historicofeminismo_tc3_educacaoemdireitoshumanos

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Revista Múltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009 RESUMO Este artigo se situa no contexto da pesquisa “Multiculturalismo, Di- reitos Humanos e Educação: a tensão entre igualdade e diferença”, que desenvolvemos, com o apoio do CNPq, de 2006 até fevereiro do presente ano. Tem por objetivo analisar diferentes conceitos de edu- cação em direitos humanos, assim como discutir as relações entre esta temática e a emergência cada vez mais intensa nas sociedades latinoamericanas de movimentos sociais de caráter identitário. Parte da afirmação de que, nascidos no bojo da modernidade, os direitos humanos se constituíram em íntima relação com a afirmação da igual- dade, da liberdade e da universalidade. No entanto, hoje estão cha- mados a articular esta perspectiva com as questões colocadas pela chamada pós-modernidade e enfrentar-se com a problemática da afirmação das diferenças culturais. Apresenta diferentes concepções de educação em direitos humanos. Analisa diversas formas de rela- ções entre “nós” e os “outros”. Evidencia a complexidade da articu- lação entre igualdade e diferença. Defende a incorporação da pers- pectiva da interculturalidade na produção acadêmica e nas práticas de educação em direitos humanos. Palavras-chave: Educação em direitos humanos; interculturalidade; igualdade-diferença; diferenças culturais EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E DIFERENÇAS CULTURAIS: QUESTÕES E BUSCAS Vera Maria Candau * Possui graduação em Licenciatura e Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja- neiro e Doutorado e Pós-doutorado em Educção pela Universidad Complutense de Madrid . Atu- almente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Assessora ex- periências e projetos sócio-educativos no país e no âmbito internacional, particularmente em países latino-americanos.

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Educação em Direitos Humanos

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  • EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS E DIFERENAS CULTURAIS 65

    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    RESUMOEste artigo se situa no contexto da pesquisa Multiculturalismo, Di-

    reitos Humanos e Educao: a tenso entre igualdade e diferena,

    que desenvolvemos, com o apoio do CNPq, de 2006 at fevereiro do

    presente ano. Tem por objetivo analisar diferentes conceitos de edu-

    cao em direitos humanos, assim como discutir as relaes entre

    esta temtica e a emergncia cada vez mais intensa nas sociedades

    latinoamericanas de movimentos sociais de carter identitrio. Parte

    da afirmao de que, nascidos no bojo da modernidade, os direitos

    humanos se constituram em ntima relao com a afirmao da igual-

    dade, da liberdade e da universalidade. No entanto, hoje esto cha-

    mados a articular esta perspectiva com as questes colocadas pela

    chamada ps-modernidade e enfrentar-se com a problemtica da

    afirmao das diferenas culturais. Apresenta diferentes concepes

    de educao em direitos humanos. Analisa diversas formas de rela-

    es entre ns e os outros. Evidencia a complexidade da articu-

    lao entre igualdade e diferena. Defende a incorporao da pers-

    pectiva da interculturalidade na produo acadmica e nas prticas de

    educao em direitos humanos.

    Palavras-chave: Educao em direitos humanos; interculturalidade;igualdade-diferena; diferenas culturais

    EDUCAO EM DIREITOSHUMANOS E DIFERENAS

    CULTURAIS:QUESTES E BUSCAS

    Vera Maria Candau

    * Possui graduao em Licenciatura e Pedagogia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Ja-neiro e Doutorado e Ps-doutorado em Educo pela Universidad Complutense de Madrid . Atu-almente professora titular da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Assessora ex-perincias e projetos scio-educativos no pas e no mbito internacional, particularmente em paseslatino-americanos.

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    HUMAN RIGHTS EDUCATION AND CULTURAL DIFFERENCES: ISSUES ANDQUESTS

    ABSTRACTThis article is part of the research Multiculturalism, Human Rights

    and Education: the stress between equality and difference, developed

    with the support of CNPq, from 2006 to February 2009. It intends to

    analyze the different concepts of Human Rights Education and

    discuss the relationship between this subject and the emergence, more

    and more intense, of identity social movements in Latin-American

    societies. The starting point is the fact of the Human Rights, born in

    the heart of the modernity, had been constituted in strong relationship

    with the establishment of equally, freedom and universality.

    Nevertheless, nowadays, Human Rights are required to articulate this

    perspective with the issues put by the post-modernity and face the

    problem of cultural differences. It shows the different concepts of

    Human Rights Education. It analyses the various ways of relationship

    between ourselves and the others. It points the complexity of the

    articulation between difference and equality. It defends the

    interculturallity perspective incorporation in the academic production

    and in the education practices of Human Rights Education.

    Keywords: Human Rights Education, interculturallity, equally-difference; cultural differences

    EDUCACIN EN DERECHOS HUMANOS Y DIFERENCIAS CULTURALES:RETOS Y BSQUEDAS

    RESUMENEste trabajo se sita en el contexto de la investigacin

    Multiculturalismo, Derechos Humanos y Educacin: la tensin entre

    igualdad y diferencia, que realizamos con el apoyo del CNPq, en el

    perodo de 2006 hasta febrero del presente ao. Tiene por objetivo

    analizar los distintos enfoques del concepto de educacin en derechos

    humanos y discutir las relaciones entre este tema y la presencia cada

    vez ms fuerte de movimientos sociales de afirmacin de diversas

    identidades en las sociedades latinoamericanas. Tiene como punto

    de partida la tesis de que los derechos humanos, que han nacido en

    la modernidad, se han constituido en ntima relacin con la

    afirmacin de la igualdad, de la libertad y la universalidad. Sin em-

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    bargo, hoy estn llamados a articular esta perspectiva con las

    cuestiones planteadas por la llamada pos-modernidad y a confrontarse

    con la problemtica de la afirmacin de las diferencias culturales.

    Presenta diversas concepciones de educacin en derechos humanos.

    Analiza diferentes formas de comprensin de las relaciones entre

    nosotros y los otros. Evidencia la complejidad de la articulacin

    entre igualdad y diferencia. Defiende la incorporacin de la perspec-

    tiva de la interculturalidad en la produccin acadmica y en las

    prcticas de la educacin en derechos humanos.

    Palabras-clave: Educacin en derechos humanos; interculturalidad;igualdad-diferencia; diferencias culturales

    INTRODUOO desenvolvimento da educao em direitos humanos no Brasil e no

    continente latinoamericano em geral um processo que emerge com fora nasegunda metade dos anos 80, no bojo dos processos de democratizao vi-vidos em muitos dos nossos paises. As dramticas violaes de direitoshumanos fortaleceram a conscincia da necessidade de promover processossociais, polticos e educacionais que propiciem uma internalizao cada vezmais forte dos direitos humanos e da dignidade humana, tanto por parte decada cidado e cidad, como no imaginrio coletivo. No basta denunciar asviolaes e proteger as vtimas. So imprescindveis aes e processos ori-entados preveno, afirmao dos direitos humanos em todos os mbitosda sociedade, da famlia s polticas pblicas.Tarefa rdua, ainda frgil atos dias atuais. nesta perspectiva que se situa a educalo em direitos hu-manos. Ao longo dos ltimos vinte anos, atravs de diferentes etapas e emntima articulao com os diversos contextos poltico-sociais enfrentadospelos diferentes pases, vem se afirmando e construindo caminhos tanto emespaos de educao escolar, como de educao no formal.

    No caso brasileiro, no mbito das polticas pblicas como das organi-zaes da sociedade civil, as iniciativas se multiplicam, especialmente apartir da promulgao do Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos(1), em 2003. Tm sido realizados seminrios, cursos, palestras, fruns, etc,nas diferentes partes do pas, promovidos por universidades, organizaesno governamentais e rgos pblicos. No entanto, nem sempre claramenteexplicitada a concepo de educao em direitos humanos que norteia estasiniciativas, questo que consideramos de especial relevncia.

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    Este trabalho se situa no contexto da pesquisa Multiculturalismo,Direitos Humanos e Educao: a tenso entre igualdade e diferena, quedesenvolvemos, com o apoio do CNPq, de 2006 at fevereiro do presenteano. Tem por objetivos analisar diferentes conceitos de educao em direitoshumanos , assim como discutir as relaes entre esta temtica e a emergnciacada vez mais intensa nas sociedades latinoamericanas de movimentos soci-ais de carter identitrio. Nascidos no bojo da modernidade, os direitoshumanos se constituram em ntima relao com a afirmao da igualdade,da liberdade e da universalidade. No entanto, hoje esto chamados a articularesta perspectiva com as questes colocadas pela chamada ps-modernidade,por mais ambgua e polissmica que esta expresso seja, e enfrentar-se comas questes colocadas pela problemtica da afirmao das diferenas cultu-rais. Que papel joga a educao em direitos humanos nesta perspectiva? Esta a pergunta que orienta nosso trabalho.

    O QUE SIGNIFICA EDUCAR EM DIREITOS HUMANOS?Para aprofundarmos a questo proposta, consideramos que a primeira

    tarefa explicitar o que pretendemos alcanar, que horizonte de sentidonortear nossa definio da temtica a ser abordada. Esta questo parecebvia, mas preciso partir da afirmao de que existem vrias aproxima-es e definies do que se entende por educar em direitos humanos.

    Nancy Flowers (2004), especialista estadunidense em direitos huma-nos e processos educacionais, com ampla experincia e produo nestarea, tanto nos Estados Unidos como em outros pases de diferentes con-tinentes, em um instigante artigo intitulado Como definir a educao emDireitos Humanos, com o expressivo subttulo uma resposta complexa auma pergunta simples, relata um fato que consideramos interessante paraintroduzir-nos nesta questo:

    ...em janeiro de 2002, Shulamith Koenig da organizao Pessoas comprome-

    tidas com a Dcada para a Educao em Direitos Humanos (PDHRE) publi-

    cou uma definio de educao para os direitos humanos na lista de discusso

    da Associao de Educao para os Direitos Humanos (www.hrea.org) e

    solicitou reaes. Estabeleceu-se um debate eletrnico muito vivo. Esta lista

    de discusso possui mais de trs mil educadores para os direitos humanos ao

    redor do mundo. [...] Entretanto, apesar desta discusso ter ajudado a refinar

    questes vitais sobre educao para os direitos humanos[...], nenhuma defi-

    nio de consenso emergiu dela. (p.106)

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    As definies se multiplicaram em funo das experincias concretase dos diferentes marcos poltico-ideolgicos em que se baseavam os edu-cadores em direitos humanos. Segundo a autora, os lugares de refernciados diversos atores, rgos governamentais e internacionais, organizaesno governamentais e universidades, implicavam em diferentes ticas eperspectivas da educao em direitos humanos. Segundo os respectivoslocus de atuao, ora era colocada a nfase na consolidao dos marcosinstitucionais e jurdicos j estabelecidos na perspectiva de se afianar apaz social, na importncia de se mobilizar a transformao das estruturasvigentes numa determinada sociedade e no empoderamento dos gruposmarginalizados, discriminados e excludos ou na dimenso tica da educa-o em direitos humanos e nos valores que pretende afirmar como solida-riedade, tolerncia e justia. Estas diferentes perspectivas no necessaria-mente se contrapunham, mas as diversas nfases propunham finalidadesdiferenciadas para a educao em direitos humanos, o que, na prtica,promovia processos que privilegiavam temticas e estratgias distintas.

    Este artigo explicita com clareza a polissemia da expresso educaoem direitos humanos e a importncia do aprofundamento da reflexo sobreesta questo, procurando-se sempre contextualizar o debate.

    Neste sentido, consideramos de especial relevncia a pesquisa pro-movida no continente latino-americano pelo Instituto Interamericano deDireitos Humanos (IIDH) da Costa Rica, no perodo de 1999-2000(Cuellar, 2000), orientada a fazer um balano crtico da educao emdireitos humanos nos anos 90 na Amrica Latina, coordenada pelo pro-fessor chileno Abraham Magendzo, um dos mais importantes especialistasem educao em direitos humanos no continente.

    No processo de construo do balano crtico, foi indicado um pes-quisador ou pesquisadora de cada pas para realizar um estudo de caso noseu respectivo contexto. Os pases participantes foram os seguintes: Ar-gentina, Chile, Peru, Brasil, Venezuela, Guatemala e Mxico. Uma vezrealizados os estudos de caso de carter nacional, estes foram enviados atodos os pesquisadores e foi convocado um seminrio pelo IIDH em Lima,Peru, no ms de novembro de 1999, para discusso e elaborao da sntesefinal do processo e levantar questes consideradas importantes para odesenvolvimento da educao em direitos humanos no continente a partirdo ano 2000. Apresentaremos brevemente os principais temas discutidos.

    Um primeiro bloco se relacionava ao sentido da educao em direitoshumanos no novo marco poltico, social, econmico e cultural, isto , na

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    transio modernidade/ps-modernidade, no contexto de democracias d-beis ou de baixa intensidade e de hegemonia neoliberal.

    A temtica de educao em direitos humanos nos anos 80, principal-mente nos pases que passaram por processos de transio democrticadepois de traumticas experincias de ditadura, como o nosso caso, foiintroduzida como um componente orientado ao fortalecimento dos regi-mes democrticos.

    No entanto, a realidade do continente no novo milnio apresenta outraconfigurao. O clima poltico-social, cultural e ideolgico diferente.Vivemos um contexto de polticas neoliberais, de debilitamento da sociedadecivil, de indicadores persistentes de acentuada desigualdade social, de dis-criminao e excluso de determinados grupos scio-culturais e falta dehorizonte utpico para a construo social e poltica. Por outro lado, emcontraste com os anos 80, em que a maior parte das experincias de educa-o em direitos humanos foram promovidas por ONGs e algumas adminis-traes pblicas de carter local consideradas progressistas, a dcada dosanos 90 est marcada por uma grande entrada dos governos, no nosso casodo governo federal, na promoo da educao em direitos humanos. Nestenovo cenrio importante analisar e debater as questes relativas ao sentidoda educao em direitos humanos e os objetivos que pretende alcanar.

    Em relao polissemia da expresso educao em direitos humanos,os pesquisadores afirmaram a importncia de no se deixar que esta expres-so seja substituda por outras consideradas mais fceis de serem assumidaspor um pblico amplo, como educao cvica ou educao democrtica, ouque restrinjam a educao em direitos humanos a uma educao em valores,inibindo seu carter poltico. Por outro lado, afirmaram, hoje a educao emdireitos humanos admite muitas leituras e esta expresso foi se alargandotanto que o seu sentido passou a englobar desde a educao para o transito,os direitos do consumidor, questes de gnero, tnicas, religiosas, do meio-ambiente, etc, at temas relativos ordem internacional e sobrevivncia doplaneta. Tendo-se presente esta realidade, corre-se o risco de englobar tantasdimenses que a educao em direitos humanos perca especificidade. tornan-do difcil uma viso mais articulada e confluente, terminando por se reduzira um grande chapu sob o qual podem ser colocadas temas muito vari-ados, com os mais diversos enfoques.

    Ao final do seminrio se chegou ao consenso de que era importante,na dcada que se iniciava a partir do ano 2000, reforar trs dimenses daeducao dos direitos humanos.

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    A primeira diz respeito formao de sujeitos de direito. A maiorparte dos cidados/s latino-americanos tem pouca conscincia de que sosujeitos de direito. Esta conscincia muito dbil, muitos grupos sociaisinclusive por ter a cultura brasileira e latino-americana em geral um ca-rter patrimonialesta, paternalista e autoritrio consideram que os direi-tos so ddivas de determinados polticos ou governos. Os processos deeducao em direitos humanos devem comear por favorecer processos deformao de sujeitos de direito, a nvel pessoal e coletivo, que articulemas dimenses tica, poltico-social e as prticas cotidianas e concretas.

    Outro elemento considerado fundamental na educao em direitoshumanos favorecer o processo de empoderamento (empowerment),principalmente orientado aos atores sociais que historicamente tiverammenos poder na sociedade, isto , poucas possibilidades de influir nasdecises e nos processos coletivos. O empoderamento comea por libe-rar as possibilidades, a potncia que cada pessoa tem para que ela possa sersujeito de sua vida e ator social. O empoderamento tem tambm umadimenso coletiva. Trabalha na perspectiva do reconhecimento e valoriza-o dos grupos scio-culturais excludos e discriminados, favorecendo suaorganizao e participao ativa na sociedade civil.

    O terceiro elemento diz respeito aos processos de transformaonecessrios para a construo de sociedades verdadeiramente democrticase humanas. Um dos componentes fundamentais destes processos se relaci-ona a educar para o nunca mais, para resgatar a memria histrica,romper a cultura do silncio e da impunidade que ainda est muito presenteem nossos pases. Somente assim possvel construir a identidade de umpas, na pluralidade de suas etnias, e culturas.

    Estes trs componentes, formar sujeitos de direito, favorecer processosde empoderamento e educar para o nunca mais, foram consideradosprioritrios na Amrica Latina, referncia e horizonte de sentido para aeducao em direitos humanos, de acordo com a proposta do grupo depesquisadores latino-americanos que participaram do estudo.

    Consideramos que esta perspectiva aponta para a criao de umacultura dos direitos humanos na nossa sociedade, que penetre os diferentesmbitos da vida social e impregne tanto os espaos privados como ospblicos. Esta constitui a perspectiva a partir do qual nos situamos .

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    IGUAIS E DIFERENTESA educao em direitos humanos se desenvolveu tendo como refern-

    cia bsica a perspectiva da modernidade no tratamento dos direitos huma-nos em que, como j afirmamos, so privilegiadas a afirmao da liberda-de, da igualdade e da universalidade. As questes referidas s diferenasentre pessoas e grupos scio-culturais no so focalizadas ou o so demodo secundrio e pouco aprofundado. No entanto, so estas as questesque vm adquirindo hoje particular visibilidade e configurando movimentossociais de grande incidncia nas sociedades em que vivemos, tanto nombito planetrio como nacional.

    Antonio Flavio Pierucci (1999), expresa de modo claro e contundenteesta mudana de nfase na introduo do livro Ciladas da Diferena (1999: 7):

    Somos todos iguais ou somos todas diferentes? Queremos ser iguais ou s ser

    diferentes? Houve um tempo que a resposta se abrigava, segura de si, no

    primeiro termo da disjuntiva. J faz um quarto de sculo, porm, que a res-

    posta se deslocou. A comear da segunda metade dos anos 70, passamos a

    nos ver envoltos numa atmosfera cultural e ideolgica inteiramente nova, na

    qual parece generalizar-se em ritmo acelerado e perturbador a conscincia de

    que ns, os humanos, somos diferentes de fato, porquanto temos cores dife-

    rentes na pele e nos olhos, temos sexo e gnero diferentes alm de prefern-

    cias sexuais diferentes, somos diferentes de origem familiar e regional, nas

    tradies e nas lealdades, temos deuses diferentes, diferentes hbitos e gostos,

    diferentes estilos ou falta de estilo; em suma, somos portadores de pertenas

    culturais diferentes. Mas somos tambm diferentes de direito. o chamado

    direito diferena, o direito diferena cultural, o direito de ser, sendo di-

    ferente. The right to be different!, como se diz em ingls o direito dife-

    rena. No queremos mais a igualdade, parece. Ou a queremos menos. Mo-

    tiva-nos muito mais, em nossa conduta, em nossas expectativas de futuro e

    projetos de vida compartilhada, o direito de sermos pessoal e coletivamente

    diferentes uns dos outros.

    Segundo este autor, houve uma mudana de sensibilidade, de climasocial e cultural. Da nfase na igualdade, muitas vezes silenciadora e/ounegadora das diferenas, estas passam a primeiro plano, podendo comprome-ter ou eclipsar a afirmao da igualdade. Como articular estes plos sem queum anule o outro, ou o deixe na penumbra, relativizando sua importncia?Como estas questes so trabalhas nos processos sociais e na educao?

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    As lutas e produes acad~emicas sobre os direitos humanos histori-camente tm enfatizado os direitos relativos igualdade, No entanto, nasltimas dcadas as questes relativas s identidades tm emergido comfora. As diferenas culturais invadem os espaos pblicos e reivindicam seureconhecimento e valorizao. O reconhecimento no suficiente. Tem deser acompanhado de polticas de valorizao, de acesso a oportunidades,tanto educacionais quanto de acesso ao mercado de trabalho, de represen-tao nos espaos de tomada decises, dimenses fundamentais para queesses sujeitos possam conquistar uma cidadania plena na sociedade.

    NS E OS OUTROSNo mago das questes acima colocadas esto as relaes entre ns

    e os outros, certamente de carter dinmico e carregadas dedramaticidade e ambigidade. Em sociedades em que a conscincia dasdiferenas se faz cada vez mais forte, reveste-se de especial importnciaaprofundarmos em questes como: quem inclumos na categoria ns?Quem so os outros?

    Estes so temas fundamentais que estamos desafiados a trabalhar nasrelaes sociais e, particularmente, na educao. Nossa maneira de situar-nos em relao aos outros tende, naturalmente, isto , est construda,a partir de uma perspectiva etnocntrica. Inclumos no ns, todas aquelaspessoas e grupos sociais que tm referenciais semelhantes aos nossos, quetm hbitos de vida, valores, estilos, vises de mundo que se aproximamdos nossos e os reforam. Os outros so os que se confrontam com estasmaneiras de situar-nos no mundo por sua classe social, etnia, religio,valores, tradies, etc.

    Skliar e Duschatzky ( 2000) distinguem trs formas em que a diver-sidade tem sido enfrentada, configurando os imaginrios sociais sobre aalteridade: o outro como fonte de todo mal, o outro como sujeito plenode um grupo cultural, o outro como algum a tolerar.

    A primeira perspectiva, segundo os autores, marcou predominante-mente as relaes sociais durante o sculo XX e pode se revestir de dife-rentes formas, desde a eliminao fsica do outro coao interna mediantea regulao de costumes e moralidades. Na educao, esta perspectivatambm se traduziu de diversas formas, sempre assumindo um modo dedescartar o componente negativo.

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    Assim, o sentido comum se tornou indesejvel frente ao pensamento elabo-

    rado, a metfora s um artifcio de linguagem frente a rigorosidade

    explicativa da deduo, a emoo desvalorizada frente razo, a emoo

    reprimida frente ao decoro das formas corretas de comunicao, a esttica

    uma mera aparncia frente a solidez certeira da racionalidade, a sexualidade

    pecaminosa frente ao olhar julgador da moral. (p. 168)

    Neste modo de situar-nos diante do outro, assume-se uma visobinria e dicotmica. Uns so os bons, os verdadeiros, os autnticos, oscivilizados, os cultos, os defensores da liberdade e da paz. Os outros somaus, falsos, brbaros, ignorantes e terroristas. Se nos situamos nos pri-meiros, o que temos de fazer eliminar, neutralizar, dominar ou subjugaro outro. Caso nos sintamos representados como integrantes do plo opos-to, ou internalizamos a nossa maldade e nos deixamos salvar, passandopara o lado dos bons ou nos confrontamos violentamente com estes.

    Infelizmente assistimos no momento atual a um revigoramento destalgica que tanta violncia, genocdio, destruio e dominao tem provo-cado na histria da humanidade.

    Tambm na educao esta perspectiva tem se traduzido de diferentesmaneiras, algumas mais sutis e outras mais explcitas. Est presente quandoo fracasso escolar atribudo a caractersticas sociais ou tnicas dos/as alu-nos/as; quando diferenciamos os tipos de escolas segundo a origem dos alu-nos e alunas, considerando que uns so melhores que os outros, tm maiorpotencial e para se desenvolver uma educao de qualidade no podem semisturar com sujeitos de menor potencial; quando como professores/as nossituamos diante dos/as alunos/as a partir de esteretipos e expectativas dife-renciadas segundo a origem social e as caractersticas culturais dos gruposde referncia; quando valorizamos exclusivamente o racional e desvaloriza-mos os aspectos emocionais presentes nos processos educacionais; quandoprivilegiamos somente a comunicao verbal, desconsiderando outras formasde comunicao humana como a corporal, a arte, etc.

    A afirmao os outros como sujeitos plenos de uma marca culturalparte de uma concepo de cultura em que esta representa uma comunidadehomognea de crenas e estilos de vida. A radicalizao desta viso levariaa encerrar a alteridade na pura diferena. As diferenas so essencializadas.Para os autores, muitas das posies multiculturalistas se baseiam nestaperspectiva e, deste modo, assumem um discurso conservador.

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    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    Na rea da educao pode se revestir de duas principais manifestaes: uma

    entrada folclrica, caracterizada por um percurso turstico de costumes, e

    escolarizada que converte a diversidade cultural em um almanaque que en-

    grossa a lista dos festejos escolares e a reivindicao da localizao como

    retrica legitimadora da autonomia institucional. (p. 171)

    Quanto expresso o outro como algum a tolerar, convida a admi-tir a existncia de diferenas, mas nessa admisso reside um paradoxo, jque aceitar ao diferente como princpio tambm se deveria aceitar osgrupos cujas marcas so os comportamentos anti-sociais e opressivos.(p.174) No campo da educao, a tolerncia pode nos instalar no pensa-mento dbil, evitar que examinemos e tomemos posio em relao aosvalores que dominam a cultura contempornea, fazer-nos evitar polemizar,assumir a conciliao como valor ltimo e evitar questionar a ordemcomo comportamentos a serem cultivados.

    Poderamos acrescentar outras maneiras de situar-nos ante os outrosque os autores no enumeram, como por exemplo, os outros como cli-entes, to presente na sociedade de mercado, os outros como parcei-ros, com os quais compartilhamos desejos, lutas e sonhos, os outroscomo sujeitos de direito.....

    Skliar e Duschatzky colocam questes que esto no mago da proble-mtica atual das relaes entre pessoas e grupos scio-culturais. Evidenci-am a complexidade dos temas nelas presentes , tanto na dimenso tericaquanto na das prticas sociais e educacionais.

    Para Taylor (2002), nosso sentido tcito da condio humana podebloquear nossa compreenso dos outros. Portanto, importante promoverprocessos educacionais que permitam que identifiquemos e desconstruamosnossas suposies, em geral implcitas, que no nos permitem uma aproxi-mao aberta realidade dos outros. Esta uma tarefa ineludvel daeducao em direitos humanos.

    EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS E A ARTICULAO ENTRE IGUAL-DADE E DIFERENA

    No mbito educacional, a relevncia da articulao destas questestem adquirido cada vez maior destaque. Citaremos apenas dois exemplosque nos parecem especialmente significativos. O primeiro relaciona-se coma problemtica do uso do vu pelas meninas muulmanas nas escolas p-blicas francesas e a sua repercusso em diferentes partes do mundo.

  • REVISTA MLTIPLAS LEITURAS76

    Revista Mltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009

    Para Alain Touraine (2004:10):

    O debate que se instalou na Frana sobre a proibio dos alunos das escolas

    pblicas usarem sinais exteriores de sua filiao religiosa ou poltica provo-

    cou, no pas e no mundo inteiro, uma reao maior e mais apaixonada do que

    era de se esperar. O que indica tratar-se de um problema da maior importn-

    cia. Para a minha gerao, os temas das discusses pblicas eram definidos

    e analisados num marco scio-econmico. Falava-se de classes sociais, de-

    sigualdades entre categorias sociais e regies, desenvolvimentismo ou

    monetarismo, etc. Ningum colocaria em primeiro plano, principalmente nos

    pases ocidentais, tanto no norte e no sul, preocupaes com problemas re-

    ligiosos, tal como hoje se apresentam na Frana.

    Outro exemplo que gostaramos de mencionar refere-se discussoacalorada que a implantao de polticas de ao afirmativa tem suscitado nasociedade brasileira, especialmente quando referidas a questes tnicas. Estaspolticas, de carter temporrio, esto voltadas para, em sociedades marcadaspor fortes desigualdades e mecanismos de excluso e discriminao, ampliaro acesso s mulheres, populao indgena, aos afro-descendentes ou outrosgrupos scio-culturais excludos ou objeto de discriminao, a direitos b-sicos e/ou oportunidades educativas, em funo de processos histricos escio-culturais que no favoreceram / favorecem este acesso. A polmicaprovocada por esta questo e os argumentos utilizados para a defesa dasdiferentes posies, desde aquelas que enfatizam questes relativas igual-dade formal, at as posies diferencialistas radicais, evidenciam a dificul-dade da articulao de polticas de igualdade e de identidade.

    Na linha de pesquisa que vimos desenvolvendo tm emergido comofundamentais no mbito social e educacional. Afirmar a igualdade entrepessoas e grupos, muitas vezes parece negar as diferenas ou silenci-las.Por outro lado, reconhecer as diferenas, em muitas situaes, visto comolegitimar desigualdades ou enfraquecer a luta por super-las. Esta tensoest presente na sociedade como um todo e se revela de modo especial-mente agudo no campo educacional.

    Nesta perspectiva, afirma Gimeno Sacristn (2) (2001:123-124):

    A diversidade na educao ambivalncia, porque desafio a satisfazer, rea-

    lidade com a qual devemos contar e problema para o qual h respostas contra-

    postas. uma chamada a respeitar a condio da realidade humana e da cul-

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    tura, forma parte de um programa defendido pela perspectiva democrtica,

    uma pretenso das polticas de incluso social e se ope ao domnio das tota-

    lidades nicas do pensamento moderno. Uma das aspiraes bsicas do progra-

    ma pro-diversidade nasce da rebelio ou da resistncia s tendncias

    homogeneizadoras provocadas pelas instituies modernas regidas pela pulso

    de estender um projeto com fins de universalidade que, ao mesmo tempo, tende

    a provocar a submisso do que diverso e contnuo normalizando-o e dis-

    tribuindo-o em categorias prprias de algum tipo de classificao. Ordem e

    caos, unidade e diferena, incluso e excluso em educao so condies

    contraditrias da orientao moderna...... E, se a ordem o que mais nos ocupa,

    a ambivalncia o que mais nos preocupa. A modernidade abordou a diversi-

    dade de duas formas bsicas: assimilando tudo que diferente a padres uni-

    trios ou segregando-o em categorias fora da normalidade dominante.

    O desafio est em superar tanto a perspectiva assimilacionista quantoa diferencialista. Assumimos a posio de que a educao em direitos huma-nos deve assumir a perspectiva aintercultural. Esta concebida como umamodalidade da educao multicultural. Muitos autores tm distinguido dife-rentes modos de se conceber o multiculturalismo, partindo da afirmao deque este um fenmeno complexo e polissmico que pode apresentar umcarter descritivo ou prescritivo. Consideramos que podem ser identificadastrs matrizes fundamentais que expressam as diferentes abordagens domulticulturalismo: a assimilacionista, que reconhece a diferena mas dealguma forma hierarquiza os grupos culturais e constri polticas e estratgiassociais e educativas de assililao do diferente cultura comum hegemnica,invisibilizando suas referncias identitrias de origem; a diferencialista oumonocultura plural, expresso utilizada por Amartya Sen (2006), quereconhece os diferentes grupos culturais, promove um tratamento no-discriminatrio em matria de direitos civis, polticos e sociais, mas mantmos grupos isolados e separados em comunidades especficas e fechadas; e omulticulturalismo aberto e interativo ou interculturalismo. Situamo-nos nestaterceira perspectiva. Algumas caractersticas a especificam. Supe a delibe-rada inter-relao entre diferentes grupos culturais. Neste sentido, se situa emconfronto com todas as vises diferencialistas que favorecem processos ra-dicais de afirmao de identidades culturais especficas, assim como com asperspectivas assilacionistas que no valorizam a explicitao da riqueza dasdiferenas culturais. Rompe com uma viso essencialista das culturas e dasidentidades culturais. Parte da afirmao de que nas sociedades em que vi-

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    vemos os processos de hibridizao cultural so intensos e mobilizadores daconstruo identidades abertas, em construo permanente. consciente dosmecanismos de poder que permeiam as relaes culturais. No desvincula asquestes da diferena e da desigualdade presentes hoje de modo particular-mente conflitivo, tanto no plano mundial quanto em cada sociedade. A abor-dagem intercultural que assumimos se aproxima do multiculturalismo crticode McLaren (1997; 2000). O multiculturalismo crtico e de resistncia parteda afirmao de que o multiculturalismo tem de ser situado a partir de umaagenda poltica de transformao, sem a qual corre o risco de se reduzir aoutra forma de acomodao ordem social vigente. Entende as representa-es de raa, gnero e classe como produto das lutas sociais sobre signos esignificaes. Privilegia a transformao das relaes sociais, culturais einstitucionais nas que os significados so gerados. Recusa-se a ver a culturacomo no conflitiva, argumenta que a diferena deve ser afirmada dentro deuma poltica de crtica e compromisso com a justia social. (p.123)

    A perspectiva intercultural quer promover uma educao para o reconhe-cimento do outro, para o dilogo entre os diferentes grupos sociais e cultu-rais. Uma educao para a negociao cultural, que enfrenta os conflitos pro-vocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos scio-culturais nasnossas sociedades e capaz de favorecer a construo de um projeto comum,pelo qual as diferenas sejam dialeticamente integradas. A perspectivaintercultural est orientada construo de uma sociedade democrtica, plural,humana, que articule polticas de igualdade com polticas de identidade

    Para Catherine Walsh a interculturalidade :

    Um processo dinmico e permanente de relao, comunicao e aprendiza-

    gem entre culturas em condies de respeito, legitimidade mtua, simetria e

    igualdade;

    Um intercmbio que se constri entre pessoas, conhecimentos, saberes e

    prticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido

    entre elas na sua diferena.

    Um espao de negociao e de traduo onde as desigualdades sociais,

    econmicas e polticas, e as relaes e os conflitos de poder da sociedade no

    so mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados.

    Uma tarefa social e poltica que interpela ao conjunto da sociedade , que

    parte de prticas e aes sociais concretas e conscientes e tenta criar modos

    de responsabilidade e solidariedade.

    Uma meta a alcanar. (p. 10 -11)

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    Para esta autora, apesar de que vrios pases latino-americanos tenham intro-

    duzido a perspectiva intercultural nas reformas educativas, no h um enten-

    dimento comum sobre as implicaes pedaggicas da interculturalidade, nem

    at que ponto nelas se articulam as dimenses cognitiva, procedimental e

    atitudinal; ou o prprio, o dos outros e o social. (p.12)

    Em diferentes trabalhos e pesquisas realizados nos ltimos anos(Candau 1997a, 1997b,1998, 2000, 2002, 2003a, 2003b, 2004a, 20004b,2005, 2006), vimos procurando identificar e enumerar alguns dos desafiosque temos de enfrentar se quisermos promover uma educao interculturalna perspectiva crtica e emancipatria, que assuma como eixo estruturantea afirmao dos direitos humanos e articule questes relativas igualda-de e diferena. Foram agrupados em torno de determinadas ncleos queconsideramos fundamentais.

    O primeiro est relacionado necessidade de desconstruo. Para a pro-moo de uma educao intercultural na perspectiva assinalada necessriopenetrar no universo de preconceitos e discriminaes que impregna muitasvezes com carter difuso, fluido, e sutil todas as relaes sociais que configu-ram os contextos em que vivemos. A naturalizao um componente que fazem grande parte invisvel e especialmente complexa esta problemtica. Promo-ver processos de desnaturalizao e explicitao da rede de esteretipos e pr-conceitos que povoam nossos imaginrios individuais e sociais em relao aosdiferentes grupos scio-culturais um elemento fundamental sem o qual impossvel caminhar. Outro aspecto imprescindvel questionar o cartermonocultural e o etnocentrismo que, explcita ou implicitamente, esto presen-tes na escola e nas polticas educativas e impregnam os currculos escolares.Perguntar-nos pelos critrios utilizados para selecionar e justificar os contedosescolares. Desestabilizar a pretensa niversalidade dos conhecimentos,valores e prticas que configuram as aes educativas

    Um segundo ncleo de preocupaes se relaciona articulao entreigualdade e diferena no nvel das polticas educativas, assim como dasprticas pedaggicas. Esta preocupao supe o reconhecimento e valori-zao das diferenas culturais, dos diversos saberes e prticas, e a afirma-o de sua relao com o direito educao de todos/as. Reconstruir o queconsideramos comum a todos e todas, garantindo que nele os diferentessujeitos scio-culturais se reconheam, garantindo assim que a igualdadese explicite nas diferenas que so assumidas como comum referncia,rompendo assim com o carter monocultural da cultura escolar.

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    Quanto ao terceiro ncleo, se relaciona com o resgate dos processosde construo das identidades culturais, tanto no nvel pessoal como cole-tivo. Um elemento fundamental nesta perspectiva so as histrias de vidae da construo de diferentes comunidades scio-culturais. Especial atenodeve ser dada aos aspectos relativos hibridizao cultural e constituiode novas identidades culturais. importante que se opere com um conceitodinmico e histrico de cultura, capaz de integrar as razes histricas e asnovas configuraes, evitando-se uma viso das culturas como universosfechados e em busca do puro, do autntico e do genuno, como umaessncia pr-estabelecida e um dado que no est em contnuo movimento.Este aspecto se relaciona tambm com o reconhecimento dos diferentessaberes, conhecimentos e prticas dos diferentes grupos culturais.

    Um ltimo ncleo tem como eixo fundamental promover experinciasde interao sistemtica com os outros: para sermos capazes de relativizarnossa prpria maneira de situar-nos diante do mundo e atribuir-lhe sentido, necessrio que experimentemos uma intensa interao com diferentesmodos de viver e expressar-se. No se trata de momentos pontuais, mas dacapacidade de desenvolver projetos que suponham uma dinmica sistem-tica de dilogo e construo conjunta entre diferentes pessoas e/ou gruposde diversas procedncias sociais, tnicas, religiosas, culturais, etc. Exigeromper toda tendncia guetificao presente tambm nas instituieseducativas e supe um grande desafio para a educao. Exige tambmreconstruir a dinmica educacional.

    A educao intercultural na tica dos direitos humanos no pode serreduzida a algumas situaes e/ou atividades realizadas em momentosespecficos, nem focalizar sua ateno exclusivamente em determinadosgrupos sociais. Trata-se de um enfoque global que deve afetar todos osatores e a todas as dimenses do processo educativo, assim como os dife-rentes mbitos em que ele se desenvolve. No que diz respeito escola,afeta a seleo curricular, a organizao escolar, as linguagens, as prticasdidticas, as atividades extra-classe, o papel do/a professor/a, a relao coma comunidade, etc. Outro elemento de especial importncia se refere afavorecer processos de empoderamento, principalmente orientados aosatores sociais que historicamente tiveram menos poder na sociedade, ouseja menores possibilidades de influir nas decises e nos processos cole-tivos. O empoderamento, como j afirmamos, comea por liberar a pos-sibilidade, o poder, a potncia que cada pessoa tem para que ela possa sersujeito de sua vida e ator social. O empoderamento tem tambm uma

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    dimenso coletiva, trabalha com grupos sociais minoritrios, discriminados,marginalizados, etc., favorecendo sua organizao e participao ativa nasociedade civil. As aes afirmativas so estratgias orientadas aoempoderamento. Tanto as concebidas no sentido restrito, quanto as quese situam num enfoque amplo, desenvolvem estratgias de fortalecimentodo poder de grupos marginalizados, para que estes possam lutar pela igual-dade de condies de vida em sociedades marcadas por mecanismos estru-turais de desigualdade e discriminao. Tm no horizonte promover trans-formaes sociais. Neste sentido, acreditam ser necessrio formularpolticas de ao afirmativa, para que se corrijam as marcas da discrimina-o construda ao longo da histria. Visam melhores condies de vidapara os grupos marginalizados, assim como a superao do racismo, dadiscriminao de gnero, da discriminao cultural e religiosa, assim comodas desigualdades sociais.

    CONSIDERAES FINAISA promoo de uma educao em direitos humanos que assuma a

    perspectiva intercultural uma questo complexa, que exige problematizardiferentes elementos do modo como hoje, em geral, concebemos nossasprticas educativas e sociais. As relaes entre direitos humanos, diferenasculturais e educao nos colocam no horizonte da afirmao da dignidadehumana num mundo que parece no ter mais esta convico como refern-cia radical. Neste sentido, trata-se de afirmar uma perspectiva alternativade construo social, poltica e educacional.

    Consideramos ser esta viso da educao em direitos humanos cons-titui um lcus privilegiado para articular direitos de igualdade e direitos diferena, polticas de igualdade e polticas de identidade.

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