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histórias de londres

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Tradução de Carlos Vaz Marques

coordenador da colecçãocarlos vaz marques

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históriasde londres

Enric González

Tradução de Carlos Vaz Marques

l i s b o a :tinta ‑da ‑china

M M X I I

coordenador da colecçãocarlos vaz marques

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© 2012, Edições tinta ‑da ‑china, Lda.Rua João de Freitas Branco, 35A,1500 ‑627 LisboaTels: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30E ‑mail: [email protected]

Título original: Historias de Londres© Enric González, 2007Primeira edição: RBA Libros S.A., Espanha, 2007

Título: Histórias de LondresAutor: Enric GonzálezCoordenador da colecção: Carlos Vaz MarquesTradução: Carlos Vaz MarquesRevisão: Tinta ‑da ‑chinaComposição e capa: Tinta ‑da ‑china

1.ª edição: Julho de 2012

isbn 978 ‑989‑671‑126‑9Depósito Legal n.º 345700/12

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índice

9 Prefácio

13 Nota prévia

17 O Oeste19 O londrino acidental22 Uma casa desadequada28 Vacas nos mercados financeiros31 A ordem da natureza36 O bairro de Albert41 Costumes da Pequena França47 O jardim de Peter53 O deus do senso comum58 Lagostas de Chelsea61 A colina voraginosa69 Um episódio clínico

81 O Centro83 Glórias passadas do Soho92 O erro de Piccadilly96 A reserva de Saint James102 Buckingham, SA114 Os melhores bares da cidade120 O patê de Battersea125 A ditadura parlamentar128 Ou deputado, ou nada

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131 O Leste133 A medalha de papel142 Os bancos e o cemitério148 A rua do porco gigante156 Juízes e fraudes159 O crime e as belas ‑artes166 Um passeio pelos tempos de Jack177 Não passarão 180 O rito do go ‑do ‑yin185 Um assunto grave199 Ratos, rãs e enguias202 Água debaixo da terra205 Os túneis211 Um monumento à derrota215 Os molhes do adeus

221 Nota biográfica

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prefácio

Londres é uma daquelas cidades que, ao fim de uma se‑ mana, toda a gente julga conhecer. Ao fim de um mês tal‑

vez até já pareça familiar. E ao fim de várias visitas prolonga‑das, de tão familiar, talvez pareça mesmo já não ter segredos.

Até que se lê este livro.Descobri, ou melhor, encontrei Enric González, há

uns anos, nas páginas do jornal El País. Leitor ocasional do diário espanhol, comecei a aperceber ‑me do prazer que me davam, nele, certas crónicas sobre futebol e acabei por reter episodicamente o nome do autor desses textos.

Falava por vezes de equipas e de jogadores que pouco ou nada me diziam — misturando referências a futebóis de diferentes latitudes, da Argentina à Itália, de Espanha ao Brasil — mas acima de tudo contava ‑me histórias e todos já percebemos, de uma forma ou de outra, que quem sabe contar ‑nos uma história já percorreu mais de meio caminho para ficar com um pouco de nós.

Havia então este nome: Enric González. Uma assina‑tura arquivada num recanto da memória onde estão tantos

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outros nomes, factos, momentos que acabam inevitavel‑mente por transitar, mais tarde ou mais cedo, para o arquivo morto do cérebro se nada vier resgatá ‑los, entretanto, desse baú obscuro que carregamos em nós.

Havia este nome, portanto, e um dia o nome surge onde não esperava de todo vir a encontrá ‑lo. José Saramago escrevia na altura uma breve crónica regular no Diário de Notícias e, em pleno Verão, num tom deslumbrado, pouco habitual nele, homem comedido, refere um livro de Enric González, atribuindo ‑lhe a mais generosa qualidade a que um livro pode aspirar: «Poucas leituras me deram tanto pra‑zer nestes últimos anos.»

O que me chamou a atenção, de imediato, foi o facto de Saramago, um escritor que prezava o rigor no uso das pa‑lavras, não escrever «nos últimos tempos» ou «nos últimos meses» mas «nos últimos anos». O autor dos textos sobre futebol, que eu já tinha detectado entretanto como corres‑pondente do El País em Jerusalém, era então o credor do entusiasmo de Saramago. «A palavra deslumbramento não é exagerada», garantia o Nobel.

Está neste momento o leitor a ser levado ao engano de pensar que o livro a que José Saramago se referia era este, que tem à sua frente. É altura de desfazer esse equívoco. O escri‑tor português tinha lido Histórias de Nova Iorque, o resulta‑do da passagem de Enric González por Manhattan, durante uma longa temporada, como correspondente do seu jornal. «Livros sobre cidades são quase tantos como as estrelas no céu, mas, que eu conheça, nenhum o é como este. Julgava eu

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que conhecia satisfatoriamente Manhattan e os seus arre‑dores, mas a dimensão do meu engano tornou ‑se ‑me clara logo às primeiras páginas do livro», confessava Saramago. As Histórias de Nova Iorque tinham sido publicadas em Es‑panha por essa altura e não creio que Saramago tivesse lido alguma das obras anteriores de González, caso contrário es‑tou convicto de que teria dito o mesmo desses outros dois livros, Histórias de Roma e Histórias de Londres (sim, Enric González não é o mais imaginativo dos autores na hora de dar títulos ao que publica).

Esta é portanto a primeira parte de uma trilogia. O tríptico das cidades onde González viveu e das quais de‑cifrou alguns dos segredos que elas melhor guardam em si. (É de esperar que em breve se possa falar de uma tetralogia, quando o autor decidir relatar as suas «Histórias de Jerusa‑lém», cidade onde passou os últimos anos.)

Duvido que alguém possa ler este livro sem surpresas e sem encontrar nele uma Londres que não vem nos ma‑pas nem nos melhores guias. Uma Londres onde descobri‑mos, por exemplo, entre tantos outros aspectos surpreen‑ dentes, que não é só o metropolitano que circula por de‑baixo da terra: os correios, o Banco de Inglaterra e até os armazéns Harrods têm a sua própria Londres subterrâ‑nea, em túneis de quilómetros que são bem a prova de que o mundo está longe de ser apenas aquilo que vemos dele. É esse poder de revelação que faz deste livro uma viagem inesquecível.

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Nota prévia

Este livro foi publicado pela primeira vez em 1999. Hou‑ve um par de edições e uma terceira de bolso, vendida com uma revista de viagens. Algumas pessoas compraram ‑no e talvez o tenham lido. É improvável que essas pessoas, já avi‑sadas, o comprem de novo. Suponho que não será necessá‑rio preveni ‑las.

Preferi não actualizar o texto. Embora certas coisas tenham mudado (passou a época de Tony Blair, o Arsenal aprendeu a jogar futebol, desapareceram as denominações em pesetas, morreram a rainha ‑mãe e, temo bem, o cavalo Segala), Londres continua a ser a mesma. Uma cidade ma‑ravilhosa.

A nova edição obrigou ‑me a reler Histórias de Londres e um livrito muito mais recente, Histórias de Nova Iorque (José Mari Izquierdo, que durante anos foi meu chefe no El País, diz que sou o mais vago autor de títulos do mun‑do: tem razão). São parecidos na brevidade (também sou vago na escrita), mas não no espírito. Histórias de Londres é uma declaração de amor. O de Nova Iorque é outra coisa.

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Trabalhei em Barcelona, Madrid, Londres, Paris, Nova Ior‑que, Washington e Roma. Isso faz de mim vítima ocasional de uma pergunta incómoda: qual é a minha cidade preferi‑da? Essa pergunta costuma parecer ‑me equivalente àquela que infligem às crianças: de quem gostas mais, da mamã ou do papá? Depende, não é? Com as cidades passa ‑se um pou‑co o mesmo. Mas não em absoluto.

Se pudesse escolher, viveria em Londres.

E.G.Roma, 17 de Abril de 2007

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O Oeste

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O londrino acidental

O Verão de 1990 foi tórrido em Madrid. Eu vivia lá nessa altura e trabalhava na secção internacional do

diário El País. Um lugar bom numa altura má. No primeiro de Agosto, quando o grosso da redacção acabava de desapa‑recer até Setembro, o exército iraquiano invadiu o Koweit. Um punhado de xeques multimilionários pôs ‑se a caminho do exílio saudita a bordo das suas limusinas, em Washington foi desenterrado o machado de guerra e, indo ao pormenor, dois redactores do jornal — o infatigável Luís Matias López e o sempre muito cansado autor destas linhas — tiveram um mês penoso.

As jornadas de trabalho encadeavam ‑se das 11 da manhã às três ou às quatro da madrugada, de segunda a domingo: naquele mês de Agosto só consegui um par de horas livres e desbaratei ‑as numa ida ao dentista. Em ple‑na agonia, decidi que não era talhado para o jornalismo e comecei a congeminar possíveis alternativas. Não me ocorreu nada. E em Outubro dei por mim em Dahran,

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a cidade petrolífera saudita onde se concentravam as tro‑pas aliadas, como enviado especial a uma guerra futura. Era preciso esperar que expirasse, a 15 de Janeiro, o prazo concedido pela ONU às autoridades iraquianas, e Dahran não oferecia grande entretenimento: nem livros, nem im‑prensa internacional, nem televisão — existia televisão, mas só passava programas religiosos, desenhos animados e publicidade — e nem uma gota de álcool para os piores momentos. Sebastián Basco, do ABC, dedicou longas tar‑des à tentativa de me introduzir — sem grande êxito — nos segredos do bilhar. Com Arturo Pérez Reverte, então ainda na TVE, costumava ir às praias do Pérsico e trocáva‑mos frequentemente perguntas de tintinologia, do género: «Em que cavalos aposta o professor Wagner?» (Resposta: o professor Wagner, personagem de As Jóias de Castafiore, aposta em Sara, Oriana e Semíramis.) Com os companhei‑ros da TV3 tentei arranjar bebidas para o jantar de fim de ano e, depois de uma tentativa falhada (seis garrafas de uísque clandestino custavam dois mil dólares em Jeddah: demasiado caro e demasiado perigoso), acabámos por fa‑bricar um terrível álcool caseiro, o chamado sadiki, à base de água de arroz fermentada com levedura. Um dos infe‑lizes provadores daquela beberagem foi David Sharrock, do Guardian, com quem havia de me reencontrar pouco tempo depois em circunstâncias melhores.

Veio a guerra, calafetámos as janelas, colocámos as máscaras antigás à cintura e, basicamente, continuámos a fazer o mesmo que havíamos feito nos meses anteriores.

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Centenas de tipos disfarçados de Rambo juntavam ‑se to‑das as tardes junto à piscina do hotel e escreviam crónicas vibrantes sobre a guerra que imaginavam. Não víamos nada mais do que os bombardeiros, carregados de projécteis quando descolavam, vazios no regresso. Se, por acaso, al‑gum míssil iraquiano nos interrompia o almoço ou o jan‑tar, um empregado levantava os pratos e voltava a servi ‑los, reaquecidos ou confeccionados de novo, depois de termi‑nado o incidente. No Koweit e no Iraque havia guerra, mas a maioria da imprensa estava no limbo saudita; apesar disso, as redacções recebiam a dose quotidiana de façanhas béli‑cas dos seus repórteres no conflito do Golfo.

O meu substituto, Juan Jesús Aznárez, entrou no Ko‑weit e testemunhou pessoalmente o que tinha sido tudo aquilo: vários soldados iraquianos fizeram ‑no parar a meio do deserto e imploraram ‑lhe que os tomasse como prisio‑neiros, mas ele não pôde aceitar a rendição porque os sol‑dados não cabiam todos no seu Honda Civic. Enquanto eu lia as excelentes crónicas de Juanje, ainda espantado com a diferença entre a apaixonante realidade virtual criada pela CNN e a miserável realidade real, tomei uma decisão que me pareceu extremamente sensata: a minha mulher, Lola, e eu íamos deixar tudo e instalar ‑nos perto de Londres, onde teríamos um cão e uma bicicleta e viveríamos do ar.

Pedi que me fizessem as contas e fui despedir ‑me da directora ‑adjunta do El País, Sol Gallego ‑Díaz, e agradecer‑‑lhe de caminho a paciência que sempre tivera comigo. Sol escutou as minhas ideias sobre a mágica transformação do

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oxigénio britânico em calorias e proteínas, e sugeriu ‑me que de imediato fosse ter com Joaquín Estefanía, então director do jornal. Joaquín deixou ‑me delirar um pouco e de segui‑da ofereceu ‑me o lugar de correspondente em Londres. O normal teria sido eu aceitar de imediato, mas sentia ‑me sem a imaginação necessária para exercer o jornalismo con‑temporâneo. Joaquín, a bondade em pessoa, mandou ‑me ir para casa reflectir durante 24 horas.

Não foi preciso tanto tempo. Nessa mesma noite, na cozinha, Lola fez ‑me notar que o projecto de viver do ar tinha alguns pontos menos claros, nomeadamente no as‑pecto económico. E que Londres com um ordenado mensal sempre seria melhor do que Londres sem ordenado.

Creio que Lola tinha muita razão.No dia seguinte começámos a preparar a mudança. En‑

quanto ela encaixotava os nossos haveres e fechava o apar‑tamento de Madrid, eu apanhei um avião para Londres com o fervor de quem viaja para a terra prometida.

Tudo na vida tem uma finalidade. Eu descobri a mais esplêndida cidade do mundo graças a Saddam Hussein. Que este livro lhe pese na consciência.

Uma casa desadequada

O trajecto de metro desde o aeroporto de Heathrow até Londres fez ‑se num ápice. Hounslow, Osterley, Boston Manor, Northfields, South Ealing, Acton Town, Hammer‑

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smith... Que maravilhosa sonoridade! Com nomes assim, já se tem meio romance de paixão e intriga. Piccadilly Line: já não criam designações tão elegantes para linhas suburba‑nas. A própria carruagem, estreita e arredondada como um tubo, era um exemplo perfeito do senso comum britânico: para quê desperdiçar espaço e oxigénio?

Alguns meses e algumas lipotimias depois, a simples menção à Piccadilly Line haveria de produzir em mim uma incómoda sensação de asfixia. Mas aquela manhã era a pri‑meira manhã e sobrava ‑me ar: já não precisava dele, tinha um ordenado mensal.

Emergi da estação de South Kensington — uma bela plataforma, com um certo ar de apeadeiro de montanha — num estado próximo do encantamento, e abri caminho por entre os grupos de turistas com o passo decidido de quem conhece bem o seu caminho. Caía uma chuva mansa de Ju‑lho e desfrutei da frescura estival — soube mais tarde que a isso se chamava, com uma certa razão, «o miserável Verão inglês» — até que, empapado, desorientado e de novo na estação de metro, me resignei a tirar o mapa da cidade da carteira e segui pelo caminho dos turistas até ao meu novo domicílio: Thurloe, Exhibition Road, atravessar Cromwell, passar entre o Museu de História Natural e o Victoria & Albert, avançar até à sede dos mórmones e virar à direita. Essa era a Prince’s Gate Mews. Lola e eu íamos viver no nú‑mero 10.

Herdei a casa de Ricardo Martínez de Rituerto, o an‑terior correspondente do jornal. Tinha de a visitar para me

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certificar se os nossos móveis cabiam nela, mas enquanto dava uma vista de olhos ao local decidi que os móveis eram algo de dispensável e que logo se veria. Lola ainda estava em Madrid e nessa noite, por telefone, descrevi ‑lhe (talvez de um modo algo exaltado) as características do imóvel: um edifício de dois andares, com uma sala à entrada e uma escada formidável ao fundo, pela qual se acedia a um piso superior com três quartos e, ainda mais acima, a um sótão. Temo que ela tenha feito uma ideia demasiado optimista da casa e imaginou uma espécie de Manderley com avenida de ciprestes e casa de hóspedes. O comentário que fez, ao vê‑‑la, uns dias depois, foi lacónico e cortante.

— É pequena. E não tem jardim — disse.Ambas as observações eram correctas. O primeiro an‑

dar tinha uma cozinha diminuta e uma salinha, com uma estreita — mas, insisto, muito bonita — escada de caracol de ferro forjado que subia para os quartos e para uma casa de banho alcatifada de um rosa dos tempos do yé ‑yé. À es‑querda da entrada havia uma garagem. No conjunto, uma delícia. Na garagem e no sótão couberam bem os nossos livros e os móveis que não conseguimos encaixar na casa.

Os mews, uma disposição urbana tipicamente ingle‑sa e muito característica de Londres, são antigas cavalari‑ças reabilitadas. Dou a palavra ao sempre útil dicionário Longman:

Beco nas traseiras ou pátio numa cidade, onde em tem‑pos se guardavam os cavalos, hoje parcialmente recons‑

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truído para que possa viver lá gente, estacionar ‑se au‑tomóveis, etcetera. As casas dos mews, apesar de muito pequenas, são muito desejadas e podem revelar ‑se mui‑to caras.

Nada a acrescentar.A nossa vivenda tinha feito parte do conjunto do Mu‑

seu Victoria & Albert, e era curioso saber que do outro lado da parede se armazenavam riquezas fabulosas. A sensação era um pouco menos gratificante quando, de vez em quan‑do, de madrugada, os funcionários do museu arrastavam tronos chineses, telões quichuas e outros artigos maravi‑lhosos, mas estes ruídos ocasionais não eram nada quando comparados com as janelas das redondezas. A rua, empe‑drada, era um aprazível cul de sac ladeado por fachadas mul‑ticor — cor ‑de ‑rosa, creme (a nossa), branco, azul ‑bebé —, hera e flores. Nunca agradecerei o suficiente ao meu ante‑cessor e à sua esposa por terem encontrado e alugado aquela miniatura, cujo preço era descabido se contado em pesetas mas que se tornava uma pechincha em libras e no contexto do bairro e da cidade.

Eu sempre gostei dela. E Lola apaixonou ‑se logo a se‑guir. Mas não demorámos muito a descobrir que o olhar frio das autoridades via a casa como Lola a viu no primeiro dia: «pequena e sem jardim». Desadequada, em resumo.

O bucólico e impossível exílio gratuito com o qual ha‑víamos sonhado durante meses estava reduzido a cinzas. Uma vez instalados no número 10 de Prince’s Gate Mews,

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Lola e eu considerámos que, apesar de não estarmos no campo dando passeios de bicicleta e vivendo ao ar livre, podíamos ter um cão. Ambos já tivéramos cães, sabíamos como tratá ‑los e cuidar deles, e valia a pena aproveitar o facto de vivermos a dois passos do Hyde Park e dos Jardins de Kensington. Durante semanas pensámos num buldo‑gue que se chamaria Ken. Mas, uma vez tomada a decisão, fizemos o que acreditávamos que deviam fazer as pessoas responsáveis: ir ao canil municipal e adoptar um animal abandonado.

Havia muita coisa que ignorávamos a respeito de Londres.

A visita ao canil de Battersea foi agradável. Aten‑ deu ‑nos uma rapariga que tomou nota dos nossos nomes e da nossa morada e que nos aconselhou a não nos afei‑ çoarmos ainda a nenhum animal porque havia certas for‑malidades que levariam alguns dias a resolver. O bem ‑estar dos cães, disse ‑nos, era o mais importante. Concordei em absoluto.

Um homem fardado veio bater ‑nos à porta ao fim de uma semana, por volta da hora de jantar. Era um tipo de meia ‑idade e aspecto severo, grande como um armário, usando um uniforme azul coberto de insígnias, galões e dourados, identificado com uma placa de inspector do ca‑nil de Battersea. Deu ‑me as boas ‑noites com o seu vozeirão imponente de sargento ‑instrutor.

Mandei ‑o entrar com gestos algo desajeitados: tinha um cigarro numa mão e um copo de uísque na outra.

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nota biográfica

Enric González nasceu em Barcelona, em 1959.Começou a sua carreira no jornalismo aos 17 anos, es‑

crevendo para três periódicos catalães antes de, na década de 1980, ingressar no El País. Foi correspondente deste jor‑nal em Londres, Paris, Nova Iorque, Washington e Roma. Cobriu a Guerra do Golfo, o genocídio do Ruanda e os ensaios nucleares no Atol da Moruroa, entre vários outros grandes acontecimentos dos séculos xx e xxi. Em 2006 re‑cebeu o Prémio Cirilo Rodríguez para melhor correspon‑dente da imprensa espanhola e, em 2009, o Prémio Cidade de Barcelona de Jornalismo.

É autor de quatro outros livros: Historias de Nueva York (2006), Historias del Calcio (2007), Historias de Roma (2010) e Cuestión de fe (2012).

Actualmente vive em Jerusalém.

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foi composto em caracteres HoeflerText e impresso na Offsetmais, Artes Gráficas SA, em papel Coral Bookde 80 g, numa tiragem de 2000exemplares, em Julho de 2012.

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Morte na PérsiaAnnemarie Schwarzenbach(trad. Isabel Castro Silva)

Uma Ideia da ÍndiaAlberto Moravia(trad. Margarida Periquito)

ParisJulien Green(trad. Carlos Vaz Marques)

O Japão é Um Lugar EstranhoPeter Carey(trad. Carlos Vaz Marques)

VenezaJan Morris(trad. Raquel Mouta)

Caderno AfegãoAlexandra Lucas Coelho

Disse ‑me Um AdivinhoTiziano Terzani(trad. Margarida Periquito)

Nova IorqueBrendan Behan(trad. Rita Graña)

Histórias EtíopesManuel João Ramos

Na SíriaAgatha Christie(trad. Margarida Periquito)

A Viagem dos InocentesMark Twain(trad. Margarida Vale de Gato)

Viva MéxicoAlexandra Lucas Coelho

Jerusalém — Ida e VoltaSaul Bellow(trad. Raquel Mouta)

Caminhar no GeloWerner Herzog(trad. Isabel Castro Silva)

Cartas do Meu MagrebeErnesto de Sousa

Viagem de AutocarroJosep Pla(trad. Carlos Vaz Marques)

O Colosso de MaroussiHenry Miller(trad. Raquel Mouta)

O Murmúrio do MundoAlmeida Faria

Viagem a TralaláWladimir Kaminer(trad. Helena Araújo)

nesta colecção

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