história viva - julgamento de jesus

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Diante de seus juízes, Jesus se cala Questionado por Pilatos, Jesus poderia ter dito "não" e seria, certamente, libertado. Mas ele não disse nada, o que provocou o espanto do juíz Jesus teve um processo justo? Do ponto de vista estrito do direito romano, não ! nenuma ressalva a azer sobre a orma como a audi#ncia transcorreu. $sclarecimento sobre os atores do drama. %ann &e 'oec ( istoriador.  )o Direito romano, u m processo ( uma pe*a modesta enc enada por tr#s atores apenas+ o acusador, o acusado e o juiz. )o caso de Jesus, o acusador (, de ato, uma coletividade, que constitui uma  pessoa moral, "os rão-sacerdotes e o s anciãos do povo" Mateus , /0, 12. $sses personaens são cortejados pelo $stado romano que ap3ia sempre e em toda parte os not!veis, mas, ao m esmo tempo, desprezados porque são judeus, isto (, pertencem a um povo vencido. 4 acusado, Jesus, pertence 5 cateoria dos "pererinos"+ omem livre, ele não possui cidadania romana. Para os romanos, ele não passa de um vaabundo judeu, o que o torna duplamente indino porque não e6erce nenuma proissão e ( - de resto, como seus advers!rios - descendente de vencidos. 4 juiz cama-se P7ncio Pilatos. $sse personaem ist3rico, bem conecido ali!s, e6erce a un*ão de overnador da Jud(ia+ encontrou-se uma inscri*ão mencionando seu nome na constru*ão de um santu!rio em omenaem ao imperador 8ib(rio 9:-1; d.<.2. =ecrutado entre os cavaleiros, ele ( mais versado na arte da uerra e das inan*as do que nos assuntos de justi*a. >l(m disso, para tomar suas decises ele ( assistido por um conselo ormado de especialistas que não aparece nos $vanelos seja porque o julamento não ( diícil de sentenciar, seja porque essa inst@ncia não desempenou um rande papel nesse caso. 8estemunas podem ser intimadasA elas constituem, na verdade, o coro dessa tra(dia. Muitas institui*es de oje em dia não e6istiam no mundo romano, em particular, a polícia, o juiz de instru*ão e o minist(rio pBblico o procurador eral2. Dessas aus#ncias decorrem v!rias oriinalidades no processo judicial romano. Por e6emplo, quando um cad!ver era descoberto na rua, ninu(m prevenia a polícia, que não e6istia, e ninu(m coniava o caso a um juiz de instru*ão, que tamb(m não e6istia. <onorme a tradi*ão, os passantes procuravam identiicar a vítima e prevenir a amília. $ra ela que realizava a investia*ão e que indicava ao juiz a pessoa que considerava culpada. <ompreende-se, portanto, que um omem sem amília jamais seria vinado se osse morto. $m seuida, o acusador devia convocar o acusado a se apresentar ao juiz e precisava obri!-lo, se preciso, pela or*a, a comparecer perante a justi*a. $m eral, as pessoas convocadas para um processo compareciam+ não comparecer siniicava reconecer a culpabilidade e, portanto, incorrer numa condena*ão.

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Diante de seus juízes, Jesus se cala Questionado por Pilatos, Jesus poderia ter dito "não" e seria, certamente, libertado. Mas ele não

disse nada, o que provocou o espanto do juíz

Jesus teve um processo justo? Do ponto de vista estrito do direito romano, não ! nenumaressalva a azer sobre a orma como a audi#ncia transcorreu. $sclarecimento sobre os atores dodrama.

%ann &e 'oec ( istoriador.

 )o Direito romano, um processo ( uma pe*a modesta encenada por tr#s atores apenas+ o acusadoo acusado e o juiz. )o caso de Jesus, o acusador (, de ato, uma coletividade, que constitui uma

 pessoa moral, "os rão-sacerdotes e os anciãos do povo" Mateus, /0, 12. $sses personaens sãocortejados pelo $stado romano que ap3ia sempre e em toda parte os not!veis, mas, ao mesmotempo, desprezados porque são judeus, isto (, pertencem a um povo vencido.

4 acusado, Jesus, pertence 5 cateoria dos "pererinos"+ omem livre, ele não possui cidadaniaromana. Para os romanos, ele não passa de um vaabundo judeu, o que o torna duplamenteindino porque não e6erce nenuma proissão e ( - de resto, como seus advers!rios - descendentde vencidos.

4 juiz cama-se P7ncio Pilatos. $sse personaem ist3rico, bem conecido ali!s, e6erce a un*ãde overnador da Jud(ia+ encontrou-se uma inscri*ão mencionando seu nome na constru*ão de usantu!rio em omenaem ao imperador 8ib(rio 9:-1; d.<.2. =ecrutado entre os cavaleiros, ele mais versado na arte da uerra e das inan*as do que nos assuntos de justi*a. >l(m disso, paratomar suas decises ele ( assistido por um conselo ormado de especialistas que não aparece no$vanelos seja porque o julamento não ( diícil de sentenciar, seja porque essa inst@ncia nãodesempenou um rande papel nesse caso. 8estemunas podem ser intimadasA elas constituem, verdade, o coro dessa tra(dia.

Muitas institui*es de oje em dia não e6istiam no mundo romano, em particular, a polícia, o juide instru*ão e o minist(rio pBblico o procurador eral2. Dessas aus#ncias decorrem v!riasoriinalidades no processo judicial romano. Por e6emplo, quando um cad!ver era descoberto narua, ninu(m prevenia a polícia, que não e6istia, e ninu(m coniava o caso a um juiz de

instru*ão, que tamb(m não e6istia. <onorme a tradi*ão, os passantes procuravam identiicar avítima e prevenir a amília. $ra ela que realizava a investia*ão e que indicava ao juiz a pessoaque considerava culpada. <ompreende-se, portanto, que um omem sem amília jamais seriavinado se osse morto. $m seuida, o acusador devia convocar o acusado a se apresentar ao juie precisava obri!-lo, se preciso, pela or*a, a comparecer perante a justi*a. $m eral, as pessoasconvocadas para um processo compareciam+ não comparecer siniicava reconecer aculpabilidade e, portanto, incorrer numa condena*ão.

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4 processo de Jesus (, a esse respeito, muito interessante. 4s rão-sacerdotes e os anciãos do povo queriam arrast!-lo para o tribunal do overnador. $ra preciso primeiro encontr!-lo e oi aíque Judas interveio+ por trinta den!rios, prometeu entre!-lo a eles. Disse-les que Jesus seretirara para o jardim de Cets#mani e o indicou para seus contratadores. $sses enviaram seusomens para prend#-lo+ "alava ainda, quando ceou Judas, um dos doze, e com ele uma randturba, com espadas e bastes, mandada pelos rão-sacerdotes e pelos anciãos do povo" Mateus,/0, :;2. Em de seus amios tenta deend#-lo e ere um dos atacantes. Mas Jesus se recusa a sersocorrido por meio da viol#ncia+ ">quele que empunar a espada, perecer! pela espada." 8odoesse processo est! conorme com o direito romano. $m aluns casos, os maistrados municipaisenviavam seus escravos, por e6emplo, para prender um omem que estivesse azendo esc@ndalonuma taverna. 4u então, recorriam a milícias locais, a associa*es de ilos de ricos, os juvenes,que ajudam voluntariamente na manuten*ão da ordem. $m situa*es e6cepcionais, o e6(rcitointervina. Para os soldados se me6erem, era preciso que bandidos estivessem submetendo umareião )esse caso, a interven*ão se caracterizava por sua brevidade e dureza. Mas cadaovernador possuía uma uarda de onra que le permitia, em caso de necessidade, arantir asun*es de polícia.

 )o come*o, os romanos proibiam a proissão de advoado. Mas ninu(m podia impedir umacusado de pedir a um bom orador, um bom conecedor do Direito, de o ajudar "amiavelmenteem troca de um "presentino." oi assim que <ícero adquiriu celebridade e uma s3lida ortuna.Plínio o Mo*o tamb(m advoava bastante+ em sua correspond#ncia, que data do início do s(culoFF de nossa era, ele menciona reqGentemente os casos em que interveio. Mesmo quando a

 proissão de advoado oi inalmente reconecida, era preerível deender-se sozino+ era oindício de que não se tina nada a temer.

Em dos processos mais conecidos da >ntiGidade teve como cen!rio Habrata, na atual &íbia, se desenrolou por volta de 9I. 4 jovem >puleio, celebrizado posteriormente como romancista,oi acusado por um membro da amília de sua muler de ter recorrido a pr!ticas m!icas paraseduzir aquela que se tornara sua esposa, uma muler bem mais rica e mais idosa do que ele.

 )a (poca, a acusa*ão era rave e conduzia acilmente 5 morte. Diante do proc7nsul da Krica, d passaem pela cidade, >puleio apresentou a pr3pria deesa, a sua >poloia, te6to queconservamos e que ( muito instrutivo. $le se compe de tr#s partes. $m primeiro luar, ele airma onradez de sua pessoa. $m seundo, deende-se da acusa*ão de maia. Mostra que as pr!ticaque le oram recriminadas dizem respeito 5 ci#ncia e não 5 maia. > procura de pei6es raros

 pertence ao domínio das ci#ncias naturais e, se ele pretendia praticar disseca*es não era para

eneiti*ar uma pessoa obviamente seduzida pelo seu encanto e sim para estud!-los porque era ums!bio. $m terceiro, aborda os delitos menores que le oram imputados. )o eral, transorma o processo em uma disputa opondo citadinos cultos a camponeses inorantes. )aquelas condi*esele conseue a absolvi*ão e percebe-se claramente o papel de tr#s personaens, o acusadormembro de uma amília2, o acusado >puleio2 e o juiz o proc7nsul2.

$sse caso de Habrata ilustra que o e6ercício da justi*a variava conorme ela osse eita em =omou na província. $m =oma, durante o >lto Fmp(rio s(culos F e FF de nossa era2, um processo

 podia seuir dois caminos dierentes, dois tipos de procedimentos. 4 procedimento dito

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"ormular" remontava a uma tradi*ão que datava de um período recente, o im da =epBblica. 4acusador comparecia primeiro diante de um maistrado, o pretor, que "dizia o direito". $sseBltimo pedia ao acusador que escrevesse sua peti*ão e ao acusado, sua resposta. <om elas, elerediia um te6to, ou "3rmula", que contina os pontos de vista das duas partes e observa*es deDireito destinadas ao juiz. Depois, desinava um juiz, um simples cidadão romano no Fmp(rio,essa escola era coniada aos "dec#nviros encarreados do processo"2. 4s juízes, camadoscentBnviros, são distribuídos em quatro, depois cinco cortes. $les escutam as duas partes e astestemunas, depois decidem. 4 objeto do litíio les deve ser apresentado, por e6emplo, quandse trata de um escravo. Mesmo no caso de um bem imobili!rio, como um campo, o demandante

 precisava apresentar uma parte simb3lica, como um punado de terra. 4 acusado tamb(m deviaestar presente. Mas se ele tina razes s(rias para não estar l!, especialmente se estivesse doente

 podia pedir um relat3rio ou se azer representar. He o dossi# les parecesse obscuro demais, os juízes podiam desistir pronunciando a 3rmula+ non liquet não est! claro, e6iste dBvida2. >ssimcomo o acusador devia obriar o acusado a se apresentar, ele tamb(m devia obri!-lo a paar, nã

 podendo contar com a or*a pBblica que não intervina nos conlitos particulares. Ls vezes, era preciso um seundo processo para obriar um perdedor que osse mau paador. )em mesmo os juizes eram proissionais do Direito. <omo P7ncio Pilatos, eles precisavam se cercar de um

conselo de especialistas.

8amb(m o Henado possuía uma jurisdi*ão. $le julava todos os casos envolvendo alum de seumembros e desempenava, pois, o papel de uma alta corte. Mas ocorre que o imperador assistia essas sesses e pesava nos resultados com a sua presen*a ou mesmo simplesmente enviando umde seus subordinados pr36imos, especialmente o preeito da pretoria. <om eeito, ( o principal dHenado que desempenava um papel crescente como mostra outro procedimento, denominado"e6traordin!rio" porque escapava 5 "ordem" dos juízes, que se desenvolvia com reularidade.8rata-se daquele que se desenrolava no tribunal do imperador ou de seus uncion!rios, como o

 preeito da pretoria. )esse caso, avia apenas uma etapa+ acusador e acusado se encontravamdiante de uma personaem que "diz o direito" e que, ao mesmo tempo, preencia as un*es de

 juiz. 4 desenvolvimento contínuo do poder imperial encontra uma boa ilustra*ão ao se e6aminaras compila*es de leis que oram elaboradas no 'ai6o Fmp(rio, o <3dio teodosiano :1 d.<.2 o <3dio Justiniano I1:2. $les retomam uma vela tradi*ão ravura das Doze 8!buas, primeir<3dio romano escrito em :I-:I9 a.<.2 e permitem ver como as decises imperiais oram seimpondo aos poucos.

 )as províncias, o caso podia ser tratado em nível municipal se não oerecesse rande import@nc<ada cidade eleia, todos os anos, dois maistrados cujo título era e6plícito, os "duBnviros

encarreados de dizer o direito". Diante deles compareciam os ladres de alina e os autores dearesses ísicas nas tavernas. )os casos mais importantes, era o overnador da província queintervina na qualidade de juiz supremo.

 )o s(culo F, a Jud(ia era uma pequena província submetida 5 autoridade do imperador e não doHenado - na verdade, sob 8ib(rio, ela não era uma província de direito, mas de ato+ constituía uterrit3rio dependente da Híria, de maneira te3rica, ( bem verdade. )aquela (poca, ela estavaconiada a um "preeito" e não a um "procurador", como dizem, de maneira anacr7nica, os$vanelos ou, pelo menos, sua tradu*ão em latim2. 4 ato de Jesus ser denunciado diante do

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Hin(drio não apresentava nenum interesse para o Direito romano. $ssa assembl(ia de not!veis judeus não tina poderes amplos e não recebia o "direito de espada", isto (, o direito de vida emorte. Mas essa passaem tina um impacto político e psicol3ico. Mostrava ao overnador osentimento das elites sociais locais. $mbora ele zombasse desse sentimento quando se tratava dointeresses de =oma, tina interesse de levar em conta o que não dizia respeito diretamente 5autoridade do imp(rio.

4 processo de Jesus ilustra pereitamente o procedimento "e6traordin!rio" porque P7ncio Pilatoaiu na condi*ão de representante do imperador. $le teve apenas uma ase, portanto, diante doovernador que era, ao mesmo tempo, o personaem que "diz o direito" e que pronunciava asenten*a. >li se encontraram os tr#s personaens esperados, o acusador, o acusado e orepresentante da autoridade. 4s "rão-sacerdotes e os anciãos do povo" conduziram a acusa*ão,relembrando o que oi dito no Hin(drio+ Jesus declarara ser o rei dos judeus. >ora era a vez deP7ncio Pilatos intervir. $le peruntou a Jesus+ "8u (s o rei dos judeus?" Mateus, /; 992. He Jesurespondesse "sim", ele se colocaria numa posi*ão indeens!vel+ reconeceria a inten*ão deinsultar a autoridade de =oma e de seu imperador. $le tamb(m podia dizer "não" e o overnadorcertamente o liberaria. Mas Jesus não reaiu, não disse nada, o que provocou o espanto de Pilato

4 acusado permaneceu mudo. $, claro, ele era pobre demais para paar um advoado. >í o juizsentenciou. Diante dos clamores do povo e levando em conta a atitude dos not!veis de Jerusal(mele julou mais político conden!-lo 5 pena de morte por cruciica*ão. )esse caso, o condenadonão valia rande coisa aos olos do overnador+ seu meio social e sua oriem (tnica nãodepunam a seu avor. >l(m disso, sua atitude, seu sil#ncio o prejudicaram.

4 processo termina aí porque Jesus, tendo status de pererino, não pode apelar. >o contr!rio,aluns anos mais tarde, Paulo, que ( cidadão romano, pede por duas vezes o beneício da apela*a <(sar e, por duas vezes, vai a =oma. Heja como or, essa audi#ncia com o comparecimento deJesus diante de Pilatos tamb(m est! conorme com o Direito romano.

 )a justi*a romana, o e6(rcito ozava de uma situa*ão particular. 4s militares, como em muitos$stados, mesmo os modernos, escapam 5 lei dos civis. )os assuntos de disciplina, em caso dedelitos leves, os oiciais, centuries e tribunos, podem distribuir puni*es. 4s casos raves são

 julados numa inst@ncia superior.

4 tratado de 8ertuliano, Da coroa, ilustra essa ierarquia a um s3 tempo militar e judici!ria. >ist3ria se passa em =oma no início do s(culo FFF. Em soldado cristão recusa-se a participar deuma cerim7nia paã e, no meio das estividades, joa no cão seu capacete e a coroa de olas

que simboliza sua participa*ão nos ritos do culto imperial. 4 centurião que o comanda ordena-lque volte 5s ileiras. $le se recusa. 4 tribuno repete a ordem. )ova recusa. 4 cristão ( preso edepois denunciado aos preeitos da pretoria que prontamente o condenam 5 morte. $le se torna um!rtir, então.

Mais simples que nosso Direito moderno, o Direito romano apresenta características que le são pr3prias. $stas são tr#s dessas características. Primeiro de tudo, embora seja tão ormalista quana nossa, a pr!tica judici!ria dos romanos o ( de uma orma dierente. Por um lado, a preocupa*ãcom a orma ( indiscutível. 4 jurista Caio narra assim uma anedota c(lebre. Em campon#s que

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