois a maioria dos fazendeiros camponeses buscava estratégias de risco mínimo em um
processo conhecido como “amortização de risco”. Ao contrário da maximização de ganho, o
objetivo da maioria dos camponeses era satisfação: o suficiente era tão bom quanto um
banquete, e muito mais seguro nas circunstâncias do que ir (literalmente) a fundo nos
investimentos. Cartledge, contudo, contrapõe os objetivos da elite rica aos do campesinato. Os
objetivos desta elite seguem um ideal rentista, dependente dos rendimentos dos trabalhos de
outros para sua realização.530 Aqui ele está muito próximo de Weber.
Escapou também à investigação finleyniana o paradoxo do trabalho escravo em
relação aos resultados de seu trabalho. Se por um lado, sua existência assegurava a
manutenção de uma economia orientada para as trocas, para a circulação mercantil, para uma
certa regularidade do consumo - em menor escala na Grécia do que em Roma – por outro
lado, a duração e o funcionamento da escravidão levaram o sistema à estagnação – mais em
Roma que na Grécia -, impedindo que seguisse caminhos diferentes. Finley não acentuou o
primeiro aspecto, e abordou o segundo por outro ângulo. Seu olhar funcionalista sobre a
escravidão, procurou essencialmente, como já afirmamos, localizar a posição do escravo
dentro da estrutura social.
A exploração da terra e a mentalidade “econômica” dos proprietários de terras
estiveram também, desde cedo, no centro das preocupações de Finley, que, além de
investigados em A Economia Antiga, foram analisados no seu primeiro livro Studies in
Land and Credit in ancient Athens, 500-200 BC e no artigo Land, debt and the man of
property in classical Athens (Terra, débito e o homem de posses na Atenas Clássica). Mais
uma vez, Finley voltava sua atenção para o monopólio da propriedade da terra pelos cidadãos.
A defesa de uma mentalidade econômica “primitiva” é feita pela forma como a terra, principal
forma de riqueza da Antiguidade, é explorada. Em seu artigo Land, debt and the man of
529 SHIAVONE, A. op. cit., p. 219. 530 CARTLEDGE, P. The political economy of Geek slavery. In: CARTLEDGE, P; COHEN, E; FOXHALL, L.
Money, Labour and land. London and New York, Routledge, 2002. p. 160-161.
236
property in classical Athens, de caráter fortemente polanyiano, Finley afirma que não havia
um mercado de bens de raiz em Atenas e a terra não era uma mercadoria em nenhum sentido
significativo. Este mercado era dificultado pelo fato dos não cidadãos não poderem comprar
terras, exceto por um decreto especial. Isto levou a uma separação entre a terra e o dinheiro,
pois a primeira não podia servir como garantia de débito para alguém que não pudesse possuir
terras. Assim, os não cidadãos, mesmo com papel proeminente nas diversas atividades
econômicas, tinham suas atividades financeiras separadas da base econômica da sociedade
grega.531
A maioria dos empréstimos, tendo como garantia os bens de raiz, não tinha fins
produtivos, mas sim consumistas (eranos), era feito para cobrir gastos das classes sociais
abastadas – dote de uma filha ou políticos – com juros baixos e com prazo curto. As
transações com juros mais altos estavam destinadas aos empréstimos marítimos, e não
envolviam os bens de raiz.
Próximo a Weber, Finley acreditava que o investimento na terra não era resultado de
uma decisão sistemática e calculada, isto é, de uma racionalidade econômica. Não se fazia
empréstimos para os melhoramentos técnicos com o objetivo de se aumentar a
produtividade.532 Os estudos dos horoi, feitos em Studies in Land and Credit in ancient
Athens, 500-200 BC e no artigo Land, debt and the man of property in classical Athens
sugeriram que a economia ateniense não podia ser chamada de economia de mercado. Não
havia um mercado de propriedade imobiliária e nem uma profissão de agente imobiliário. A
escolha da terra como principal forma de riqueza era de cunho psicológico, social e político.
Em A Economia Antiga, Finley afirmou que a compra de terras na Antiguidade fazia-se ao
acaso: terras abandonadas, vendida a baixo preço por causa de negligência, devastação de
guerra, ou má sorte eram alguns motivos. O confisco de guerras são motivos mais comuns,
particularmente o aguer publicus romano. Tais transações tinham interesses aquisitivos, mas
o que se entende modernamente por investimento, como uma maximização de rendimentos,
estava ausente no pensamento “econômico” dos antigos. Era lucrativo, mas estavam situados
numa base de natureza e moralidade. Portanto, a mentalidade dos antigos era aquisitiva, mas
não produtiva.533
531 FINLEY, M. Terra, débito e o homem de posses na Atenas clássica. In: ___________. Economia e
sociedade na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 77. 532 Cartledge, por outro lado, acredita que a racionalidade econômica dos gregos na agricultura realizava-se por
meio das práticas utilizadas, que estavam bem adaptadas ao clima, ao solo, à oferta de trabalho e a outras variáveis ambientais e sociais.
533 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 166-168.
237
Em Land, debt and the man of property in classical Athens, Finley lembra que não
havia em Atenas nenhuma relação financeira contínua ou racional: o crédito era concedido
pela reputação e não por uma análise econômica; não havia nenhuma mecânica para se
concentrar grandes quantidades de dinheiro em mãos privadas. A escrita contábil era estranha
à economia grega. As transações verbais eram comuns. O banqueiro era um pouco mais que
um cambista. Boa parte da moeda nunca passou pelos bancos, estando a maioria guardado em
casa ou entesourada. O Estado guardava seu dinheiro em caixas-fortes. Finalmente, a garantia
era substitutiva e não colateral. A garantia substitutiva é uma indenização, uma substituição.
“X deve alguma coisa a Y, um objeto, dinheiro, um compromisso, que não paga, e Y aceita
um substituto – terra por dinheiro – com plena satisfação da obrigação de X para com ele.”534
O prestamista ateniense, comum, ocasional, não profissional, visava os benefícios da amizade
ou juros no final de um ano. Preferia não aceitar a garantia como um substituto por causa dos
transtornos inerentes à execução da hipoteca ou mesmo ter que assumir os transtornos de uma
propriedade que não lhe fosse útil ou que não desejasse. Por outro lado, a garantia colateral
envolve um pensamento econômico de uma ordem completamente diferente. A garantia é de
pagamento e não um substituto. Entre a substituição e a colateralidade existe uma profunda
transformação econômica: a terra é vista como dinheiro. A garantia da terra é a garantia de ter
o dinheiro emprestado de volta. O credor ateniense não via nada além da terra.
Studies in Land and Credit in ancient Athens, 500-200 BC e Land, debt and the
man of property in classical Athens são trabalhos da juventude finleyniana que demonstram a
proximidade com os primitivistas. Marcam o começo de sua fase polanyiana e reafirmam o
caráter não desenvolvido dos instrumentos atenienses comerciais de mercado em relação ao
capitalismo moderno. Por outro lado, são enfatizados os traços atenienses comuns aos
sistemas sócio-econômicos primitivos: a persistência da mentalidade, valores e associações
aristocráticos. Finley mostrava que Atenas não era moderna em relação ao homem econômico
racional moderno. Em relação a estes temas, destes trabalhos até A Economia Antiga, não
houve grandes transformações. Naqueles trabalhos iniciais, contudo, não se vê ainda o mundo
greco-romano como um objeto unitário de análise. Isto só começaria a acontecer no artigo
Technical innovation and economic progress in the ancient world, publicado em 1968, no
qual Finley seguiu os passos de Land, debt and the man of property in classical Athens ao
reafirmar as instituições primitivas comerciais de crédito e industriais, além da mentalidade
534 FINLEY, M. Terra, débito e o homem de posses na Atenas clássica. In: ___________. Economia e
sociedade na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 78.
238
não produtiva do homem de propriedade. Já nesta época, diferente dos primitivistas alemães,
percebe-se que a unidade do mundo antigo não tinha o oikos como a instituição básica do
mundo greco-romano. Segundo Nafissi, Finley, neste texto, procura demonstrar que a unidade
do mundo antigo era assegurada com referência a uma multiplicidade de fatores, estendendo-
se desde o primitivismo tecnológico até a persistência de valores aristocráticos.”535 Essa
observação demonstra que desde o início de seus trabalhos, Finley já conseguira ampliar os
temas centrais dos autores da tradição que estamos investigando.
Se os trabalhos sobre a mentalidade dos proprietários de terras e a exploração da terra
demonstraram fortes afinidades com Polanyi, a reflexão finleyniana sobre a cidade e o campo,
por outro lado, apresenta as mais fortes influências weberianas. Este foi o tema que levou
Finley a defender a idéia de “cidade antiga” como um tipo, amparado no modelo de cidade de
consumo de Weber. O tema foi inicialmente desenvolvido em A Economia Antiga e
posteriormente em um artigo, intitulado The ancient city: from Fustel de Coulanges to Max
Weber and beyond (A cidade antiga: de Fustel de Coulanges a Max Weber e além), de 1977.
Em A Economia Antiga, Finley afirmou que a cidade, na antiguidade clássica, incluía o
interior rural e um centro urbano. A sua defesa da cidade antiga como centro de consumo está
amparada na idéia de que a cidade antiga não produz quase nada para o campo, pois vive as
custas do campo. Sua preocupação é saber como as cidades pagavam aquilo que iam buscar
no campo. São apresentados alguns modelos: a cidade parasita pagava pela mera restituição
de parte ou de todas as rendas e impostos anteriormente extraídos do campo. A relação
simbiótica seria representada por igual pagamento em produção urbana e serviços.536 Muito
próximo de Hasebroek, Finley reafirma o caráter autárquico da cidade antiga como um valor
dominante. Conseqüentemente, defende a idéia de que as exportações, apesar de existirem,
não superavam as importações, absolutamente essenciais para uma cidade como Atenas, que
não as pagava por meio de sua produção interna, mais especificamente, por meio de suas
manufaturas. Partindo destes pressupostos, Finley desfere um ataque violento aos modernistas
com os seguintes argumentos: a) a cidade antiga não deixava o abastecimento de alimentos ao
acaso ou ao livre jogo dos mercados; b) a maioria das cidades antigas era composta por
agricultores e o excedente agrícola pagava os metais importados, os escravos e os luxos. As
cidades comerciais eram as exceções (Finley não explica como estas cidades pagavam as
importações) e Atenas é considerada uma cidade mista; c) combate violento às idéias
modernistas de equilíbrio entre exportações e importações em Atenas, defendidas por 535 NAFISSI, M. op. cit., p. 217. 536 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 171.
239
Gomme. As exportações de produtos agrícolas e de produtos manufaturados são vistas como
insignificantes, contudo, Finley admite a existência de exportações de prata e “exportações
invisíveis” - isto é, o intenso movimento de “estrangeiros” e gregos no Pireus, uma das mais
importantes contribuições para a balança de pagamentos de Atenas. Portanto, a capacidade
das antigas cidades pagarem a sua alimentação, metais e outros artigos derivava da produção
agrícola, da presença ou ausência de recursos naturais, das exportações invisíveis e do
rendimento das propriedades, impostos e doações de clientes. A contribuição das manufaturas
é desprezível. Assim, o obstáculo para a produção extensiva para a exportação era a
prevalência geral da auto-suficiência doméstica para os produtos de primeira necessidade. Eis
aí o contraste entre o antigo e o medieval e o que, segundo Finley, Weber queria dizer quando
caracterizava a cidade antiga como centro de consumo.
Posteriormente, Finley respondeu a seus críticos e reafirmou seus argumentos
expostos em A Economia Antiga. As críticas que lhe foram dirigidas foram respondidas da
seguinte forma: a) a tentativa de imposição de um modelo ateniense para todo o mundo grego,
foi respondida com o argumento de que não havia exemplos significativos de cidades que
pagaram por importações por meio de produção; b) a ênfase na análise da troca em detrimento
da produção, encontrou sua resposta nos seguintes argumentos: a manufatura no mundo
antigo, mesmo em seu momento culminante, foi incapaz de gerar a riqueza necessária, capital,
e as fontes políticas de enriquecimento, saque e conquista, foram os fatores indispensáveis
para fomentar o crescimento.537
Por detrás desta preocupação está o interesse em demonstrar que não há uma divisão
econômica entre a cidade e o campo. Finley afirmou posteriormente que as preocupações de
Adam Smith e de Marx e Engels em relação a esta divisão de interesses econômicos nunca foi
motivo de qualquer formulação teórica pelos antigos, mesmo que eles tivessem ciência de um
conflito de interesses.538 Este argumento anti-modernista também é apresentado no seu
principal artigo sobre a cidade antiga, A cidade antiga: de Fustel de Coulanges a Max Weber
e além, considerado por ele mesmo, como o seu artigo mais “abertamente weberiano.” 539
Neste texto, Finley retoma as influências precursoras de Bücher e Sombart sobre Weber nos
seus estudos sobre a cidade. Finley afirma que as preocupações de Sombart eram com o
nascimento do capitalismo moderno, e, portanto, com o nascimento da cidade na Idade Média,
enquanto, Bücher é apresentado como o formulador de uma teoria em que os habitantes da
537 FINLEY, M. The ancient economy and its critics. Mimeógrafo. S/d. p. 6. 538 FINLEY, M.The study of ancient economy. Further thoughts Opus. III, 1984, p. 9. 539 FINLEY, M. História Antiga. Testemunhos e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 116.
240
cidade greco-romana eram os exploradores da terra, mesmo que deixassem o trabalho ser
explorado por escravos. Este fenômeno era totalmente diferente das cidades medievais, no
qual cidade e campo tinham se separado em ralação à atividade econômica. Daí a primeira
formulação sobre a cidade antiga como um mero centro de consumo. A noção foi apurada por
Sombart, que definiu a cidade de consumo como aquela que paga pela sua manutenção não
com seus próprios produtos, mas por meio de impostos e rendas, sem ter que resgatar valores
de restituição.540
Estes autores são utilizados para ajudar a entender a análise de Weber sobre a cidade
antiga, já que segundo Finley, Weber nunca publicou um estudo da cidade antiga, e suas
reflexões sobre o tema devem ser cotejadas de sua obra total. As obras citadas por Finley são
as obras que investigamos no capítulo sobre Weber: The Agrarian Sociology of Ancient
Civilizations e o capítulo intitulado tipologia das cidades, da obra Economia e sociedade.
Finley sublinha a definição econômica de Weber sobre cidade: o mercado é o local das
satisfações econômicas da população e quando as receitas dos habitantes originam-se de
algum tipo de renda, a cidade é uma cidade consumidora, como na Antiguidade.541 Em
seguida, Finley afirma que a definição de cidade em Economia e sociedade é complementada
pela idéia de que a cidade é também uma associação reguladora da política econômica no
interesse da associação e uma matriz de medidas características. Finley ressalta que a política
está agora no centro das reflexões de Weber, diferente de The Agrarian Sociology of
Ancient Civilizations, pois é parte de uma seção sobre dominação, burocracia e carisma.
Finley acredita que esta análise sobre a cidade, em um trabalho inacabado, tinha como tema
fundamental a racionalidade e a dominação, no qual ele selava a conexão entre capitalismo,
industrialização e autopreservação.542
Em nossa opinião, Finley captou bem a idéia geral de que a análise de Weber sobre
a cidade deveria ser vista em uma esfera comparativa com a realidade medieval e moderna,
além de sublinhar o aspecto político de tal análise, demonstrando que ela estava contida em
uma análise mais geral sobre dominação. Apesar disso, entendemos que esta mudança para o
político não foi tão abrupta, e como já afirmamos, no seu primeiro trabalho, Weber mesmo
trabalhando com eixos comparativos diferentes, coloca a esfera política como fundamental
para caracterizar o desenvolvimento da pólis e seus diversos tipos de dominação. Por outro
540 FINLEY, M. A cidade antiga: de Fustel de Coulanges a Max Weber e além. In: ___________. Economia e
sociedade na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 14. 541 ibid., p. 15-16. 542 ibid., p. 16-17
241
lado, nos parece que Finley em sua defesa da cidade consumidora procura ressaltar os
aspectos primitivistas de Weber. Caminhando para sua conclusão em A cidade antiga: de
Fustel de Coulanges a Max Weber e além, Finley tece algumas críticas gerais à Weber: pouco
conhecimento sobre o mundo grego, apontamento das eqüites como uma classe capitalista e
utilização de termos como feudalismo e capitalismo no mundo antigo; contudo sublinha a
importância das questões levantadas por Weber como ainda pertinentes para o momento: o
camponês como um elemento integrante da cidade antiga, mas não da medieval, ausência da
associação na cidade antiga e sua presença na medieval. Estes elementos que Finley considera
ainda pertinentes são questões que reforçam o primitivismo weberiano. Finley deixava de lado
as influências modernistas de Meyer sobre Weber e sublinhava os aspectos primitivistas de
Weber. Obviamente acentuando a comparação com o medievo e o mundo moderno.
Finley, entretanto, não termina a sua análise de Weber sem mencionar aquele que foi
segundo ele, o seu fantasma: Karl Marx. Apesar de apontar as divergências políticas e
analíticas, Finley aponta algumas zonas de confluência: a análise de Marx sobre as várias
formas de produção foi vista como extremamente interessante por Weber para analisar a
sociedade industrial moderna, o capitalismo como centro de interesse comum e uma grande
área de proximidade em relação às sociedades pré-industriais e a cidade antiga. Mas o que nos
chama a atenção é esta citação, também apontada como área de proximidade entre os autores:
Em suas anotações de 1857 Marx escreveu sobre a influência civilizadora do comércio externo”, embora a princípio só um “comércio passivo”, em uma passagem que não pode deixar de lembrarmos nitidamente da tese de Weber de que a mudança antiga do comércio passivo para o ativo foi o primeiro passo em direção ao abismo entre a cidade oriental e a ocidental. Para Marx (e Engels) nunca houve dúvida de que o capital comercial, as cidade comerciais e mesmo os povos comerciais (fenícios e cartagineses) eram fenômenos antigos muito disseminados, e que em alguns casos, na antiga Corinto, por exemplo, o comércio levou a uma manufatura desenvolvida.543
Finley tomava Marx como um parâmetro importante para sua concepção de História,
particularmente para combater a “História tradicional”, mas era extremamente crítico à
utilização de conceitos marxistas à economia antiga, em virtude, segundo ele, de sua
proximidade com a abordagem modernista. Esta posição pode até se justificar em relação
àqueles que interpretaram Marx, mas não em relação aos escritos de Marx, pois este admitia
543 ibid., p. 19
242
que a pertinência ou não de usar termos como crédito, moeda, etc. para a Antiguidade
deveriam ser observados caso a caso. O conceito de modo de produção implica construir
modelos para cada tipo específico de sociedade, e não, projetar em direção ao passado o
modelo construído para o capitalismo contemporâneo. O modelo construído acerca da
economia antiga nos Grundisse, por exemplo, nada tem de modernista.
O tema final abordado por Finley em A Economia Antiga, O Estado e a economia,
remete a questões levantadas, no seio da tradição que estamos investigando, aos trabalhos de
Hasebroek, mas, também, encontra-se presente nas discussões entre intelectuais de esquerda e
de direita na época em que o livro foi escrito. Investigar até que ponto o Estado interfere na
vida econômica de uma nação ou os objetivos econômicos das ações governamentais são
questões que transcendem o mundo antigo. Com certeza são questões que nascem com as
transformações do mundo moderno, mas também estão relacionadas com as repercussões dos
escritos de Marx sobre o mundo contemporâneo. Coerente com a sua proposta de não isolar a
esfera política das outras esferas da sociedade, Finley analisa “a política comercial” dos
estados gregos, o imperialismo ateniense e a colonização em estreita relação com os diversos
grupos sociais. Finley procura demonstrar que apesar dos Estados clássicos gregos e romanos
interferirem em diversos aspectos da vida privada de seus cidadãos, o Estado, entretanto, não
tinha uma política econômica cujo objetivo fosse beneficiar os interesses dos comerciantes e
nem utilizava os impostos para alavancar a economia do Estado.
Não interferir na economia nada tem haver com o laissez faire, porque para Finley o
conceito de economia está ausente do mundo antigo, a despeito de haver suficiente
conhecimento empírico. Daí a dificuldade de distinguir uma política econômica e as
conseqüências econômicas de decisões não econômicas, em uma sociedade na qual os
“elementos econômicos estavam inextricavelmente ligados a fatores políticos e religiosos.”544
Não sendo os interesses do comércio e de uma classe mercantil a prioridade do Estado, Finley
afirma que o conceito chave era a satisfação das necessidades materiais, que poderiam até
beneficiar a classe mercantil, mas que não tinha isto como fim. Os interesses que interferiam e
perturbavam a satisfação das necessidades materiais eram políticos e militares. Este conceito
foi interpretado por alguns analistas como uma forte influência do substantivismo polanyiano
sobre Finley.545 Se o termo satisfação das necessidades materiais é próximo da definição
substantivista de economia de Polanyi, acreditamos, por outro lado, que Finley respondia aqui
544 FINLEY, M. A Economia Antiga. Lisboa: Porto, 1980. p. 211. 545 Ver HINDESS, B. Extended review. FINLEY, M. Democracy Ancient and modern. Politics in world ancient.
Sociological Review. n. 23, 1975.
243
a uma questão levantada na II conferência de História econômica, realizado em 1962, no qual
discutiu o tema Trade and politicis in the ancient world, título do livro de Hasebroek, no qual
ele considerava relevante a distinção feita por Hasebroek entre interesses de oferta de comida
ou de importação e interesses comerciais.546 Finley, em A Economia Antiga começava a
reinterpretar temas caros de Hasebroek e Weber à luz da perspectiva polanyiana e da História
social. O significado da frase satisfação das necessidades materiais está mais próximo dos
interesses dominantes de oferta de comida e de importação, aqui com uma roupagem
substantivista. Assim, Finley fundia questões do primitivismo com o substantivismo.
O imperialismo ateniense é um elemento fundamental para assegurar o abastecimento
de alimentos e madeira. A colonização era uma transferência de cidadãos para terras
estrangeiras. É, portanto, uma evasão, não uma solução, das necessidades dos pobres. A
colonização não modificou as finanças públicas do Estado ateniense. Duas das formas mais
importantes e lucrativas da exploração colonial moderna estão excluídas da colonização
ateniense: a exploração da mão de obra colonial com salários abaixo dos do mercado
ateniense e a aquisição, compulsória, se necessária, de matérias primas básicas a preços
substancialmente abaixo dos preços do mercado da metrópole.
O direito de cunhar moedas era um monopólio do Estado. O decreto ateniense do
século V, que proibiu a todos os Estados gregos de cunharem moedas de prata, exigindo que
só a moeda ateniense fosse válida em todo o território do Império ateniense é antes de tudo
uma medida política. No artigo de 1962, Finley examinou atentamente as origens e as
conseqüências deste decreto, duvidando da possibilidade do decreto ter sido adotado para
aumentar os lucros de um “punhado de trocadores de dinheiro.”547 Finley chega a minimizar
as conseqüências deste decreto afirmando ser ele motivado por orgulho e patriotismo.Em
seguida, sublinha que o comércio estrangeiro não foi o único estímulo de circulação de
moedas. O tributo devido pelas cidades-Estados, sob o domínio de Atenas, quando pago em
dinheiro, era feito com moedas ateniense. Estes fatores explicam porque as fábricas de
moedas dos estados submetidos foram fechadas. Retomando Hasebroek, Finley procura
demonstrar que até aquele momento, não havia nada de novo em relação à economia grega.
Apesar de Hasebroek, ter tido uma visão unilateral e tentar eliminar o comércio, os esforços
modernizantes para demonstrar a extensão e a quantidade do comércio como argumentos de
uma política comercial por parte do Estado continuavam infundados, pois se os conceitos de
546 FINLEY, M. (org.) Classical Greece. In: Second International Conference of Economic History. Trade
and Politics in the Ancient World, vol. I, New York: Arno Press 1979. 547 ibid., p. 22
244
mercantilismo, curvas de preço, mercadorias de prata, imperialismo comercial, salário real
taxas de lucro podiam ser úteis no emprego da economia antiga, o seu significado deveria,
primeiro, ser estabelecido dentro da estrutura da pólis. Caso isto não fosse feito, aqueles
conceitos eram meras expressões.548
Em artigo escrito em 1978, The fifth-Century Athenian Empire: A balance sheet. (O
império ateniense: um balanço) Finley concluía o artigo perguntando-se qual teria sido as
vantagens econômicas diretas e indiretas do Império aos cidadãos e mesmo aos não cidadãos.
Os cidadãos obtinham vantagens econômicas diretas por meio de sua participação na armada,
ou através da aquisição de terras nos territórios dos Estados-súditos. Milhares de atenienses
pobres ganhavam salários remando na frota, além dos trabalhos nos estaleiros. Além disso,
havia o pagamento por cargos oficiais, do qual não se tem notícia em outros Estados gregos.
Indiretamente, a fartura e a variedade de mercadorias disponíveis em Atenas, beneficiava
exportadores, artesãos e vendedores.549 E como os atenienses ricos, os kaloi kagathoi,eram
beneficiados com o Império? Finley em A Economia Antiga, afirma que a forma pela qual o
Estado democrático procurou ultrapassar as desigualdades sociais foi por meio da liturgia
(leiturgia), no qual os ricos arcavam com os gastos dos serviços públicos em troca de honras,
amparado no espírito competitivo entre os aristocratas, o agon. Esta foi uma forma do Estado
não burocrático não precisar cobrar impostos diretos dos cidadãos. Em O império ateniense:
um balanço, Finley ressalta que não é possível especificar como as classes superiores
poderiam ter sido as principais beneficiárias no Império, além da aquisição de propriedades
em territórios súditos. Para o autor, o Império beneficiou diretamente a metade mais pobre da
população ateniense, a despeito das enormes perdas de homens nas guerras. Esta constatação
levou Finley a supor que alguns súditos de Atenas preferiram a democracia respaldada pelo
poder ateniense à oligarquia em um Estado autônomo. Apesar de nunca ter chegado a nós a
forma do sistema de taxação nos Estados súditos, Finley infere que se o sistema de taxação
grego prevalecia, então quem arcava com tributo nos Estados súditos era o rico, não o homem
do povo. O sistema da liturgia era transposto para os Estados súditos. Portanto, também os
custos materiais suportados pelos súditos eram desiguais.550
Esta conclusão é um elemento importante para entendermos o paradoxo da reflexão
finleyniana sobre o primitivismo ateniense. Se ao longo de todos os seus trabalhos sobre a
548 ibid., p. 32. 549 FINLEY, M. O império ateniense: um balanço. In: ______________. Economia e sociedade na Grécia
antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 56-61. 550 ibid., p. 63-64.
245
Economia antiga, Finley reafirmou o papel primitivo da economia ateniense em relação aos
cânones neoclássicos, reafirmando a proposta polanyiana, por outro lado, o autor iria
demonstrar em diversos trabalhos posteriores que a democracia ateniense apresentava um
caráter “moderno” em relação à democracia representativa. Este artigo sobre o imperialismo
ateniense esboça uma defesa da democracia ateniense. Realça o papel do Estado grego
democrático em beneficiar materialmente os setores mais pobres da população em detrimento
dos aristocratas, que apesar de compartilhar de benefícios políticos e materiais do regime
democrático - os favoráveis ao regime assumirem a direção política do sistema democrático -,
tiveram que arcar com a maior parte da tributação direta. Enquanto o “primitivismo”
econômico grego era usado para combater os mercadistas de plantão, a democracia direta era
usada contra os defensores da teoria elitista, que defendiam a participação dos cidadãos na
política moderna somente nos períodos eleitorais. Finley assumia assim, tanto nos argumentos
sobre a economia antiga, quanto em seus trabalhos sobre a democracia grega, uma postura
política polêmica contra os defensores de uma ideologia, considerada por ele, conservadora.
Finley conciliava o rigor acadêmico com a polêmica política, procurando demonstrar que a
democracia grega direta era bem diferente da democracia representativa moderna, se
posicionando francamente favorável à democracia antiga.
Em relação a Weber, Finley também inverteu seu raciocínio. Enquanto para Weber a
pólis é moderna em relação ao Oriente antigo, mas primitiva em relação ao Ocidente
moderno, para Finley a pólis já não é mais primitiva em relação ao Ocidente moderno. Em
Democracy Ancient and modern (democracia antiga e moderna), Finley combate
ferozmente a corrente elitista por meio dos exemplos da participação do demos ateniense nas
decisões políticas. A contradição weberiana acerca do caráter ora primitivo, ora moderno da
pólis é superado por Finley. O predomínio da “escravidão mercadoria” significou o
fortalecimento da cidadania, viabilizou a maior participação nas atividades políticas de uma
camada maior da população. Portanto, seu estudo sobre a escravidão no período clássico
trouxe consigo uma reflexão sobre a liberdade, ou melhor, graus de liberdade, elemento
fundamental na caracterização da particularidade ocidental em relação ao Oriente.
Em relação à economia antiga, Finley conseguiu, a luz de um material empírico
abundante, demonstrar a impossibilidade de se manter os elementos formalistas na análise da
economia antiga. Neste sentido, deu prosseguimento ao projeto polanyiano de remover as
bases neoclássicas da reflexão sobre a economia antiga. Com isso, ele também se mantinha
coerente com sua posição política de combater os modernistas defensores de um tipo de
246
mercado em todos os períodos da história, mas também acabou tendo que combater os
marxistas, pois os via no debate com posições muito próximas dos modernistas. O oikos de
Bücher já havia sido totalmente superado como centro das argumentações dos membros da
tradição primitivista substantivista, contudo, Finley em O mundo de Ulisses retoma o caráter
predominante do oikos no período pré-arcaico, tenso os poemas homéricos como fonte
privilegiada. O domínio do oikos era acompanhado por uma reciprocidade hierárquica entre
os aristocratas, no qual o dom e contra-dom tinha papel proeminente. Finley neste trabalho
magistral coadunava as idéias de Bücher com Malinovsky, Mauss e Polanyi. É exatamente a
passagem da reciprocidade hierárquica deste período para uma reciprocidade igualitária, como
muito bem definiu Morris, que levou Finley a se voltar para o papel da cidadania como
elemento fundamental da controvérsia do oikos. Finley dedicou-se a um programa de pesquisa
que tinha como objetivo investigar os “graus de liberdade” dos diversos grupos sociais. Graus
de liberdade devem ser entendidos aqui como sinônimo de maior ou menor participação
política, e conseqüentemente, privilégios econômicos. É esta ligação entre cidadania e
participação com a escravidão e ausência de participação e direitos, envolvidos em um ethos
aristocrático que sedimentou o embedded finleyniano. Diferentemente de Polanyi, que
sustentou seus argumentos na existência de mercados locais, comércio administrado e outras
estruturas gerais que podiam ser pensadas para outras sociedades pré-capitalistas, mas que não
sublinhavam o papel dos grupos sociais na estrutura global de sua análise, Finley procurou
realçar o embedded ateniense por meio dos valores dominantes no seio dos grupos sociais.
Retomando uma análise voltada para os valores, de cunho weberiano, Finley procurava
“humanizar” um pouco mais o substantivismo polanyiano. O problema é que a análise
finleyniana, em consonância com a polanyiana, parece obscurecer as possibilidades de
mudança da economia e sociedade relacionados com o crescimento das trocas e comércio,
constituindo estes elementos uma ameaça as normas sociais. O bloqueio deste
desenvolvimento econômico por valores predominantes pode ter incitado tensões entre os
diferentes grupos de status. Estas questões foram levantadas por Humphreys em uma análise,
que apesar de simpática a Finley, propõe novos questionamentos para a relação entre
economia e sociedade grega.551 Tudo isso remete para uma questão, já discutida aqui, da
relação entre embedded e interesses políticos com sociedades pré-capitalistas e disembedded e
predomínio da esfera econômica com sociedades capitalistas. Uma sociedade inteiramente
551 HUMPHREYS, S. Economy and society in classical Athens. In: ___________. Anthropology and the
Greeks. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1978, p. 136-157.
247
dominada pelo laissez faire nunca existiu, da mesma forma que por detrás de interesses
políticos podem estar presentes os germes de uma diferenciação econômica.
Concomitantemente, a possibilidade de pensar em modelos para investigação da
economia antiga, mesmo em uma historiografia dominada pelo pós-modernismo, em que pelo
menos, no campo dos estudos da História Antiga, se vê uma retomada dos estudos filológicos
sem uma perspectiva macro histórica, é possível a partir de novas questões. Ultrapassando as
dicotomias destes autores paradigmáticos da tradição primitivista substantivista, John K.
Davies, escreveu um artigo intitulado Ancient economies: models and muddles, no qual
procura caminhos alternativos para responder algumas questões como: casos de padrão de
troca (direto e indireto), grau de intervenção de um regime (pólis ou outro) e interesses que
conduziram a tal intervenção. Davies procura descrever as principais correntes intelectuais,
criticá-las e apresentar nova perspectivas de análise. Mesmo afirmando que os historiadores
não devem isolar-se das tradições, suposições e tendências neoclásscias, o autor acredita que é
possível apresentar um campo unificado para as atividades específicas no seio da tríade
“comércio, comerciantes e cidades”. Para isto o autor apresenta algumas percepções: 1. criar
um mapa de longo alcance do espaço econômico; 2.os movimentos essenciais, a soma da qual
engloba uma economia, não são necessariamente trocas, mas o movimento de dinheiro,
mercadorias e serviços; 3.as trocas de recursos ocorrem dentro ou entre estruturas celulares.
Tais estruturas podem ser pequenas, e as trocas circularem em estruturas restritas, como por
exemplo o oikos de um homem, ou ocorrerem dentro de zonas mais amplas: vila, distrito,
pólis província romana; e atravessar fronteiras celulares; 4. qualquer modelo que possamos
construir para as economias antigas devem ser qualitativos e descritivos e não quantitativos;
5. nenhum modelo para a antiguidade pode ser satisfatório sem admitir, como fluxos que são
em algum sentido comensurável com fluxos monetários, de mercadoria, ou de outro recurso,
tanto devoluções ‘não monetárias’ (tal como reciprocidade negativa) e padrões de troca que
são gerenciados ou são em um sentido polanyiano embedded; 6. o reconhecimento dos papéis
econômicos de cultos e templos como receitas e despesas públicas.552 Estas percepções,
envolvendo a relação entre o household com a pólis, demonstram que, mesmo nos dias atuais,
a construção de modelos, originadas de novas perguntas, críticas aos antigos modelos e novos
testemunhos, ainda é possível e em nossa opinião salutar. O legado de Finley repousa em sua
capacidade de generalizar e ousar, herança oriunda dos primeiros protagonistas da tradição
investigada. Estes autores são paradigmáticos exatamente porque ousaram elaborar modelos 552 Davies, J. K. Ancient economies: models and muddles. In: PARKINS, H; SMITH, C. Trede, traders and
ancient city. Londres: Routledge, 1998. p. 225-256.
248
gerais e teorias para o entendimento da sociedade e economia antigas. Tais teorias foram
motivos de críticas, defesas, ajustes e debates. Mas com certeza, foram elas que propiciaram o
“progresso” da História antiga e não somente o acúmulo de novos testemunhos. Ao final de
seu artigo The ancient economy and its critics, Finley lembrou que um crítico considerou A
Economia Antiga como um evento por ter sido publicado no meio de uma época em que a
História econômica vivia uma crise de teoria. Ainda seguindo Mazza, o crítico citado, Finley
finalizava o artigo com um chamado, que consideramos extremamente relevante para os dias
de hoje: “não é hora de abandonarmos os debates explicativos intermináveis, como no volume
de Gramsci, em favor do que, em outros campos, denominar-se-ia verificação de hipótese por
estudos empíricos?”553
553 FINLEY, M. The ancient economy and its critics. Mimeógrafo. S/d. p. 6
249
6 CONCLUSÃO
No início deste trabalho, afirmamos que o objetivo desta pesquisa era investigar os
desdobramentos da tradição primitivista – substantivista, que, gerada sob o ambiente
intelectual do historismo e formulada sob os cânones da tradição histórica alemã, teve como
primeiro representante o economista Karl Bücher, o qual, influenciado por Johann Karl
Rodbertus, elegeu o oikos como o elemento central do primitivismo econômico antigo, em
uma perspectiva evolucionista. O debate inicial do oikos, originado no seio deste contexto,
trazia consigo os germes da Historiografia moderna: o caráter específico da ciência histórica
em relação às ciências naturais.
O trabalho de Bücher foi motivo de críticas violentas de historiadores alemães, como
Eduard Meyer e Beloch, que não concordaram com o domínio do oikos por um longo período
de tempo, em sociedades e épocas com características muito mais complexas do que aquelas
apresentadas por Bücher. Respondendo às críticas sobre as lacunas empíricas de seu trabalho,
Bücher afirmou que o objetivo de seu trabalho era descobrir as leis de desenvolvimento
econômico das sociedades em uma perspectiva histórica.
O trabalho pioneiro de Bücher, produzido no interior da ciência econômica, e, como
ele mesmo afirmava, de cunho teórico, representou um momento novo nas pesquisas sobre a
História econômica. Ajudou a romper com o domínio da História política, alérgica a modelos,
descritiva e preocupada com os grandes personagens. Bücher e seus predecessores da Escola
Histórica de Economia Política introduziram novas estruturas na investigação das sociedades.
O evolucionismo econômico defendido por ele inseriu, nas ciências econômicas, as
generalizações das ciências naturais. Bücher procurou confluir as propostas teóricas da Escola
neoclássica inglesa, simpática à aplicação dos métodos das ciências naturais à economia, com
as propostas da segunda geração da Escola Histórica de Economia Política, voltadas para o
250
estudo exaustivo das instituições das realidades investigadas, conforme propunha Gustav Von
Schmoller.
Apesar das críticas violentas dos historiadores direcionadas à transposição dos
métodos das ciências naturais para as ciências da cultura, por acharem que esta não poderia
colocar em segundo plano o significado das ações individuais, o seu trabalho abriu novas
perspectivas à ciência histórica ao eleger o “econômico” como elemento central de
investigação. Os historiadores foram desafiados a produzir, a partir desta ciência, uma
reflexão de cunho teórico que fortalecesse o caráter científico das ciências históricas e
respondesse àqueles que acreditavam que a História era somente uma ciência empírica, isto é,
apenas coletora de dados.
Este desafio nos ajuda a entender, na controvérsia do oikos, o papel de Max Weber,
em seus trabalhos históricos, que, apesar de reafirmar o caráter primitivista de Bücher,
demonstrou que a perspectiva evolucionista não propiciaria o rigor científico necessário às
ciências da cultura. Desta forma, como o oikos não poderia continuar sendo o elemento
central da argumentação antimodernista, o capitalismo passou a ser a sua referência para
pensar o desenvolvimento e as transformações políticas, sociais e mentais das sociedades
antigas. Ao tomá-lo como um tipo ideal, Weber “encontrou” diferentes tipos de capitalismos
em diferentes sociedades e diferentes épocas, para definir melhor o capitalismo moderno. As
sociedades clássicas greco-romanas, dominadas por um capitalismo político, isto é, sob
orientação de interesses político-militares, encontraram seu caráter primitivo não mais no
oikos, mas na pólis – alçada, então, ao centro de sua preocupação porque reunia as condições
necessárias, materiais e mentais, para demonstrar que a esfera econômica daquela realidade
não era dominada pelos mesmos interesses das sociedades capitalistas modernas. Apesar das
contradições em relação ao caráter primitivo da pólis, Weber procurou superar as
incongruências históricas dos primeiros primitivistas, que não tinham como refutar os
testemunhos históricos que contradiziam a hipótese de domínio do oikos para toda a
Antiguidade.
Por outro lado, Weber, em seus trabalhos metodológicos, procurou responder aos
críticos de Bücher, simpáticos às tendências descritivas dos fenômenos sociais, com os “tipos
ideais”, um instrumento de análise que, apesar de não ter como fim último as leis gerais das
ciências naturais, procurava estabelecer conceitos causais às ciências humanas. Ele, então,
buscou conciliar os interesses divergentes, naquele momento, entre aqueles que defendiam
uma ciência de cunho mais teórico, voltada para a formulação de leis e hipóteses gerais, e
251
aqueles que propugnavam por uma ciência de cunho mais descritivo, refratária à formulação
de métodos e hipóteses, e voltada para a descrição dos grandes indivíduos históricos. A
posição de Weber contribuiu para inserir as ciências da cultura nos preceitos da investigação
metódica e racional das ciências modernas. A sua preocupação com o capitalismo moderno o
levou a analisar prioritariamente o mundo antigo, comparando-o às sociedades medievais,
modernas e orientais.
Johannes Hasebroek procurou extirpar algumas influências modernistas de Weber,
supervalorizando o papel da cidade-Estado nas relações comerciais. Os trabalhos de Bücher,
Weber, Hasebroek, e mesmo de Meyer, produzidos no seio do Historismo e da Tradição
Histórica, demonstram que as diversas esferas sociais e econômicas poderiam ser pensadas
com a política. Isso levou estes autores a darem um passo na constituição da História Social.
O trabalho de Karl Polanyi representa uma guinada na tradição que estamos
analisando porque a redireciona acadêmica e politicamente, em conseqüência da sua
orientação socialista, diferente dos autores até então apresentados, levando-o a remover os
resquícios neoclássicos do primitivismo. Polanyi procurou demonstrar que o mercado era
artificial e moralmente perverso e, ao colocá-lo no centro dos argumentos primitivistas, com
instrumentos conceituais oriundos da Antropologia, ampliou as questões iniciais da
controvérsia do oikos e criticou os aspectos formalistas da teoria weberiana e de seus
seguidores.
Diferentemente do oikos e da pólis, o mercado foi alçado ao centro da tradição em
uma perspectiva negativa. O substantivismo polanyiano, amparado nos trabalhos de
Malinovsky e Thurwald, procurou demonstrar que o papel do mercado em sociedades pré-
capitalistas não seguia a mesma lógica do mercado nas sociedades modernas: enquanto lá o
mercado se encontrava embedded nas instituições não econômicas, nas sociedades modernas
do século XIX, em razão de um processo histórico intencional e não intencional de uma série
de intervenções ideológicas e políticas, o mercado assume um caráter autônomo em relação às
outras esferas da sociedade. Desta forma, o substantivismo polanyiano rompeu com o ponto
de vista de Weber e Bücher e, mesmo de Marx e Ricardo, de que o capitalismo mercantil era
o resultado de uma ascensão progressiva, necessária e histórica, apesar do conceito de
embeddedness ir ao encontro do institucionalismo de Weber, já presente nos trabalhos de
Schmoller.
Se por um lado, o conceito de embeddedness contribuiu para uma melhor descrição
das economias antigas, por outro, foi gestado em um contexto de divergências entre a
252
Antropologia e a História. As influências funcionalistas colaboraram para a aproximação da
Antropologia com as ciências naturais. O modelo polanyiano, extensivo a um amplo raio de
sociedades no tempo e no espaço, procura organizar todas as sociedades pré-capitalistas de
acordo com as formas de integração. As particularidades históricas e culturais foram
“engessadas” nessas formas de integração que se aproximavam das leis gerais das ciências
naturais. As tensões sociais, presentes nos trabalhos de Weber e Hasebroek, foram diluídas
em esquemas compartimentalizados da organização social. Se, por um lado os conceitos de
reciprocidade, redistribuição e intercâmbio superavam a dualidade racionalidade e
irracionalidade, estabelecida por Weber, por outro lado, reorientavam a análise primitivista
para o campo metodológico das ciências naturais. Eis a contradição do substantivismo
polanyiano no seio da tradição investigada.
A formulação de problemas, a precisão empírica, o uso de teorias, modelos e tipos-
ideais, o interesse em estudos interdisciplinares e comparativos e uma orientação voltada para
a compreensão de sociedades inteiras estão mais ou menos presentes nos trabalhos dos autores
que estamos investigando. Contudo, foi Moses Finley quem sedimentou os postulados da
História Social no seio dessa tradição ao eleger estes princípios como bandeiras de luta no
trabalho historiográfico. Consolidando posições políticas e acadêmicas não dominantes até a
primeira metade do século XX, Finley iria defender a utilização de modelos sociológicos e
antropológicos na investigação histórica, a despeito das críticas aos aspectos a-históricos
destas ciências naquele momento. Tomando os tipos ideais como os modelos mais adequados
à investigação histórica e o institucionalismo histórico weberiano, proveniente da Escola
Histórica de Teoria Econômica, com os princípios do substantivismo polanyiano – mesmo
sem utilizar de forma explícita os conceitos de embeddedness –, juntamente com sua crítica ao
formalismo econômico, Finley conseguia enfim conectar em sua análise da economia antiga
as questões que rondaram, mas não reuniram, os protagonistas da tradição primitivista –
substantivista: remoção do caráter formalista da economia antiga e utilização de modelos
próprios às ciências humanas – mesmo que não formuladas pela História – não orientados
pelas ciências naturais, como os métodos estatísticos.
Esta postura refletiu-se nos trabalhos sobre a economia antiga, a qual Finley tratou
como uma totalidade, pois, apesar das diferenças cronológicas e geográficas da época arcaica
grega até a Antiguidade tardia, ela não cessava de apresentar as mesmas grandes
características. Os tipos ideais, como a cidade antiga, amparados em uma pesquisa empírica
rigorosa, foram utilizados para combater a transposição acrítica de conceitos e análises
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econômicas modernas. Não priorizando mais o oikos do debate original nem o mercado de
Polanyi, Finley estabeleceu o caráter específico da pólis ateniense com o nascimento e a
consolidação do estatuto do cidadão, forjado com o fim da servidão por dívida e o predomínio
da escravidão-mercadoria, que viabilizaram a participação política e os privilégios
econômicos de um amplo setor da população, que, anteriormente, estava alijado das decisões
políticas. Ele utilizou as categorias ordem e status, em detrimento de classe, e demonstrou que
o status age como um freio no desenvolvimento de mercados de terras, trabalho, comércio e
avanço tecnológico. Portanto, a economia no mundo greco-romano é abordada sob a
dimensão de relações de status, e não como uma esfera autônoma. Finley privilegiou em sua
análise não a antinomia livre e não livre, mas a presença ou ausência de privilégios políticos e
econômicos dos diversos grupos sociais. O envolvimento de Finley, no início de sua carreira,
com os filósofos marxistas da Escola de Frankfurt o levou a travar um debate ruidoso com os
marxistas acerca da utilização de conceitos marxistas à economia antiga. Finley rechaçou o
conceito de modo de produção e outros conceitos marxistas não por diferenças ideológicas,
mas por acreditar que tais conceitos aproximavam-se da postura modernista, como, por
exemplo, o conceito de lutas de classes e de modo de produção escravista.
Uma tradição de pensamento, como dito no início do trabalho, não é simplesmente o
reforço de idéias transmitidas ao longo do tempo, é também uma reflexão crítica produzida
por diferentes pensadores com o fim de reorientar os princípios daquela tradição. É a
avaliação de preconceitos, que, discutidos e reinterpretados sob um novo contexto político,
econômico e intelectual, que produz novos conceitos. A tradição investigada aqui nasceu sob
o impacto de um fenômeno que dominou a mente dos homens que viveram no final do século
XIX: o capitalismo. Tentar explicar, defender, transformar ou superar o capitalismo ocupou as
preocupações de todos eles. Foi a partir do capitalismo e suas transformações que começaram
a ser formulados os paradigmas que investigamos, isto é, os modelos elaborados por esses
autores estiveram diretamente atrelados às questões que surgiram durante o desenvolvimento
do capitalismo. Daí a relação entre as ciências modernas, capitalismo e História. O estatuto
científico da História nasce no bojo destas transformações e coloca o estudo da sociedade
como uma das maneiras de se pensar a História de forma científica. Dos trabalhos dos
protagonistas da Escola Histórica de Teoria Econômica até Finley, vimos como o “social”
nasceu e se firmou no interior de uma tradição de pensamento.
Se a constituição da Historiografia moderna esteve atrelada ao capitalismo, ela
também legitimou o domínio de valores do Ocidente sobre o resto da população do planeta.
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Na medida em que o capitalismo é fruto de uma revolução econômica, política e mental no
interior de formações sociais ocidentais, a Historiografia moderna não poderia deixar de
produzir uma reflexão sobre o passado em que os valores do capitalismo ocidental estivessem
no centro de suas reflexões. Os autores paradigmáticos da tradição primitivista –
substantivista procuram demonstrar que os valores dominantes do capitalismo moderno
ocidental foram produtos de um processo histórico. Racionalismo, mercado e liberdade são os
temas principais sobre os quais os protagonistas de nossa tradição procuraram especificar os
elementos constitutivos do Ocidente. Weber demonstrou que as atitudes constituintes da
racionalidade capitalista moderna, forjadas em um dado momento histórico, eram vistas por
sociedades passadas como atitudes irracionais. Ao historicizar o nascimento da mentalidade
capitalista moderna, Weber voltou-se para sociedades passadas para entender as raízes dos
valores capitalistas e os motivos pelos quais eles não eram dominantes naquelas sociedades. A
antinomia racional e irracional é localizada no passado greco-romano, no medievo e nas
sociedades modernas ocidentais, excluindo-se, portanto, o Oriente por não ter produzido as
raízes políticas e econômicas favoráveis ao nascimento de uma sociedade capitalista moderna.
Polanyi justifica a artificialidade do mercado, pelas tendências sociais dos homens nas
sociedades pré-capitalistas e desnaturaliza o individualismo mercadista contemporâneo. As
sociedades primitivas ocidentais aparecem como originárias dos mercados, em contraposição
ao Oriente sem mercado. A presença de mercado é o traço específico do Ocidente, em
contraposição a sua ausência no Oriente. Naquelas sociedades ocidentais primitivas, contudo,
os mercados formadores de preço, apesar de já incipientes, eram minoritários diante dos
outros tipos de mercado. Para Polanyi, o domínio da redistribuição e reciprocidade e de um
mercado administrado pela pólis eram produtos das tendências antiindividualistas do homem.
Estas formas de integração encontravam seu paralelo moderno no socialismo, uma forma de
redistribuição planejada moderna, mas que, para Polanyi, deveria ter um caráter democrático.
O laissez faire era combatido por uma experiência histórica, em que o Estado, a pólis,
regulava as relações mercantis em favor das tendências “naturais” do homem.
Equivocadamente, Polanyi incorria em um novo tipo de naturalismo. A liberdade do homem
difundida pelo liberalismo era substituída pela liberdade do homem em sociedades
redistributivas, tanto do passado quanto do futuro.
A liberdade esteve no centro dos argumentos finleynianos para comparar o moderno e
o antigo, mas não para defender tendências naturais antimercadistas. Foi de todos os autores
desta tradição o que mais valorizou a experiência da democracia direta ateniense e o papel da
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cidadania como um elemento particular da experiência grega em relação ao Oriente. Para
Finley, um sentimento peculiar de liberdade nasce na Grécia antiga, como resultado das lutas
sociais pela abolição da servidão por dívidas dos atenienses, pela criação do estatuto de
cidadania e pela adoção predominante da escravidão-mercadoria. A ausência desses traços no
Oriente dá ao Ocidente um caráter próprio, pois, apesar de demarcar as fronteiras de liberdade
entre a Grécia antiga e o mundo contemporâneo, é aos atenienses que ele recorre para
encontrar uma origem para este sentimento.
É na sociedade ateniense que estes pensadores encontram as raízes dos valores e
instituições caras à sociedade burguesa ocidental. Provendo as utopias de gerações de homens
desde a Idade Média, passando pelo Renascimento e pela Revolução Francesa, a Atenas
clássica fomentou um diálogo retrospectivo com os protagonistas da tradição investigada aqui
a partir de um fenômeno tão transformador e intenso para eles quanto a própria democracia
para aos gregos. Os protagonistas de nossa tradição encontraram em Atenas o elo originário,
filtrado já por diversas tradições, do nascimento da civilização ocidental. Davam assim um
sentido para a História. Eis aqui mais um elemento característico da Historiografia moderna, o
caráter teleológico, que esta tradição ajuda a consolidar.
Se hoje vivemos em uma realidade em que o capitalismo, ainda presente e dominante,
não mais engendra grandes modelos explicativos, é porque ele próprio se transformou. As
grandes antinomias do século XX – capitalismo versus comunismo, capital versus trabalho –
estão diluídas em uma série de novas questões que não mais privilegiam a afirmação ou
superação do capitalismo. Capitalismo agora se encontra naturalizado e mesmo rotinizado,
não estando mais no centro dos grandes debates acadêmicos e políticos. Neste contexto, a
Historiografia atual formula novas questões sobre a Antiguidade e redimensiona os modelos
formulados pelos sábios de nossa tradição. Se isto é positivo para o “progresso” da História,
como diria Finley, esta historiografia, que se instala redefinindo as interrogações do presente
acerca do passado e procurando novas respostas, não poderá fazer interpretações do mundo
antigo sem levar em conta o legado da tradição aqui investigada, responsável pela elaboração
de um rico quadro de categorias acerca da economia antiga.
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