história narrada e escrita pela professora marilda rezende · nos reunimos tantas vezes para...

38
1 “- PRÔ, O SOL É OU NÃO É UMA ESTRELA?” História narrada e escrita pela professora Marilda Rezende Uma pergunta de criança ... Meu filho de cinco anos estuda numa escola de educação infantil. Durante reunião de pais, sua professora narrou um buliçoso episódio ocorrido em aula. Algumas crianças estavam no cantinho da pintura, colorindo estrelas, que seriam colocadas em painel do pátio. Então, um garoto da turma perguntou para a professora: - Prô, o sol é uma estrela? E ela respondeu: - Sim, meu querido, o sol é uma estrela! Para surpresa da professora, o garoto começou a rir e seu riso espalhou-se pela sala. A criançada ria, ria ... gargalhava. No fundo da sala, num dos cantinhos, as crianças não se continham, ficavam vermelhas de tanto rir.

Upload: dominh

Post on 25-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

“- PRÔ, O SOL É OU NÃO É UMA ESTRELA?”

História narrada e escrita pela professora Marilda Rezende

Uma pergunta de criança ...

Meu filho de cinco anos estuda numa escola de educação infantil. Durante reunião

de pais, sua professora narrou um buliçoso episódio ocorrido em aula.

Algumas crianças estavam no cantinho da pintura, colorindo estrelas, que seriam

colocadas em painel do pátio. Então, um garoto da turma perguntou para a professora:

- Prô, o sol é uma estrela?

E ela respondeu:

- Sim, meu querido, o sol é uma estrela!

Para surpresa da professora, o garoto começou a rir e seu riso espalhou-se pela sala.

A criançada ria, ria ... gargalhava. No fundo da sala, num dos cantinhos, as crianças não se

continham, ficavam vermelhas de tanto rir.

2

E a história continua ...

A professora, atônita, tentava tranqüilizar a classe e perguntava:

- Crianças, por que tanto riso? O sol é uma estrela sim!!

Mais riso, mais gargalhada.

A resposta veio rápida. Agrupando forças e apelando para a Geofísica, a mestra

esquematizou, na lousa, os movimentos da Terra, explicando que esta gira e por isso temos

o dia e a noite.

Naquele momento, a sala ficou em silêncio, acompanhando a explicação - que

parecia não convencer os pequenos. Terminada a explanação, voltam as gargalhadas e,

irritada com tal comportamento, muito brava e em voz alta, a professora disse:

- O SOL É UMA ESTRELA SIM! EU FIZ FACULDADE, MEU PROFESSOR

ENSINOU E PONTO FINAL! CHEEEEEEGAAAAAAAA!!! É ESTRELA E

ACABOU!!! ENTENDERAM???!!!

Silêncio total, expressões assustadas e até mesmo amedrontadas. Certamente as

crianças não imaginavam tanta zanga.

Alguns minutos depois, o garoto da pergunta causadora de tanto alvoroço

aproximou-se e, baixinho, disse:

- Professora, se o sol é uma estrela, por que ele não brilha de noite?

3

A história não termina ...

Em casa, perguntei para meu filho:

- Filho, o sol é uma estrela?

- Não sei, acho que é, a professora falou que é, eu não sei!

A irmã de dez anos resolveu explicar que, no céu, há muitas estrelas ... – iniciando

um diálogo entre os dois:

- As estrelas foram desenhadas e depois coladas num pano grosso e escuro, para

poderem pendurar no céu – disse ela.

- Não foram coladas, foram pintadas, Tatá!

- Tá bom, pintaram e colaram lá!

- Um pintou a estrela do escuro e a outra pintou o sol do dia – disse meu filho.

A menina tentou continuar com a brincadeira, mas percebeu que o irmão não queria

mais falar sobre o assunto.

Assunto novamente presente durante o final de semana, numa chácara, onde a

família estava em festa junina. Muitos fogos, crianças correndo, soltando bombinhas e volta

e meia meu filho olhava para o céu, não só para ver os fogos, mas também, com certeza,

para admirar as estrelas. Num destes momentos, o pai aproximou-se puxando conversa:

- Então, as estrelas estão sozinhas? O sol não está lá?

- Hoje tem um pano bem grande e cheio de estrelas aqui na chácara. Lá de casa, eles

pintaram poucas, elas ficam mais longe. Aqui, elas estão agarradinhas.

- Mas, e o sol, não pintaram?

- Não, você não entende? Eles puxam o pano, aparecem as estrelas da noite, depois

cansam e puxam o outro pano, azulzinho!

4

Uma breve introdução. Escrita após termos terminado de escrever o texto-base.

Escrita pelo professor Wenceslao Machado de Oliveira Jr

Então escrever

é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra.

Quando essa não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha,

podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia:

a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler “distraidamente”.

Clarice Lispector

O texto que leremos juntos e que será algo para ir e vir durante todo o semestre foi

escrito para essa disciplina. Não teve outro motivo que não esse. Então, podemos dizer que

ele foi escrito para vocês e para nós. Para ser um dos fios que constituirá o tecido de nossas

relações daqui em diante.

Esse texto foi escrito a muitas mãos. Mais exatamente a dezesseis mãos. Mãos da

Marilda, da Alexandra, da Elaine, da Juçara, da Maria, da Michele, do Adriano, do

Wenceslao. Em alguns momentos, pensamos em deixar no texto as marcas dessas mãos

(cores diferentes para cada um de nós), mas ao fim resolvemos escondê-las, menos por

desacreditarmos na outra opção e mais porque descobrimos que, ao longo desse ano em que

nos reunimos tantas vezes para conversar e rir, as idéias de uns foram sendo misturadas às

idéias dos outros e sendo assim separar algo que já não é mais separado não ficava bem.

Mas contamos isso porque gostaríamos de dizer a vocês que esse texto (como todos os

outros) tem uma história e que ele foi sendo escrito e reescrito na medida mesma de nossas

vidas e relações.

Para nós, o conteúdo, as idéias “contidas na” ou “suscitadas pela” escrita devem

estar muito além, ou noutra dimensão que não a visual. Para “ler” tais idéias é preciso mais

do que “ler as palavras por meio dos olhos”. Seria como se tivéssemos dois conjuntos

(naquelas representações com círculos), um contido no outro. A escrita (as palavras que

desenhamos no papel para os olhos verem) formam o conjunto menor, o que está contido.

Se este conjunto for muito grande, aproximando-se dos limites daquele que o contém,

5

então, “tudo será lido com os olhos”, o que não é nossa opção. Por isso, reescrever sempre,

pois a cada leitura novas entrelinhas são capturadas pelos leitores e inseridas no texto...

Chamamos a atenção para essa reescrita pois ela se constituiu num “método” para

nós. Convergimos a ela por diversos caminhos. Um deles foi o já tradicional caminho da

produção dos textos escolares, onde o seguinte tem por base o anterior. Outro foi o

ensinamento de James Hillman, um psicólogo junguiano americano, que ao final de um de

seus ensaios diz que a palavra respeito tem origem no latim, ainda no período romano, e foi

constituída da união de duas palavras “re” e “spectare”: olhar de novo, mirar com mais

cuidado, perceber os detalhes, cuidar. Então, para nós reescrever (ou refazer) é respeitar o

que foi feito e quem o fez.

Mas se a reescrita foi para nós um “método” que orientou nossa produção, esse

“método”, como deve ter ficado claro na última frase do parágrafo acima, é mais que um

“método” de produzir objetos (textos, programas, etc). Temos a pretensão de dizer que ele

tem sido nosso “método” de produzir pessoas, subjetividades. E é nesse sentido que nós os

propomos a vocês. Porque ele, ao se debruçar sobre o já existente (as pessoas e suas

culturas, suas produções, suas vidas), propõe como continuidade de seu desenvolvimento o

ouvir, o olhar, o tocar esse já existente (os alunos e seus conhecimentos manifestados em

suas produções).

Sendo assim, não estaremos aqui propondo mudanças, mas propondo caminhos e

percursos os quais vocês seguirão em parte ou por inteiro, de acordo com suas vontades,

possibilidades, afetividades, sintonias e antipatias. Esses caminhos e percursos estão

vinculados às nossas experiências docentes, às nossas pesquisas, às nossas vontades

políticas de um mundo onde as relações entre as pessoas (notadamente entre professor e

alunos) sejam menos rápidas e mais solidárias, onde tenhamos mais tempo para ouvir e

menos coisas a fazer, onde estejamos mais preocupados em descobrir maneiras de realizar

nossos sonhos (como fazer com que esse aluno aprenda?!!) e menos preocupados em

“cumprir o programa”.

Como estratégia de não dispersão nos infinitos caminhos que gostaríamos de

conversar com vocês, escolhemos agrupar alguns deles em torno daquilo que chamamos

“eixos”, em torno dos quais propomos girar...

6

Esses eixos não devem ser pensados como conteúdos para serem ensinados em

unidades didáticas um após o outro. Pensamos esses eixos em coisas a serem lembradas por

nós em cada prática educativa que venhamos a desenvolver. Eixos que, além de nortearem

certas ações pedagógicas, pairem sobre todas as demais, de modo a nos deixar atentos para

os momentos em que uma fala, uma piada, uma foto, um desenho permita aproximar e

circular em torno de algum ou alguns desses eixos, aprofundando questões, olhando-as de

outros ângulos, de outras distâncias, a partir de outras informações, em outro contexto.

Dito de outra maneira: esses eixos devem ser pensados como “nuvens” que passam

sobre nossas cabeças enquanto pensamos, planejamos, atuamos em nossas ações

educativas. O nosso desejo – possível?!! – é que cada professor venha a perguntar-se

sempre se tal atividade que está propondo, planejando, irá levar os alunos a aprofundar os

“conteúdos” desses eixos. E mais, sonho maior, que cada professor reconheça, no decorrer

mesmo de suas aulas, as oportunidades abertas pela própria dinâmica educativa para

adentrar em algum destes eixos.

Pensamos que os eixos estão interligados nas práticas educativas, ou seja, raramente

uma prática estaria buscando criar percursos em apenas um eixo somente.

Sendo assim, quando propomos um deslocamento do individual para o social, ou

perseguimos uma educação que estimule as pessoas a se preocuparem não apenas consigo

próprias, temos presentes idéias próximas daquelas das de (raciocínio por) escala:

abrangência, mudança de foco, etc.

Quando falamos em elementos do mapa, pensamos que eles podem ser

desenvolvidos durante um Estudo do Meio sobre o lugar onde os alunos moram e onde

convivem com inúmeras formas de trabalho e onde convivem diversas identidades sociais,

que podem ser entendidas como mutáveis caso o Estudo seja realizado tendo por base as

mudanças de contextos espaciais ou temporais propostos no eixo raciocínio por escala.

Então podemos ter como perguntas, para nós e para fazer aos alunos, enquanto

organizamos e realizamos um estudo do lugar-escola: quantas vezes podemos reduzir para

que ele caiba nessa folha e ao mesmo tempo possamos colocar tudo o que consideramos

importante? Qual tipo de legenda usaremos para que o mapa seja legível por outras pessoas

e ao mesmo tempo acolha as diversidades que encontramos nesse lugar? Quais são as

identidades sociais que encontramos na escola? Elas são vinculadas ao local de moradia, à

7

idade das pessoas, ao sexo, ao tamanho, à cor da pele, ao sotaque, ao tipo de roupa que

vestem, à religião que praticam, ao tipo de trabalho que fazem, ao salário que ganham, etc?

Quais trabalhos se realizam na escola? Sempre foram assim? Existe um lugar específico

para cada um ou todos podem ser realizados em qualquer lugar? Onde está o norte da

escola para que possamos localizá-lo no mapa? Quais os objetos que se usam em cada

trabalho realizado? Como esses trabalhos se organizam no tempo? Qual duração têm cada

um? Qual o efeito deles na saúde das pessoas? E como as pessoas se sentem em seu

trabalho e em suas identidades sociais? Quando penso na minha identidade de negro(a) faço

parte da maioria da escola, mas quando penso na minha identidade como professor(a) sou a

minoria. É possível então eu ser ao mesmo tempo membro da maioria e da minoria? Para

mim é muito importante aquela árvore ali no pátio – me traz boas recordações e é uma parte

verde na escola – mas estamos precisando ampliar a cantina para poder atender melhor aos

alunos pois o bairro cresceu e a escola abriu novas turmas. Como fazer? Derrubamos a

árvore que é muito importante para um grupo de pessoas ou preservamo-la onde está e

ficamos espremidos na cantina? Ou transferimos a árvore para a praça? Ou encontramos

outra solução para ampliar a cantina com os técnicos? Ou organizamos o horário da escola

de outra maneira de modo a manter a cantina como está e todos poderem usá-la, mas em

horários distintos?

Em resumo, numa mesma atividade todos os “conteúdos” que reunimos em torno

desses eixos podem ser tocados e de alguma forma ampliados, retomados, tensionados. O

importante é levar os alunos a pensar o espaço onde vivem e isso inclui o mundo todo.

Pensar o espaço geográfico não é saber o que tem nele, mas é entender porque ele é assim e

conseguir propor permanências e mudanças nele de modo a atingir uma vida melhor, seja

essa vida melhor para si mesmo ou para seu grupo social ou para aqueles que precisam

mais... entendendo que essas ações no espaço se realizam na tensão e na solidariedade do

jogo político das relações entre homens e mulheres.

8

CINCO EIXOS ORIENTADORES DE

PRÁTICAS EDUCATIVAS ESCOLARES VOLTADAS A INICIAR REFLEXÕES SOBRE O ESPAÇO

NOS PRIMEIROS QUATRO ANOS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Texto escrito coletivamente pelas APs e Supervisores da disciplina Teoria Pedagógica e Produção do Conhecimento em Geografia

No título acima há tentativa de destacar pontos fortes da perspectiva que estamos

assumindo para pensar e propor rumos durante momentos em que conhecimentos

geográficos estiverem no centro de práticas educativas escolares, nos anos iniciais da

Educação Básica.

Este texto visa dizer mais palavras acerca desses pontos fortes, de modo a nos

permitir (a nós que os “inventamos” e aos leitores) uma aproximação mais tranqüila de

nossas pretensões e de nossos inevitáveis vazios de entendimento.

Os destaques do título nos auxiliam a construir a escritura.

Os cinco eixos indicam caminhos a seguir, caminhos aglutinando um conjunto de

informações, conhecimentos e raciocínios geográficos pertinentes ao entendimento do

mundo no qual vivemos – e de seu espaço geográfico em especial.

Cinco foi quantidade escolhida com deliberado intuito de evitarmos a dispersão de

inúmeras coisas a fazer e propor em tempo tão curto – 60 horas de carga horária total.

Quisemos fugir da falta de tempo para discutir dúvidas e propor práticas educativas

escolares que auxiliem os professores a iniciar ações – atos e reflexões – nos rumos que

acreditamos importantes neste momento histórico da sociedade brasileira, em geral, e das

instituições escolares públicas da Região Metropolitana de Campinas, em particular.

Nós, o grupo de professores da disciplina Teoria pedagógica e produção do

conhecimento em Geografia (PROESF/FE/Unicamp), chegamos aos cinco eixos a partir de

tentativa de listar o que considerávamos muito significativo para ser “trabalhado” nos anos

iniciais do ensino fundamental, tomando como base o conhecimento geográfico, tanto

9

acadêmico quanto escolar, tanto atual quanto tradicional. Cada um enumerou três pontos

(entre assuntos, conceitos, temas, habilidades, conteúdos, raciocínios etc ...) e, durante uma

de nossas reuniões, fomos aproximando uns dos outros, de modo a aglutiná-los em torno

de, no máximo, cinco eixos norteadores de nossas ações no contexto desta disciplina.

Nos cinco eixos imbricam-se idéias repetidamente conversadas, debatidas ..., porém,

confessamos, nem sempre muito claras. Entre essas idéias podemos citar a insatisfação com

o ensino somente conceitual, a insatisfação, ainda mais forte, com o ensino meramente

informativo, uma terceira insatisfação com o ensino somente instrumental – notadamente

no caso dos mapas -, e o desejo de um ensino que, em vez de somente dizer o que existe no

espaço geográfico, busque fazer com que o espaço ‘salte aos olhos’ de alunos e professores,

passe a inquietá-los, gere ‘estranhamentos’, dúvidas, estimulando a curiosidade, a

colocação de perguntas (por que é assim? poderia ser de outro modo? etc) e a construção de

interpretações. Desejamos um ensino que ainda estimule a curiosidade e forneça elementos

para um estudo crítico sobre imagens e discursos referentes ao espaço geográfico. Um

ensino que, junto do reconhecimento de certa identidade com o espaço/lugar, sustente

também a possibilidade de ‘distanciamento’ (reflexão sobre as próprias vivências espaciais,

negação da mera reprodução de relações já existentes, possibilidade de fazer escolhas, etc).

Pensamos em alunos e professores entendendo-se como viventes e falantes de um lugar, e

também como produtores do espaço onde vivem, uma vez que participam da concretização

de práticas sociais e discursivas desse espaço geográfico.

Talvez, tenhamo-nos guiado principalmente no sentido de negar a continuidade de

certas práticas atualmente hegemônicas nas instituições escolares. Idéias de novas práticas

flutuam em nossas reflexões e conversas, mas sua materialização em propostas de ação

ainda permanece um tanto quanto incipiente.

Mas quais são esses cinco eixos? A seguir, escrevemos como os nomeamos e

explicamos/apresentamos, inicialmente:

• As diversas identidades sociais: deslocamento do individual para o social.

• Trabalho: a realização e os sentidos do trabalho estão no jogo coletivo, o mundo é

fruto dos trabalhos.

10

• Lugar: reconhecimento do lugar como espaço geográfico complexo e resultado do

cruzamento de forças, tanto naturais quanto sociais; reconhecimento de que o lugar

se apresenta em inúmeras camadas de tempo.

• Mapa: pensemos em quatro elementos constituidores (escala/proporção,

simbologia/legenda, ponto de vista/projeção e orientação/localização), pensemos em

sua produção, nas escolhas feitas pelo autor, e no entendimento/leituras.

• Raciocínio por escala (espacial e temporal): suas relações com processos sociais.

O resumo acima foi o primeiro passo dado. Agora, no momento em que escrevemos

este texto, tentamos dar início a caminhada mais efetiva. Ou seja, começamos a conversar

sobre nosso entendimento dos cinco eixos e sobre como tal entendimento poderia se

desdobrar em ações educativas a serem desenvolvidas na disciplina Teoria pedagógica e

produção do conhecimento em Geografia, tendo como objetivos articulados a

problematização das atuais práticas dos professores-alunos da disciplina e a vivência de

outras práticas, construídas com a pretensão de trânsito pelos cinco eixos que concebemos

(ou, ao menos, por algum deles).

Cabem, ainda, e em boa hora, algumas palavras de advertência. Primeiro, a ordem

de apresentação dos eixos não seguiu nenhuma hierarquia de importância. Segundo, o

aparecimento dos cinco eixos implicou no desaparecimento de outros tantos, os quais,

segundo nossa visão à época, ou estariam, de alguma forma, contidos naqueles que

prevaleceram, ou seriam de “menor importância” e, assim, poderiam ser “deixados de

lado”, neste momento da nossa empreitada docente.

A seguir, nosso objetivo principal será apresentar algumas palavras a respeito do(s)

motivo(s) de escolha e de nosso(s) entendimento(s) de cada um dos eixos.

11

As diversas identidades sociais

As diversas identidades sociais constituíram-se num eixo devido à experiência de

nosso coordenador como professor da disciplina Metodologia de ensino de História e

Geografia, no curso de graduação em Pedagogia do PEFOPEX-Programa Especial de

Formação de Professores em Exercício (FE/Unicamp, 2002). Durante o curso, uma das

propostas às professoras-alunas foi a escrita do relato de uma prática educativa em História

e/ou Geografia, prática realizada e considerada satisfatória.

A leitura de relatos de atividades que visavam estimular o auto-reconhecimento dos

alunos enquanto pessoas deixava clara a falta de continuidade no reconhecimento desses

mesmos alunos como seres sociais. Melhor dizendo, a certidão de nascimento, as

fotografias pessoais, os gostos e os desgostos, as brincadeiras, as comidas, os nomes e

sobrenomes, as origens dos pais (tanto geográficas quanto culturais), etc. não eram

entendidos como características sociais do lugar onde esses alunos nasceram e viviam,

características que ajudariam a entender alguns dos motivos que os levavam a ser como

eram, e também a compreender de outros modos as semelhanças e diferenças existentes

entre eles. As atividades paravam no reconhecimento do “si mesmo” dentro de uma

perspectiva exacerbadamente “psicologizante”/particularista: alunos se reconhecendo

apenas como seres únicos e diferentes de todos os demais. Mesmo os porquês das

diferenças ficavam sem discussão, o que poderia levar a uma espécie de naturalização das

mesmas: “Sou diferente porque isto é natural entre os homens”. A dimensão social era

totalmente negligenciada, o que tirava de cena as diversas identidades sociais nas quais

esses alunos estavam envolvidos por nascimento, cultura, localização espacial, classe,

idade, sexo, etc. Assim, ficavam praticamente impedidos de reconhecer suas semelhanças e

de relacioná-las às marcas sociais que traziam consigo, marcas associadas a possibilidades

e limites, os quais, embora não os mesmos para todos, com fortes semelhanças no interior

de cada grupo social. (É importante refletir a respeito dos variados sentidos da palavra

“limite”. Quando a utilizamos, certamente não pensamos, a priori, em obstáculo

intransponível, ou destino inescapável, embora consideremos um forte condicionante

social.)

12

Resumindo nossos objetivos, e aqui está o sentido do “deslocamento do individual

para o social”: possibilitar que os alunos se entendam não apenas como pessoas

particulares, mas num contexto social, marcados pelos grupos e espaços em que vivem ou

circulam – e por outros mais -, com possibilidades e limites de ação.

Neste eixo, propomos que várias das atuais ações educativas acerca do

(re)conhecimento de “si mesmo” – da pessoa – sejam continuadas/ampliadas, gerando

materiais, registros e diálogos relacionados aos aspectos sociais dos alunos.

Por exemplo, com base em trabalhos com histórias de vida, certidão de nascimento,

gostos e desgostos de cada um – atividades muito comuns nas escolas -, podem ser

construídos gráficos e tabelas, para proporcionar uma visão de conjunto da classe.

A partir das linhas do tempo com histórias de vida individuais é possível elaborar

uma única linha, contendo acontecimentos das vidas de todas as crianças, e esta linha pode

ser base de ampliação do tempo, se houver busca de inclusão das histórias dos pais, dos

avós, da escola, do bairro, da cidade ... e também perspectivas de futuro (quando as

crianças terminarão o ensino fundamental, quando esperam entrar para o mundo do

trabalho, ou para a universidade, quando os irmãos mais novos irão para a escola, etc) 1.

Mapas coletivos são interessantes para indicar locais de nascimento ou de moradia,

migrações, mudanças e diversos fatos das histórias de vida. É importante perceber que,

algumas vezes, o adequado é um mapa do país, outras, do estado, outras, da cidade. Porém,

que seja ultrapassada a simples localização cartográfica. Por exemplo, que se reflita sobre

como são/eram os lugares, as cidades, quais seus conteúdos, e, a partir disso, o que as

pessoas trazem consigo destes espaços, das vivências nestes espaços, quais os motivos das

partidas e das chegadas. Reflexões que também podem ser apresentadas por mapas.

Colocando em discussão e explorando muito esses registros coletivos (gráficos,

tabelas, linhas do tempo, mapas, etc), o professor precisa dialogar com seus alunos,

auxiliando-os na busca de maior compreensão dos “porquês” de serem como são e não de

outro jeito, dos “porquês” da existência de afinidades maiores entre certos alunos, levando-

os a ficar amigos e a constituir turmas diferenciadas, etc, etc.

1 Consideramos que expectativas futuras influenciam a permanente elaboração das identidades

sociais.

13

(Lembremos que nossas diversas identidades sociais estão presentes em muitas de

nossas características pessoais: cor da pele, gostos culinários, jogos preferidos, sotaque

lingüístico, roupas, materiais escolares de certo preço, idade, vizinhança... Essas

identidades sociais mediam nossas relações com o mundo, influenciam formas de ver e

agir.)

A produção de narrativas (faladas, escritas, desenhadas, em HQs) é de grande

importância: a) para que os alunos possam realizar UMA história social da turma, a

partir dos “documentos” e “fontes” que consigam reunir; b) porque permite ao professor

acompanhar mais de perto os conhecimentos que os alunos vão construindo a respeito de

suas vidas - sempre pessoais e sociais -, de suas relações – com os colegas, com a família,

com o espaço ...

Ainda queremos destacar a escola enquanto espaço para encontro/

descoberta/reconhecimento/apresentação do diferente, do outro. Encontro que talvez

propicie aos alunos oportunidade de considerar seus modos de ser (costumes, valores,

crenças, etc), a partir do conhecimento de que não são únicos e nem naturais, ao contrário,

o humano vive, cria-se e recria-se, nas mais diversas formas/identidades.

E, aqui, pensamos, é valioso o trabalho com história oral. Escutar pessoas mais

novas, de mesma idade, adultos, velhos, pessoas de vivências, gêneros, classes sociais

diferentes... Ouvir suas histórias de vida, seus feitos. Buscar uma compreensão da formação

histórica (social) de seus valores, mais ainda, um entendimento aberto da constituição dos

sujeitos, evitando definições ou julgamentos simplistas, apressados.

Orientamo-nos pelo respeito à diferença, princípio nada simples, que não elimina o

trabalho de reflexão. “Respeito à diferença” não deve ser confundido com indiferença, ou

desconsideração, em relação às desigualdades socialmente construídas. Este princípio deve

ser retomado, problematizado, a cada nova situação: “Na situação em que nos

encontramos, o que é respeitar a diferença?” O que demanda diálogo e, ainda,

consideração de questões correlacionadas.

Mais ainda seria dizer: entender as diferenças como possibilidades de escolhas para

deslocamentos de opiniões, ações, grupos sociais. Em outras palavras: o convívio com as

diferenças entendido como grande produtor de conhecimentos e, talvez, liberdades.

14

Trabalho

Primeiramente devemos lembrar que há séculos de luta em torno do trabalho, das

condições de trabalho, de seu controle, da apropriação de seus resultados, de seus sentidos

econômicos e morais.

O trabalho é tema tradicional no ensino das Humanidades, em geral, e da

Geografia, em particular, ao menos desde a forte influência marxista que perpassou essas

áreas do conhecimento no Brasil das décadas de 70 e 80.

No entanto, ainda é muito freqüente a abordagem do trabalho apenas da perspectiva

da escolha profissional, de natureza meramente individual (o que você quer ser quando

crescer?), mantendo as conversas no plano das realizações pessoais futuras, muito

vinculadas, normalmente, à idéia de esforço individual e vocação natural.

Sob nossa perspectiva, há necessidade de uma transformação radical, apontando

para o caráter fortemente social do trabalho, esta ação humana transformadora da

natureza, do espaço, e mediadora das relações entre as pessoas e das pessoas com seus

lugares. O mundo é fruto do trabalho (convidamos o leitor a interromper a leitura e

imaginar os sentidos que a palavra “mundo” pode ter nesta frase).

Para compreender o mundo atual, pensamos ser necessário reconhecer que qualquer

trabalho é produto histórico, articulado a todo um processo social de produção de normas e

instrumentos reguladores de ações coletivas e pessoais (técnica). O domínio desigual (ou

diferenciado) da técnica, por países, grupos sociais, empresas e pessoas, implica em

desiguais (ou diferentes) possibilidades e limites de ação sobre a natureza, sobre o espaço.

Lembremos, ainda: o capitalismo caracteriza-se por grandes desigualdades nas

oportunidades de trabalho e no uso/apropriação dos resultados ou produtos do trabalho

social - e entre tais produtos encontra-se o próprio espaço, que traz em seu bojo história,

cultura, conhecimento, técnica, possibilidades de desenvolvimento humano, de prazer... A

luta contra essas desigualdades é diária, e realizada no campo político das relações de poder

envolvendo grupos, classes sociais e pessoas.

Certamente, uma abordagem que traga o trabalho para sua dimensão social deverá

tratar de inúmeras questões a ele relacionadas no complexo mundo atual. Hierarquia,

15

cooperação, renda, salário, lucro, patrão, empregado, prazer-realização, conhecimento,

desemprego, trabalho autônomo, terceirização, trabalho infantil, trabalho escravo, consumo,

consumismo, seguridade, aposentadoria, tempo livre, valor social-status ...

Esse último, atuando diretamente sobre as escolhas dos alunos e pululando um

imaginário social construído tanto a partir de valores tradicionais (mais ligados ao tipo de

ação social que se realiza – ganhos de status e relações), quanto capitalistas (ganhos em

dinheiro), ou mesmo socialistas (relacionados à maior justiça social que esse trabalho pode

levar), evidentemente com entrecruzamentos entre eles. O sentido que um trabalho tem para

os alunos é, então, fortemente influenciado pelo lugar que tal trabalho ocupa no imaginário

social, pelo(s) significado(s) dado(s) a ele pelos diversos grupos sociais e pelas pessoas

mais próximas e significativas.

Portanto, propomos que discussões a respeito de escolhas profissionais e vocações

pessoais tragam à cena o contexto social onde vivem os alunos (as influências da família,

da mídia, dos imaginários profissionais, dos devaneios de ajuda e poder, etc). Quanto ao

esforço pessoal, é preciso estudá-lo vinculado aos espaços e grupos sociais (institucionais,

familiares, escolares, jurídicos, relações de amizade, etc), criadores de possibilidades e

limites às expectativas de que o esforço seja transformado efetivamente em ganho e

melhora da vida da pessoa. Na verdade, e em relação com grupos sociais aos quais

pertencem, uns são obrigados a despender mais esforço para alcançar resultados

semelhantes aos de outros. (Uma analogia: quem, em seu contexto social mais próximo,

aprendeu a falar e escrever segundo a norma aceita pela escola, gastará menos energia nos

estudos, uma vez que já tem aquela norma em sua cultura original).

Por outro lado, satisfação pessoal e desejos particulares de realização não podem ser

reduzidos à escolha profissional, uma vez que as decisões no mundo do trabalho, como em

outras dimensões do humano, dependem das relações sociais de poder, das relações

políticas existentes.

16

Lugar

O lugar, relegado a certo limbo por algumas décadas, foi recuperado, talvez nos

últimos quinze anos, por meio da ascensão acadêmica das perspectivas culturais e das

novas leituras feitas deste conceito/idéia à luz das teorias da globalização.

No contexto da escola e dos saberes escolares, a radicalização da importância do

lugar conheceu caminhos e sentidos próprios, particulares, um tanto diferentes daqueles da

academia. A organização das ações educativas em torno do entendimento do lugar – algo

jamais ausente de nossas escolas – permite, segundo vertente importante do pensamento

educacional, alcançar com mais facilidade duas coisas há algum tempo perseguidas no

ensino voltado para crianças: a valorização dos saberes já existentes (o que amplia a auto-

estima e reduz a estigmatização daqueles que não dominam a versão científica do mundo) e

a possibilidade de realizar estudos integrados, durante os quais as áreas de conhecimento

tradicionais – português, ciências, história, artes ... – apareçam, articuladas e solidárias, na

busca de entender melhor “uma realidade” (aquela vivida pelos alunos e/ou pela escola – ou

seja, o lugar), em vez de serem entendidas como listas de conteúdos a serem ensinados.

Tanto perspectivas mais educacionais, quanto outras, mais acadêmicas (e muito

além do âmbito da Geografia), consideram o lugar como possibilidade privilegiada de

entendimento da complexidade do mundo atual. Isso porque a dinâmica do lugar – com

face concreta mais ou menos diferenciada – é permanentemente construída nas relações

entre agentes sociais atuantes em várias escalas (do lugar, local, regional, nacional,

planetária).

Mas, destaquemos, o lugar não é apenas ponto de partida, ou meio para o estudo do

mundo atual. Os espaços de vivência (rua, bairro, cidade), longe de serem abandonados

como estágios de foguetes espaciais, precisam ser, ilimitadamente, retomados e

reinterpretados, a partir do próprio entendimento do mundo, da possibilidade de pensá-los

em contextos mais amplos, mais complexos. Se a escola quer contribuir com a cidadania,

ela deve, a todo momento, da educação infantil ao ensino universitário, colocar em questão

o espaço onde professores e estudantes vivem. E compreender o lugar não significa

simplesmente reconhecer e descrever sua aparência, mas, sim, perceber as dinâmicas e

17

transformações que vão ocorrendo em diferentes momentos históricos, a partir de variados

interesses e condições geográficas. É preciso observar e também avançar na busca de

explicações para o que permaneceu e o que foi transformado.

Reconhecer em cada lugar as marcas deixadas pelas várias dinâmicas e processos,

tanto naturais quanto sociais, fazendo com que nele se encontrem várias “camadas de

tempo” evitaria que a paisagem destes lugares seja naturalizada, bem como se entenderia

que todo lugar permanece em transformação. Entender essas transformações como

resultantes do jogo político – conflito de interesses e poderes – e das possibilidades técnicas

que cada grupo social dispõe, seria de fundamental importância para que os alunos venham

a entender os motivos que levam certos elementos espaciais desaparecerem e outros

permanecerem por longo tempo no mesmo lugar.

Pensamos o lugar sobretudo como espaço existencial e assim ele deveria ser

ensinado – lugar onde se vive, tomando essa existência como existência daqueles que estão

na busca de compreender o seu mundo; neste caso, então, alunos e professores.

Uma vez que este é um campo de disputas bastante tenso atualmente – o que é

lugar? –, procuramos dizer de que lugar estamos falando:

“Não importa se esse lugar onde se vive seja pensado como o

município [...], seja ele a área urbana ou rural, o bairro central ou

periférico, a vila ou mesmo a rua ou estrada onde vivem as pessoas.

Importa ser uma extensão territorial que já seja ou possa vir a ser pisada

pelos próprios pés e observada pelos próprios olhos e ouvidos daqueles

que estão em processo de conhecimento do mundo que lhe é próximo ao

corpo, do mundo que lhe é sensível à pele, ao nariz e, quem sabe, à

boca”. (Oliveira Jr, 2003)

Apesar da citação destacar aquilo que pode ser conhecido corporalmente pelos

chamados sentidos próximos - tato, olfato e gosto -, é de se notar que a experiência corporal

atual é penetrada por tudo aquilo que nos chega aos olhos e ouvidos por meio das diversas

mídias.

18

O que importa, aqui, é o lugar existencial, aquele no qual os alunos produzem seus

saberes acerca do mundo onde vivem, saberes corporificados. Saberes que, no universo

escolar, devem ser solicitados a participar da construção de narrativas e conhecimentos, de

modo a incluir a vida/experiência dos alunos num ambiente onde têm acesso a saberes mais

elaborados e codificados noutros espaços e tempos.

Estudos do meio

Estudos do meio são muito bem-vindos na busca de entendimento sobre o lugar. E

os primeiros estudos, de preferência, justamente a respeito dos locais de moradia e vivência

mais imediata dos alunos, de modo a levá-los a dizer e refletir sobre estes locais (produtos

da associação entre formas e forças de processos naturais e sociais, de várias escalas).

Ao produzir narrativas acerca de seus próprios lugares e confrontá-las com outras -

relativas aos mesmos espaços e elaboradas pelos colegas ou por qualquer pessoa -, os

alunos têm como se inserir no jogo tenso de “produção e dissolução da realidade”, jogo ao

qual se refere Jorge Larossa (1999), na esteira de Gianni Vattimo (1991). “O que é o real,

então?” - os alunos poderiam perguntar, diante de diferentes falas sobre um mesmo espaço,

falas de pessoas inseridas em práticas sociais e discursivas também diferentes, tanto nas

suas “formas técnicas de apresentação” (linguagens), quanto nos seus interesses e desejos

de ação (política).

Estudos de espaços mais distantes da “realidade” dos alunos ajudam a ampliar o

conhecimento por meio de “contato direto”, possibilitando que pensem em semelhanças,

diferenças, particularidades, etc ... O que talvez aprofunde a compreensão dos lugares mais

próximos.

Incluímos, a seguir, um “esquema” com alguns “passos” a serem realizados durante

ações educativas num estudo do meio, assumindo que estes passos visam ser momentos e

formas de produzir conhecimentos (saberes escolares). Em cada um desses “passos” se

busca lidar com algum tipo de reflexão sobre o que é produzir conhecimento, portanto esse

“esquema” não visa propor uma seqüência a ser seguida, mas indicar algumas das

possibilidades que um Estudo do Meio tem de produzir práticas educativas que, ao invés de

somente reproduzir o que já foi dito sobre um dado lugar, possam colocar os alunos na

19

condição de produzir conhecimentos acerca desse lugar e ao mesmo tempo refletir sobre os

limites e tensões desses conhecimentos por eles produzidos.

Cabe ainda dizer que a escolha por realizar ou não cada um desses “passos” deve ser

do professor ou da classe ou da escola, tendo em vista os objetivos e limitações de cada

Estudo. Salientamos que seria mais interessante que cada Estudo do Meio [esperamos que

muitos possam ser realizados...] se organizasse de uma maneira diferente dos demais, de

modo a permitir outras conversas acerca das influências que o modo de produzir os

conhecimentos têm sobre os próprios conhecimentos produzidos. E, mais interessante ainda

seria se as pessoas envolvidas no Estudo inventassem outros “passos”, outros jeitos de fazer

com que conhecimentos sejam produzidos em situações escolares.

Feitas essas importantes ressalvas, vamos aos “passos” por nós propostos.

Alguns passos de um Estudo do Meio

A. IMPRESSÕES SUBJETIVAS: reflexão particular sobre o

lugar/local – atualização de memórias e vagas lembranças ...; registro na

lousa/cadernos ou em cartazes que permanecerão expostos/consultáveis

durante o trabalho; busca das origens/fontes orais, escritas ou visuais

destas memórias – família, televisão, conversas, fotos, etc; levantamento

de “representações sociais” – parte da cultura –, que são conhecimento

já existente e necessário (embasam interpretações) ao entendimento da

sociedade/lugar.

B. Discussão e criação dos EIXOS DE BUSCA: a partir das

impressões pessoais registradas e, talvez, de objetivos

geográficos/históricos/científicos pretendidos; conversas e debates em

grupos ou com toda a classe, de modo a encontrar as mais intensas

questões/dúvidas/curiosidades/vontades de conhecer, as quais constituem

eixos norteadores de buscas; divisão da turma em grupos pequenos, para

o trabalho com os eixos de busca.

20

C. PESQUISA DE FONTES de informações acerca do lugar/meio

estudado: notícias antigas e atuais, fotos antigas e atuais, mapas e fotos

aéreas, estudos do meio anteriores, pessoas que podem ser entrevistadas

(moradores, passantes, trabalhadores atuais ou que realizaram alguma

obra no local, antigos moradores, pesquisadores, etc), pessoas das mais

diversas idades, classes, culturas, localizações no local; entrevistas

devem ser registradas de vários modos (escrita, gravação, filmagem,

etc); trabalho com histórias de vida de pessoas que de algum modo estão

ou estiveram ligadas ao local; é fundamental o trabalho com as idéias de

fontes/documentos, lidando com as questões de credibilidade e

legitimidade de cada depoimento/objeto/notícia.

D. DESCOBERTA DE CONHECIMENTOS NESTAS FONTES

trazidas para sala de aula: respostas às questões iniciais,

problematizações de algumas “idéias prontas”, informações que alterem

dúvidas e perguntas, produzindo outras buscas e conhecimentos;

registro, no caderno ou em cartazes, de outras dúvidas e questões que

aparecerem.

E. ORGANIZAÇÃO DE MATERIAIS que poderão auxiliar numa

melhor apreensão do lugar a ser visitado: mapas, tanto do lugar quanto

do trajeto, em diversas escalas (notadamente em grandes escalas, para

facilitar relação entre o que se vê no mapa e o que se vê/vive no local);

fotografias aéreas; roteiros de entrevista e o nome de pessoas a serem

entrevistadas; roteiros de observação; etc.

F. IDA AO LUGAR: observação cuidadosa da paisagem (olhar,

ouvir, caminhar/tocar, comer/beber, cheirar); vivência de alguns

momentos junto às pessoas que ali vivem; entrevistas/conversas informais

com pessoas que estiverem por lá; registro nos mais diversos meios

(fotos, vídeos, apontamentos escritos, desenhos/croquis, etc) – é

21

importante discutir possibilidades e limites de cada tipo de linguagem

utilizada para o registro.

G. ELABORAÇÃO/ORGANIZAÇÃO, PELOS GRUPOS, DOS

DIVERSOS REGISTROS E FONTES, de modo a serem apresentados em

classe: neste momento cada grupo edita o material disponível,

produzindo um discurso sobre aquilo que lhes coube

observar/aprofundar/cuidar; nesta edição, os grupos devem ser

incentivados a continuar discussão a respeito de limites e possibilidades

de cada linguagem utilizada para produzir os registros, e, ao mesmo

tempo, a lançar mão de tais linguagens em suas apresentações.

H. APRESENTAÇÃO DOS GRUPOS/EIXOS: solicitação aos

ouvintes que registrem as apresentações e, também, questões/dúvidas que

apareçam ou sejam apresentadas pelo próprio grupo expositor; diálogo

envolvendo o professor e todos o grupos; é interessante convidar

entrevistados, moradores, trabalhadores do lugar e pessoas que possam

contribuir no debate suscitado pelas apresentações (pesquisadores,

dirigentes/servidores públicos, membros de associação de moradores,

etc); é comum surgirem novas dúvidas, iniciarem-se novas buscas, a

partir das reflexões deste momento de apresentação; fundamentalmente,

este momento tem por objetivo promover um diálogo que “reunifique” o

meio estudado, antes dividido em partes/eixos para fins de observação.

I. ELABORAÇÃO DE NARRATIVAS: narrativas sobre o lugar

(lembremos que, lá no início, propusemos a apresentação das primeiras

impressões subjetivas); nestas narrativas deve-se incentivar a discussão

da credibilidade das fontes e documentos escolhidos para embasá-las,

bem como a identificação da influência das primeiras impressões na

continuidade do conhecimento produzido acerca daquele lugar;

narrativas elaboradas nas mais variadas linguagens (HQs, vídeos,

22

desenhos, escritos, dramatizações, danças, fotografias, etc), de modo a

ir revelando aos alunos que a escolha de certa linguagem para construir

um discurso já implica em certas possibilidades e limites de dizer e

apresentar um lugar.

Com este “roteiro” pretendemos incluir o conhecimento anterior na continuidade

do conhecimento e, ao mesmo tempo, concretizar a idéia de que o conhecimento é um

processo indefinido e tenso, produzido na interface mesma do jogo de poder existente entre

as pessoas e os grupos sociais.

No roteiro reconhecemos a importância de conhecimentos, ou saberes, cuja origem

não está na experiência mais imediata, corporal, dos alunos (ver, por exemplo, passos A e

C). Conhecimentos elaborados em situações além de suas fronteiras espaço/temporais e que

chegam até eles por meio de relatos/narrativas orais, discussões, textos, fotografias,

pinturas, documentários, músicas, museus, etc. Na verdade, buscamos movimentos

contínuos de apropriação, discussão, “cruzamento” e criação de novos conhecimentos.

Levar os alunos para um passeio, ou lanche, num parque, ou mesmo numa praça, e

conversar sobre a experiência, sobre o que sentem em tais lugares, sobre o significado

desses espaços ... são exemplos de atividades que, mesmo sem a complexidade e a

densidade de um estudo do meio, também devem ser realizadas.

23

Mapa

O mapa tem história tão antiga quanto a escrita. Nas ruínas de Ga Sur (próximas da

atual Nuzi, no Iraque) foi encontrada uma tabuinha de argila, de aproximadamente 3800

anos antes de Cristo, na qual está gravada uma representação de parte da Mesopotâmia,

incluindo o rio Eufrates e os Montes Zagros, entre outros elementos.

Tão antigo e tão presente em nossa vida cotidiana, o mapa aparece em telejornais,

jornais impressos, livros didáticos, painéis de informação em espaços públicos, folhetos de

propaganda (inclusive política), etc.

Pensemos, um pouco, de que maneiras, na escola, orientamos o aprendizado desta

linguagem tão peculiar à Geografia, mas muito utilizada em variadas áreas do

conhecimento, da Engenharia à Arte. Nós, professores, certamente não ignoramos o mapa,

mas, talvez, o conheçamos a partir de uma perspectiva mais tradicional: “o mapa serve para

localizar os fatos, os fenômenos”, “o mapa serve para transmitir informações”, “o mapa é

uma ilustração, de um texto, de um pensamento”. Nenhuma destas idéias é errada, porém, é

urgente ampliá-las e transformá-las, caso contrário, educaremos para a passividade diante

do mapa.

[Geografia não é simples localização e descrição dos lugares, ou coleção de

informações a respeito deles. “Lugares não são apenas espaços físicos” (Kaercher, 98). Para

nós, Geografia é trabalho de elaboração de interpretações, de compreensões e de tomada de

posição crítica sobre o espaço. Espaço em sentido amplo, que abrange as relações sociais.

Espaço diferente de simples cenário passivo, onde se desenvolveriam estas relações.

Espaço, ao mesmo tempo, produto e condição das relações sociais.]

Quando consideramos o mapa uma linguagem, não o reduzimos a simples

transmissão de informações ou ilustração2, também não o temos como “o real”, “a

realidade” ou “a verdade”, e nem esperamos que suscite interpretação única. Poderíamos

defini-lo nos seguintes termos: um jeito, um modo de falar, de apresentar nossas

interpretações acerca do espaço, mas, ainda antes de tudo, um modo de pensar o espaço, o

2 “Ilustrar”, ao nosso ver e no contexto aqui tratado, tem o sentido de apresentar novamente algo já dito por meio de outra linguagem, o que seria, em certo sentido, mera repetição.

24

mapa como pensamento a respeito do espaço. E este pensamento sempre tem um autor, que

faz escolhas, com intenções. Então, uma pergunta se impõem, em diferentes formas: o que

o autor nos diz e como? O que entendemos e o que, na construção do mapa ou em nós

mesmos, levou-nos a este entendimento?

A partir da concepção esboçada no parágrafo anterior, trazemos alguns exemplos de

práticas/princípios. 1) É importante que, já nas séries iniciais, as crianças tenham contato

com mapas elaborados por outros e, principalmente, construam seus próprios mapas. 2) Em

ambos os casos, os mapas devem tratar de algo significativo, de assunto estudado no

momento: mapas do trajeto casa-escola, do bairro onde moram, da cidade, de estudos do

meio ou excursões, etc. 3) É interessante, em certos momentos, tratar de determinada

questão/problema/situação utilizando unicamente mapas. 4) Durante o trabalho com livros

didáticos, é fundamental atentar para os mapas, ensinar os alunos a refletir sobre as relações

entre os mapas e os temas estudados, entre os textos e os mapas: os textos apenas repetem

ou explicam os mapas? Os textos trazem perguntas sobre os mapas, desafiam os alunos a

pensar, ou já apresentam explicações? 5) Um bom mapa (ou um bom trabalho com mapas),

coloca problemas, permite/leva a “descobertas”, estimula a reflexão.

Mesmo rápida e muito resumidamente, queremos chamar a atenção para quatro

elementos constituintes do mapa:

- proporção/escala: o mapa se refere sempre a um espaço, com limites

políticos, ou administrativos, ou religiosos, ou naturais, etc. E este espaço

aparece, no mapa, de modo reduzido. Compreensão básica que os alunos

devem elaborar: o mapa é uma redução. A partir disso, podem avançar para

o entendimento de que a redução é controlada/escolhida matematicamente,

segundo interesses do autor do mapa, de acordo com suas necessidades de

estudo. A proporção/escala indica quantas vezes os comprimentos “reais”

foram reduzidos. Quanto maior a redução, maior a generalização, a perda

de detalhes. Sendo assim, gostaríamos que os alunos fossem reconhecendo

que fazer menor (ou seja, reduzir mais) leva a poder esconder certas

coisas em nome da generalização, ou, inversamente, que fazer maior (ou

25

seja, reduzir menos) leva a poder incluir mais detalhes no mapa. Excluir

ou incluir é também uma questão de escala! A escolha da escala, portanto,

é uma escolha política e não só técnica.

- simbologia/legenda: elemento central da linguagem, diz respeito ao modo

como o tema do mapa é apresentado, o que já revela pensamento, intenções

do autor. Envolve a escolha/uso de cores, linhas, pontos e símbolos, por

exemplo. Desde o início do trabalho com o mapa, os alunos devem discutir

e construir legendas, de modo individual e coletivo (este último exigindo

negociação de sentidos e escolhas). A construção da legenda pode ressaltar

ou “esconder” questões. Ao discutir acerca de quais símbolos vão utilizar

numa legenda, os alunos podem identificar que o uso de um símbolo ou

outro é também uma questão de poder, de quem consegue convencer os

demais de que seu símbolo diz melhor o que se quer dizer (usamos o verbo

dizer propositalmente, pois queremos destacar aqui o caráter de linguagem

da cartografia e dos mapas).

- ponto de vista/projeção: o ponto de vista privilegiado no mapa é o vertical.

Comumente não é assim que vemos o mundo e é natural que, de início,

tenhamos certa dificuldade. Questão básica: os alunos precisam entender o

mapa como se fosse o espaço “visto de cima” (“o espaço”, aqui, tem sentido

de uma apresentação do espaço tal como o entende o autor do mapa). É

interessante experienciar vários pontos de vista de um mesmo objeto (de

uma carteira ou maquete da sala, por exemplo), e isso já se faz com muita

freqüência nas escolas. No entanto, seria fundamental discutir com os

alunos o que cada ponto de vista mostra melhor e o que fica impedido de

mostrar, ou seja, as perdas e ganhos dos mais variados pontos de vista, uns

em relação aos outros. Paralelamente a isto seria bom chamar a atenção

para o fato de que (a maioria dos) mapas são feitos a partir de um único

ponto de vista, enquanto nos desenhos são explorados vários

(conjuntamente, num mesmo espaço, ao mesmo tempo). Para que os alunos

26

percebam que podem e devem escolher “a melhor maneira” de

representar/apresentar um espaço, de acordo com seus objetivos e

conhecimentos, um caminho é convidá-los a comparar desenhos, feitos por

eles mesmos, com mapas turísticos (usualmente com vários pontos de vista)

e mapas mais tradicionais (mapas de ponto de vista único, encontrados em

livros didáticos, atlas, etc), levando em conta as situações em que são

utilizados. Não nos aprofundaremos – e nem pensamos que o professor deva

fazê-lo, nas séries iniciais da educação básica - na questão das projeções

cartográficas, complexos cálculos matemáticos por meio dos quais a

superfície esférica da Terra é representada/apresentada numa superfície

plana, a folha de papel, por exemplo. Processo sempre acompanhado de

deformações, alterações. (Sugerimos que o professor, por curiosidade e

junto de seus colegas, compare um globo com mapas-mundi de diversos

atlas, atentando para: nomes das projeções; diferenças na forma geral dos

mapas; diferenças em termos de forma dos continentes; forma dos paralelos

e meridianos; como varia o comprimento dos paralelos, do Equador em

direção aos pólos; tamanhos dos continentes uns em relação aos outros;

áreas dos hemisférios norte e sul;, região que ocupa o centro e regiões mais

destacadas em cada mapa, etc. Lembrando que as comparações são sempre

entre o globo e os mapas e, ainda, dos mapas uns em relação aos outros).

Usar uma ou outra projeção também é uma escolha.

- Orientação/localização: envolve, por exemplo, o sistema de coordenadas

geográficas (latitude e longitude, sistema relacionado aos movimentos da

Terra, às direções cardeais) e orientação pela bússola (ligada ao

magnetismo do planeta). Para caminhar no sentido da compreensão destes

conhecimentos, nas primeiras séries da escolaridade básica, as crianças

podem experimentar diversos sistemas de localização: na sala de aula (para

situar colegas e objetos), em jogos (tipo batalha naval) e brincadeiras. A

orientação, na verdade inseparável da localização, pode ser explorada em

atividades que, de início, tenham o próprio corpo como referencial (direita-

27

esquerda, frente-atrás da criança). Entender a orientação por meio das

direções cardeais (norte-sul, leste-oeste) exige observação dos movimentos

aparentes do Sol, movimentos diário e anual. As crianças precisam

desenhar o Sol pela manhã, com sua paisagem de fundo, observá-lo mais

próximo do meio-dia, e voltar a desenhá-lo à tardezinha. O gnômon

(relógio de sol) permite acompanhar os movimentos do Sol, registrando-os

e ainda determinando as direções cardeais. Com um globo, um bonequinho

para colar em sua superfície e tomando uma janela como se fosse o Sol, é

possível estudar os movimentos da Terra, a sucessão dia-e-noite, e a

questão das direções cardeais; experiência a ser, necessariamente,

relacionada àquela do gnômon. (Cada atividade deve ser desenvolvida por

meio de muito diálogo, discussão, com tempo para os alunos manifestarem

suas idéias.) Marcar as direções cardeais numa maquete da sala de aula,

discutindo o que significa orientar a maquete, é outra experiência

importante (que pode ser retomada com um mapa de grande escala do

lugar). Questão básica: em nossos deslocamentos cotidianos não

utilizamos obrigatoriamente os sistemas de localização/orientação dos

mapas. Muitas vezes, pensamos em pontos de referência (“em frente a tal

igreja”, “perto daquela praça”), lançamos mão de referenciais baseados

no próprio corpo (direita-esquerda, frente-atrás), indicamos distâncias

(em termos de quadras, metros, quilômetros), etc. Bastante comum são

situações nas quais usamos, ao mesmo tempo e articuladamente, vários

sistemas de localização/orientação: “Olha, moça, o bairro que cê procura

fica na zona norte; cê segue em frente aqui, até aquela casa verde; depois,

cê dobra à esquerda e caminha aí umas cinco quadras na rua Jasmim; cê

passa pelo centro, dobra prá direita e vai até o número 37, uma casa

azulzinha, a terceira, que fica do lado de lá da calçada”. Desde as

primeiras séries, as crianças devem discutir estes diversos sistemas e suas

relações com a cultura, com as profissões, etc. Como se orienta um

taxista? Está aí uma boa idéia para entrevista. Por fim, lembremos ao

professor que, normalmente, por convenção, os mapas têm sua porção

28

norte voltada para o alto da folha (ou seja, orientam-se para o norte; e a

expressão “orientar” vem de tempos e espaços em que se orientavam os

mapas para o oriente, para o leste). Historicamente, aqui também estão

presentes questões culturais e de poder político dos povos, dos estados.

Mas podemos encontrar mapas antigos e atuais (em atlas e livros didáticos,

por exemplo) com outras orientações.

Talvez nossa escrita sobre esses quatro elementos sirva mais para suscitar debate, há

muitas lacunas, as coisas são, ao mesmo tempo, mais simples e mais complexas do que

parecem à primeira vista.

Mas ainda é importante destacar: frente a todo mapa, e estudando qualquer questão,

qualquer tema, podemos discutir esses quatro elementos. Por outro lado, existem

atividades, bastante conhecidas, organizadas especificamente para discutir tais elementos,

incluindo sua história dentro da Cartografia, da Geografia, das realizações humanas. A

discussão sobre os quatro elementos que se propõe é importante para a compreensão da

linguagem dos mapas e de outros aspectos que estão a nossa volta e independem da faixa

etária – crianças, jovens, adultos – daqueles que estão envolvidos no processo.

29

Raciocínio por escala

Mudar de escala, em certo sentido, implica em olhar algo de outro modo, mas,

então, esse algo já não será o mesmo, aparecerá com nova fisionomia, dentro de outro

contexto. Quando penso em mim no interior de minha família ou do bairro onde resido,

considero-me uma pessoa rica, se amplio a abrangência (aumento a escala) do meus

raciocínios e me situo no interior da comunidade dos descendentes de italianos ou da cidade

onde moro, considero-me uma pessoa pobre. O Morro das Cabras é um dos lugares mais

altos do relevo de Campinas, porém, no contexto do relevo do estado de São Paulo, é um

lugar de altitude média. A construção da ponte Rio-Niterói, durante o regime militar, na

década de 70 do século XX, teve fortes e variados significados, não necessariamente os

mesmos nas diversas escalas: localmente, representou uma grande intervenção na paisagem

e maior rapidez nos deslocamentos, por exemplo; em escala nacional, foi apresentado como

grande feito do regime, da nação, revestindo-se, então, de um caráter também turístico.

Situações, problemas, processos, fenômenos e lugares mudam de sentido quando é

alterada a escala de análise. Pensar em várias escalas nos leva a relativizar os sentidos das

coisas, a reavaliar sua importância, problematizando, matizando, construindo novos

julgamentos.

Esses raciocínios por escala quebram a lógica do pensamento binário simplista,

aquele que somente lida com sim ou não, com é ou não é, com classificações estáticas e

permanentes (naturalizadas), do tipo fulano é rico e beltrano é pobre, tal lugar é alto ou

baixo.

Raciocinar por escala é exercer o pensamento, mas localizando-o claramente em

um contexto. É dizer “fulano é rico pois é o único do bairro que tem carro ´do ano`” (ou

seja, no contexto do bairro, ele tem algo que os demais não possuem, daí a classificação

“rico”). A identificação do contexto permite que as pessoas logo reflitam, por exemplo, nos

seguintes termos: “para a cidade, fulano não é rico, uma vez que os ricos da cidade têm

vários carros importados, várias outras propriedades e muito dinheiro no banco.” Nesse

caso, o fulano é, ao mesmo tempo, rico e não-rico (rico no bairro e não-rico na cidade).

Notemos que critérios de classificação aparecem tão destacados quanto referências

ao contexto espacial (bairro, cidade), o que possibilita compreender a classificação,

30

investigar suas origens culturais e, ainda, discordar da classificação, em outros termos,

colocar em discussão aquilo que seria “naturalizado”.

A questão da naturalização nos solicita o estudo dos processos sociais e naturais no

espaço e no tempo, o que nos remete à questão do raciocínio por escala em suas dimensões

espacial e temporal, buscando justamente negar ou evitar que acontecimentos e fenômenos

sejam vistos como “dados do real”, neutros, objetivos, eternos e imutáveis.

Quando pensamos em escala geográfica, consideramos a dimensão espacial dos

processos. Já a escala temporal diz respeito à abrangência temporal, ou duração dos

processos (rapidez/lentidão, ritmo e intensidade são noções associadas; e não deixemos de

também colocar em primeiro plano a vivência, a experiência subjetiva do tempo).

Neste texto, tratamos separadamente de escala espacial e escala temporal, porém,

em qualquer estudo, precisamos integrá-las, investigando suas relações.

Comumente, os livros didáticos trazem uma seqüência de atividades sobre a casa do

aluno, a rua onde ele mora, seu bairro, sua cidade, município, etc, nesta ordem. A casa é

muito próxima do aluno, significativa. No entanto, o trajeto casa-escola, o bairro e até

mesmo a cidade, de modo mais ou menos limitado, fazem parte de suas experiências

corporais. Então, podemos perguntar se esta seqüência, entendida como “do menor para o

maior” ou “do mais próximo e significativo para o mais distante”, constitui a única via de

estudo.

Mas ainda são outras as questões que desejamos destacar. Ao nosso ver, falta

discutir com o aluno a própria mudança de escala espacial e suas conseqüências. Estudos da

casa, do bairro e da cidade diferem, por exemplo, em problemas analisados, procedimentos,

grau de generalização e representações gráficas utilizadas (plantas residenciais, com a

divisão interna em cômodos, para estudos da casa; plantas da cidade - com ruas, avenidas e

quadras -, para estudos do bairro ou da área urbana).

Na mesma seqüência de atividades, rua, bairro e cidade são habitualmente pensados

separadamente. Com o eixo raciocínio por escala pretendemos, “inspirados” em Yves

Lacoste (1988), apresentar uma outra possibilidade: refletir sobre o espaço, com seus

processos sociais e naturais, por meio da articulação de escalas.

31

Modo simples de introduzir a questão da escala é chamar a atenção dos alunos para

a dimensão espacial daquilo que já vivenciam ou estudam: em uma planta da cidade, eles

podem delimitar o bairro onde moram e também a área que mais conhecem, aquela

realmente percorrida, experimentada cotidianamente; talvez exista um comércio, ou festa

popular, típicos de certo bairro da cidade, restritos a esse bairro (que talvez abrigue

comunidade de migrantes; e aqui entra a relação com outros espaços, exigindo trabalho em

mais de uma escala); num dia de inverno, talvez seja possível observar uma neblina

localizada apenas sobre um rio, ou no fundo de um pequeno vale, noutro dia, um nevoeiro

tomando toda a cidade; a televisão freqüentemente veicula notícias de fenômenos globais,

como aquecimento da atmosfera, por exemplo; etc.

Na seqüência de atividades comentada há pouco, se a rua é pensada, não somente de

modo isolado, mas no contexto do bairro, dentro da cidade, articulada a estes espaços

maiores, fica facilitada, por exemplo, a compreensão de seu movimento de pessoas e

veículos, uma vez que esse movimento não é somente das pessoas que moram no bairro,

mas também daquelas que vêm até ele comprar, passear, visitar ou passam por ele a

caminho de outros bairros. Aqui também se pode trabalhar com as alterações de sentido:

para os moradores o bairro é local de moradia; para os moradores da cidade ele é passagem

(é sempre importante lembrar que se os sentidos mudam, mudam também as ações

realizadas nesse lugar, as possibilidades de permanências e transformações). Por outro lado,

se queremos aprender sobre as pessoas, as famílias dos moradores, as relações cotidianas

entre os moradores ..., certamente sentimos necessidade de história e ampliamos a escala do

estudo (nos sentidos espacial e temporal): de onde vieram, quando nasceram...

A imagem que as crianças constroem de um córrego, e dos problemas a ele

relacionados, permanece a mesma depois que visitam e estudam não apenas o pequeno

trecho próximo da escola, mas toda, ou grande parte de sua extensão? Viver as duas

experiências, compará-las (sem o objetivo de “diminuir” nenhuma) e integrá-las constitui

rica reflexão sobre escala geográfica. O que viram na primeira experiência? Que problemas

foram apontados? E na segunda experiência? O que foi diferente? Mudaram as

explicações? Etc ... Etc ...

O interessante não é apenas realizar um estudo desta ou daquela maneira, seguir tal

ou qual caminho, utilizar este ou aquele procedimento - trabalhando nesta ou naquela

32

escala, articulando escalas -, mas, sim, construir o(s) caminho(s) com os alunos,

promovendo discussões sobre o(s) próprio(s) caminhos, sobre os porquês de sua(s)

escolha(s), sobre seus limites, sobre os conhecimentos produzidos daquela maneira (se são

suficientes, se deixam dúvidas, quais dúvidas, o que se pode afirmar com mais certeza e o

que se afirma sem tanta certeza, etc).

Precisamos também deixar claro que não defendemos a idéia de uma simples

imposição dos processos de grande escala sobre os de pequena escala, mas, sim, propomos

o estudo de como se relacionam as diversas escalas (ou melhor, fenômenos e processos de

diversas escalas) em cada situação.

Quanto à escala temporal, já afirmamos que ela se refere à duração dos processos.

Neste sentido, raciocinar por escala temporal é colocar a questão do tempo, mais

especificamente, de sua duração, na definição/investigação de qualquer problemática. (E

esse “tempo” pode ser o da natureza, o tempo histórico e também o subjetivo).

Todos os jogos e brincadeiras têm a mesma duração? Por quê? (Colocamos este

“por quê?” para estimular a elaboração de interpretações e não a enunciação de

“verdades”.) E as atividades na escola? Quanto tempo cada uma delas ocupa? Como

podemos interpretar tal organização do tempo? Como é o dia de cada aluno, em termos de

atividades e duração das mesmas? Que diferenças existem em relação ao dia dos pais

deles? Por quê? A partir de entrevistas, filmes, textos de jornais e livros é interessante

comparar o cotidiano dos alunos com o de crianças de outras classes sociais, culturas ou

tempos históricos.

Já o tempo subjetivo freqüentemente emerge por meio da fala dos próprios alunos:

certo dia, uma atividade rotineira é sentida como “mais demorada”; para alguns,

determinado intervalo de tempo é “muito longo”, para outros, “muito curto”; alguém pode

questionar um limite assinalado pelo tempo; etc. Estas são ocasiões riquíssimas para

discussão do que os alunos sentem e pensam a respeito do tempo. E podem ser continuadas,

de modo a levá-los a pensar sobre como essas idéias de duração (e também de extensão)

são construídas nos mais diversos contextos culturais: o que é longe, o que é perto, o que é

rápido, o que é demorado, em diversas situações, para pessoas que moram na metrópole

paulistana, para pessoas que moram em Sumaré, para ricos e pobres, para jovens e velhos...

33

Quem vive em cidades grandes como São Paulo diz que um percurso de 20 minutos de

carro é perto. Para quem vive em Sumaré esses mesmos 20 minutos de carro são sentidos

como longe. Até mesmo os nomes que são dados às coisas estão vinculados ao contexto

(espacial, temporal, social) onde elas estão: o antigo horto florestal de Rio Claro, uma área

formada por eucaliptos plantados por volta da metade do século XX, agora se chama

Floresta Estadual. Será que se esse horto fosse em Manaus, ao lado da floresta amazônica,

ele ganharia essa denominação? Essa denominação de floresta para essa área tem vínculo

com o fato dela estar numa região em que predominam as plantações e os cerrados? Mas

floresta não é uma área de vegetação natural, não plantada? A idéia do que é uma floresta

varia de um lugar para outro, de uma escala para outra? A denominação floresta vem de

terem achado um meio de preservar a área, pois há uma legislação que protege as florestas

estaduais? Será que num contexto fora do Estado de São Paulo ou do Brasil a denominação

floresta seria utilizada como estratégia de preservar um lugar?

Diversos temas bem conhecidos do ensino fundamental permitem aos alunos

experiências iniciais no rumo do desenvolvimento do raciocínio por escala temporal.

No estudo das relações sociedade – ambiente, por exemplo, consideramos

importante distinguir entre o tempo necessário para a formação, ou renovação dos recursos

naturais e o tempo de seu uso, ou esgotamento pela sociedade. São escalas temporais

diferentes. Mas, além desta distinção inicial, ainda é preciso investigar os interesses e as

ações dos grupos sociais envolvidos em dado problema. Quais interesses estão associados,

por exemplo, ao ritmo acelerado, ao tempo rápido/curto da exploração dos recursos

naturais?

Lembremos, ademais, que as ações dos diversos grupos sociais têm conseqüências

de variada abrangência social, espacial e temporal (o que implica em responsabilidades

diferenciadas):

- um trabalhador rural que não usa agrotóxicos age sobre sua terra, outro,

que utiliza tais venenos, “espalha sua ação” por uma área maior, pela

atuação de chuva e vento;

- uma empresa com filiais em cinqüenta países tem ação em escala distinta

de uma com filiais em apenas duas cidades;

34

Num horizonte talvez um pouco mais distante dos alunos das séries iniciais está um

pensamento que, ao propor maneiras de enfrentar um problema, fruto das relações

sociedade – ambiente, articule ações de diferentes escalas temporais (ações de “curto”,

“médio” e “longo” prazos, por exemplo) e espaciais (ações locais, regionais, nacionais,

etc).

Não importa se estudando a história de suas famílias, ou a história de vida de seus

pais e avós, ou se pesquisando como era a vida, em outros tempos, na cidade onde vivem,

de um modo ou de outro, os alunos do ensino fundamental acabam se deparando com a

questão das transformações das técnicas (nos transportes, na comunicação, na informática,

etc). Essas transformações alteraram/alteram as ações humanas, em termos de escalas

espacial e temporal. Viagens que, décadas atrás, dependendo do meio de transporte,

demoravam meses, agora consomem apenas algumas horas. Hoje, é possível comunicar-se,

“em tempo real” (tempo rápido, instantâneo), com espaços muito distantes espacialmente.

As técnicas, em certo sentido, “encolheram” o espaço e o tempo. Mas somente para

alguns... os que dispõem das técnicas “redutoras” de espaço e “aceleradoras” de tempo.

Para muitos outros as distâncias permaneceram as mesmas ou diminuíram (em termos de

tempo) muito pouco. Cabe também perguntar se esse encolher e esse acelerar só é válido

para as experiências em que estamos vendo e/ou ouvindo (e também nos deslocando

corporalmente), porque as experiências que envolvem, por exemplo, cheirar ou tocar,

continuam com seus tempos e espaços bem parecidos com os dos séculos XIX, XVIII, XII?

Como ficaram seus significados durante esse período? Mudaram, em intensidade,

diversidade, permissividade? Permaneceram como eram? Se tantas coisas ficaram mais

rápidas, será que essas experiências de cheirar e tocar não se modificaram, será que é assim

para qualquer grupo social, qualquer cultura, será que períodos históricos diferentes não

viveram diferentemente essas experiências e não por razões de rapidez/lentidão, mas por

questões morais, religiosas?

Ao nosso ver, para ultrapassar a mera identificação dessas transformações técnicas,

professores e alunos devem manter-se curiosos, indagadores, tendo cuidado com as

generalizações: em cada período histórico, as pessoas e os diversos grupos sociais atribuem

um mesmo significado às transformações técnicas? Todos usufruem igualmente das

35

transformações? Que grupos utilizam as inovações e que vantagens obtêm? Que mudanças

ocorrem nas relações sociais, no cotidiano dos diferentes grupos, no espaço? Etc ... Etc ...

Neste ponto, não é demais destacar a possibilidade de variados meios de investigação, entre

eles: entrevista com pessoas idosas, visita a museus, leitura de livros didáticos e jornais,

observação orientada de programas de televisão e discussões em sala de aula.

Um exemplo, apenas para estimular a reflexão: na cidade de São Paulo, alguns

executivos vão de helicóptero ao trabalho (escala temporal de minutos), enquanto milhares

e milhares de outros trabalhadores acordam de madrugada para tomar mais de um ônibus

(escala de horas). E, muitas vezes, os executivos percorrem distâncias bem maiores que os

trabalhadores!! Ainda existem aqueles que, por falta de dinheiro, são obrigados a percorrer

grandes distâncias a pé. Num mesmo espaço, num mesmo tempo histórico, grupos/classes

sociais vivendo escalas temporais muito diferentes (outra face da desigualdade).

A perspectiva temporal que estamos discutindo também traz contribuições ao estudo

das relações entre cidade e campo.

Nos primeiros anos do ensino fundamental, os alunos podem comparar a cidade e o

campo, e iniciar o conhecimento de suas relações, pensando em aspectos como paisagem,

atividades econômicas, modo de vida.

Como é a vida na cidade? E no campo? Antes, ainda, o que é cidade, o que é

campo? Quais os critérios de classificação? É sempre fácil classificar um lugar como

cidade ou campo? Nunca há critérios ou opiniões diferentes? Seria interessante ouvir

pessoas diversas, ouvir migrantes, pesquisar em dicionários, ver site do IBGE, discutir

notícias de jornal nas quais existam informações sobre cidade e campo de outros países, de

outras culturas, de outros tempos históricos? Um mesmo lugar pode ser chamado de campo

por uns e cidade por outros? Paisagens e atividades urbanas e rurais aparecem sempre bem

separadas, delimitadas, distintas? Na cidade só há elementos urbanos? E no campo apenas

elementos rurais?

Não é difícil imaginar quanto proveito professor e alunos tirariam de saídas da sala

de aula para observar, desenhar ou fotografar paisagens da cidade onde vivem e do campo

próximo, para conversar com seus moradores e trabalhadores a respeito do cotidiano. Na

paisagem há elementos indicadores de certas atividades econômicas, existem elementos que

36

se movem, ou se transformam, com velocidade, em certo ritmo. As atividades cotidianas,

da mesma forma, têm seu tempo, sua duração, sua escala temporal.

O cuidado com as generalizações deve permanecer. Quase sem pensar, associamos

à cidade o “tempo rápido”, a aceleração, a intensidade, a previsibilidade, a escala

temporal reduzida. Ao campo, o tempo da natureza, a imprevisibilidade, a lentidão, a

escala temporal distendida. Mas as cidades não são todas iguais e, numa mesma cidade,

como já exemplificamos, os grupos sociais podem viver escalas temporais diferentes. No

campo, acontece algo semelhante. Mais atrelados ao tempo da natureza, ao ritmo das

estações do ano, estão muitos pequenos proprietários e parceiros, os quais, baseados em

mão-de-obra familiar e mesmo com enormes dificuldades de acesso a crédito, garantem sua

sobrevivência e produzem para o mercado interno. Grandes proprietários, ou grandes

empresas, associados ao capital financeiro-industrial, à exportação, aceleram sua produção,

praticamente desvinculando-a do tempo da natureza, isso pelo uso de ciência, mecanização

e técnicas sofisticadas (informática, irrigação, estufas, variedades de plantas geneticamente

modificadas, fertilizantes químicos, agrotóxicos, confinamento de animais, inseminação

artificial, rações especiais, etc). Seria possível continuar (trabalhadores-escravos, sem-

terras, latifundiários improdutivos ...), porém, apenas destaquemos que, em cada área do

campo brasileiro existe uma combinação própria desses grupos, com presença de alguns e

ausência de outros.

Estudos sobre patrimônio histórico também exigem reflexão a respeito do tempo.

Preservamos um espaço que já “tem” um tempo, que vem de outro(s) tempo(s) histórico(s),

com significados transformados. Portanto, esse espaço permite construir interpretações do

passado e do presente, acerca de outros modos de vida, de outras possibilidades do humano.

Ao preservá-lo, também consideramos o futuro (há elementos de futuro no espaço, ao

menos na forma de idéias). Assim, do modo como colocamos a questão, parece-nos

possível confrontar o “eterno presente” e a tendência do capital de tudo tornar descartável.

Algumas indagações importantes: que espaço foi/é preservado? por quê? quais as relações

dos diversos grupos sociais, ou das pessoas, com esse espaço, em diferentes épocas? a

partir do que se preservou/preserva, inclusive em termos de memórias das pessoas, que

interpretações construímos do passado e do presente, em termos de relações sociais, modos

de construir, de viver (em espaço público ou privado)? E quanto ao que vai ser preservado,

37

é importante para quem? para quantos? para uma minoria, que tem nesse lugar a ser

preservado o centro de sua identidade ou de sua sobrevivência? para a maioria? e só se

decide pela maioria, em qualquer situação? quais os custos sociais da preservação, quais as

escalas das perdas e dos ganhos, quem perde, quem ganha,? o que fazer?

Uma vez reconhecido que o “valor” atribuído aos lugares e às coisas faz deles algo a

ser preservado, ou não, sentimos necessidade de discutir (em nossas aulas, nas escolas)

como estes valores são produzidas em nossa sociedade, de que maneiras temos sido

convencidos do que fazer e de como fazer, com que linguagens se tem feito isso –

fotografias, audiovisuais televisivos, textos impressos em jornais, livros didáticos, etc – e

com a participação de quais instituições – escola, mídia, universidade, governo, etc.

Os exemplos apresentados até aqui, de um modo ou de outro, nos levam a refletir

sobre a sociedade industrial, capitalista, na qual vivemos. A partir dessa reflexão,

procuramos justificar nossa proposta de trabalho com escalas temporal e espacial.

Na sociedade brasileira, há grande estímulo ao consumo e ao descartar rápido dos

objetos (mercadorias), para não dizermos das idéias e das pessoas. O tempo do capital, ou

seja, aquele de sua reprodução, da obtenção do lucro, do trabalho com essas finalidades, do

consumo desenfreado, aparece como se fosse único, o que vale a pena, que deve subjugar

os demais, “rápido” - por vezes, reduzido ao “agora”, ou ao “futuro” -, eficiente, produtivo.

Ora, nossa proposta vai noutra direção, porque possibilita pensar criticamente em

desigualdades sociais e tempos e espaços mais “lentos” associados ao capital, e ainda em

tempos e espaços próprios da natureza e das mais variadas atividades e necessidades

humanas, tempos e espaços que não se reduzem àquele do capital. Política, arte, relações

afetivas, vida espiritual, divertimento, ócio, pensamento, aprendizagem ... têm, histórica e

subjetivamente, suas demandas com relação ao tempo e ao espaço.

38

Últimas palavras. Por enquanto...

Nossa proposta não tem o viés do “dar conta do conteúdo/cumprir todo o

conteúdo”, no entanto, é necessário escolher “assuntos/temas” que permitam a “entrada”

de conhecimentos e experiências dos alunos, afinal propomos o desenvolvimento/produção

de “raciocínios”, o que demanda tempo para o entendimento de “dinâmicas/processos/

funcionamentos/relações” .

Defendemos um ensino produtivo, em oposição ao meramente reprodutivo.