história de jaboatão dos guararapes

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Jaboatão de hoje, dos Guararapes, da indústria, do comércio e do turismo, revisitado pelas práticas laborais do Jaboatão velho, das usinas e dos engenhos. Recife/2012

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  • Jaboato de hoje, dos Guararapes, da indstria, do

    comrcio e do turismo, revisitado pelas prticas

    laborais do Jaboato velho, das usinas e dos engenhos.

    Recife/2012

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    Jaboato de hoje, dos Guararapes, da indstria, do

    comrcio e do turismo, revisitado pelas prticas laborais do

    Jaboato velho, das usinas e dos engenhos.

    Vera Lcia Costa Acioli

    Valria Jos da Silva Santos

    HISTRIA DO MUNICPIO DO JABOATO1

    Como tantos outros municpios de Pernambuco, a ocupao de Jaboato ocorreu a

    partir do regime de sesmarias, ou seja, da distribuio de lotes de terras para o seu plantio e

    povoao. Em 1566, Duarte Coelho concedeu uma lgua de terra a Gaspar Alves Purga e Dona

    Isabel Ferreira, para o cultivo de cana de acar e instalao de um engenho, o So Joo Batista.

    A povoao das terras de Jaboato s aconteceu a partir de 1593, quando o terceiro proprietrio

    do Engenho So Joo Batista, Bento Luiz Figueiroa, passou a residir no engenho. Ainda nesse

    ano as terras foram desmembradas e parte delas vendida a Ferno Soares, que teve como

    herdeira Maria Feij, casada com o portugus Antnio Bulhes (hoje, Usina Bulhes,

    desativada).

    O seu nome teve origem da expresso indgena "Yapoatan", rvore comum na regio,

    usada para fabricar mastros e embarcaes. Em 1648 e 1649 seu territrio foi palco de duas

    grandes batalhas contra os Holandeses em Pernambuco, travadas nos Montes Guararapes, e em

    homenagem a esse feito, em 1989, por Lei de n 004 de 5 de maio, passou a ser chamada de

    Jaboato dos Guararapes. Em 1873 o povoado foi elevado categoria de vila e em 1884, ao ser

    desmembrado do territrio do municpio de Olinda, ao qual pertencia, foi transformado em

    cidade.

    O municpio est situado no litoral do Estado de Pernambuco, a 14 quilmetros do

    Recife, tem extenso territorial de 256 quilmetros quadrados, dos quais oito so de praias.

    Limita-se ao norte com a capital pernambucana e o municpio de So Loureno da Mata, ao sul

    1 At 1989 o municpio denominava-se Jaboato, passando a ser chamado de Jaboato dos Guararapes e

    atualmente faz parte da Regio Metropolitana do Recife-PE. Disponvel em

    http://www.jaboatao.pe.gov.br/jaboatao/historia.aspx. Acesso em 09/05/2012.

    http://www.jaboatao.pe.gov.br/jaboatao/historia.aspx

  • 3

    com o Cabo de Santo Agostinho, a leste com o Oceano Atlntico e a Oeste com Moreno. Faz

    parte da Regio Metropolitana do Recife.

    Atualmente as principais atividades econmicas em Jaboato dos Guararapes so

    baseadas no turismo, por suas belas praias, excelente infra-estrutura hoteleira, monumentos

    histricos (Parque Histrico Nacional dos Guararapes), reas de lazer e por ser um importante

    centro econmico e comercial converteu-se em um dos principais ncleos tursticos de

    Pernambuco; no comrcio, por abrigar um dos maiores e mais movimentados shopping's de

    Pernambuco, o Shopping Guararapes e pelo importante centro logstico, destacando-se o de

    Distribuio da Rede Wal-Mart e a Nestl; e na indstria, onde sua localizao entre o Recife e

    o Porto de Suape permitiu o desenvolvimento de um importante distrito industrial. Nele esto

    instaladas as fbricas da Coca-Cola, da Unilever, da Basf e da Vitarella, entre outras.

    Merece destaque no Parque Histrico Nacional dos Guararapes, declarado, em 1971, um

    dos lugares histricos mais importantes do Brasil por ter sido palco da famosa batalha dos

    Guararapes, a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, construda em 1656 por ordem do genaral

    Francisco Barreto de Menezes, em agradecimento aos habitantes do local por vencerem aos

    holandeses na guerra da restaurao pernambucana. No seu interior esto guardados os restos

    mortais de Joo Fernandez Vieira e Andr Vidal de Negreiros, participantes ativos da batalha,

    alm de vrias imagens barrocas de grande valor histrico, destacando a da padroeira da igreja e

    obras de arte dos sculos XVII e XVIII.

    A JUNTA DE CONCILIAO E JULGAMENTO DO JABOATO - 1960 a 19782

    Na atualidade trs questes tangenciam a problematizao da produo do

    conhecimento e sua conseqente conservao documental institucional: o que e porqu

    preservar e a funo social da informao preservada. Para alm da teoria, a guarda consciente

    lastreia-se na Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que versa sobre a guarda racional dos arquivos

    pblicos e privados. Em seus trs primeiros artigos expe-se o escopo das diretrizes legislativas

    impostas aos lugares de gesto de documento e no captulo II recorta-se especificamente essa

    dinmica, no mbito da esfera pblica, tema dessa anlise por ser o Arquivo do Projeto

    2 Catlogos descritivos e planilhas do Jaboato de 1963 a 1973 entregues ao NEAD IICA como produtos

    do convnio de 2009. Catlogos descritivos e planilhas do Jaboato de 1974 a 1978 que esto sendo

    entregues como produto 4 do contrato de 2012.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Turismohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Com%C3%A9rciohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Shopping_Guararapeshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Log%C3%ADsticahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Wal-Marthttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ind%C3%BAstriahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Recifehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Porto_de_Suapehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Coca-Colahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Unileverhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Basfhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Vitarella

  • 4

    Memria e Histria da UFPE quem abriga a massa documental das extintas Juntas de

    Conciliao e Julgamento do TRT6 de Jaboato3 e de outros municpios de Pernambuco.

    Esse projeto corporificou-se no lastro dessa nova proposta legal de rememorao. Os

    primeiros passos desse laboratrio de pesquisa s foram possveis devido a um criterioso

    trabalho de produo tcnica-acadmica que envolveu competncias interdisciplinares, com

    trnsito nas reas de Arquivstica, Histria e Direito. Desse caminhar tem-se hoje mais um local

    especializado da memria justrabalhista do Estado de Pernambuco das dcadas de 50 a 80. Os

    processos trabalhistas do municpio de Jaboato, em plena dinmica de gesto documental,

    foram catalogados e postos disponibilizao, graas a parcerias com o NEAD e IICA.

    Compem-se ainda de produes escritas (catlogos descritivos) e emprego virtual (banco de

    dados e processos digitalizados) e podem, tambm, serem utilizados acessando o endereo

    eletrnico - www.memriaehistoria.trt6.gov.br.

    Pensar o municpio pernambucano do Jaboato da dcada de 60 a 70 no se constitui

    tarefa simples. Problematiz-lo tendo como fonte de pesquisa as demandas laborais, via

    processo jurdico trabalhista, feitas Junta de Conciliao e Julgamento do Jaboato, pressupe

    anlise histrica de sua trajetria de mudana geogrfica fsica, poltica, econmica e social.

    Encaminhamos a construo desse entendimento, para alm da pluralidade dos atores do

    trabalho nesse municpio (agronegcio4, indstria txtil, automobilstica

    5, de papel, alimentos,

    3 Desde 1932 as Juntas de Conciliao e Julgamento existiam atuando como rgos administrativos da

    Justia do Trabalho. Em 1946, o Presidente da Repblica Eurico Gaspar Dutra usando as suas atribuies

    impe o Decreto-Lei n 9.7971 que dispe a justia trabalhista como rgo do Poder Judicirio,

    compondo-se pela 1; 2 e 3 instncias respectivamente: as Juntas de Conciliao e Julgamento, o

    Tribunal Regional do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho. Inicialmente faziam parte do TRT 6

    Regio cinco Juntas sendo acrescidas outras na medida em que as demandas trabalhistas aumentavam.

    Assim, em 1962, a partir da Lei 4.088, foi criada a Junta de Conciliao e Julgamento do municpio do

    Jaboato que tambm era rea jurisdicional dos municpios do Moreno, Vitria do Santo Anto, Gravat e

    Glria do Goit. Efetivamente s em 1963 ela foi instalada, tendo como presidente o Juiz Alosio

    Cavalcanti Moreira. Hoje Jaboato dos Guararapes conta com cinco varas trabalhistas, sendo a quinta

    inaugurada recentemente, em 30 de abril de 2012. 4 Os meios de produo e capital ligados ao campo no municpio do Jaboato mantiveram-se em maior

    expresso nas dcadas de 60 e 70 frente a outras denominaes laborais apesar das muitas formas de

    mascar-lo (a quem demandar a reclamao?). 5

    A primeira fbrica automobilstica do Nordeste foi a Willys Overland. A Willys-Nordeste implantou-se

    em 1966 no Jaboato para montagem dos automveis Rural e Jeep. Esse ltimo ficou conhecido na

    regio como Chapu de Couro. A chegada dessa nova produo de capital no NE podia refletir o desejo

    desenvolvimentista nacional estendido ao regional fomentado pelos benefcios fiscais gerados pela

    SUDENE, na ordem de Cr$ 834 milhes, por meio do dispositivo 3.418, em resposta ao plano de um

    Brasil grande do Governo Militar. Tal normatizao tida por legisladores como o famigerado

    dispositivo porque precipitaria derrocada da instituio.

    - http://www.angelfire.com/wi/willysbr/willys1.html. Acesso em 06/05/2012.

    -http://www.senado.gov.br/atividade/plenario/sessao/disc/getTexto.asp?s=023.4.53.O&disc=10/2/S.

    Acesso em 22.05.2012. Vide tambm JCJ - Jaboato processos. 0145/67; 555/68; 1058/68 e 1065/68,

    entre outros.

    http://www.memriaehistoriatrt6.gov.br/http://www.angelfire.com/wi/willysbr/willys1.html.%20Acesso%20em%2006/05/2012http://www.senado.gov.br/atividade/plenario/sessao/disc/getTexto.asp?s=023.4.53.O&disc=10/2/S

  • 5

    servios e comrcio) a questionamentos de como se disps o espao fsico, ao longo de quase

    cinco dcadas, desse ncleo populacional e suas transformaes sociopoltica.

    Jaboato de ontem - Jaboato dos meus avs6 - no se elucidar por meio de um fortuito

    olhar do Jaboato de hoje, tendo em conta ser ele um municpio integrado a Regio

    Metropolitana do Recife, cujas fronteiras passam imperceptveis s prticas cotidianas urbanas.

    O conjunto temporal abordado do municpio em foco compreende os anos de 1963 a

    1978, cuja cidade nesse tempo histrico, embora j fiando suas dinmicas econmicas de cunho

    progressista, ainda no se mostrava como um tecido urbano complexo. H cinco dcadas,

    Jaboato enquadrava-se como um espao tomado de ruralidade7 e, portanto, em contradio ao

    tempo presente.

    Tomando como baliza analtica os outros municpios pernambucanos, frente s

    demandas contemporneas de desenvolvimento que vm transformando o perfil do Estado de

    Pernambuco, Jaboato descortina-se no sculo XXI como um espao urbano que pouco se

    assemelha ao de dcadas atrs. Apesar disso, as atividades de produo e acumulao de capital

    desse municpio estiveram ligadas ao mundo rural por meio do cultivo da cana de acar e a

    esse meio de produo, no qual persistem continuidades em suas estruturas e em suas dinmicas

    de ao mais peculiares. Saliente-se que a essas dinmicas foram adaptados os novos rumos do

    agronegcio, em resposta as demandas globais de mercado e consumo, seja pelo produto

    primrio o acar, ou pelo lcool e, na atualidade, pelo etanol considerada a energia limpa.

    s discusses acerca do cultivo da cana-de-acar nesse espao se inserem tambm as

    anlises das prticas laborais de seus sujeitos, sejam eles os patres, quer usineiros,

    arrendatrios ou plantadores de cana, ou os empregados a servios deles. Toda composio

    dessa histria laboral vem descortinando a histria desses sujeitos por meio das leituras dos

    processos trabalhistas da extinta Junta de Conciliao e Julgamento de Jaboato. As relaes de

    trabalho rural sempre suscitam debates calorosos e inquietaes. Como pensar o Nordeste

    permeado de sua simblica Aucarocracia sem problematizar sua prtica contempornea de

    trabalho rural? E, tambm, como levantar tais questionamentos, sem considerar o necessrio

    status de bem-estar social entre o homem, o seu trabalho e o meio em que vive?8 A indstria

    6 Citao parafraseada do ttulo do livro O Jaboato dos Meus Avs de autoria do jornalista Van-hoeven

    Ferreira Veloso. 7

    A bibliografia de referncia a esse assunto sistematiza a existncia em Jaboato de 45 engenhos e 3

    usinas entre os anos 60 e 70. Contudo, de pesquisa ainda em desenvolvimento no Arquivo do Projeto

    Memria e Histria TRT6 Regio/UFPE a partir dos processos trabalhistas talvez se possa haver uma

    margem quantitativa maior. 8 SANTOS, Valria Jos S. Testemunhos de memria, vida e trabalho. Autos processuais das Juntas de

    Conciliao e Julgamento da Zona Mata de Pernambuco: 1963 1978. Monografia apresentada no curso

    de bacharelado em Histria na UFPE, em julho de 2011.

  • 6

    txtil, por exemplo, coexistiu em uma quase paridade dentro desse contexto histrico com o

    trabalho rural. Jaboato h esse tempo possua trs grandes indstrias aucareiras Usina

    Bulhes, Usina Jaboato e Usina Muribeca. Essa conjuntura vem refletir, portanto, uma estreita

    relao com o perfil econmico do Brasil - um pas de potencial agrcola, ainda

    contemporaneamente tido como o celeiro do mundo.

    Os processos se desnudam palpveis e em srie a partir dos procedimentos cientficos

    adotados. A anlise crtica se apresenta como um procedimento que produz deslocamentos e

    atende tambm as inquietaes dos pesquisadores, no que tange em dar a sociedade uma

    problematizao de cunho acadmico que possa provocar intimidade e semelhanas com o

    contexto social vigente, como mais uma possibilidade de elucidao pedaggica de um tema

    com pertinncias to humanas o trabalho. Uma histria do trabalho e de seus sujeitos pode-se

    dizer fria e cruel, e, o que pior, com inmeras permanncias de carter desumano dentro de um

    recorte espacial bem familiar, a Zona da Mata Pernambucana9.

    A construo arquivstica do Jaboato de puro pertencimento que cresce a cada leitura

    dos fragmentos das vozes dos seus autos trabalhistas. As experincias demasiadamente humanas

    dos sujeitos do trabalho esto ora contida nas peas reclamatrias, ou nas atas de audincia

    repletas de narrativas testemunhais, nos termos de homologao, conciliao, recursos, percias

    e nas decises dos agravos. Todos esses instrumentos jurdicos mostram-se como veculos de

    contnua aprendizagem interdisciplinar e, portanto, de mais recursos pesquisas e escritas,

    algumas j socializadas como o livro Histria, Cultura e Trabalho: questes da

    contemporaneidade10

    . Esses trmites agentes de justia e direito, apesar do excessivo rigor

    formal, so impreterivelmente impregnados de cotidianos de vida11

    , ou melhor, de histrias de

    vida passveis de uma verossmil reconstruo narrativa tanto daqueles nomeados de vencidos

    como de vencedores e abarcada metodologicamente pela Histria do cotidiano.

    9 Idem.

    10 MONTENEGRO, Antonio Torres, GUIMARES NETO, Regina Beatriz e ACIOLI, Vera Lcia Costa

    (org) Histria, Cultura, Trabalho: questes da contemporaneidade. Recife: Editora Universitria

    UFPE, 2011. Tambm os artigos dos autores: MONTENEGRO, Antonio Torres; ACIOLI, Vera Lcia

    Costa & ASSIS, Virgnia Almodo de; SANTOS, Valria Jos Silva; SILVA, Diego Carvalho da. no

    site - HTTP://memoriaehistoria.trt6.gov.br. E, ainda, MONTENEGRO, Antonio Torres Agitao poltica

    e direito trabalhista nos idos de 1964 In Histria, Cultura, Trabalho: questes da contemporaneidade,

    citado. 11

    Para Mary Del Priori a histria do cotidiano - da vida cotidiana - no se faz apenas das prticas

    familiares em seus rituais de coletivos. Pressupe-se a partir de uma dicotomia ritualstica de produo e

    reproduo" desse contexto social, por meio dos sujeitos (o dono do poder e o margem deste) que

    individualmente e, concomitantemente, compor um todo: um lugar de conservao, de permanncias

    culturais e de rituais: um lugar privado da Histria". In Ciro Flamariion Cardoso & Ronaldo Vainfas.

    Domnios da Histria. Ensaios de teoria e metodologia.

  • 7

    O Arquivo do projeto Memria e Histria da UFPE, hoje, se expressa ao mesmo tempo

    como um lcus e uma prxis de memria que visa, para alm da guarda consciente, o memorar

    de algo. Dentre as inmeras semnticas do vocbulo memria, o verbo, que lhe

    correspondente memorar12

    a sntese do trabalhar a memria. Para alm do seu sentido mais

    peculiar, que relembrar, a expresso indica outras significaes que transcendem em alegorias

    e dizeres subliminares e vai se atrelar a um entendimento cultural fazendo emergir a

    verossimilhana em sua narrativa. Assim o encontro analtico com os autos trabalhistas de

    Jaboato, esses dossis apresentam uma sequencia documental lgica de sua atividade fim,

    portanto, refletem e desvestem o vivido, por meio das aes prticas desse ritual jurdico.

    OS PROCESSOS TRABALHISTAS: prticas dos tempos da colnia revisitadas

    Apesar da distncia de trs sculos do incio da colonizao portuguesa no Brasil

    atualidade, v-se do resultado da pesquisa nos processos trabalhistas da zona rural de

    Pernambuco, mais resistncias a transformaes das prticas patronais, que tanto precarizam as

    relaes de trabalho, que mudanas. Permaneceu o rano autoritrio dos antes senhores de

    engenho, mais tarde usineiros, a considerar-se todo poderoso ante seus empregados. As

    conquistas foram poucas e obtidas com muita luta.

    Um processo gestado na Junta de Conciliao e Justia de Jaboato, objeto de

    reclamao contra o dono do Engenho Ana Vaz, nos remete a essa truculncia de

    comportamento dos novos donos da terra e do homem, parafraseando Andr Rebouas13

    ,

    diante desse outro sujeito histrico que ganha voz e, atravs de seus agentes, ganha atuao,

    colocando-os em p de igualdade nos bancos de audincia e ouvindo a deciso de juzes. Veja-

    se um caso no qual o trabalhador pede como objeto da reclamao aviso prvio, 13 salrio,

    frias e 14 salrio.

    Jos Rodrigues da Silva, brasileiro, analfabeto, rurcola, casado, residente no Engenho

    Ana Vaz localizado em Vitria de Santo Anto, reclama, assistido pelo Sindicato dos

    Trabalhadores de Vitria de Santo Anto e pelo Dr. Ccero Jos Martins da Silva, contra o

    proprietrio do referido engenho. Na inicial expe-se a ocorrncia de um conflito entre as

    12

    Memorar: (1572 cf. IAVL) 1 .T.d. trazer ou conservar na memria; recordar, relembrar. 2 T. d.

    marcar (acontecimento) com comemorao; fazer festa em honra de (fato, acontecimento, pessoa etc);

    celebrar comemorar; festejar. Houaiss, Antonio (1915 1999) e Villar, Mauro de Salles (1939 - ).

    Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa; Antonio Houaiss e Mauro Salles Villar, elaborado no

    Instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Lngua Portuguesa SC LTDA. Rio de

    Janeiro: Objetiva, 2001. 13

    Dirios de Andr Rebouas, 17 de julho de 1888. FUNDAJ Documentos inditos.

  • 8

    partes, pois, estando o reclamado em estado de embriaguez resultou em agresso verbal e fsica

    imposta ao trabalhador. Que o reclamante fosse procurar a justia foi uma das agresses

    verbais proferidas, entre outras, pelo proprietrio,

    que fosse reclamar na Justia do Trabalho de Jaboato, no IV Exrcito

    e no Sindicato, que ele tinha trs cacetes l no seu bureau, batizados

    como: direitos, tempo de servio, indenizao14

    .

    Sentiu-se o trabalhador demitido de forma indireta por no ter mais condies de voltar

    ao servio. Afirma na reclamatria que comeou sua lida desde 1960, percebia remunerao

    menor que o salrio mnimo regional e trabalha em mdia de dois dias para concluir uma

    tarefa. Descreve assim os fatos:

    (...) se encontrava executando sua tarefa margem da estrada do engenho,

    quando foi agredido pelo proprietrio (...), o qual parou o seu automvel

    empunhando um rifle, agrediu o reclamante batendo no brao direito e na

    perna, em seguida tomou o chapu do mesmo proferindo palavras ofensivas

    a moral em voz alta, sendo algumas impronunciveis, afirmando que se o

    reclamante continuasse ali no engenho, o mataria.15

    Em narrativa de contestao, o reclamado postula como inverdades o proferido pelo

    reclamante e que ele, proprietrio, no paga valores inferiores ao salrio mnimo, pois,

    todos aqueles que trabalham base de produo, numa tarefa normal, faz

    cem cubos e quando a terra mais difcil a tarefa de sessenta cubos e todos

    os seus trabalhadores tm oportunidade de tirar as citadas tarefas.16

    O processo termina com um acordo entre as partes devendo o reclamado pagar a quantia

    de Cr$ 37.800,00 ao reclamante, divididos em cinco parcelas.

    Na mesma Junta de Conciliao e Justia do Jaboato, foi gestado um outro processo,

    agora do trabalhador Manoel Vicente Pessoa17

    , residente no Engenho Bragana, municpio de

    Vitria de Santo Anto, contra o senhor Erasmo Duarte Falco. Traz aditado ao corpo

    14

    JUNTA DE CONCILIAO E JULGAMENTO DE JABOATO. Processo Trabalhista n 0353/78.

    Acervo do Arquivo do Projeto Memria e Histria convnio TRT 6 Regio UFPE. 15

    JCJ - JA, Processo n 0353/78. 16

    Idem. 17

    JCJ JA Processo 0438/1969.

  • 9

    documental, como prova, um recorte de peridico local que tem como chamada: Senhor de

    Engenho comete atrocidades 18

    . Nele relatado as prticas de explorao da elite patronal, na

    notcia, Severina Luzia da Silva, residente no mesmo engenho h oito anos, disse que ao ficar

    viva em 1969, com 49 anos de idade, o senhor Erasmo lhe tomou cerca de trs hectares de terra

    onde ela cultivava mandioca e cana tirando-lhe, com tal atitude, o stio de subsistncia. Acresce

    sua narrativa com o caso de um trabalhador que foi amarrado em uma jaqueira onde uma casa

    de marimbondo foi aoitada (pelo Erasmo) para picar o rapaz, que ficou todo inchado.

    Conclui: No tenho medo dele, sou do Sindicato dos Trabalhadores de Vitria, inscrio n

    2.346, onde defenderei os direitos que a lei me assegura 19

    .

    A imperiosa necessidade de reduo dos custos de produo fez alguns donos de terra

    procurar desvincular o trabalhador da sua propriedade e, nesse sentido, a mxima de Rebouas20

    quem tem a terra tem o homem - continua pertinente quando se procura reconhecer o processo

    que retirou do trabalhador a possibilidade de cultivar, uma roa ou um stio, nas terras do patro.

    Outra forma de prender e submeter esse homem ao empregador persiste no seu obrigatrio

    vnculo com o barraco, em cuja relao ele o devedor, pela contrao de uma dvida quase

    sempre insolvente, haja vista precisar satisfazer suas necessidades mais primrias como comer e

    at mesmo adquirir ferramentas para o exerccio de seu trabalho.

    Outra temtica recorrente nos processos a que diz respeito ao cumprimento das

    tarefas, tambm conhecida por contas 21

    , significando a produo diria de cada trabalhador.

    Tarefas que para muitos homens e mulheres so de execuo impossvel, pois, para cumpri-las

    precisam usar o trabalho dos filhos, sem qualquer reconhecimento do patro. E quando no

    conseguem realiz-las (como obrigaes cotidianas) o seu dia de trabalho era abonado como

    falta, em boletins 22

    da empregadora. No mais das vezes, esse cotidiano de esforos inumanos,

    levava-os aquisio de doenas, mutilaes e invalidez, sem contar uma ao assistencial

    devida.

    18

    Dirio de Pernambuco, 20 de maro de 1969. 19

    Idem. 20

    In ACIOLI, Vera Lcia & ASSIS, Virgnia Almodo de. A Justia e o Direito como estratgias de

    resistncia ao trabalho escravo em Pernambuco, da Colnia Repblica In Histria, Cultura, Trabalho:

    questes da contemporaneidade. Citado. P. 63-83. 21

    Conta: medida dada pelo empregador (indstria do acar) produo cotidiana do trabalhador rural

    frente a atividade a ser executada em um dia de trabalho no campo, seja no corte da cana , no plantio,ou

    na adubao. Nas dcadas de 60 a 70 em alguns municpios da Zona da Mata de Pernambuco a conta era

    na ordem de 10x10 a 10X12. Chegou a 10X20 nos idos de 1968 como justificativa dos patres ao

    aumento do salrio mnimo regional. Maiores esclarecimentos acerca do assunto veja-se os processos:

    JCJ GO 0513/66; 566/66, entre outros. 22

    Boletim dirio: documento institucional pertencente ao empregador (indstria do acar), no qual

    sistematizado, por meio das anotaes feitas pelo administrador, cabo ou feitor de campo o quantitativo produzido pelo trabalhador rural a partir da tarefa que lhe imposta como atividade diria conta - no

    campo.

  • 10

    Seria anacrnico pensar uma reclamao trabalhista das dcadas de 60 70 80, cujo

    objeto pleiteado fosse contempornea reparao do dano por acidente de trabalho. A

    competncia da Justia do trabalho para julgar esses casos uma conquista recente que foi

    concretizado pela Emenda Constitucional n 45/2004, at ento a cargo da Justia Comum dos

    Estados. A narrativa histrica dessa cultura de direito trabalhista construda de fato se inicia em

    1 de maio de 1943 com o Decreto Lei 5452 que criou a Consolidao das Leis Trabalhistas e

    no art. 162 dispe acerca da existncia das CIPAS (Comisso Interna de Preveno de

    Acidente). Outras aes nesse sentido s viriam a se concretizar nas dcadas de 70 com a

    Portaria n 3.236 e 3.237 do Ministro do Trabalho e da Previdncia Social, do Governo de

    Emlio Garrastazu Mdici, Jlio de Carvalho Barata, que props a regulamentao da

    profissionalizao do tcnico em Segurana e Medicina do Trabalho e tambm com a Lei

    8213/91 (art. 19 e art. 20) que regulamentou os benefcios da Previdncia Social no mbito do

    acidente de trabalho definindo a conceituao do que um acidente de trabalho.

    Esses acidentes laborais causadores de leses no corpo ou de distrbios no seu

    funcionamento que levem a morte, a perda ou a diminuio de maneira definitiva ou no, at

    ento no eram (re) conhecidos a partir de um contexto normativo23

    . No existiam claramente,

    apresentava-se velados, encoberto pelas tarefas inumanas ou por pedidos de demisso indireta,

    de reintegrao, indenizao, de periculosidade, insalubridade, entre outros. Essa lenta e muitas

    vezes silenciosa luta pelo reconhecimentos da responsabilidade patronal da sade do trabalhador

    esto presentes nas aes reclamatrias das JCJ JA do perodo estudado/pesquisado nesse

    projeto e podem ser interpretados a partir dos testemunhos dos trabalhadores de doenas ou de

    estado de sade precrio alquebrado - que limitavam ou mesmo impediam o exerccio laboral.

    No raro se pode encontrar nos processos queixa de sintomas ou patologias (doenas

    ocupacionais) atreladas lida, como a tuberculose, a desnutrio crnica, a artrite reumatide,

    problemas respiratrios e at mesmo a perda de parte do corpo impossibilitando a permanncia

    na funo ocupada e por isso justificava a demisso justa e sem nenhuma reparao. Assim, em

    processo trabalhista analisado v-se o relato de uma trabalhadora rural Severina Madalena dos

    Santos, rurcola, moradora do engenho Salgadinho, que reclama contra a usina Muribeca. Narra

    ter sido demitida por via indireta, porque ela portadora de uma doena que se manifesta por

    dor aguda que ia do corao ao fim da costela esquerda e no consegue executar a tarefa

    diria de tirar 140 cubos que lhe imposta. Seu advogado afirma em petio inicial que tal

    23

    Santos, Sandra Glaucia Melo dos. Prescrio nas aes acidentrias. In Revista do TRT6. Regio

    Tribunal Regional do Trabalho da 6 Regio. Vol. 18. N 35. Recife PE. 2008. p. 155.

  • 11

    atribuio labora servios defesos por lei, como o que, servios idnticos ao que motivaram

    os quilombos 24

    .

    Narrativa como essas relembra a fala de Andr Rebouas, companheiro de Joaquim

    Nabuco e insigne colaborador intelectual para o iderio da abolio da escravido no Brasil,

    que, na sua viso progressista contraps-se a todos os tipos de escravizao, no somente a

    negra, lutando, ainda, contra a re-escravizao do imigrante pelos donos da terra. Foi um dos

    poucos abolicionistas que anteviu as implicaes mais profundas da eliminao da mo-de-obra

    escrava.

    a escravido no est no nome e sim no fato de usufruir do trabalho de

    miserveis sem pagar salrio ou pagando apenas o estrito necessrio

    para no morrer de fome (...) Aviltar e minimizar o salrio

    reescravizar.25

    No corte da cana, tarefa das mais rduas exercidas pelo trabalhador rural e atividade que

    emprega o maior nmero da mo-de-obra no campo da Regio Nordeste, a forma de

    remunerao baseada na produo. O salrio mnimo regional normatizado por lei, base da

    percepo do trabalho campesino, s vai se concretizar quando a tarefa diria for completada,

    ou seja, atingir a conta diria de 10x10; 10x12 ou 10x20 cubos. Como depende do esforo,

    muitas vezes, inumano do trabalhador, esse se constitui um dos principais pontos de conflito

    entre empregados e empregadores, fomentando inmeras demandas trabalhistas s Juntas de

    Conciliao e Julgamento, em especial a do municpio do Jaboato. Portanto, das anlises

    histricas que se vem realizando no Arquivo por meio do acervo jurdico trabalhista do TRT6

    Regio se poder pensar em recompor histrias que levem a caminhos de ruptura dessas

    dinmicas produtivas que exploram o trabalhador em exausto, propiciando existncia do

    trabalho anlogo a escravido na contemporaneidade.

    A disponibilizao dessa diversificada documentao digitalizada e acompanhadas de

    catlogos26

    para toda sociedade, vai constatar permanncias quanto situao de angstia e

    adversidade na qual foram mergulhados homens, mulheres e crianas, trabalhadores do campo,

    especialmente em recorte regional no Nordeste do Brasil e cujo problema social emerge como

    ponto para anlise e construo de uma possvel e necessria transformao. Esses documentos,

    24

    JCJ JA Processo 0492/1968. 25

    Carta de Andr Rebouas a Joaquim Nabuco, documentos inditos da FUNDAJ. 26

    Arquivo Memria e Histria, Centro de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de

    Pernambuco, 4 andar. Endereo eletrnico - www.memriaehistoria.trt6.gov.br.

    http://www.memriaehistoriatrt6.gov.br/

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    materialidade da identidade de um povo, j vm sendo, muito acertadamente, reconhecidos e

    utilizados por profissionais de reas como Histria, Sociologia, Poltica e o Direito. Atravs

    deles as instituies se reconhecem e a sociedade constri a idia de pertencimento, um dos

    requisitos de herana cultural e de construo da cidadania.

    Da reflexo, do estudo e at da simples consulta aos processos trabalhistas observam-se

    a amplitude e a gravidade/tragicidade das injustias sociais encravadas em muitas das queixas

    apresentadas, relativas ao trabalhador rural, mulher ou criana e ao adolescente. Trata-se de

    documentos que no tm mais vida til (valia para a administrao institucional), mas

    matria de interesse pblico, na medida em que podem contribuir para a compreenso de nossa

    identidade como indivduo que labora e, em sentido amplo, como nao.