“famÍlia feliz”: identidade familiar narrada … · netos nas famílias contemporâneas. as...
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“FAMÍLIA FELIZ”: IDENTIDADE FAMILIAR NARRADA ATRAVÉS DOS
ADESIVOS AUTOMOTIVOS
Valquíria Coutinho Tavares - PUCRS/ University of Huddersfield
Kátia Soares Coutinho - PPGIE/UFRGS
1 Introdução
De acordo com os dados do IBGE, o número de filhos por família foi reduzido em
10,7% no período de 2003-2013, em nosso país (PORTAL BRASIL, 2015). Outras mudanças
ocorreram neste mesmo período, na composição das famílias brasileiras, tendo o número de
membros diminuído de 3,8 em 2000 para 3,3, em 2010 (IBGE, 2016) e diversificado os laços
de parentesco entre seus membros (BIROLLI, 2014). No âmbito do casamento, da
parentalidade e de outros direitos associados modernamente à família, as fronteiras da
legitimidade também vem se modificando e acrescentando novas formas de compreensão da
mesma (BIROLLI, 2014).
As diferentes dimensões da educação e da cultura constituem o foco dos Estudos
Culturais, e Wortmann (2015) aponta diversas tecnologias culturais, entre elas a escola, a
arquitetura, o cinema, a televisão, o teatro, a publicidade, os o jornalismo impresso, a música,
as exposições, e outros “[...] que estão implicadas na produção de significados que atuam na
formação e regulação de identidades e desejos dos sujeitos que com elas interagem
(WORTMANN, 2015, p. 13). Assim uma das formas de narrar a realidade é através das
imagens, que podem ser percebidas na qualidade de signos quando representam fatos visíveis
da realidade (SANTAELLA; NÖTH, 2012), possibilitando a comunicação entre elas e o leitor
(GRASSI, 2013), tornando-as elementos fundamentais para a educação.
Deste modo, olhando os adesivos automotivos que mostram os elementos de uma
família (GRASSI, 2013) sob o viés da sociedade do espetáculo (DEBORDE, 2003), percebe-
se a importância da publicização do privado em diversas situações, até mesmo quando as
pessoas se deslocam utilizando o automóvel. Sendo assim, nossa proposta é problematizar
algumas reflexões à luz dos Estudos Culturais, incorporando também elementos da Psicologia,
para investigar quais são as subjetividades implícitas nas narrativas visuais da estrutura familiar
estampadas nos adesivos automotivos do tipo “família feliz” (GRASSI, 2013) utilizados como
elemento decorativo por uma parcela da população.
2 Identidade familiar, homoafetividade, parentalidade: os meus, os teus, os nossos
Zygmunt Bauman problematiza a humanidade na sociedade pós-moderna, definindo-a
como “líquida”. Essa ideia simboliza a despersonalização do homem, que se transforma em
“coisa” disponível para consumo e descarte pelo outro, o qual se torna entediado pela utilização
contínua deste “objeto”, que naturalmente é substituível por exemplares parecidos. Nesse
contexto, amar é algo considerado extremamente difícil e incerto, uma vez que os resultados
definitivos de vivências afetivas não nos são conhecidos (BAUMAN, 2008). Dessa forma, uma
vez que receamos a proximidade nas nossas relações íntimas, optamos por desistir da
concretude dessas interações e começamos a nos relacionar virtualmente (BITTENCOURT,
2009), indicando que “é preciso diluir as relações para que possamos consumi-las” (BAUMAN,
2004, p. 10).
As relações estabelecidas pelos seres humanos servirão como estrutura para a formação
de padrões psicológicos operacionais e de formas de regulação emocional, o que pode
influenciar na formação da personalidade (BOWLBY, 1988). Dessa forma, o meio familiar
propicia, por intermédio do amparo afetivo, os aspectos necessários para que as pessoas se
desenvolvam e se relacionem (DESSEN; POLONIA, 2007). Os vínculos formados com
qualidade, baseados em aspectos fundamentais como segurança e estabilidade, entre pais e
filhos, proporciona um amadurecimento saudável, influenciando na independência e
organização da identidade (FLEMING, 2005). Perceber que o contexto familiar é harmônico,
relevante e não hostil favorece o estabelecimento de relações românticas positivas e uma
individuação com sucesso no início da vida adulta. A literatura aponta que o progresso dos
relacionamentos românticos associa-se com a construção de uma identidade individual, assim
como com suas relações interpessoais no geral, como os familiares e os pares (CORREIA;
MOTA, 2016).
A ideia de que casamento, heterossexualidade e procriação, conjuntamente, definem o
que é uma família (BIROLLI, 2014) determinou por muito tempo a sua conceituação. Uma
família era considerada um grupo social composto basicamente por marido, esposa e filhos,
que se origina com o casamento, e no qual os integrantes estão unidos - seja por laços legais,
por direitos e deveres econômicos ou religiosos, por vínculo estabelecido por proibições
sexuais, ou por diferentes sentimentos (LÉVI-STRAUSS, 1956).
Hita (1998), porém, atualiza o conceito de família e passa a defini-lo como um conjunto
de indivíduos que convivem em um determinado espaço físico e compartilham as diversas
atribuições, por exemplo, pagar as contas e impostos, cozinhar, supervisionar a educação dos
filhos e outras que são necessárias à organização e funcionamento da mesma. Além disso, a
configuração estrutural familiar vem se modificando constantemente e o conceito moderno de
família engloba uma série de aspectos, entre os quais: questões de gênero, afetividade,
sexualidade, formação de identidade e valores, modos de produção e obtenção de renda
(BIROLLI, 2014).
A homossexualidade existe desde os tempos remotos, em culturas diversas (BIROLLI,
2014). Em diferentes períodos da história, foi condenada e considerada como crime, doença,
anormalidade e perversão sexual. Atualmente, a homossexualidade é considerada uma maneira
normal de vincular-se em vários contextos sociais. Casais e famílias homoafetivas compõem
um dos grupos mais marginalizados socialmente e, mesmo atualmente o preconceito está
presente em muitos espaços e de forma muito expressiva.
As modificações que vem acontecendo na constituição familiar indicam uma maior
multiplicidade quanto aos perfis de famílias. Por um lado, há um crescimento da expectativa de
vida e, por outro, a quantidade de gravidez decai. Portanto, verifica-se um aumento de avós e
netos nas famílias contemporâneas. As organizações familiares são mais modernas e há um
acréscimo de casamentos consensuais. Com a expansão das taxas de divórcios, ocorre
juntamente um aumento relevante de reconstituição nas famílias, em que os filhos podem ser
de somente um dos parceiros (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2010). As formas recentes de composição familiar podem envolver também
padrasto ou madrasta, e há a possibilidade de os filhos terem que se adaptar com um novo irmão
(PEREIRA; ARPINI, 2012).
Outra consequência possível após separações ou divórcios é o crescimento dos índices
de filhos que se desenvolvem em famílias monoparentais (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). Além disso, diversos casais escolhem estabilizar suas
situações financeiras e suas carreiras profissionais antes de terem filhos. Assim, postergar a
fecundidade da mulher altera os padrões da organização familiar (INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010).
3 Famílias e pets: paixão “animalitária”
A família atual incorpora também a presença cada vez mais próxima dos animais de
estimação, caracterizando a convivência de múltiplas espécies no âmbito familiar e um lugar
de destaque dos mesmos, chegando a uma “paixão animalitária” e a um processo de
“humanização” dos pets. Por vezes, ocorre uma substituição da falta/ausência de filhos,
transferindo, dessa maneira, afetos humanos para os pets (PASTORI; MATOS, 2015). Segata
(2012, p. 24-25) complementa:
Na sorte das discussões contemporâneas, a humanidade dos animais é um tema controverso.
Até chegarem ao posto de “nossos bebezinhos”, de “lindinhos da mamãe”, de “fieis
companheiros”, e viverem em nossos lares, motivarem manifestos ou se tornarem o foco da
atenção de gestos médicos e estéticos, houve um longo caminho a ser percorrido, que
incluiu, necessariamente, uma série de investimentos que acalmaram ou que tentam tornar
invisíveis as suas pulsões naturais. [...] latir, rosnar, urinar, mostrar as garras, foram algumas
das vantagens evolucionárias que permitiram que cães e gatos garantissem a sua
alimentação ou protegessem o seu território e prole. Mas isso não combina com a decoração
da sala de estar de nenhum apartamento, o que faz com que esses animais que se comportem
dessa forma sejam diagnosticados como “doentes mentais” - agressivos, ansiosos ou
depressivos - e medicados com psicotrópicos.
Além disso, donos de pets e pessoas que oferecem “ajuda animalitária” dizem encontrar
nesses animais algo inexistente no “mundo humano”, isto é, que outros indivíduos não lhes
propiciam: um sentimento de “amor incondicional”, um afeto abundante, tornando-os
insubstituíveis como elementos da família. Entretanto, essas razões não explicam os casos em
que animais são maltratados ou abandonados, indicando que essa afeição não sensibiliza todos
igualmente. O “amor incondicional” atribuído aos pets é o principal motivador das ações
promovidas por indivíduos preocupados com os animais necessitados (PASTORI; MATOS,
2015).
O tempo para o lazer e as atividades esportivas são expressas pelo desfrute do ócio e do
tempo livre e configura-se como um espaço importante de convívio familiar, como veremos na
sequência.
4 Lazer, esportes e diversão em família
As atividades de lazer e esportivas, assim como outros tantos aspectos, variam conforme
a cultura local e o período histórico. Entre as atividades de convivência familiar, destacamos
os passeios de bicicleta nos parques ou vias da cidade, que se tornam mais seguros, prazerosos
e convenientes conforme os espaços urbanos são modificados (por exemplo, implementação de
ciclovias). Assim sendo, no final da década de 80, Forjaz (1988, documento eletrônico)
destacou:
Aquelas formas de entretenimento produzidas no espaço doméstico e familiar envolvendo
a afetividade e a sociabilidade (tais como visitas, reuniões, ou simplesmente bater papo,
conversar, conviver) aparecem com freqüência bem menor e não constituem o padrão
dominante de lazer.
Complementarmente, Formiga, Ayroza e Dias (2005) relatam que
Atualmente, a diversão tem sido ponto de grandes questionamentos em vários setores da
sociedade: escola, família, clubes de recreação. Isto tem levado a repensar a forma de lazer
que os adolescentes estão vivendo, desde a atividade mais comum, como é o caso do esporte
ou outras mais avançadas, por exemplo, o vídeo game e demais diversões tecnológicas.
A prática esportiva pode proporcionar a aprendizagem de diversas habilidades, tais
como: cognitivas e sociais (regras, respeito aos outros), planejamento de atividades (organizar
os treinos, pensar nos movimentos que fará), assumir responsabilidades e ter experiências para
além do ambiente familiar. Também auxilia, potencialmente, no aumento da auto-estima (como
ao perceber que é bom nisso e ser apreciado pelos outros), no desenvolvimento da tolerância à
frustração (saber vencer e perder), sendo possível adquirir uma maior capacidade para enfrentar
cenários diferenciados (relação com a resiliência) e manter interações positivas com as demais
pessoas (SANCHES, 2007).
As variadas categorias esportivas existentes divergem conforme o clima, as convenções,
a cultura e as heranças das diferentes nações. Entretanto, há esportes com predileção global,
como o beisebol, o futebol, o basquetebol, o voleibol, o atletismo, o golfe, o tênis, o hóquei em
patins e o ciclismo. O futebol, por exemplo, é o esporte que atrai maior público brasileiro, e o
futebol de salão e o de praia começaram a gerar mais adeptos na população e uma maior
dimensão na mídia. O vôlei, incluindo o jogado na praia, estão integrando cada vez mais
adeptos, visto os atuais resultados em eventos mundiais (SANTOS et al., 1997).
Outra prática esportiva bastante comum é o surf, pois nosso país possui um litoral
extenso, com 9.200 km (DECININO, 2007), propiciando a prática de esportes aquáticos por
todo o território nacional. No item a seguir, veremos a violência no mundo atual.
5 Diferença & identidade: a violência no mundo globalizado e líquido
Diferença e identidade constituem criações culturais e sociais na percepção de Silva
(2003). Já para Woodward (2003) as identidades são engendradas pela marcação da diferença.
Tal marcação se dá tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de
exclusão social (WOODWARD, 2003). Porém, na visão de Bauman (2005), a identidade não
é mera "construção social"; ter uma ou várias identidades é uma tarefa política e as mesmas
transitam em diferentes esferas da sociedade.
Essas identidades diversas relacionam-se aos processos de inclusão/exclusão das
minorias no mundo globalizado onde habitamos. “Identidades que estereotipam, humilham,
desumanizam, estigmatizam [...]” (BAUMAN, 2005, p. 14). Desse modo, são criados
estereótipos “[...] que se reproduzem tendo como matriz a redução das periferias (e favelas) à
pobreza, ao crime e à violência, como se estes fossem as marcas identificadoras daquilo que
está à margem da civilização, da cidadania e da legalidade institucional.” (MARTINS, 2015, p.
22). Por fim, Hall (2005) pontua que as identidades estão em constante movimento, em um
processo contínuo de transformação e mudança, sendo, portanto, definidas historicamente - e
não biologicamente.
Uma das representações sociais estereotipadas largamente difundidos pela grande mídia
diz respeito às periferias das grandes metrópoles vistas como espaços do caos e da violência,
sendo estes lugares permeados pela criminalidade, pela ausência de garantias legais e regida
por leis próprias. Lugares onde o estigma social e “a significação moral da diferença são
reforçados pela estruturação da desigualdade” (MARTINS, 2015, p. 22). Souza e Lima (2006,
p. 1212) identificam que a violência afeta a população de modo desigual, gerando riscos
diferenciados em função de gênero, raça/cor, idade e espaço social. A análise de Appadurai
(2009, p. 96) contrapõe o “[...] mundo vertebrado, organizado pelo sistema dorsal central de
equilíbrios internacionais de poder, tratados militares, alianças econômicas e instituições de
cooperação” ao mundo celular, “[...] cujas partes se multiplicam por associação e oportunidade,
mais do que por legislação ou por projetos”. De qualquer modo
6 A questão da pessoa com deficiência
Ao campo dos Estudos Culturais interessa a problematização de representações
naturalizadas, estereótipos e preconceitos decorrentes do posicionamento desigual dos sujeitos
(WORTMANN, 2015). Trazemos, então, para as nossas reflexões, o tratamento dispensado às
pessoas com deficiência que muitas vezes, ainda se situa no campo da exclusão e do estigma
social (GOFFMAN, 1988). Para o autor, o conceito de estigma se dá sempre em uma
perspectiva dos contextos por onde circulam as pessoas com deficiência, seja na escola, no
lazer, no trabalho e, por vezes, nas próprias famílias e envolve também preconceitos,
estereótipos, exclusão e outros comportamentos discriminatórios.
A partir da década de 80 do século XX, os processos de inclusão foram deflagrados
mundialmente e trouxeram mais visibilidade à questão das dificuldades enfrentadas pelas
pessoas com deficiência. Através de muitas lutas e reivindicações no mundo todo, este coletivo
ganhou representatividade, conseguindo aprovação de vasta e consistente legislação protetiva
que passa por todos os tipos de deficiência e ampara também as pessoas idosas.
No Brasil, o último Censo (INSITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2010) mostrou que 23,9% da população total, têm algum tipo de deficiência –
visual, auditiva, motora e mental ou intelectual.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência) - Lei nº 13.146/2015 é enfática ao estabelecer em seu Art. 8º que
É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à
paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à
profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao
transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação,
à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à
liberdade, à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2015, documento
eletrônico).
No Brasil, apesar do apoio recente da legislação, muito ainda tem que ser conquistado
na prática para que a deficiência deixe de ser motivo de exclusão e estigma social e as pessoas
sejam incluídas em todos os contextos aos quais têm direitos como cidadãos.
7 Metodologia
Este estudo pretendeu investigar quais as narrativas subjacentes aos adesivos “família
feliz” presentes em automóveis utilizados pelas famílias em seus deslocamentos.
A metodologia de cunho qualitativo do tipo pesquisa documental utilizou o processo de
análise textual qualitativa (MORAES, 2003), sendo o levantamento dos dados realizado na
cidade de Porto Alegre através de pesquisa de campo efetuado em duas etapas: a) fotografias
de 30 adesivos do tipo “família feliz” em automóveis circulantes em Porto Alegre entre os
meses de outubro de 2016 a abril de 2017; b) entrevistas semiestruturadas com dois donos de
lojas que vendem adesivos deste modelo. A observação (leitura visual) do material coletado
propiciou a observação das temáticas que nos levaram às categorias emergentes, segundo
Moraes (2003). Essas categorias são as seguintes:
a) agrupamento familiar
b) presença de pets
c) equipamento esportivo e formas de lazer
8 Análises e discussão
Os resultados mostram a diversidade de variadas composições familiares, expressas nos
adesivos observados, sendo a parentalidade ampliada também para casais homoafetivos e avós.
No entanto, há situações em que está registrada a presença de apenas um provedor com
filho(a/s) e/ou pets.
A “família feliz” típica (GRASSI, 2013) é constituída por um casal e seus filho(s) e
bichinhos de estimação (figura 1, 2), mostrando que a afetividade estende-se a outras espécies,
constituindo o que Pastori e Matos, (2015) denominaram de famílias multiespecíficas. A
presença dos pets, sempre ao lado dos humanos, demonstra que esses são vistos como filhos,
como se pode observar na figura 2.
Figura 1 – Homoafetividade, Pets e “Família Feliz”.
Fonte: Arquivo das autoras.
Figura 2 – Pets, Avós e “Família Feliz”.
Fonte: Arquivo das autoras.
As atividades de lazer da “família feliz” são demonstradas através dos adesivos que
trazem pranchas de surf e corrida como atividades realizadas em conjunto pelos membros da
família, como nas figuras 3 e 4.
Figura 3 – Pranchas de Surf e “Família Feliz”.
Fonte: Arquivo das autoras.
Figura 4 – Corrida como Atividade da “Família Feliz”.
Fonte: Arquivo das autoras.
Entre os 30 adesivos coletados, não foi encontrado nenhum adesivo retratando pessoa
com deficiência fazendo parte da “família feliz”. Ficam, no entanto, estes questionamentos em
aberto: por quê os adesivos automotivos não trazem representações de pessoas com deficiência?
Será que as “famílias felizes” de nossos dias ainda sentem necessidade de esconder seus
parentes com deficiência? Ou os mesmos constituem condição impeditiva para a “felicidade”?
Quanto de preconceito e estigma isto denota?
No entanto, durante nossas coletas de fotografias de adesivos, percebemos alguns táxis
de modelos diferenciados (como na figura 5), apresentando adesivagem indicativa de recursos
de acessibilidade e entramos em contato com uma taxista no ponto do Bourbon Country. A
frota de táxis acessíveis da capital, registra atualmente, segundo dados da Prefeitura Municipal
de Porto Alegre1, 71 veículos credenciados, modelos de carros com altura adequada para
acomodação de cadeiras de rodas necessárias para o deslocamento de passageiros com
mobilidade reduzida. Estes automóveis adaptados são identificados com adesivos padronizados
de acordo com as normas internacionais.
1Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smacis/default.php?p_noticia=190800&PRIMEIRO+TAXI
+ACESSIVEL+JA+CIRCULA+EM+PORTO+ALEGRE>. Acesso em: 23 mar. 2017.
Figura 5 – Táxis Acessíveis.
Fonte: Arquivo das autoras.
O símbolo da cadeira de rodas (como na figura 6), conhecido como Símbolo
Internacional de Acesso remonta ao ano de 1969, quando foi adotado pela Rehabilitation
International (RI)2. Pode-se inferir que este serviço oferecido pelos táxis do município de Porto
Alegre veio oferecer um diferencial importante, que não foi pensado pelos dois aplicativos de
transporte de passageiro que recentemente aportaram na capital gaúcha.
Figura 6 – Símbolo Internacional de Acessibilidade.
2 Disponível em: <http://www.riglobal.org/about/>. Acesso em: 23 mar. 2017.
Fonte: <http://www.acessibilidadenapratica.com.br/textos/simbolo-internacional-de-acesso-sia/>.
Por outro lado, destaca-se a maior prudência com relação ao uso dos adesivos nos
automóveis, atribuída a uma certa desvalorização da vida humana provocada pelo aumento da
violência urbana (APPADURAI, 2009), traduzindo-se em um crescente medo e sensação de
insegurança. Como consequência, há mais receio em expor rotinas, costumes e realizações da
unidade família e de seus membros através dos adesivos automotivos.
9 Considerações finais
Através da coleta de fotografias de trinta adesivos colados em automóveis, realizadas
na cidade de Porto Alegre e de entrevistas semiestruturadas com dois sujeitos, a metodologia
de cunho qualitativo do tipo pesquisa documental confirmou a publicização do privado,
característica da sociedade do espetáculo (DEBORDE, 2003) e uma certa confusão entre o
público e o privado (BIROLI, 2014). As narrativas familiares evidenciadas pelos adesivos
automotivos, alvos desta investigação, expressam a falta de privacidade e a exposição dos
grupos ou tribos - neste caso as famílias - característica da comunicação instantânea e
superficial deste nosso século, pois o espetáculo, como aponta Deborde (2003, p. 9) “[...] não
é apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por
imagens.”. E, neste sentido, a externalização do sentido de “felicidade” e de “normalidade”
confirmam a condição de pertencimento almejada por todos, independentemente de instrução
ou poder aquisitivo (GRASSI, 2013).
Como crítica a esse estado de felicidade estereotipada percebe-se que as narrativas
hegemônicas aparecem veiculadas na mídia, assim como nos adesivos da “Família Feliz”, de
forma a representar a família em um padrão específico, tradicional e estático (OLDONI;
SOARES, 2013). A exibição de modos de ser: demonstrar felicidade, alegria, praticar esportes;
de ter: animais de estimação, equipamentos esportivos (prancha de surf, bola e uniforme do
time, bicicleta) confirma o espetáculo como “[...] a conservação da inconsciência na
modificação prática das condições de existência.” (DEBORDE, 2003, p. 17).
Como limitações deste trabalho, apontamos as entrevistas realizadas com apenas dois
sujeitos donos de lojas que vendem este tipo de adesivo automotivo (família feliz), pois muitas
vezes a comercialização dos mesmos é feita via internet.
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