história da música portuguesa - joão de freitas branco.pdf

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  • histria da msica _portuguesa_joo de _freitas _branco

    _joo de _freitas _branco

    _histria da_msica _portuguesa

    _organizao,_fixao de _texto,_prefcio e _notasde _joo _mariade _freitas _branco

    2.a _edio,_revista e _aumentada

    _publicaes_europa-_amrica

    _capa: estdios _p. _e. _a.

    _herdeiros de _joo_c de _freitas _branco,1995

    _editor: _francisco _lyon de_castro

    :__publicaes europa-amri-ca, __lda._apartado 82726 __mem __martins __codex__portugal

    _edio n.o: 116512/6266

    _execuo tcnica:_grfica _europam, _lda.,_mira-_sintra -- _mem _mar-tins

    _depsito legal n.o: 85462/95__isbn 972-1-04012-6

    _este livro uma admirvel sntese historiogrfica dos reflexos musicais da realidade sociocultural portuguesa ao longo dos tempos. "_reflexos que no so, nem exclusiva nem principalmente, obras cujos autores tenham querido fazer delas imagens musicais, directas e explcitas, de sucessos pontuais dessa realidade, como o aniversrio de algum rei, uma vitria militar decisiva para a independncianacional, a comemorao do nascimento ou da morte de um grande portugus", .do _prefcio/.

    _o perodo abrangido vastssimo: desde a influncia muulmana, antes da fundao da _monarquia, passando pela msica trovadoresca e pelo _renascimento e _polifonia, at ao apogeu da pera em _portugal, no sculo __xviii, com compositores como _sousa _carvalho ou intrpretes como _lusa _todi. _a actualidade, suas tendncias

  • e compositores no so descurados em todas as suas implicaes, concluindo o autor que, apesar de todas as dificuldades, "o presente no parece indigno do passado e eleva-se de algum modo acima do que, em mdia e em funo das diferentes pocas, foi a vida musical portuguesa durante a maior parte dos oito sculos de histria".

    _a presente edio foi acrescentada com as anotaes e melhoramentos que o autor fez 1.a edio e inclui prefcio, introduo e notas organizativas da autoria de seu filho, _joo _maria de _freitas _branco.

    _para a _maria _amlia, minha mulher

    PREFCIO

    Se nos situarmos na ptica da filosofia da histria ou, talvez mais correctamente, na da epistemologia da histria, possvel que nos ocorra levantar radicais questes, antepondo-as a um projecto como o de fazer a histria da msica de uma nao. Ter isso alguma utilidade? Valer a pena esse remexer na *res gestae* quando o que de forma directa nos afecta a realidade actual? Para que serve afinal a histria, seja ela a que incide sobre um tipo particular de actividade -- como neste caso -- ou a que procura abarcar a generalidade dos aconteceres? Ser que faz sentido escrever a histria de qualquer coisa que , na sua estrutural essncia, parte de um todo, e por isso mesmo ininteligvel fora da relao com essa totalidade? O mais correcto no seria tratar do particular no quadro do inqurito geral; ou seja, no mbito da historiografia do Pas, da focagem geral da histria da nao lusa?

    A verdade que se consultarmos as histrias gerais de Portugal, dos clssicos Herculano ou Oliveira Martins aos contemporneos Jos Mattoso ou Oliveira Marques, no nos ser difcil divisar a desateno ao viver musical da nao tomada como objecto de estudo. Quem, por exemplo, se der ao trabalho de consultar o ndice onomstico da popular *_Histria de Portugal* dirigida por Jos Mattoso ter a surpresa de a no encontrar qualquer referncia a msicos to notabilizados como Rodrigues Coelho, Vicente Lusitano, Duarte Lobo, Joly Braga Santos ou Lopes Graa -- sendo o facto de no pertencerem todos eles a uma mesma poca histrica concludente prova da dimenso geral do lvido, que de outro modo ainda se poderia supor ser causa de pontual deficincia relativa ao tratamento de determinada fase da nossa histria. Nobre excepo a esta regra foi o recente *_Portugal contemporneo*, orientado por Antnio Reis.

    S por si, esta inconsiderao parece j justificar o enfoque parcelar. Mas como em todos os domnios do saber, a extenso do objecto de estudo que institui o imperativo do tratamento especializado, se bem que as diversas reas de estudo no se devam entender como compartimentos fechados sobre si. isto, hoje, um dado adquirido no plano da actividade da investigao cientfica. Mas subsiste a dvida radical do interesse efectivo do af historiogrfico.

    Dizia Antnio Srgio que fazer histria era a forma de nos libertarmos de erros pretritos e de anteriores limitaes. Neste sentido, a histria, incluindo a da nossa criao musical, no apenas til como at mesmo necessria. Mas h mais. Foram precisos cerca de cento e vinte anos para comearmos a assumir a conscincia da pertinncia e profundidade de uma breve assero contida nas primeiras pginas das *_Deutsche Ideologie* que :, muitos consideraram to completamente estapafrdia que entenderam ser saudvel ignor-la. Reza assim o texto redigido nos recuados anos 40 da passada centria: "*_Wir kennen nur eine einzige Wissenschaft, die Wissenschaft der Geschichte*" -- "Conhecemos apenas uma nica cincia, a cincia da histria" (1).

  • Uma recente teoria cientfica de aparncia ainda mais estapafrdia e portando a extica denominao de *_Big Bang* veio reforar a ideia de valer a pena reconsiderar o significado da to velha quanto esquecida frase agora citada. O nosso admirvel bero helnico empurrou-nos para o desatendimento de uma essencial dimenso da realidade, essa a que o fsico Ilya Prigogine significativamente chamou *the forgotten dimension*, a saber: o tempo.

    Se a assero da *_Deutsche Ideologie* verdadeira, ento isso significa que a suposio da inutilidade da histria implica reconhecer-se a improficuidade de todo o inqurito cognitivo; logo, o prprio estatuto utilitrio da cincia. Mesmo considerando a actual vaga de misologia, no creio que no ocaso do sculo de Einstein e da mecnica quntica haja algum esprito so disposto a declarar a nulidade do trabalho cientfico. Estamos ento *condenados a fazer histria*.

    Para alm de tudo isto, sabe se hoje, por rigoroso legado da psicologia, que no se pode viver bem na ausncia de referncias pretritas. O extremo caso patolgico da amnsia disso prova. Boas razes tinha Scrates, esse "heri da humanidade", no dizer de Hegel, para insistir na ideia que o orculo lhe inspirava da urgncia do autoconhecimento. No imperativo do "conhece-te a ti prprio", e numa perspectiva racional que j se aparta do primado da essncia fixa, caro ao filsofo ateniense, est contida a necessidade de conhecer o nosso prprio passado, porque o que se est condicionado pelo que se foi. De igual modo, o *fazer* actual ou futuro necessrio efeito do sujeito que age; ou seja, do homem que se . Da o ter razo R. G. Collingwood ao afirmar, precisamente num contexto de problematizao do valor da histria, que "conhecer-se a si mesmo significa saber o que se pode fazer. E como ningum sabe o que pode fazer antes de tentar, a nica indicao para aquilo que o homem pode fazer aquilo que j fez. O valor da histria est ento em ensinar-nos o que o homem tem feito e, deste modo, o que o homem " (2).

    Interessante neste contexto tambm a relao que por exemplo um Karl Lwith estabelece entre as noes de *sentido* e *objectivo*. Segundo ele, "a histria s tem sentido se se indicar um objectivo transcendente" (3) -- transcendente por estar para alm dos factos. Sendo assim, a anlise de um determinado momento, encarado como efeito de outros passados, fornece-nos a possibilidade de determinar o sentido global de um acontecimento anterior. E preciso revelar o *telos* para se poder opinar sobre o sentido de um determinado momento hist6rico. Ao invs do sugerido pela tradio do pensamento atomista/positivista, o facto histrico no entendvel como fenmeno isolado mas sim como fazendo parte de um processo.

    Estas consideraes sobre a histria em geral aplicam-se naturalmente ao caso particular de uma histria da msica nacional. Se a histria serve o nosso autoconhecimento, pode ento supor-se que algo ficaria a faltar ao :, conhecimento da personalidade colectiva do portugus se no se desenvolvesse a investigao da nossa criatividade musical. E que, aplicando por analogia um clebre dito de Fichte, talvez a msica que se faz (na dupla vertente composio/execuo) dependa do homem que se ; e nesse caso, a observao da obra realizada concorre para a compreenso do nosso eu colectivo. Sendo assim, s conheceremos a histria do pas se nela formos capazes de tambm integrar informao sobre o nosso passado musical.

    Uma das premissas em que se estriba todo o trabalho historiogrfico de Joo de Freitas Branco consiste em admitir que as composies musicais, os conceitos, noes ou preconceitos, os hbitos musicais, ou ainda as atitudes assumidas na esfera da criao, da execuo e da audio so necessariamente *reflexos* de uma realidade extra-musical de natureza sociocultural. Da que logo na introduo se possa ler o seguinte sobre o teor do presente volume: "O que se tenta [...] uma relacionao historiogrfica de *reflexos musicais* da realidade sociocultural portuguesa" (sublinhado meu). H apenas que acrescentar, e era essa tambm a expressa convico de Joo de Freitas Branco, que a relacionao historiogrfica ,

  • tambm ela, reflexo da realidade histrica a partir da qual o musiclogo historiador opina, espelhando de igual modo a sua subjectividade enquanto protagonista do devir. O Autor exclui assim partida a possibilidade de se alcanar uma relacionao historiogrfica que se possa rotular de absolutamente objectiva.

    Outra questo que de aqui se pode levantar a da efectiva existncia ao longo do tempo de uma msica portuguesa. Em vrios perodos a msica que por c se fez no teve carcter inequivocamente nacional. Por isso Joo de Freitas Branco fala de perodos em que foi marcadamente hispnica e de outros em que se viu inundada de influncias externas a ponto de se esbater o perfil nacional. No entanto, o Autor no chega a problematizar o tema, mas parece justo reconhecer-se que, mesmo em fases de enfraquecimento do perfil lusitano, nunca deixaram de se manifestar traos de portuguesismo. Seja como for, Joo de Freitas Branco d resposta a esta questo logo atravs da forma de titular o seu trabalho: no histria da msica *em Portugal* seno que *histria da msica portuguesa*.

    Passemos agora considerao da gnese do presente volume.

    A ideia de dar estampa uma histria geral da msica portuguesa no partiu de Joo de Freitas Branco, se bem que para tal no lhe faltasse a motivao nem a necessria competncia musicolgica. Coube ao Editor, Francisco Lyon de Castro, que mantinha custa de abnegado esforo, grande dinamismo e reconhecido talento na conduo do negcio editorial uma ainda jovem Europa-_Amrica -- fundada no fim da segunda Grande Guerra, nessa vaga de optimismo onde se avivava a ingnua esperana de ver, tambm nesta extremidade peninsular, desmoronarem-se as ditaduras fascistas -- a iniciativa de apresentar a Joo de Freitas Branco a proposta de publicao de uma histria da nossa msica. Decorria ento o ano de 1958.

    Aos olhos do observador coetneo semelhante proposta editorial afigura-se por certo algo de perfeitamente natural e at mesmo lgico. Para mais se a ela adicionarmos a circunstancia de neste particular caso terem existido entre Editor e Autor slidos sentimentos de mtua amizade que :, guindavam a convivncia e o dilogo muito para alm do plano da simples relao profissional. No final dos anos 50, quem seno esse Joo de Freitas Branco que Vitorino de Almeida ainda h bem pouco tempo referiu como ldimo exemplo de protagonista da transcendente "misso da verdadeira musicologia", citando-o de parceria com um Alfred Einstein, um Theodor Adorno, um Willi Reich (4), quem seno esse podia ser chamado ao cumprimento da nobre mas espinhosa tarefa de redigir obra exigente de to vasto e profundo saber musicolgico? A deciso tomada pelo Editor parece-nos hoje fcil. Mas t-lo-ia sido?

    Recorde-se, antes de mais, que por esse ento o Autor da presente *_Histria* era ainda relativamente novo (com os seus 36 anos de idade) e estava longe de alcanar a notoriedade cientfico-intelectual que anos mais tarde lhe viria a ser unanimemente reconhecida, se bem que fosse j pessoa respeitada no meio musical portugus. Vinha tambm longe a grande popularidade depois granjeada por efeito da sua incomparvel aco de divulgador da arte dos sons junto da massa do nosso povo (nomeadamente atravs da televiso logo a partir do incio das emisses da R_T_P nesse mesmo final dos anos 50).

    Em 1958, e j desde 1948, por trgico efeito do clima salazarento ento reinante no lusitano torro, o musiclogo via-se obrigado a trabalhar no Automvel Club de Portugal, ocupando um relativamente modesto lugar de secretrio-geral adjunto. Boa parte do seu tempo quotidiano era assim dispendida com a organizao de provas automobilsticas ou com medocres tarefismos relacionados com carros. A actividade no domnio da msica, essa que de facto o apaixonava, era desenvolvida em forado regime de *part-time* (5). Como ele prprio escreveu num apontamento autobiogrfico elaborado em 1984, essa indesejada situao era causada "pela insuficincia das

  • remuneraes das suas actividades musicais, muitas delas inteiramente gratuitas". No entanto, a verdadeira e primeira causa de tal despautrio era de outra natureza tratava-se de razo poltica. Desde os seus tempos de estudante que Joo de Freitas Branco desenvolvia, no seio de vrios movimentos de oposio democrtica e por directa influncia de alguns dos seus mestres preferidos, como Rui Lus Gomes (a cujo grupo de investigao matemtica pertenceu), Bento de Jesus Caraa (amigo predilecto de seu pai) ou Aniceto Monteiro, permanente aco contra o regime salazarista, qual no era estranha uma componente de militncia politico-partidria que poucos conhecem. Por isso, e s por isso, foi, como muitos outros, durante tantos anos marginalizado e impedido de ocupar certos lugares de responsabilidade para que estava inequivocamente vocacionado.

    Pelas razes agora expostas, podemos verificar at que ponto no era afinal fcil para um editor a deciso de publicar textos subscritos por *persona non grata*. Primeiro risco implicado era o de ver a obra apreendida no prprio dia do lanamento -- uma das requintadas maldades do aparelho censrio que protelava para o fim o seu veredicto, de modo a acarretar prejuzos mximos s editoras conotadas com a oposio democrtica. Felizmente foi bem diverso o destino da *_Histria da msica portuguesa* que conheceu imediato sucesso de vendas, tendo esgotado em pouco tempo. Mas isto no pode apagar da memria o gesto de coragem editorial que est na origem da :, obra que hoje um clssico da historiografia musicolgica portuguesa. Gesto que aqui no posso deixar de homenagear.

    O que levou Francisco Lyon de Castro ideia de publicar uma histria da msica portuguesa foi a sua prpria condio de melmano ouvinte da ento Emissora Nacional onde j nessa altura era todas as semanas radiodifundido o programa *_O gosto pela msica*, da autoria de Joo de Freitas Branco Dois anos de emisses regulares deste bem conhecido programa radiofnico de divulgao musical tinham permitido a acumulao de muitos apontamentos sobre compositores e obras da nossa cultura musical. Por outro lado, Joo de Freitas Branco realizava nessa altura frequentes conferncias destinadas a divulgar a nossa melhor msica, nomeadamente no mbito da actividade de algumas associaes musicais a cuja direco pertencia e de onde cumpre destacar a Juventude Musical Portuguesa. Havia, portanto, toda uma investigao musicolgica j realizada ao longo de alguns anos e materializada em mltiplos apontamentos dispersos. Ao tomar conhecimento do interesse do Editor, Joo de Freitas Branco logo fez saber que possua todo esse material, sob a forma de apontamentos, e que isso lhe permitia assegurar uma rpida confeco. Coisa que vinha ao encontro dos interesses da Europa-_Amrica. E de facto assim foi. Em menos de um ano a obra estava redigida e pronta para dar entrada na tipografia.

    A esta brevidade no por certo estranha a generosa dedicao de Maria Amlia de Freitas Branco, companheira de toda uma vida, a quem a obra e to naturalmente dedicada. Foi ela quem se encarregou de dactilografar grande parte do manuscrito e intensamente colaborou na reviso do texto, bem como na organizao dos ndices.

    A celeridade atesta bem do empenhamento e do entusiasmo postos pelo Autor na produo do texto. Era essa uma maneira de compensar o desgosto de se ver quotidianamente coagido a desperdiar a sua generosa inteligncia em actividades menores e de se sentir mais til. Mas ficar pelo enunciado destas motivaes seria ocultar alguma verdade. A pressurosa concluso do trabalho teve outra causa que nem pela sua menor nobreza deixa de frequentes vezes aparecer associada a sublimes produes artsticas. No foi Chaplin quem, interrogado sobre as motivaes profundas do seu trabalho de actor-realizador, respondeu com duro realismo: "Ganhar dinheiro"? Pois foi. E tambm no caso vertente, foi esse um imperativo que bastante pesou na aludia celeridade do processo. Ontem como hoje, viver do trabalho intelectual no era coisa fcil por ser bem pouco aliciante a recompensa material.

    Mas que tipo de obra era essa *_Histria* encomendada em 1958 e publicada no final do ano seguinte? Se voltarmos a considerar o papel que *_O gosto pela msica* teve

  • na sua gnese, no ser difcil reconhecer no melhor sentido do termo "divulgao" o propsito primevo do livro. A sua prpria insero numa coleco que declaradamente pretendia assumir-se como rplica portuguesa da celebrada "Que sais-je?" das Presses Universitaires de France no deixa dvidas quanto ao pblico destinatrio pretendido. Todo o livro tinha de ser concebido pensando no leitor no iniciado; privilegiando o grande pblico em detrimento do leitor erudito, da populao acadmica ou do especialista. Da que desde logo tivessem sido fixados certos limites :, formais, no s em relao ao quantitativo de pginas como tambm no que se refere ao aparato de notas, ndices e referncias bibliogrficas. No esquecido Portugal de ento no havia pblico para uma obra mais exigente do ponto de vista cientfico. A comunidade de especialistas era to ridiculamente insignificante que jamais alguma casa editora gerida pelo bom senso se podia lembrar de pr em circulao um livro dispendioso que no encontraria nas livrarias mais de meia dzia de leitores capazes de o consumir com total fruio. Lembro-me ainda de ouvir a D. Catarina, antiga gerente da Livraria Buchholz ( data, a nica de dimenso internacional), contar que de certas obras s mandava vir dois ou trs exemplares, pois j sabia quem eram e quantos eram os leitores possveis; mas os ttulos em questo podiam ser to obrigatrios como *_Die Musik in Geschichte und Gegenwart*, a correspondncia de Richard Wagner ou os ensaios de um Theodor Adorno. Era essa a realidade cultural do pas que centrias antes tinha exibido perante o mundo invejvel escol.

    Porm, a circunstncia de ter sido algum de grande estatura intelectual a assumir a alfarja de efectuar a sntese da histria da nossa vida musical fez de um livro que se pretendia divulgador uma obra de presena obrigatria em todos os centros universitrios, conservatrios ou escolas superiores em que a msica fosse objecto de ensino e de investigao. Para maior espanto, durante mais de trinta anos esse pequeno livro, entretanto esgotado, permaneceu nas estantes das escolas de msica ou dos centros de investigao como nico texto onde se oferecia uma panormica geral da evoluo da arte musical portuguesa desde a Idade Mdia at os tempos contemporneos. Divulgao no era neste caso sinnimo de superficialidade na abordagem temtica, nem significava menor exactido ou falta de acerbidade no tratamento da informao. O rigor e a objectividade prprios do esprito cientfico perfilhado por autor de formao matemtica garantia que a acessibilidade no descambasse em ligeireza.

    O demorado vazio tanto mais de estranhar se tivermos em considerao o facto de a ele no corresponder total paralisia da investigao musicolgica. Desde meados dos anos 70, no s por efeito directo da Revoluo dos Cravos seno que tambm em consequncia da reforma do Conservatrio ocorrida no tempo do ministro Veiga Simo, o volume da actividade musical foi crescendo na dupla vertente do ensino e da investigao. Bastante se fez no domnio da edio impressa e fonogrfica. A coleco "Portugaliae Musica", da responsabilidade da Fundao Calouste Gulbenkian, e as gravaes da Portugalsom, a etiqueta discogrfica da Secretaria de Estado da Cultura dedicada divulgao da msica portuguesa, so dois notveis marcos na alterao do panorama musical portugus. Outro assinalvel salto qualitativo foi a criao (no incio da dcada de 80) de licenciaturas em cincias musicais, fazendo surgir plos de investigao universitria e dilatando a populao de especialistas.

    Todos estes factores evolutivos concorreram para propiciar melhores condies reflexo bem como ao trabalho de investigao sistemtica da nossa histria da arte musical. J na dcada de 90, nova gerao de musiclogos atreveu-se a interromper o quase monoplio de Joo de Freitas Branco (quase, porque em 1965, Maria Antonieta de Lima Cruz tambm fez :, publicar uma pequena histria geral da msica portuguesa, que veio a cair no esquecimento, talvez ofuscada pela edio da Europa-_Amrica).

    Mas no deixa de ser curioso verificar que as duas obras recentemente publicadas,

  • em 1991 a primeira e em 1992 a segunda (esta numa edio limitada, destinada a uso interno no mbito do projecto da Universidade Aberta) se mantm no terreno da divulgao. A primeira, assinada por Paulo Ferreira de Castro e Rui Nery, e to sentidamente dedicada memria de Joo de Freitas Branco, surgiu no mbito da Europlia, integrada numa coleco significativamente intitulada "Snteses da cultura portuguesa"; ou seja, com o objectivo expresso da ampla divulgao da cultura portuguesa no espao comunitrio europeu. A caracterstica de sntese divulgadora marca de igual modo, a segunda obra, da autoria de Manuel Carlos de Brito e Lusa Cymbron, no obstante a sua origem universitria. Esta insistncia em no sair do nvel da divulgao algo sobre o qual importa aqui reflectir por guardar directa relao com o presente volume.

    Por certo muitos se interrogam acerca da razo ou razes justificativas da no reedio da obra de Joo de Freitas Branco, para mais se se considerar o facto de ter esgotado cedo e ter circulado durante longos anos como raridade de alfarrabistas, espcie de objecto *introuvable*. esta uma questo importante, pois nesta interrogativa e na procura de resposta para ela vamos encontrar as causas profundas da gnese da actual segunda edio.

    A responsabilidade do no aparecimento, logo nos anos 60, de nova edio da *_Histria da msica portuguesa* deve atribuir-se por inteiro ao Autor, e de modo algum ao Editor, que veemente e repetidamente a solicitou ao longo de anos.

    Que aconteceu ento? Que razo pde levar o Autor a no querer ver reeditada a sua prpria obra?

    Ao contrrio do que se pode supor, desde sempre houve da parte de Joo de Freitas Branco interesse na *reedio* da obra, mas no na sua *reimpresso*. Coisas diversas que entre ns quase sempre se confundem. Ou seja, indesejada era apenas uma nova tiragem do mesmssimo texto. Aquilo que: os ingleses tm sempre o cuidado de anotar utilizando as expresses *reprinted*, seguida do respectivo ano, ou *impression* antecedida do adequado ordinal. Em Portugal confunde-se a *impression* com a *edition*. O que portanto Joo de Freitas Branco no desejava era a simples reproduo da primeira edio. O prprio sucesso de vendas alcanado pelo livro activou a vontade de desenvolver o texto primitivo. No se tratava propriamente de *alterar*, em parte ou no todo o j redigido, mas sim de *acrescentar* texto contendo novos dados e mais ampla informao historiogrfica.

    Emergia assim a ideia de realizar obra de outro flego. O perfil de texto de divulgao ia sendo preterido em favor de um muito mais ambicioso projecto: o de dar estampa uma primeira grande histria da msica portuguesa de denso contedo descritivo, bem como problematizante, e que respeitasse todas as exigncias formais do trabalho de investigao cientfica ao mais alto nvel de erudio.

    As j aludidas condies de sobrevivncia do intelectual Freitas Branco num pas despoticamente governado por um -asceta provinciano de Santa Comba Do impuseram sucessivos adiamentos realizao do to :, aguardado projecto. Por outro lado, o musiclogo cedo se foi apercebendo das fortes limitaes que o regime ento vigente impunha ao seu trabalho. J pondo de parte opes metodolgicas assentes na noo materialista-histrica da determinao infra-estrutural da criatividade musical, havia todo um conjunto de reflexes e apreciaes crticas relacionadas, por exemplo, com o magistrio das ordens religiosas e com a globalidade da aco cultural da Igreja, com os efeitos da censura, os reflexos das contradies ou conflitos de classe, as polticas culturais da monarquia e os malefcios dos excessos absolutistas, o longo decadentismo alimentado pelas classes dominantes, a mediocridade auto-regenerada das elites da Nao e, por ltimo, tambm, claro est, os aspectos relacionados com a denncia do obscurantismo do Estado Novo, esse mesmo que encarcerava Lopes Graa e expulsava Maurice Bejar. O saber at que ponto este conjunto de apreciaes, e outras mais, teria que ser autocensurado sob pena de ver

  • a censura oficial encarregar-se disso, contribuiu de facto para uma crescente desmotivao. Passou assim mais de uma dcada sem que o projecto da nova edio tivesse sido concretizado. Mas quando finalmente a situao se alterou em Abril de 1974, logo renasceu em Joo de Freitas Branco o antigo desejo de avanar com o novo livro. Mais do que nunca, estava determinado a levar por diante um trabalho de aprofundamento musicolgico em detrimento da divulgao. Os principais acrescentos no deixam dvidas quanto ao nvel de abordagem pretendido.

    Os primeiros tempos do novo Portugal trouxeram-lhe responsabilidades governamentais inconciliveis com as exigncias da investigao cientfica. Mas logo a partir do ano de 1977/78 Joo de Freitas Branco elegeu a tarefa da reedio da sua *_Histria* como primeira prioridade na sua actividade intelectual. Trabalhou intensamente no projecto at o incio dos anos 80, altura em que concluiu no estar em condies de terminar essa empreitada. Razes de sade, entre outras do foro ntimo, impediam-no de trabalhar ao ritmo exigido pelos objectivos a que se propusera. Por outro lado, as modestas mas habituais ajudas prestadas por quem aqui assume as funes de prefaciador foram sendo dificultadas em virtude de acrescidas responsabilidades profissionais.

    Mas, para alm destas razes, pesou de igual modo o facto de por volta dos 60 anos de idade Joo de Freitas Branco ter sentido ntidos sintomas do cansao provocado por uma longa caminhada como autor de textos sobre temtica musical. Faltava-lhe motivao para a rotina da investigao, para as tarefas mecnicas impostas pelo formalismo cientfico -- a confirmao de datas, o retocar de uma referncia bibliogrfica, a adio de mais uma nota de rodap, o amealhar de informaes factuais, o "ratar" em bibliotecas e arquivos eram tudo tarefas para as quais lhe ia faltando o indispensvel animo. Sentia ser outra a sua vocao.

    Todo o seu af se concentrava cada vez mais na pura reflexo em torno dos temas centrais do desenvolvimento da nossa vida musical, assim como na tentativa de os problematizar com profundidade e rigor intelectual. A conscincia assumida destes novos condicionalismos levou-o a encarar a hiptese de constituio de uma equipa de trabalho. O ento recentemente criado Departamento de Cincias Musicais da Universidade Nova :, de Lisboa, onde exercia a actividade de docncia, era potencial terreno de recrutamento. Porm, essa ideia no veio a concretizar-se por motivos vrios, nomeadamente de ordem familiar. E nessa altura (incio dos anos 80) desistiu em definitivo de levar a cabo o trabalho de reedio da *_Histria da msica portuguesa*. Foi tal o abandono que, quando faleceu, em Novembro de 1989, j nem sequer sabia onde se encontravam os defectivos manuscritos, fruto principal do perodo de mais intensa dedicao ao projecto -- 1978/79, poca em que resolvera reduzir ao mnimo a sua colaborao regular na imprensa diria, incluindo o desempenho da funo de crtico musical que mantinha desde o final da adolescncia, de modo a poder dedicar-se o mais possvel a esse empreendimento maior. Recordo com imensssima saudade os longos seres em que por esse tempo Joo de Freitas Branco lia em voz alta o que tinha acabado de redigir e, com a desprentensiosa modstia que o distinguia, solicitava apreciaes crticas sobre o contedo ou a forma do discurso.

    Foi tambm nessa poca que, por solicitao da Academia das Cincias de Lisboa, se lanou com crescente paixo no original estudo da presena da msica na poesia camoniana, de onde resultou um dos seus mais notveis legados musicolgicos e culturais, consubstanciado em dois livros a que no tem sido dada justa ateno. Tratava-se, neste particular caso, de trabalho extra que, no entanto, no deixava de sintonizar com a investigao historiogrfica em curso.

    Portanto, foi durante esses anos finais da dcada de 70 e o incio da seguinte que Joo de Freitas Branco escreveu todo o novo texto, tendo em vista a introduo de alteraes e acrescentos ao volume publicado vinte anos antes, no fecho dos anos 50. S que, como j ficou dito, o trabalho quedou-se a meio e os textos tinham-se

  • perdido, em virtude do convencimento de que tais escritos jamais iriam chegar a ser publicados.

    Felizmente, foi-me possvel descobrir no meio de velha papelada o precioso manuscrito entretanto perdido (e, diga-se, bastante mal tratado). A longa e permanente colaborao com o Autor, para j no referir o facto de uma vida passada debaixo do mesmo tecto, dava-me a vantagem de saber exactamente o que procurava e onde procurar. E se a memria no me prega monumental partida, julgo estar hoje em condies de poder garantir terem sido encontrados todos os escritos existentes. Joo de Freitas Branco nunca revelou, para fora do pequeno crculo familiar dos que com ele coabitavam, a extenso do novo texto. Da que o prprio Editor estivesse convencido de que ele nunca tinha chegado a redigir uma nica linha para a nova edio. Foi com surpresa que Francisco Lyon de Castro acolheu a notcia da existncia de considervel material indito. Mas logo que lhe transmiti a informao, ainda muitos antes de detectar o paradeiro do manuscrito, pude contar com uma cumplicidade amiga e um sentido empenhamento, sem o que teria sido quase impossvel levar por diante a herclea faina de dar acabamento final desarrumada escrita e aos vrios rascunhos.

    A dupla questo fundamental que aqui importa considerar , por um lado, a incompletude da obra agora dada estampa, e, por outro, a efectiva relao do novo volume com o antigo. :,

    Ser que tendo em considerao a radical mudana de perfil da obra faz algum sentido falar de reedio? Ser que se trata de uma segunda edio ou antes de um novo livro? No foi a finalidade da *divulgao* suplantada pelo desejo de aprofundamento musicolgico? Mas por outro lado, se o trabalho de reelaborao do texto ficou longe de ter sido concludo, at que ponto se poder considerar corresponder o presente livro aos objectivos fixados *ab initio*? As alteraes introduzidas so o bastante para que se atribua obra a dimenso de erudito estudo ou que a rotulemos de "grande histria"?

    Procuremos esclarecer estas dvidas.

    Antes de mais, importa revelar o teor dos acrescentos e das alteraes, apurando ao mesmo tempo o seu peso quantitativo.

    O que o Autor nos deixou foram seis cadernos de acrescentos, em formato A5 e correspondendo a um total de mais de quinhentas pginas de texto manuscrito. Este volume de escrita, considerado apenas no seu aspecto quantitativo, equivale *grosso modo* ao texto da primeira edio. Portanto, a quantidade de texto duplicou. Para alm dos citados cadernos, onde se consubstancia o fundamental da nova verso, h a considerar toda uma srie de pequenas alteraes ou correces do texto antigo, bem como uma lista de referncias bibliogrficas, quase sempre incompletas, que se destinavam a posterior incluso em notas de p-de-pgina. Como se, sabe, a primeira edio no continha notas intercaladas no texto, mas no deixava de apresentar em anexo no fim do volume, cerca de duas centenas de notas contendo referncias bibliogrficas. Como o prprio autor explicava, "sendo a *_Histria da Msica Portuguesa* fundamentalmente um livro de divulgao, no se intercalaram no texto quaisquer chamadas de ateno para notas, que muitas vezes se tornam desagradveis ao leitor genrico. O estudioso ter porventura interesse em consultar as referncias [...]", e seguia-se a lista de notas (6).

    Em contraste com esta disposio, para o novo volume estava prevista a incluso de todo um vasto aparato de notas que a primazia agora atribuda ao "leitor estudioso" em detrimento do "leitor genrico" plenamente justificava. No entanto, nenhuma chegou a ser definitivamente redigida. Em face desta ausncia e do conhecimento das intenes optei por incluir notas de dois tipos, a saber: umas da inteira responsabilidade do autor; outras elaboradas por mim e tendo no fundamental a

  • tripla finalidade de *a*) revelar , fontes utilizadas e propsitos no concretizados, *b*) actualizar, na medida do possvel, as referncias bibliogrficas, acrescentando tambm alguma informao discogrfica, *c*) dar conta das opes tomadas no que se refere organizao do volume e fixao do texto (7). Infelizmente, razes de ordem tcnica, relacionadas com a paginao, impediram que estas notas fossem intercaladas no texto, de modo a facilitar a consulta. Face a esta indesejada opo, importa talvez sublinhar a importncia de algumas destas notas como complemento de uma obra inacabada. Por motivo desta incompletude, neste caso particularmente importante que o leitor saiba vencer a tradicional preguia de ler as notas remetidas para o fim do volume. (A impresso noutro tipo de letra das notas que contm mais informao complementar parece-me concorrer para facilitar o exerccio de leitura e minorar o incmodo da busca.) :,

    No grupo de notas do Autor resolvi integrar sem qualquer alterao -- respeitando portanto a antiga conveno -- a quase totalidade das j citadas pistas bibliogrficas que, na primeira edio, apareciam no fim do livro. Esta opo corresponde por inteiro ao meu desejo de preservar *como documento* algumas partes da edio de 1959. A conscincia assumida de que esse livro constitui inegvel monumento da nossa historiografia musical esteve na base de vrias preferncias, de entre as quais cumpre realar, neste particular contexto, a de ter mantido a bibliografia original adicionando-lhe apenas as cerca de duas dezenas de referncias anotadas pelo Autor no seu exemplar de trabalho, e que me limitei a transcrever. A actualizaco bibliogrfica foi remetida para as notas de rodap de minha lavra, assim como tambm para a bibliografia suplementar includa no fim do volume.

    Do que agora ficou dito h duas fundamentais concluses a extrair. A primeira consiste em dar como provada a inteno de no modificar muito o texto primitivo. As alteraes expressamente anotadas pelo Autor so, como acima se indicou, de carcter pontual; a demonstrar que assim est o facto de todas elas aparecerem indicadas margem das pginas do exemplar de trabalho. E certo tambm a encontrarmos assinalada, por vezes, a inteno de modificar, mas sem que aparea dito o qu e o como. Nesses casos teve de funcionar a memria em conjugao com o ntimo conhecimento que neste caso o organizador tem do pensamento, hbitos e mtodos do Autor, seu pai.

    Retenham-se aqui dois exemplos: na pgina 25 da primeira edio pode ler-se: "J aqui entra o factor geogrfico, to negativamente influente na historia da msica portuguesa." Na margem do exemplar de trabalho do Autor l encontramos uma sinaltica que sei indicar a vontade de modificar algo neste perodo. Como tambm sei que a opinio de Joo de Freitas Branco sobre a negatividade da influncia do factor geogrfico se alterou no sentido de no o considerar de modo to pejorativo, decidi riscar o "to negativamente".

    O outro exemplo, bem significativo no contexto de anteriores declaraes, encontra-se nas primeiras linhas do captulo II. L-se na primeira edio, pg. 15: "Este propriamente o ponto de inicio da nossa breve histria da msica portuguesa." Aqui, a inteno mais clara. Para alm do sinal alertando para a necessidade de alterar algo, a palavra "breve" aparece sublinhada. Optou-se por banir o adjectivo. Mas se outra prova fosse preciso amealhar do propsito de alterar a dimenso da obra, ela aqui estava.

    Outros casos tm a ver com meras questes de estilo.

    Do que no podem restar dvidas da inteno de, no fundamental, manter o texto antigo. Sintetizando, pode ento dizer-se que o objectivo era manter o antigo adicionando-lhe o novo. nica excepo, que acaba por tambm confirmar esta regra, seria o capitulo VIII dedicado "actualidade" e eventualmente o subponto sobre o compositor Lus de Freitas Branco, pelas razes adiante expostas (8). Em ambos os

  • casos nem sequer chegou a ser esboada nova verso. Seja como for, a ntida opo central de *acrescentar*, em vez de *alterar*, parece-me justificar o falar-se de segunda edio e no de novo livro. Regressaremos ainda considerao do bicudo caso do capitulo VIII. :,

    A segunda concluso importante consiste no reconhecimento da incompletude da obra e dos efeitos dela decorrentes.

    Em momento algum nos podemos esquecer ser este um livro que ficou a meio caminho entre a divulgao e a erudio, entre a "breve histria" e a "grande histria". Tanto no plano do contedo como no plano formal encontramos desequilbrios. Neste ltimo, notrio o desrespeito de alguns princpios metodolgicos do trabalho cientfico, como por exemplo no caso das citaes, em que na esmagadora maioria dos casos no se faculta ao leitor a indicao precisa da fonte -- referencia-se o autor e/ou a obra, mas no a edio e o respectivo nmero de pgina. Quanto ao contedo, a extenso e densidade do captulo V contrasta com a brevidade na abordagem de certos temas nos dois ltimos captulos; assim como, p. e., o detalhe posto na descrio da vida musical dos sculos XVII ou XVIII acaba por desaprovar a menor mincia no tratamento de alguns temas do sc. X1X.

    No trabalho de preparao desta segunda edio da *_Histria da msica portuguesa* Joo de Freitas Branco respeitou a ordem cronolgica dos assuntos. Significa isto terem sido os captulos relativos s pocas mais recuadas aqueles que vieram a ficar mais acabados, ocorrendo o inverso com os outros. At o perodo que Freitas Branco designa como sendo o da "invaso italiana" (captulo VI), quase estaria tentado a afirmar que, se ignorarmos caso das notas, o trabalho foi efectivamente terminado. Acrescentos como o ttulo de "Msica litrgica", "O ensino da msica", "Instrumentos e execuo instrumental" ou ainda as partes dedicadas aos testemunhos de W. Beckford e do embaixador Bombelles so reveladores de acentuado grau de acabamento final. Porm, a parte mais nitidamente terminada a notvel "Introduo" onde se tocam com sinttica profundidade temas to relevantes, mas entre ns to pouco considerados, como o da noo de obra musical, a ideia de mensagem musical, o fenmeno de auto-regulao (ou, como hoje tambm se diz, de retroaco) o binmio forma/contedo (9), os critrios de valorao, a relao classe social/criao musical, o peso do conhecimento biogrfico na fruio, a difcil questo da verdade artstica ou do significado do termo "verdade" em arte. Trata-se, em minha por certo suspeita opinio, de uma to notvel quanto rara prosa de epistemologia da msica ou, se se preferir, de filosofia da arte dos sons. Se mais no houvesse, estou em crer que bastariam estas novas pginas introdutrias para fazer desta segunda edio da *_Histria da msica portuguesa* um acontecimento cultural de relevo (10).

    De forma algo paradoxal, foram os perodos histricos sobre os quais partida Joo de Freitas Branco se sentia mais vontade -- nomeadamente a poca contempornea que ele prprio tinha protaganizado -- os que acabaram por no ser desenvolvidos. Tal o caso do j citado captulo VIII que deve merecer-nos mais alguma ateno.

    O que era actualidade em 1959 deixou de o ser em 1995 e, como j ento se previa, "os nomes citados nestas ltimas pginas [...] no ficaro todos eles para a futura historiografia da msica portuguesa" (11). No novo captulo que projectara escrever Joo de Freitas Branco pretendia acima de tudo analisar os efeitos da emergncia do Portugal democrtico na cultura musical do pas, lanando do mesmo passo um olhar crtico s vrias :, concepes de poltica cultural que se confrontaram nos anos imediatamente posteriores Revoluo dos Cravos. A ter sido concretizado, o texto constituiria valioso depoimento de algum que protagonizou, inclusive a nvel governamental, esse aceso debate intelectual do perodo do PREC (Processo Revolucionrio em Curso). Para alm desta anlise global dos programas de poltica cultural aplicados esfera da msica, estava tambm projectado dar justo relevo s personalidades musicais que acabaram por se destacar como principais criadores

  • musicais, mas que trinta e seis anos antes era impossvel avaliar com objectividade, em virtude desde logo da falta de distanciao histrica para tal sempre requerida, e tambm do estado inacabado da obra de msicos como um Lopes Graa ou um Joly Braga Santos cujo percurso artstico mal tinha chegado a meio, tendo nessa altura o mais novo cerca de 35 anos de idade -- se bem que em matria de criao musical se saiba ser tempo de vida suficiente para s vezes se fazer "tudo" (mesmo pondo de parte o prodgio de Salzburg, bastariam os casos Schubert, Chopin, Rossini ou Bellini para sobejamente o demonstrar).

    Como por certo se compreender, o facto de o novo captulo previsto, dedicado s ltimas dcadas da nossa histria da msica, nunca ter chegado a ser escrito nem sequer esboado constitui uma dificuldade para o organizador de uma edio pstuma. Promover a actualizao do texto da primeira edio, para alm de ser opo muito discutvel, era coisa irrealizvel tal o nmero e a profundidade das alteraes exigidas. Optar por banir o captulo "A actualidade" em nome da sua acentuada *inactualidade* era inaceitvel amputao, desde logo por deixar desatendidos muitos acontecimentos relevantes, assim como tambm pela injustificvel omisso das referncias actividade criativa de compositores da craveira de um Cludio Carneiro, um Lopes Graa ou um Joly Braga Santos. Uma s soluo se me afigurou legtima, se bem que no deixe de reconhecer envolver ela necessrias contradies eventualmente chocantes para alguns leitores: manter o captulo na sua forma original (introduzindo apenas algumas alteraes pontuais) de modo a apresent-lo como documento da nossa historiografia musicolgica.

    Falta aludir aos problemas relativos fixao do texto.

    O problema maior que se perfilava diante do organizador no era, como facilmente se pode supor, a decifrao da caligrafia, se bem que tambm a esse nvel tenham surgido dificuldades em passagens mais rascunhadas ou em casos onde se verificou haver falta de texto. A grande dificuldade consistia em resolver o *puzzle* dos acrescentos; isto , determinar onde que o autor pretendia introduzir o novo texto. Nalguns casos, encontraram-se indicaes muito precisas (sendo ainda assim necessria alguma familiaridade com os cdigos to do agrado do Autor); mas em outros casos s figurava uma vaga indicao geral, e num dos mais importantes acrescentos no se encontrou nenhuma especificao. Neste caso, nem o prprio ttulo chegou a ser redigido. Pode supor-se que houvesse inteno de alterar a prpria arrumao dos captulos e, muito provavelmente, o ttulo de alguns deles. Mas uma vez que nenhuma indicao nesse sentido foi encontrada, optei por manter o mesmo nmero de captulos e respectivos ttulos.

    Os ndices, por sua vez, foram completamente refeitos, tanto mais que o :, ndice onomstico da 1.a edio era bastante incompleto, pois acolhia apenas as "referncias principais".

    A concluir este prefcio, afigura-se-me til prestar um esclarecimento suplementar sobre a minha pessoal responsabilidade em toda a organizao deste volume.

    A minha condio de filho do Autor pode levar a supor ser esse o motivo determinante da minha presena como organizador da obra. Se assim fosse, o menos que se podia dizer que se tratava de um pssimo critrio de escolha. Porm, outra a razo que determinou a minha presena. Era eu a nica pessoa viva que tinha colaborado directamente com o Autor no trabalho de preparao da nova edio da *_Histria* e dele tinha recebido preciosas indicaes sobre a forma de concluir o ambicioso projecto. Sem o conhecimento dos mtodos de trabalho de Joo de Freitas Branco, sem conhecer quais eram as suas intenes, sem se estar familiarizado com a caligrafia, com as suas inclinaes, personalidade e pensamento, teria sido complicado seno mesmo impossvel levar a cabo a difcil tarefa d fixao do texto, resolvendo o j referido *puzzle* dos acrescentos.

  • Mesmo assim, a conscincia de no ser eu musiclogo de profisso levou-me a propor ao editor a contratao de algum com essa competncia para comigo colaborar no campo da actualizao bibliogrfica. Sugeri na circunstncia o nome da Dr.a Manuela Toscano, docente do Departamento de Cincias Musicais da Universidade Nova de Lisboa, por se tratar de algum que reunia duas condies a meu ver essenciais para a prossecuo de trabalho deste tipo: uma inquestionvel competncia cientfica e um sentido afecto pela pessoa do Autor, seu antigo mestre. Porque, acredite-se, este af pressupe *carinho* e *amor* pela pessoa que se viu impedida de concluir a sua obra. Sem esses sentimentos, ningum se dispe ao sacrifcio de gastar muitssimas horas na realizao de trabalho alheio. Infelizmente, por razes profissionais e tambm de sade, Manuela Toscano no pde prestar a colaborao para a qual desde logo tinha manifestado generosa disponibilidade que muito me sensibilizou e no quero deixar de agradecer.

    A necessidade de no atrasar mais a publicao do volume levou-me a assumir por inteiro a responsabilidade de efectuar uma investigao bibliogrfica tendo em vista a actualizao das referncias, assim como a organizao de uma nova bibliografia a que resolvi chamar "Bibliografia suplementar", pois que a finalidade exactamente juntar mais informao ao livro, para assim o completar. A experincia de investigao cientfica em outro domnio disciplinar facilitou o cumprimento da espinhosa faina. De qualquer modo, espera-se que uma prxima edio possa contar com bem mais competente prestao.

    Mas no ficou por aqui o atrevimento do organizador. Foi outra, ainda, a ousadia maior, que por isso mesmo se entende dever assinalar.

    Na pgina 66 do seu exemplar de trabalho, da primeira edio, Joo de Freitas Branco anotou a inteno alis fcil de adivinhar, de introduzir um acrescento dedicado a Cames e sua relao com a arte dos sons. Na margem da referida pgina pode ler-se, escrito a lpis, pelo punho do Autor, o seguinte: "*_Cames* (ver trabalho meu)"; segue-se uma seta indicando o local onde pretendia intercalar o novo texto. O "trabalho meu" , claro est, :, o livro que entretanto tinha escrito (paralelamente *_Histria*), por solicitao da Academia das Cincias de Lisboa, e que nessa altura se encontrava no prelo. Acontece, porm, que este desejado acrescento foi um dos vrios que no chegou a ser redigido. Mais uma vez ficava por fazer o que teria sido mais fcil de realizar. Perante esta situao, e tambm por saber o tanto que Joo de Freitas Branco estimava a poesia do nosso Vate, entendi por bem redigir eu prprio o acrescento, limitando-me para isso a fazer uma sntese das principais teses contidas no livro *_Cames e a msica*, assim como no ensaio que lhe sucedeu (na cronologia da escrita que no na da publicao) editado pelo Instituto de Cultura Portuguesa com o ttulo *_A msica na obra de Cames* (12). H fortes razes para acreditar que viesse a ser este o procedimento do Autor. Uma vez que se tratava de uma investigao acabada de concluir muito improvvel que houvesse a inteno de ir para alm da mera transposio das principais concluses enunciadas naqueles outros livros de sua autoria. No tenho por isso quaisquer dvidas quanto legitimidade do meu atrevimento. Mas se tivesse sido o Autor a redigir o acrescento, julgo poder garantir que a extenso do texto seria bem mais dilatada -- coisa digna de registo neste contexto historiogrfico.

    Se no erro o juzo, estou em crer que esta segunda edio da *_Histria da msica portuguesa* constitui um marco na historiografia musicolgica portuguesa -- independentemente dos desequilbrios e do inacabamento que a contaminam -- por ser a primeira obra oferecendo uma viso de conjunto da nossa vida musical (do perodo medieval aos anos 50 do sculo XX) em que a divulgao cede lugar ao aprofundamento e reflexo problematizante; em que a ideia de "sntese" e de "brevidade" se v substituda pela de desenvolvimento crtico.

    Cabe agora ao leitor o juzo final.

  • *_Joo Maria de Freitas Branco*Caxias, 23 de Maio de 1995

    INTRODUAO

    Duma histria da msica dita clssica portuguesa pode esperar-se, em primeira aproximao, uma sequncia de descries de obras de autores da mesma nacionalidade, com atribuio a cada uma delas de valores estticos aferidos por uma escala nica, absoluta, estabelecida de uma vez por todas, sem se saber quando, onde nem por quem. Sequncia ordenada no tempo, desde os afonsinos at a soleira da actualidade. Um pouco mais de reflexo obriga, no entanto, a pensar de outra maneira.

    O conceito de *obra* tem muito que se lhe diga. Que se entende hoje por uma obra, pea ou composio musical? Um trecho concebido e passado a escrito por algum (o compositor), com princpio meio e fim, para ser dado a ouvir por determinados meios acsticos. As suas realizaes sonoras devem ser quanto possvel fiis ao que o compositor exarou na partitura, tanto no que respeita a fontes vibratrias (vozes cantantes, instrumentos, meios electroacsticos) como tambm s sucesses e sobreposies de valores das variveis altura, tempo (andamento e durao), intensidade e colocao espacial.

    Acontece, porm, que a maiorssima parte da msica surgida desde o sculo XII at hoje, em Portugal como em qualquer outro ponto da Terra, no obedece a estes requisitos. Pensemos na msica popular tradicional no passada a escrito e de autoria colectiva no identificvel. Ou em tanta msica ligeira nascida da intuio meldica de algum que nada sabe de msica, enformada depois por outra pessoa e finalmente metamorfoseada em diversos arranjos.; Mas no preciso sair to fora do nosso campo de incidncia.

    Muitssima da msica dita clssica to-pouco satisfaz aquelas condies. Sem falar j da que nunca foi anotada (entre a qual a que era feita de improvisaes contrapontsticas, at pelo menos ao fim do sculo XVI), h que considerar os trechos que, embora grafados, no o foram porm com qualquer fixidez real, porquanto sofriam contnuas mudanas. E no esqueamos que, at o limiar do Barroco, msica tida por verdadeiramente sria era a religiosa, mormente a litrgica que, essa sim, devia ser fixada e executada com rigor.

    Acresce que, tambm at muito tarde, no era costume indicar nas pautas manuscritas ou impressas os instrumentos ou vozes que deviam servir realizao auditiva. Na verdade admitia-se tacitamente a possibilidade de distribuir as notas escritas por diferentes formaes e combinaes vocais e/ou instrumentais, consoante as circunstancias ou disponibilidades. E foi ainda mais tarde, pode dizer-se que j em pleno sculo XIX, que se generalizou a regra de consignar nas partituras os andamentos e :, intensidades com as suas graduaes, a que se foram acrescentando prescries de outra ordem (matizes tmbricos, acentuaes expressivas, etc.).

    Mesmo no caso da mais minuciosamente informativa das partituras, ser ela, como objecto fsico, slido e bem palpvel, que constitui a *obra*? No pertencer ao essencial desta o s se consumar como sucesso no tempo de vibraes sonoras? Se assim , ocorre ainda perguntar qual das execues perfeitamente a realiza, entre as infinitas sempre possveis, sem desrespeito objectivo daquilo que o compositor escreveu.

    Bastam estas resumidas cogitaes para se tornar claro que a obra musical no uma *coisa* mas sim um conjunto de acontecimentos. Conjunto no rgido e de elementos variveis. Uma sinfonia de Haydn no a partitura autgrafa ou a sua cpia mais fidedigna; nem esta ou aquela sua realizao por alguma orquestra de primeirssima ordem, ainda que dirigida por um Bruno Walter. um feixe mais ou menos

  • coerentemente organizado de experincias individuais, nunca definitivamente objectivvel, que varia no s de sujeito para sujeito mas at no conceito da mesma pessoa.

    Foi precisamente no manuscrito autgrafo duma sinfonia de Haydn que Arturo Toscanini sups encontrar um erro, devido presumvel distraco do autor. O Maestro gravou a mesma sinfonia em disco comercial, com a "emenda". Mais tarde, porm, repensou a questo e concluiu ser ele, Toscanini, quem se enganara. A partir da, tratou de comprar todos os discos ainda existentes no mercado, para os destruir. Exemplos ainda mais elucidativos so os de um Beethoven a fornecer diferentes dados metronmicos para a execuo das suas prprias obras e de um Stravinsky -- com todo o culto do rigor de que se orgulhava -- a gravar fonograficamente composies tambm suas com ntida alterao de normas por ele estabelecidas no pentagrama.

    Importa compreender que se torna impossvel isolar a obra duma cadeia da qual ela mesma constitui parte imprescindvel. Uma cadeia que tem muito a ver com teoria da informao. As outras partes integrantes, j todas referidas, so o compositor, o ou os intrpretes e o ou os ouvintes.

    Temos pois uma *mensagem* codificada pelo seu *emissor* e descodificada por um ou mais *mensageiros* que a transmitem a tambm um ou mais *receptores*. Em terminologia musical, o emissor o compositor, a mensagem codificada a partitura escrita, os mensageiros so os executantes ou intrpretes e os receptores os ouvintes. O cdigo consiste nas inmeras convenes da grafia musical (notas, figuraes, pausas, sinais relativos a andamento e dinmica, etc.).

    Note-se que, em rigor, entra tambm em jogo um outro cdigo, relativo msica entendida como linguagem. Um cdigo usado desde logo pelo compositor e que dever ser decifrado no s pelo executante mas tambm pelo ouvinte. uma espcie de dicionrio por meio do qual se torna possvel "traduzir" a linguagem musical na das ideias e dos sentimentos humanos, dos objectos materiais e dos acontecimentos do mundo exterior. So exemplos bem conhecidos o da correspondncia do modo maior e do movimento rpido a sentimentos alegres e ambincias desanuviadas, de escalas ascendentes a subidas, de certas sequncias muito modulantes a estados de agitao psquica. Muitas vezes so imitaes directas de fenmenos :, auditivos (trinados de pssaros arremedados por trilos, o ribombar do trovo por percusses nos tmbales, algum ambiente militar por toques de trompete). No menos sabido que muitos compositores elaboraram "dicionrios" privativos de determinadas obras. O caso mais clebre o de Wagner, com os seus *_Leitmotive*.

    Tornemos ao primeiro cdigo. J vimos que a mensagem codificada (a partitura escrita) pode no existir. Atentemos agora que a cadeia susceptvel de se reduzir muito mais. Na verdade, quando se trate, por exemplo, de um compositor-pianista improvisando para si mesmo, sozinho dentro de quatro paredes, ele comulativamente emissor, mensageiro (executante) e receptor (ouvinte). Quanto a certa msica laboratorial (electrnica, concreta, etc.), pode dizer-se que o intrprete suprimido de todo, ou substitudo por um operador electroacstico. Mas no situao to particular a que mais interessa aqui, se no aquela em que todos os elos da cadeia se diferenciam.

    Compositores, executantes e ouvintes so entes sociais. claro que agem como indivduos. Mas at nos casos mais obstinadamente ensimesmados -- o compositor e o intrprete que *dizem* escrever, tanger ou cantar para eles mesmos, o ouvinte que se isola para se extasiar diante de um gira-discos-- entram fortemente em jogo vectores condicionantes que provem da sociedade a que os indivduos pertencem. S que estes raro tm plena conscincia deles.

    Quer queira quer no, o compositor dirige-se a algum. A sua mensagem tem um

  • destinatrio, geralmente colectivo. E so ainda vectores de ordem social, com as suas componentes econ6micas, polticas e culturais, os que mais influem no grau de identificao bem definida do destinatrio. Foram eles que, por exemplo, fizeram msicos de corte dirigirem-se a auditrios completamente identificados, indivduo por indivduo, ao passo que, mais tarde, os compositores destinaram as suas mensagens a pblicos annimos. Sem falar daqueles que, sem clientela coetnea, escreveram (ou escrevem ainda) para a posteridade. Convm no entanto sublinhar que tambm esta atitude, de um intelectualismo orgulhoso marcadamente burgus, s se tornou possvel em determinados contextos sociais.

    Importantssimos so os fenmenos de auto-regulao (*feedback*) que se do no seio da cadeia da informao musical. A actuao dum intrprete ao longo dum espectculo depende muito das palmas, ou das pateadas, com que o pblico o for contemplando. Toms Alcaide costumava dizer que os frequentadores da pera no sabem o que perdem ao negarem uma boa ovao, ainda que generosa, quando o tenor acaba de cantar a *_Recondita armonia*, logo no princpio da *_Tosca*.

    Fenmenos do mesmo tipo do-se tambm entre receptor e emissor, e ainda entre mensageiro e emissor. A pera volta a oferecer exemplos: elucidativos. Bastam os de um Verdi e de um Puccini, que reviram partituras desfavoravelmente recebidas pelo pblico e que, por outro lado, amoldaram determinados papis s especialidades vocais e cnicas de maior efeito, entretanto patenteadas pelos respectivos intrpretes. A mira no porm sempre o xito junto de toda a gente, se no que pode cingir-se a certos sectores. Desde que comeou a manifestar-se o culto do vanguardismo :, musical, circunscrito a diminutos auditrios de intelectuais, tem havido compositores para quem a entusistica adeso do grande pblico seria o mais indesejado dos fracassos.

    A auto-regulao no vem de curta data. No comeou a verificar-se s no sculo XIX. Os jograis medievos levavam s cortes e aos burgos msicas e letras que as suas prprias experincias lhes haviam provado agradarem aos senhores, aos mercadores e ao povo. Em muitas circunstancias histrico-sociais, o *feedback* no sentido destinatrio-emissor foi reforado da maneira mais imperativa, ou seja, pura e simplesmente, por ordens. Tal aconteceu em muita msica posta ao servio da Contra-_Reforma, sujeita a normas impostas pela autoridade eclesistica aos compositores e executantes que dela dependiam, em funo do efeito pretendido junto das populaes. Isto, com diferenciao segundo os destinatrios. A aco no era a mesma nas igrejas e colgios de grandes cidades europeias e nos das misses que trabalhavam pela evangelizao dos ndios do Brasil.

    J desde algumas das manifestaes medievais (mormente as jogralescas), mas sobretudo a partir da liberalizao moderna da profisso de msico, os mecanismos que estamos analisando tm apresentado afinidades evidentes com os da produo e do consumo, regidos pela lei da oferta e da procura e activados pela publicidade. A obra musical no pode no entanto ser assimilada simplistamente ao produto industrial lanado no comrcio. Apesar da muitas vezes lamentvel aplicao dos mtodos capitalistas da promoo de vendas aos nomes de compositores, obras e intrpretes --mtodos tpicos da sociedade de consumo --, a msica "sria" tem sido consideravelmente defendida da massificao, no pior sentido da palavra (o do nivelamento por baixo), que negao duma verdadeira democratizao da cultura.

    Defendida por quem? Fundamentalmente por um sistema complexo de factores tico-culturais em grande parte herdado duma longa tradio. A diferena essencial para os sectores da indstria e do comrcio de produtos no artsticos reside na noo de *valor*. Uma noo que, na esfera daquelas artes que superiormente reflectem a realidade exterior e revelam a interioridade humana, enriquecendo-a do mesmo passo, envolve potenciais psicofsicos, conhecimentos adquiridos, experincias vividas, relaes por assim dizer interdisciplinares e hbitos de pensamento e aco, dentro

  • duma polaridade tica no maniquesta. Algo de preponderantemente cultural que, como no podia deixar de ser, reflecte estruturas por camadas, grupos e classes sociais.

    O valor dum compositor, de uma obra ou de um intrprete atribudo, no plano individual, como resultado, geralmente no definitivo, dum complicado processo mental. A nossa anlise pode incidir centralmente sobre a obra, sem no entanto a isolar dos outros elos da cadeia.

    Na valorao de obras musicais tm sido demarcados trs critrios ordenadores principais, designados um tanto discutivelmente. So eles o critrio da *expresso*, o da *enformao* e o do *uso*. O primeiro aplica-se em grande parte quele cdigo acima referido, por meio do qual o compositor e o intrprete tornam a msica uma linguagem. A obra pois entendida como um agente de transmisso de imagens musicais de sentimentos, de estados :, de esprito, de conceitos, ideias ou ideais, de entes vivos ou objectos inertes, de actos e acontecimentos mais ou menos integrados num argumento e afectados de inteno tica. O que sugere imediatamente a atribuio do maior peso valorativo ao *contedo* da composio como obra de arte.

    A palavra *expresso* aqui usada incorrectamente, porquanto pode levar a crer que est apenas em causa a transmisso de imagens musicais da interioridade subjectiva do compositor. Por outro lado, uma noo simplista e, ainda hoje, lamentavelmente difundida de *contedo* tem de nos merecer ateno desde j, para evitar graves confuses.

    muito frequente conceber o contedo de uma obra de arte como tudo aquilo que o autor por ela transmite. Para tanto, o autor precisa, no entanto, de meter essa matria em formas, ou moldes. Nesta ptica, o contedo da abertura *_Egmont* consistiria numa sntese do entrecho do drama de Goethe. Para o transmitir ao auditrio, em termos artsticos, Beethoven t-lo-ia amoldado a um esquema formal que, nas suas grandes linhas, era o da abertura clssica francesa.

    *_Contedo* e *forma* apresentam-se assim completamente destacveis um do outro. O simplismo vai ao ponto de definir arte "abstracta" como aquela que no tem qualquer contedo! Esta enormidade resulta da confuso do contedo esttico com o *assunto* que a obra de arte pode eventualmente focar. S que duas obras de arte envolventes do mesmo assunto podem ter contedos diversos. Pense-se nas incontveis verses pictricas dos mesmos temas religiosos ou das mesmas paisagens, verses que at podem ser dum mesmo artista (por exemplo, Czanne).

    No este o momento de aprofundar a questo. Mas convm acrescentar que nenhuma esttica digna deste nome admite hoje a dissociabilidade do binmio forma-contedo. Prol lemtica muito complexa, com implicaes de diferentes ordens -- desde a psicofsica, onde o crebro humano ocupa o lugar central e o mais difcil de investigar, at a sociologia --, ela tem-se mostrado to resistente aos esforos de desemaranhamento de algum modo simplificante, que os mais argutos estetas desistiram de procurar definies rigorosas de forma e de contedo. O que no entanto os no impede de continuarem a empregar ambos os vocbulos, com as devidas precaues.

    Voltemos ao critrio valorativo da *expresso*. Compreende-se que nele assumem a mxima importncia o contedo e o assunto da obra. O valor ser tanto mais elevado quanto mais e melhor ela transmitir algo. Note-se que esta afirmao tem implcitas questes, por um lado, de forma, e por outro, de convenincia sociocultural daquilo que transmitido.

    O critrio da expresso tem muitas vezes vigorado preponderantemente ao longo da histria. Por exemplo, a valorizao da transmisso de determinados assuntos e de

  • contedos psquicos por meio da msica, com o objectivo de tornar os ouvintes "melhores" ou mais adequadamente integrados, segundo certos padres morais e polticos, evidente em muitas orientaes eclesisticas de diferentes credos, ou manicas, ou revolucionrias tambm de diversos carizes. Ou, ainda, nas de governantes empenhados em pr a msica ao servio dos processos de consolidao e desenvolvimento dos respectivos regimes. Escusado seria dizer que o critrio da expresso encontrou ambiente favorvel onde quer que se cultivou a exteriorizao de :, afectos atravs da msica, fosse no sero de trovadores do fim da Idade Mdia fosse nos encontros de humanistas do Renascimento ou nos sales burgueses da era romntica.

    O critrio da *enformao* o que mais se centra na obra. Pe em foco a esquematizao formal desta, a sua construo, as suas solidez e coerncia por assim dizer arquitectnicas. Tende muitas vezes para um idealismo metafsico e para uma como que historicidade metida entre parntesis, cingida a sucesses diacrnicas de formas.

    Deste ngulo, a obra apresenta-se-nos como entidade de certo modo independente, qual possvel atribuir um valor absoluto e portanto eterno. Convm no entanto observar que a atribuio de valores "eternos" a obras musicais tambm se verifica sob o critrio da expresso, nomeadamente quando este se filia numa esttica idealista.

    No aspecto histrico, a evoluo das formas musicais tambm tida por autnoma. Como se as sucessivas formas do motete, ou do madrigal, ou da sonata, ou da sinfonia tivessem ido surgindo por fora duma lei interna dum sistema abstracto e fechado, e no por aces individuais e colectivas (sociais), vindas do mundo concreto e envolvendo um sem-nmero de factores de vria ordem.

    Nos seus aspectos mais idealistas apriorsticos, o pendor do critrio da enformao para os valores "eternos" parece justificado pelo bem conhecido fenmeno da perdurao da validade esttica das obras de arte. No ser que continuamos hoje a atribuir altos valores estticos msica de um Machault, de um Josquin, de um Monteverdi? Fora dos domnios da arte dos sons encontram-se exemplos ainda mais frisantes, como os de arquitectura e escultura da Antiguidade, a epopeia e o teatro gregos e latinos, etc. S que no parece crvel ser a atitude perante uma obra de arte sempre a mesma, ao longo do tempo, independentemente dos condicionalismos histricos e socioculturais de quem a toma. E no s ao longo do tempo. A valorao das artes tambm sincronicamente se apresenta diversificada.

    Um bom exemplo o da alta apreciao esttica, por ouvintes sem qualquer crena religiosa, e at aguerridamente anticlericais, de obras como a *_Missa em si menor* ou as *_Paixes* de Bach, as *_Missas* de Mozart, de Beethoven ou de Schubert, o *_Te Deum* de Bruckner ou os *_Vingt Regards sur l'_Enfant-_Jsus* de Messiaen, entre tantas outras. Ainda mais de salientar o facto de msica marcadamente originria duma determinada classe social poder ser tida em grande conta por auditrio representativo de outra ou outras, o que parece consequncia de motivaes tambm no coincidentes. A argumentao deste tipo respondem os defensores dos dogmas autonomistas sustentando que nem por isso deixam as obras de ter os seus valores estticos absolutos, apenas acontecendo que s alguns fruidores so capazes de se aperceberem deles com plena conscincia.

    Compreende-se que, segundo este critrio, o conhecimento da biografia do compositor, das circunstncias que rodearam a criao e a ulterior carreira da obra etc. seja irrelevante para a valorao desta, para no dizer que se torna indesejvel. De tal ponto de vista, o saber-se da cegueira de um Cabezn e da sua condio de servidor do rei da Espanha, ou dos prodgios de um Mozart menino e mais tarde *maon*, ou da surdez e do liberalismo de :, um Beethoven, ou da ligao de um Eisler a Bertolt Brecht nada adianta para a valorao das obras desses

  • compositores. Como tambm no o conhecimento dos primeiros destinatrios das composies, dos intrpretes que as condicionaram e de outras circunstancias influentes na sua gnese.

    Em geral, este critrio reflecte a aceitao da dualidade essncia-aparncia, cujo primeiro termo (o da autntica "realidade") aquele a que verdadeiramente pertencem as formas das obras de arte, com os seus valores eternos. O que aqui mais importa , no entanto, observar que o critrio da *enformao* tambm se tem apresentado com diferentes feies, ao longo da histria. Pode dizer-se que pertenceram sua esfera as concepes matemticas da msica sapiente medieval, de que ainda so prolongamento os construtivismos polifnicos do sculo XV. Mas foi sobretudo a partir de meados do sc. XIX que, na esteira da filosofia idealista alem, ele marcou muito o pensamento musical europeu at hoje. Em muitos casos, a sua adopo prende-se a um certo elitismo esotrico, negador de que as massas populacionais possam ter acesso queles "verdadeiros" valores, tidos por absolutos.

    Finalmente, o critrio do *uso* o que mais pode chocar o espiritualismo de muitos msicos e amadores de msica ainda muito influenciados por concepes romnticas. No entanto, afigura-se difcil, se no impossvel, negar-lhe uma importncia enorme na maior parte dos perodos da histria da msica europeia em que surgiram as composies hoje tidas por obras-primas.

    Atravs desse prisma utilitrio, avantajam-se valores que dependem no s da funo prtica que motivou a criao da obra, mas tambm, e principalmente, da medida, para no dizer do xito, com que a mesma funo foi realmente exercida. bem sabido que, por motivos de subsistncia e de prestgio, praticamente todos os msicos profissionais do passado, que viviam do seu trabalho, tiveram que nortear-se pela mira do xito junto dos seus destinatrios. O que, ao contrrio do que muitas vezes se diz, pode ter funcionado como estmulo, mais do que como convite a uma espcie de prostituio. Aqui, h evidentemente que distinguir diferentes graus de poder criador e de observncia duma tica artstica.

    Mesmo depois de se libertar da condio de assalariado, como uma das inmeras consequncias da subida da burguesia ao poder, o compositor que no dispusesse de fortuna pessoal teve, em ltima anlise, de reger-se pelo mesmo estatuto utilitrio, com a diferena de o sufrgio pretentido ser o de outros auditrios. (Alis, essa liberalizao profissional vinha a processar-se desde, pelo menos, que o espectculo pblico de pera e a *tourne* solstica se tornaram rentveis.) O facto de certos compositores, como um Schumann um Liszt, um Wagner, no terem, neste aspecto, escrito nada de equivalente ao que se l na correspondncia de Mozart no significa que lhes pudesse ser indiferente o aplauso dos seus pblicos, mas to-s que disso os impediam os cnones idealistas das suas mentalidades de artistas-intelectuais. J vimos que, no mesmo perodo romntico, e at mais tarde, mas em contexto sociocultural muito diferente, outra foi a sinceridade de grandes compositores italianos.

    Dos trs critrios de valorao, este ltimo parece ser o nico susceptvel de bastante objectividade no ajuizar de composies musicais, como obras de :, arte. Quanto maior o xito, medido em nmeros de audies, de chamadas ao palco, de espectadores, de gravaes fonogrficas ou de transmisses, tanto mais alto o valor da obra. Mas uma objectividade muito relativa, como facilmente se v.

    O xito somado at hoje pode ser desfeiteado por fracassos de sucessivos amanhs. Mas no s, mais uma vez, uma aco do tempo. H tambm uma dependncia do espao, incluindo desde logo o sociocultural. Para grande irritao de Beethoven, muitos dos seus admiradores -- talvez a maior parte -- gabavam-lhe o *_Septimino op.20* como a sua melhor obra. Quanto aos ltimos quartetos de cordas, ainda hoje ficariam mal classificados se o critrio fosse o da quantidade de execues, de ouvintes e de salvas de palmas.

  • O critrio do uso tem mais que se lhe diga, e agora em seu abono. Por um lado, ele pode ser correctamente aplicado sobre diferentes planos, de algum modo independentes entre si. Planos que se diferem por parmetros culturais dos utentes. Mais uma vez desempenha um papel decisivo a questo de saber *a quem* a msica se dirige. Em boa verdade, o critrio utilitrio o que tem prevalecido em cada um destes planos. Por outras palavras, e recorrendo de novo ao mesmo exemplo: para uma camada cultural esclarecidamente afecta msica de cmara , ao fim e ao cabo, do critrio utilitrio que resulta o prestgio superlativo dos ltimos quartetos de Beethoven, no plano desses mesmos ouvintes. O que no implica que entre estes, individualmente, no haja quem se guie por outro estatuto valorativo. Levando a exemplificao mais longe, parece legtimo afirmar que tambm o critrio do uso que prevalece quando, num plano cultural muito diferente, se verifica que o intermdio da *_Cavalleria Rusticana* assume cotao incomparavelmente superior daquelas pginas de Beethoven.

    Nalguma coisa que se disse no pargrafo anterior a palavra *prestgio* assume particular importncia. Ela tem que ver com a distino entre *saber do* valor esttico e *conscincia desse valor*. Muitas pessoas sabem do valor de msica de Bartk, ou de arquitectura de Gropius, ou de escultura de Moore, ou de cinematografia de Wells, inteiramente margem de relaes directas, imediatas, com obras desses autores, merc das quais pudessem formar um juzo confirmativo ou no, do seu prestgio. Ocorre lembrar o caso da visitante de um museu que chamou as amigas, para que viessem ver aquele Picasso. Quando uma delas observou no ser Picasso o nome que l estava escrito, mas sim Pissarro, o bando logo se afastou, divertido com o engano. As moas j *sabiam* do valor do mestre espanhol. O que contribui para desperdiarem um ensejo para ganhar conscincia do daquela provavelmente preciosa tela do francs.

    O critrio do uso impe-se necessariamente a qualquer responsvel por uma poltica de cultura. Isto, no s, e no tanto pelo que concerne a estimulao exercida no sentido dirigente-artista-auditrio, como tambm, e principalmente, entrando em linha de conta com o j referido fenmeno de *feedback*, actuante no sentido oposto. Neste processo, o factor demagogia no deixa de poder produzir efeitos culturalmente nefastos. :,

    Estranhar-se- talvez que, em to estreita conexo com a esttica, no tenha ainda sido aflorado, nesta introduo, o conceito de beleza. Note-se, porm, que nos temos ocupado de *critrios* de valorao e no de *categorias* estticas, como as que opem o belo ao feio, o sublime ao inferior, o trgico ao cmico.

    A anlise das categorias levar-nos-ia longe de mais. No entanto, convm fazer notar a variao do vocabulrio dominante respectivo, ao longo da histria da msica. No foi por acaso que, depois dos louvores medievais e renascentistas do *suave*, do *doce* e do *harmonioso*, tenham vindo os encmios barrocos e galantes ao *bizarro* e ao *sensvel*. Nem que depois dos cultos romntico e realista do *expressivo*, do *sentimental* e do *fantstico*, no primeiro caso, e do *verdadeiro* no segundo, um Iannis Xenakis afirme que o que hoje se pede a uma obra que ela seja *interessante*. Em relao actualidade, note-se tambm a insistncia no substantivo *rigor*, tanto na rea da msica como nas das outras artes.

    Entre os muitos conceitos categoriais estticos, o de *belo* parece o mais estvel, se bem que muito mais explicitado nuns perodos do que noutros. Mas no nos deixemos iludir demasiado pela permanncia do vocbulo. O *belo* de um determinado conjunto social, com o seu prprio momento histrico, no coincide com o de outros. Bastam os nomes de um Bosch e de um Goya, de um Monteverdi e de um Gluck para se verificar que a tendncia para considerar o *feio* j no como oposto do *belo* mas como uma sua possvel assuno no propriamente da vspera do nosso tempo.

  • Por outro lado, aquilo que era feio pode vir a ser considerado belo, assim como algo de sublime pode tornar-se reles e a mais trgica das tragdias resultar, no muito tempo volvido, imensamente cmica. Isto, dentro do mesmo conjunto social e, at, no consenso dos mesmos indivduos.

    Outra prova reside na atribuio beleza esttica de contedos filosficos divergentes, desde os mais idealistas aos radicalmente materialistas, com bastantes matizes nos dois extremos e um sem-nmero de diferenciaes intermdias. Um exemplo menos genrico est no facto de a propenso para assimilar o *belo* ao *bom*, numa abertura do esttico ao moral, se ter manifestado em medidas diversas, tambm ao correr da histria. Este aspecto tem evidente relacionao com o critrio do uso.

    Posto isto, compreende-se que uma histria da msica (dita clssica) portuguesa, ou de qualquer outro pas, s possa seguir a rota das *obras* respectivas sob determinadas condies. Em primeiro lugar, a condio de entender por *obra* algo de processual e no uma "coisa" fixa, definitiva, afectada dum valor esttico igualmente objectivo e constante, para todo o sempre. Entidades processuais, portanto, em cuja valorao influem o conhecimento que tenha o destinatrio (imediato ou mediato) no s da mensagem e do seu cdigo mas tambm do emissor, do mensageiro e dos seus contextos socioculturais, incluindo aquele a que o mesmo destinatrio pertence.

    Pressupe isto a solicitao de que o leitor, se o no fez j, procure ganhar contacto auditivo directo com as obras de que aqui se trata, no se contentando com ficar a *saber de* certos valores da msica portuguesa, antes diligenciando por deles ajuizar em conscincia. Ao mesmo tempo, torna-se :, evidente a obrigao de fornecer dados relativos a biografias de um mnimo de individualidades representativas ou influentes, bem como a acontecimentos marcantes ou de certo modo significativos, instituies que desempenharam papis na evoluo da cultura musical portuguesa, parmetros socioeconmicos, polticos e culturais de sucessivos englobantes nacionais da msica e dos msicos, influxos vindos de fora do pas e suas mais ou menos conseguidas assimilaes. E tambm um mnimo de informao sobre as prprias obras, entendidas aqui no sentido estrito de mensagens codificadas, ainda que na maior parte dos casos em ligao com vivncias auditivas de realizaes suas. Isto, sem pr inteiramente de parte aquelas j aludidas entidades musicais que tm sido genericamente designadas por no-obras e que, em qualquer pas do mundo, sobre o poderem ser de enorme interesse cultural, excedem esmagadoramente, em quantidade, o patrimnio nacional de *obras*, por muito abundante que ele seja.

    No se torna possvel realizar este projecto com absoluta objectividade. J a escolha das incidncias introduz inevitavelmente um ndice de refraco subjectivante com o qual o leitor dever entrar em linha de conta. Acresce que o autor recusa eximir-se de marcar a sua posio, na certeza, porm, de que esta discutvel em muitos casos, se no em todos. Quando se trate de valorao esttica, tornar-se- porventura interessante para o leitor identificar o critrio adoptado. As mais das vezes, no ser nenhum dos atrs referidos, mas antes uma no idealista conjuno deles.

    Mais do que este apuramento, importa que o livro mostre em alguma medida os critrios da valorao esttica vigentes em diversos momentos da histria da cultura musical portuguesa. Neste aspecto, pede-se particular ateno para os consideravelmente longos passos do livro que do relatos e comentrios (por vezes poticos) de prticas e fruies, feitos por coetneos que as presenciaram, ou nelas participaram; bem como excertos de tratados ou compndios tericos pelos quais se orientaram aprendizes de msica portuguesa, em diferentes perodos. A escolha dessas fontes recaiu de preferncia sobre momentos histricos especialmente significativos, como sejam os das transies da Idade Mdia para a Moderna e do Absolutismo para o Liberalismo. O largo discurso transcrio visa a que o leitor

  • fique habilitado a tirar concluses suas. Ainda em relao aos critrios valorativos, convm atentar no vocabulrio usado, sobretudo na adjectivao qualificativa de autores, obras ou intrpretes musicais.

    No que respeita ao peso das circunstancias condicionantes da cultura musical portuguesa, ser sistemtica, ainda que nem sempre declaradamente considerada a diviso por classes sociais, bem como a aco dinamizadora da histria exercida pela luta delas, em funo de diferentes correlaes de foras. No se espere, no entanto, uma sequncia de "explicaes" to simplistas como a que pretendeu reduzir o canto gregoriano a um narctico sorrateiramente metido pelas orelhas das classes oprimidas a dentro; ou como a que arrumou toda e qualquer pea de msica dodecafnica na seco elitria do arsenal de armas burguesas antiproletariado; ou, ainda, como as que quase chegaram a afirmar que, onde quer que os comandos da estrutura econmica e o poder poltico mudem das mos duma classe social para as doutra, uma semana depois surge um novo estilo :, musical, caracterizadamente representativo da classe vitoriosa (que se assume como nova classe dominante).

    A relao entre classe social e msica respectiva fundamentalssima e dela faz parte, sem dvida, o prestar-se a arte dos sons a ser usada como arma. S que no uma relao simples, linear e operante sempre num nico sentido. Torna-se fcil dar exemplos, a trao largo. Comparando uma abertura de Lully com um poema sinfnico de Strauss, transparece logo de uma banda uma aristocracia pomposamente absolutista e da outra uma burguesia endinheirada e no menos senhora de si, porm de outra maneira. Tudo se complica, no entanto, numa anlise mais fina, que se no contente com opor casos to macroscopicamente contrastados.

    H diferenciaes dentro duma mesma classe, que se manifestam em termos de recepo solicitante, consumidora e reguladora, bem como de emisso e de transmisso da mensagem musical. Diferenciaes por grupos (etnias, ligames culturais, religiosos, regionais, profissionais, associativos e outros) e por camadas definidas, nomeadamente, pelo grau de instruo e nvel de mentalidade.

    Resultam assim, dentro de cada classe, emaranhados que podem tornar-se muito complexos e abundantes em contradies. De maneira geral pode dizer-se que a complexidade e a incongruncia se mostram tanto maiores quanto mais numerosos e actuantes forem os meios de comunicao no interior da classe social.

    No s no interior. Porque a comunicao atravs (ou a respeito) das artes tambm se processa entre diferentes classes, mesmo que estejam em conflito. Expresses artsticas duma classe podem ser fruidas e assimiladas por outra ou outras. Pode at acontecer que sejam concebidas e modificadas em consciente aproveitamento deste fenmeno. Mais uma vez encontramos elucidativos exemplos na esfera religiosa. evidente que a arquitectura, a escultura, a pintura e a msica eclesisticas no se destinaram no passado, como no se destinam hoje, a uma s classe.

    A fruio e a assimilao diferem, em funo das classes, grupos e camadas sociais. A assimilao deve aqui entender-se num sentido orgnico. um apropriar-se de algo, tornando-o semelhante ao organismo receptor. Na relao do objecto artstico com o sujeito fruidor -- que pode tornar-se emissor e mensageiro --, no s o sujeito se alimenta como tambm o objecto se modifica, adquirindo muitas vezes novos potenciais, e perdendo outros.

    Casos concretos da histria da msica so, entre muitos outros, os da assimilao por grupos da classe trabalhadora rural de prticas musicais religiosas, dando como resultado tipos de canto que pode dizer-se autenticamente popular, ou a assimilao por compositores ao servio da classe mdia e da nobreza, de canes e danas do povo (processo de uma influncia decisiva na asceno social da msica sapiente profana a partir do Renascimento, bem como na evoluo da msica religiosa crist) ou, ainda, a apropriao de elementos do *jazz* por compositores das primeiras

  • dcadas do sculo XX cujas primeiras clientelas pertenciam burguesia europeia, sem falar das incontveis e no menos burguesas estilizaes de folclore empreendidas por expoentes musicais de vrios nacionalismos tambm :, vinculados a classes mdias (Glinka, Dargomijsky, "os cinco", Smetana, Dvork, Pedrell, Albniz, Granados).

    Seria interessante analisar em profundidade a msica portuguesa de diversas zonas de aco e de diferentes perodos, desde a fundao da nacionalidade at as imediaes dos nossos dias, em funo das respectivas classes, grupos e camadas sociais. No se torna porm legtimo prometer tanto, nem nada que se lhe compare. Faltam, quase completamente, estudos de apoio, feitos por socilogos da msica. A lacuna torna-se especialmente lamentvel em relao a determinados aspectos da constituio populacional portuguesa. Por exemplo, a faceta musical dos grupos de muulmanos, ou de escravos africanos e asiticos (cujas habilidades musicais podem ter sido mais assimiladas pelos donos portugueses do que hoje se supe), ou ainda, e sobretudo, dos judeus e cristos-novos, tantos dos quais se distinguiram nos domnios do saber.

    A carncia de informao biogrfica tambm levanta dificuldades. certo que as teses monologal e coisificante ainda encontram defensores de coturno, para os quais o artista se dirige a si mesmo e a mais ningum, e a obra constitui um objecto no afectado por nada que lhe seja exterior. Nesta ptica, a evoluo da msica processa-se autonomamente, dentro dum sistema diacrnico isolado cujos nicos motores so uma espcie de lgica interna do mesmo sistema e, em coerncia com ela, as inovaes marcantes de sucessivos gnios criadores. Porm, mesmo de um tal ponto de vista, impossvel dispensar todo e qualquer conhecimento do que foi o artista, como homem ou mulher de carne e osso, como membro duma determinada sociedade em que muito ou pouco se integrou, contra a qual pode ter tido de lutar mas de cujos caracteres, em qualquer caso, se tornou expoente, em sentido afirmativo, to-s conformadamente acomodatcio ou declaradamente contestatrio.

    No pode ignorar-se hoje a importncia da psicologia das profundidades para a investigao cientfica das manifestaes artsticas, nomeadamente no seu aspecto criativo. Mas no s o bigrafo, o historiador e o crtico de arte de formao psicanaltica necessitam de dados pessoais fidedignos. Estes tornam-se tambm indispensveis em investigaes diferentemente orientadas, desde as que partem de vivncias por assim dizer impressionistas das obras s que incidem, antes e acima de tudo, sobre estruturas e superestruturas econmicas e socioculturais, passando pelas que sobrevalorizam o exame puramente tcnico-musical e sem excluir as que derivam para o mais esterilizado dos esteticismos.

    Na vivncia musical, como nas das outras artes, preciso considerar o fenmeno da empatia. Grande parte daquilo que o ouvinte recebe da obra foi "antes projectado nesta por ele mesmo, ouvinte. Espcie de radar pelo qual o sujeito fruidor, muitas vezes sem se dar conta do processo, localiza o objecto artstico num espao de representaes psicoculturais, a empatia influi enormemente nos valores estticos e histricos atribudos msica. S que, no caso do radar propriamente dito, a localizao objectiva, enquanto que no da empatia ela se define em termos duma subjectividade varivel de indivduo para indivduo e at de audio para audio. :,

    Ningum deixar de reconhecer que os conhecimentos biogrficos relativos a compositores podem afectar poderosamente a fruio das suas obras. A medida em que tal acontece sem dvida muito diferente, inclusive em relao a composies da mesma autoria. E os dados biogrficos influentes at podem ser irrelevantes, duvidosos ou mesmo falsos.

    O caso de Beethoven particularmente elucidativo. O conhecerem-se bastante bem e terem sido muito divulgadas as suas tendncias ideolgicas e os seus tormentos

  • fsicos e sentimentais -- tendncias e tormentos que foram ao encontro de solicitaes dos perodos subsequentes da histria da msica europeia -- contribuiu imensamente para que a sua genialidade tenha sido objecto do mais amplo e vivo interesse. E contribuiu no s junto de massas de ouvintes superficiais, em cuja fruio o fenmeno emptico se d sempre de maneira algo primria, como tambm entre os intelectuais e artistas cultural e tecnicamente habilitados emisso de juzos de valor.

    No plano das cincias musicais, no se trata, evidentemente, de qualquer encarecimento duma relao directa entre causa biogrfica e efeito artstico. A Constana do *_Rapto do Serralho* no pode ser reduzida Constana namorada e depois mulher de Mozart. Muito menos pode o beethoveniano "Muss es sein?" do *_Quarteto op. 135* tocar mais fundo o ouvinte esclarecido, por este empaticamente o entender em termos de pagamento da renda da casa. bem sabido que entre a realidade circunstancial ou o estado de esprito do artista, no momento da criao da obra, e os caracteres desta possvel haver flagrante divergncia. O que, em vez de restringir o interesse do conhecimento da personalidade e da vida do autor, muito pelo contrrio o aumenta, se mostrar mais complexa e profunda a mensagem, tornando-a ainda mais enriquecedora de quem a recebe. Se o homem e a sua circunstancia ajudam posse da obra pelo ouvinte, no menos verdade que, assim apropriada, a mesma obra pode tornar-se depois muito mais profundamente reveladora da personalidade individual e social que a produziu. Obra e biografia pertencem-se mutuamente.

    Por tudo isto, a msica portuguesa seria muito menos ignorada, a sua histria poderia ser escrita com um apoio e vivencialidade muito maiores, se houvesse outra informao acerca das suas figuras representativas. Por motivos que, eles mesmos, pertencem histria da nossa cultura, a escassez de dados e de estudos a tal respeito , na maior parte dos casos, confrangedora. H compositores, tericos e intrpretes musicais po