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HIPERTEXTO' Christoph Tiircke Uma "sociedade do conhecimento" não é composta por muitos "conhecedores" mas sim por pessoas que não sabem como podem concentrar o conhecimento, reunido em técnicas, aparelhos, arquivos e bibliotecas, em unidades transparentes ou ao menos acessíveis. O problema não é novo. Trabalha-se nisso desde que se percebeu que a ciência moderna, ao não mais ser tutelada pela teologia, não se concentrava, automaticamente, numa unidade de pesquisa amparada pela razão, mas ameaçava antes dispersar-se num grande número de conhecimentos distintos. Contrários a esse risco, Diderot e DÀlembert, já em 1750, assumiram a direção do gigantesco projeto de construção de uma enciclopédia com a intenção de "amealhar os conhecimentos espalhados pela superfície terrestre; de apresentar o sistema geral desses conhecimentos aos homens com os quais vivemos e transmiti-los aos que estão por vir, para que o trabalho dos séculos passados não fosse inútil para os séculos vindouros; para que nossos netos se tornassem não apenas mais cultos mas também mais virtuosos e felizes". Eles reuniram o trabalho de 150 colaboradores e 72 mil artigos numa "Árvore genealógica das ciências", a qual parecia brotar de três forças básicas espirituais: a memória, a razão e a força da imaginação; junto à qual eles ordenaram todo tipo de história (e também a história da natureza) à memória, as artes e capacidades manuais à força da imaginação e áreas tão heterogêneas como teologia e ciências naturais, moral e lógica, pneumatologia e matemática, à razão. No entanto, para que eles não se emaranhassem nas ramificações precárias dessa árvore, concordaram em realizar uma ordenação alfabética de contribuições com referências abundantemente cruzadas de outras palavras-chave, termos genéricos e conceitos subordinados, ou seja, pelo método que prevaleceu em todo dicionário desde então como o mais prático. Mas isso à custa de que o "Entrelaçamento das "Trad. Antônio Zuin.

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HIPERTEXTO'

Christoph Tiircke

Uma "sociedade do conhecimento" não é composta por muitos "conhecedores"

m a s sim po r pessoas que não sabem como podem concentrar o conhecimento,

reunido em técnicas, aparelhos, arquivos e bibliotecas, em unidades transparentes

ou ao m e n o s acessíveis. O problema não é novo. Trabalha-se nisso desde que se

percebeu que a ciência moderna , ao não mais ser tutelada pela teologia, não se

concentrava, automaticamente, numa unidade de pesquisa amparada pela razão,

mas ameaçava antes dispersar-se num grande número de conhecimentos distintos.

Contrár ios a esse risco, Diderot e DÀlembert , já em 1750, assumiram a direção do

gigantesco projeto de construção de uma enciclopédia com a intenção de "amealhar

os conhecimentos espalhados pela superfície terrestre; de apresentar o sistema geral

desses conhec imentos aos homens com os quais vivemos e transmiti-los aos que

estão p o r vir, para que o t rabalho dos séculos passados não fosse inútil para os

séculos vindouros; para que nossos netos se tornassem não apenas mais cultos mas

t ambém mais vir tuosos e felizes". Eles reuniram o trabalho de 150 colaboradores e

72 mil artigos numa "Árvore genealógica das ciências", a qual parecia brotar de três

forças básicas espirituais: a memória, a razão e a força da imaginação; junto à qual

eles o rdena ram todo tipo de história (e também a história da natureza) à memória ,

as artes e capacidades manuais à força da imaginação e áreas tão heterogêneas como

teologia e ciências naturais, moral e lógica, pneumatologia e matemática, à razão.

No entanto, para que eles não se emaranhassem nas ramificações precárias dessa

árvore, concordaram em realizar uma ordenação alfabética de contribuições com

referências abundantemente cruzadas de outras palavras-chave, termos genéricos e

conceitos subordinados , ou seja, pelo método que prevaleceu em todo dicionário

desde então como o mais prático. Mas isso à custa de que o "Entrelaçamento das

"Trad. Antôn io Zuin .

ciências" tal como desejado por Diderot, permaneceu superficial e esporádico. Ele já

padecia da enfermidade básica de todos os dicionários posteriores, os quais

representam, novamente, a disparidade que desejam superar. Quanto mais imprescin-

díveis eles se to rnavam para o estudo das línguas estrangeiras e das disciplinas

científicas, tanto mais eles se revelavam insuficientes para tal empreitada. Por mais

que juntem os fatos, tanto mais se pr ivam do contexto interior. Hegel desejou

reconstituir tal contexto num ato de força espiritual singular e apresentou u m a

enciclopédia filosófica que deixava provir, facilmente, a estrutura lógica do universo

e as formas da natureza, do espírito humano, da sociedade, da arte, religião e filosofia.

Contudo, o todo, para o qual ele os juntou, foi alcançado por meio do supr imir de um

volumoso e incontável número de detalhes. Hegel sabia muito, mas n e m de longe ele

sabia tudo. A luz de sua enciclopédia, a de Diderot e de DÀlember t dá a impressão de

ser como uma pedreira, para nâo falar de outras enciclopédias.

Entretanto, à luz de cada d ic ionár io surge a pa ranó ia de u m a encic lopédia

a rduamente t rabalhada para se tornar u m sistema filosófico. O m u n d o não cabe

numa única cabeça e muito m e n o s se equilibra apenas e m uma.

E se houvesse uma única máquina capaz de processar o m u n d o c o m o texto?

Essa foi a visão do engenheiro americano Vannevar Bush, que teve a idéia, em 1940,

de gravar tudo que já fora escrito em microfi lme, de a rmazenar tal gravação n u m a

escrivaninha e fazê-la aparecer em dois monitores. Por que dois? Porque dois textos

diferentes poderiam ser vistos s imul taneamente e associados u m ao ou t ro por meio

de um código regis t rado em a m b o s os escri tos nos cantos infer iores da tela. Se

numa outra opor tun idade se reativa o código do texto por meio do pressionar de

u m a tecla, au tomat i camente t ambém surge o ou t ro . Bush n o m e o u seu invento

c o m o Memory extender (Memex). Na verdade, não passou de u m mero recurso

mnemôn ico maquinai que, no entanto, produzir ia algo revolucionário: a l ibertação

do pensamen to h u m a n o de seus espar t i lhos autoculpáveis . Catá logos seguem o

alfabeto, os índices seguem os números , a á rvore genealógica d o c o n h e c i m e n t o

segue os conceitos genéricos e subord inados - c o m o é compl icado e restritivo esse

procedimento! "A mente h u m a n a não trabalha dessa forma. Ela opera por meio de

associações"' . Bush quis recuperar esse processo associativo original d o cérebro

por meio de u m a simulação maquinai . O objet ivo do Memex não seria somente

reduzir gigantescas bibliotecas ao t amanho de escrivaninhas, mas p r inc ipa lmente

elevar textos para u m estado de associação omni la tera l . Nesse es tado eles tan to

representariam quan to possibil i tariam u m pensamen to flexível e emanc ipado dos

esquemas es túpidos de ordenação . Em tal es tado mais e levado o texto merece

t ambém u m n o m e mais elevado: hipertexto.

1 Vannevar Bush, em S. Porombka , "Hipertext", Zur Krilik eines digilalen Mythos ( M ü n c h e n , Wi lhe lm Fink

Verlag, 2001), p. 27.

Essa palavra ainda não existia na era de Bush, mas ele pode ser identificado

como o pai cio hipertexto graças ao seu ousado programa de associação de texto e

cérebro. Entretanto, se as associações vivas são espontâneas, elas nunca são

to ta lmente sem motivos e nunca totalmente transparentes. Não existe nenhuma

regra que explique por que elas aparecem exatamente aqui e agora, desta forma e

não de outra. Elas têm um grau de liberdade, um momento de não-derivabilidade,

por conta do qual são, inversamente, volúveis e fugazes, dependentes do contexto

e da disposição. Se hoje, n u m dia de tempo ruim, me ocorre o texto B por causa do

texto A, e eu associo ambos por meio de um código, então talvez na próxima

semana, depois de u m a ida ao cinema, me venham à mente textos totalmente

diferentes e mais produtivos. Quando as associações são tão fixadas e mecanizadas

em códigos que regressam num pressionar de uma tecla, isso eqüivale a matá-las.

Associação fixada não é mais associação, e quem deseja arrancar dela o segredo do

associar é sugado num regresso sem fim. A tentativa de captar a associação livre

num link evoca a existência de uma armadura infindável de links posteriores, sem

que nunca ocorra a captação. Por isso o Memex de Bush não teve êxito.

Os códigos com os quais se associavam os textos deveriam, por sua vez, ser

o rdenados de a lgum m o d o e, para isso, precisava-se de códigos cada vez mais

complicados, além de que livros de códigos cada vez mais complexos necessitaram

ser escri tos para a tender tal demanda. Bush sequer pôde criar uma "máquina

bibliográfica" funcional .

Doenças infantis de um projeto genial? O fracasso de Bush foi assim

interpretado pelos seus sucessores. Em essência, eles atribuíram o fracasso, tal como

Stephan Porombka demons t rou num brilhante estudo, a defeitos técnicos, sem

suspeitar, de forma alguma, do próprio objetivo: que se produzisse maquinalmente

u m espaço de associação livre de pensamento e de texto. Ted Nelson apostou, nesse

processo, em novos métodos de software nos anos 1960. Todos os documentos ao

alcance deveriam ser registrados e associados a u m "Dokuversum" que "consiste em

tudo o que fora escrito sobre u m determinado tópico [...] no qual se pode ler em

todas as direções que se desejar prosseguir"2 . Em 1965, Nelson criou o n o m e

hiper texto e o atr ibuiu a esse "Dokuversum" (universo documentado) . "Por

hipertexto compreendo a escrita não-seqüencial"3. Essa definição lapidar age até

hoje como u m a fórmula mágica cujo encanto é absolutamente compreensível, caso

se atente contra quem ela se refere: contra Gutenberg, ou seja, contra a própria

cultura do livro e sua forma de ler e escrever rigidamente de modo seqüencial ou

linear, ident i f icando-a como a essência de u m progresso moderno rígido e

repressivo. Quando o discurso do hipertexto também se difunde, concorda-se com

2 Ted Nelson, em S. Porombka , "Hipertext", cit., p. 75. J I b i d e m . p . 71.

a seguinte observação: o fu tu ro deve per tencer ao escrever, ao ler e ao pensar "não

seqüencial" e "não-linear".

Mas c o m o isso é possível? Mesmo os m e n o r e s textos, as m e n o r e s palavras,

como " s i m V n ã o " l<ou" fo rmam u m a de te rminada seqüência de letras que se deve

ler exa tamente nessa o rdem, e até m e s m o os maiores entusiastas do h ipe r t ex to

procedem dessa maneira totalmente convencional e bem-compor t ada . Se não fosse

assim, tais entusiastas não en tender iam absolu tamente nada, do m e s m o m o d o que

eles não deixam de falar seqüenc ia lmente , pois a r t i cu lam sons na seqüência

aprendida. Ler e escrever de fo rma não-l inear? Bobagem. Q u e dessa insensatez se

possa fazer algum sentido por u m cur to espaço de tempo, como o protes to con t ra

as es t ruturas de sentido desgastadas, por exemplo, tal como no caso dos p o e m a s

dadaístas, isso não muda nada o fato de que n inguém conseguiria se entender assim

mais d e m o r a d a m e n t e . O n d e se diz u não- l inear" se que r dizer, na verdade , ou t ra

coisa, a saber: não mais em grandes un idades lineares.

Mas com isso se coloca a questão de revide: quão lineares fo ram essas un idades

gutemberguianas , cuja tirania dever-se-ia abolir? Elas e ram m e s m o un idades no

sentido rígido da palavra? Cer tamente , se se compara com o estado atual, no qual

os leitores mais apaixonados se que ixam de que di f ic i lmente conseguem ler u m

livro do início ao f im. Porém, c o m o era antes, q u a n d o c o m e ç á v a m o s a ler u m

romance policial e não sabíamos, até a penú l t ima página, q u e m era o assassino?

Ou quando acreditávamos ter devorado u m romance numa tacada? Provavelmente

esquecíamos de tudo ao nosso redor e pene t rávamos madrugada adentro . Ora , tal

p roced imen to é to ta lmente d i ferente de u m processo linear. Q u e m con ta as

pequenas in terrupções que ocorrem q u a n d o o leitor por u m m o m e n t o se afasta e

se entrega às suas próprias associações; q u a n d o olha novamente duas páginas para

trás, observadas de fo rma imprecisa, e vê de soslaio u m a página para frente para

averiguar se a leitura de fato cont inua de acordo com suas expectativas, para não

talar da ida à cozinha ou ao banhe i ro para se tornar novamente receptível?

O que aparece para olhos de toupeira como u m processo obs t inadamente linear

se revela, por meio da observação u m pouco mais precisa, como u m a oscilação de

uma linha com u m excedente de cont ínuas associações, inevitável q u a n d o de fato

se imagina o que se lê, ou seja, quando há desvios, efemérides, repetições, pausas

para pensar, olhares para trás e para adiante. E se fosse necessário empregar um

conceito chique para tal procedimento , esse conceito seria "navegar" Ora, aquilo

que é válido hoje para a internet , na condição da fo rma mais nobre de movimento ,

não fora imprópr io para as formas anteriores a ela. Q u e m se aproveita da rivalidade

do hipertexto como meio não linear na comparação com o livro não sabe o que

significa ler. Já o tradicional ler nunca fora meramen te linear, bem c o m o o "novo"

ler não deixa de sê-lo. O real processo de pensamento , escreve A d o r n o na Minima

»moralia, seria " t ampouco u m a progressão discursiva de etapa em etapa, assim

como, inversamente, tampouco os conhecimentos caem do céu. Ao contrário, o

conhec imento ocorre numa rede na qual se entrelaçam preconceitos, opiniões,

inervações, autocorreções, antecipações e exageros, em poucas palavras, na

experiência que é densa, fundada, porém de forma alguma transparente em todos

os seus aspectos '1 . Mas tal experiência não se pode representar ao copiar-se a si

mesma. Ela deve traduzir-se nas formas da mímica e dos gestos, da linguagem, da

imagem e do som, os quais ela encontra em seu meio ambiente.

I)e m o d o que a experiência traduzida não é mais a experiência feita origina-

riamente, mas só assim se torna concreta, da mesma forma como uma peça musical

só é concretizada quando tocada, embora o tocado não seja mais aquilo que fora

imaginado pelo compositor. Ele é menos, mas também mais. Todo texto situa-se

aquém da experiência que ele comunica, mas é apenas por meio do texto e das

estruturas de linguagem que a experiência consegue superar sua limitação monádica.

E tais estruturas não podem existir sem a seqüência sujeito, predicado, objeto

e sem a hierarquia de conceitos genéricos e subordinados. Elas são tão indis-

pensáveis e insuficientes como a ordem alfabética nos dicionários. Sua insuficiência

incomoda, mas ela faz com que o texto aponte para além de si mesmo. Sem provo-

car o leitor para elaboração de seu próprio construto representacional, o qual é

t ampouco tr ivialmente idêntico com a seqüencia de palavras impressas, quanto

com cons t ru to do autor, nenhum texto poderia ser palpitante.

Portanto, exige-se uma dupla resistência. Tão mais é preciso resistir às estruturas

seqüenciais e hierárquicas da língua e do texto por meio da prova constante de sua

insuficiência, tão seguramente elas, por sua vez, formam a resistência que a experiên-

cia precisa para se representar como diferente das seqüências. Cada resistência é

produzida para que possa um dia cessar. Seu ponto de fuga é o estado de recon-

ciliação utópica. A princípio, nele se dispersa toda contradição; e então toda

contradição teria u m bom fim. O inconveniente da visão-hipertexto não é o utópico,

mas sim o p rematuro declínio da tensão: a utopia adquire o preço de liquidação.

Um espaço livre do pensar, ler e escrever não-linear deve ser produzido por meio de

máquinas, mas no velho mundo capitalista.

O "Dokuversum" que produz texto legível em todas as direções, deve instituir

não apenas a l iberdade, mas também já ser sua imagem autêntica. Entretanto, o

texto que se desprende da forma do livro não paira assim tão facilmente sobre todas

as partes. Ele adquiriu, de imediato, uma nova forma. Ele é, desde o princípio, u m

texto programado. Toda liberdade decorrente, toda associação e combinação das

partes do texto totalmente distantes e heterogêneas func ionam cont inuamente

apenas c o n f o r m e u m esquema fixo. Subentende-se que ligar tudo com tudo,

4 T. W. Adorno , Minima moralia, em Cesammelte Schrifien 4 (Frankfur t am Main, Suhrkanip Verlag, 1996),

p. 90; t r aduz ido para o por tuguês pela Âtica, 1992.

34 HIPKRTKXTO

por tanto todos os "e", "ou", "mas", uns com os outros, conduzir ia ao nada. Apenas

palavras-chave to rnam-se aptas e, por tanto , só servem para a lguma coisa q u a n d o

são apuradas por seres inteligentes. Eles têm de compreender algo do con teúdo dos

textos ligados es tando na condição de separar o essencial do n ã o - e s s e n d a l e de

associar com outro essencial, de tal m o d o que possam fixar os resul tados de seu

trabalho de diferenciação e associação em links.

Mas o quan to esses links se deixam ser combinados depende das n o r m a s do

respectivo programa digital, que se compõe , por sua vez, de i n ú m e r a s conexões

0-1, ou seja, em links em minia tura que conduzem o percurso d o impulso elétrico.

O texto conectado que tais links possibili tam deve ser incr ivelmente amplo, mas se

diferencia quali tat ivamente de u m "Dokuversum". Ele p e r m a n e c e cons tan temente

parcial e, apesar de todas as a f i rmações opostas , fechado. Apenas com a chave

correta é que ele se deixa abrir. É preciso dominar seu software para fazê-lo expandir

novos textos e associações, e isso significa t r aba lho duro . Ent ra r a legremente ,

acrescentar seus própr ios textos e idéias e cont inuar , dessa manei ra , a escrever o

texto universal, tal como as crianças p rocedem na escola com as histórias abertas:

exa tamente isso n e n h u m software vai permi t i r . É por isso que mu i to s jogos de

computador , os quais os p rogramadores de hiper texto exper imen tam com prazer,

têm desde o princípio o gosto insosso do substi tuto. Em vez de oferecer ao leitor

uma história pronta, tal como fazem o romance tradicional ou a revista de histórias

em quad r inhos (o leitor p o d e aceitá-los ou colocá- los de lado) , os jogos de

c o m p u t a d o r apresen tam- lhe um texto do qual ele deve p roduz i r sua própr ia

história: ele mesmo tem de salvar a princesa, esclarecer o assassinato, redescobrir

a cultura desaparecida, reativar uma memór i a supr imida e até m e s m o escolher as

tarefas que deseja solucionar.

O leitor de um livro não fora sempre u m mero sequaz b e m - c o m p o r t a d o do

autor? Agora ele se torna u m criativo co-autor. Entretanto, sua cr ia t ividade total

consiste apenas na escolha de possibilidades, todas elas, a f i rmadas de an temão. A

associação livre, a favor da qual o proje to de h iper tex to foi pos to em marcha , é

espontânea e livre apenas q u a n d o aberta, a qualquer m o m e n t o , para o imprevisto.

A práxis do hiper texto consiste em reduzir a l iberdade de escolha ao previsto;

o que ocorre aos par t idos , às companh ia s telefônicas, aos seguros de saúde, aos

detergentes e aos aparelhos de televisão, tanto mais acontece ao hiperespaço: abre-

se u m labirinto total; são quase infinitas as possibil idades de nele se movimentar .

Porém, todos os caminhos já são dados de an temão e n e n h u m deles c o n d u z para

fora. O programa de computador é a versão high tech da providência .

Cer tamente , t rata-se de u m re ino de l iberdade bem miserável, n o qual u m

contemporâneo que clica o mouse e olha fixo para a tela dispõe, ad libitum, de todos

os c o m a n d o s e conexões já p rede t e rminados p o r um p rog rama de computador ,

como se fosse u m senhor que exercesse sua soberania sobre u m pra to pré-

preparado. Mas por que não ignorar isso? Não é a utopia do hipertexto simples-

mente o carro-chefe extravagante de uma série de conquistas altamente prestimo-

sas? Contudo, é fantástico ter o Goethe ou Nietzsche inteiros num CD e, por meio

de u m a palavra-chave, encontrar qualquer citação desejada. E quando todas as

bibliotecas forem digitalizadas, conectadas e acessíveis por todos, então o

"Dokuversum" não se tornará uma realidade prática utilizável como puro subsídio

sem que se deva preocupar com a utopia associada?

Não se salvará disso tão facilmente. A revolução midiática do século XX atingiu

em cheio o texto. E não cessa de conseguir aliados para o hipertexto, dos quais

McLuhan foi apenas o mais proeminente. Ele também anunciou, tal como Nelson,

o fim da cultura do livro. Entretanto, assim o fez não a favor do texto não-linear,

pois preferiu apostar suas fichas na fita magnética, no telefone e na televisão. Eles

dever iam remediar o prejuízo que veio ao m u n d o por conta do alfabeto e que

atingiu seu ápice com a imprensa. Por meio do texto escrito e suas leituras

taciturnas os seres humanos se isolaram uns dos outros e foram reduzidos ao visual.

Gutenberg se firma como a incorporação da alienação social. A ligação eletrônica

entre locais distantes deve anulá-la, e aquela comunicação imediata que acolhe

todos os sentidos, e outrora demarcava a ligação tribal primitiva, deve restabelecer-

se n u m nível mais alto e numa dimensão global. Por meio do telefone, do rádio e

da televisão "o sistema nervoso central é ampliado numa rede mundia lmente

unificada" e o "processo de conhecimento criativo, coletiva e corporativamente à

toda sociedade humana"5 , como se essa extensão técnica já tivesse, por si própria,

uma qualidade moral e social e permitisse à humanidade dar as mãos para uma

nova proximidade e cordialidade.

Para que isso se torne crível, deve-se, entretanto, esquecer rigidamente como

se realiza, de fato, a união da humanidade por meio da eletricidade. Órgãos

isolados, pr inc ipa lmente o olho e o ouvido, são conectados a um aparelho que

t ransmite estímulos e impulsos apenas quando ele os decompõe de acordo com

uma regularidade mecânica, quando os canaliza, filtra, para serem sons separados

ou cortes imagéticos das perspectivas centrais ou, quando a técnica já possibilita,

para serem sensações táteis mensuráveis. A participação ou a comunicação

eletrônica consiste em uma dispersão de acontecimentos pontuais, os quais são

ligáveis ou desligáveis. Eles são igualmente separados tanto do meio ambiente

concreto do emissor quanto do receptor. Um lugar onde ambos se encontram não

é mais especificável. Os meios eletrônicos ganham sua força de abrangência

mundia l e de poder conectar a humanidade, apenas a expensas de que eles, com

perfeição, descontextualizam e isolam os sentidos e as vivências numa medida que

nunca fora atingida na época da imprensa.

5 S .Porombka."Hiper tex t" ,c i t . ,p . 11.

Aquilo que surge c o m o a superação da a l ienação gu t embergu iana revela-se

c o m o sua mera potencial ização. O in imigo está em toda par te , até m e s m o nas

própr ias novas mídias . Só que seu p ionei ro não pode admi t i r tal fato. Tão mais

in tensamente ele deve proje tar seu in imigo in te rno para fora e atestar cons tan-

temente à cul tura da escrita um caráter seqüencial forçoso e isolador, c o m o se a

lírica, a literatura e a dialética nunca tivessem provado a imensa variedade espiritual

que se encontra na escrita. Não por acaso a força de pode r conectar a h u m a n i d a d e

atribuída aos novos meios de comunicação al imenta-se do venerável lema concer-

nente ao apogeu da imprensa: "Todos os h o m e n s se t o r n a m irmãos". Beethoven

precisava de u m a sinfonia inteira para t ransmit i r tal força congenia lmente . Hoje,

os meios eletrônicos devem fazer isso d iar iamente por conta própria. Sugere-se que

eles sejam essa mensagem.

De u m ambiente espiritual totalmente diferente part iu u m ataque geral filosófico

ao livro escrito de forma tradicional. Para Gilles Deleuze, o livro é o centro de todas

as estruturas hierarquicamente lógicas; seu inimigo é a árvore lógica: de u m tronco

brotam dois galhos, dos quais outros dois se or iginam na mais bela ordem até chegar

aos menores ramos. "De um se or iginam dois. Toda vez que nos d e p a r a m o s com

esta fórmula, mesmo se Mao a usasse c o m o estratégia ou se ela fosse compreend ida

tão 'dialeticamente' quanto fosse possível, fazemos isto ut i l izando o pensar clássico

mais antigo e mais refletido, o qual é totalmente desgastado. A natureza não procede

assim, pois as raízes se to rnam raízes mes t ras com u m r iquíss imo n ú m e r o de

ramificações laterais e circulares; em todo caso, elas não são dicotômicas"6 . Elas são

rizomáticas. O rizoma (tal como o título do famoso panf le to de Deleuze e Guattari ,

de 1976, que corresponde propr iamente ao t e rmo tubérculo, carocinhos) se espalha,

concomitantemente , para todos os lados e, c o m o "a natureza" procede dessa forma,

deve finalmente dar cabo ao chatíssimo "livro-raiz" e à sua lógica binária autoritária.

Até "as palavras de um Joyce, às quais se atribui, com razão, a palavra "ramifica-

bilidade", rompem a unidade linear das palavras, e até m e s m o a un idade linear da

l íngua, para produz i r uma unidade cíclica da frase, do texto ou do conhece r em

movimentos iguais" . De tal unidade se salva apenas por uma coisa: "o princípio da

pluralidade". Não sejam um ou muitos , sejam a plural idade. De acordo com esse

lema deve-se pensar, ler ou fazer política. Não há nada para se compreender n u m

livro, mas muito do que se pode se servir.

Q u e estas frases sigam u m a gramát ica to t a lmen te convencional ; que elas

confrontem o pensar dualístico e rizomático n u m a rigidez dualística; que n e n h u m a

destas pluralidades exaltadas c o m o r izoma ou"pla tô"se ja pr inc ipa lmente identifi-

6 G. Deleuze e F. Guat tar i , Rhizom (Berl im. Merve Verlag, 1976), p. 8. Edição brasileira: Milplatôs (Süo Paulo, Editora 34 ,2002) .

7 Ib idem, p. 10.

cável se não for considerada unidade; isso nunca atrapalhou Deleuze e seus fãs. Foi

suficiente "rizoma" - como "não-linear" - ter se tornado uma palavra mágica, um

eco do maio parisiense de 1968. Naquele tempo, quando os partidos comunistas e

os sindicatos se enrijeceram hierarquicamente e o risco para o capitalismo parecia

part i r unicamente das ações espontâneas dos estudantes e trabalhadores, surgiu

a imagem de u m a nova guerrilha crítico-radical. Ela vicejava de uma expe-

riência de totalidade, na qual se sentiu antecipadamente aquilo que hoje significa

"globalização".

A extensão dessa guerrilha é espantosa. "Um rizoma pode ser quebrado e

destruído em qualquer lugar, mas ele sempre se espalha ao longo de suas próprias

l inhas ou de outras"8 . Ora, nos anos 1960, essa colocação foi considerada pelos

estrategistas militares antes mesmo de formulada. Eles elaboraram a descen-

tralizada ARPANET para o pentágono com o objetivo de que um primeiro ataque

soviético não paralisasse as centrais de informações militares. A ARPANET foi uma

peça de guerr i lha de alta tecnologia, inventada no centro da maior potência

mundial , que se tornou revolucionária não apenas no sentido técnico. Ela converteu

a resistência descentralizada, o último recurso dos humilhados e oprimidos contra

a supremacia do ocupante, em um recurso poderoso. Essa foi uma rebelião

silenciosa, mas de u m alcance que se torna evidente apenas de forma gradativa.

Assim se iniciou a volta neoliberal do capitalismo high tech, a guerrilha de cima. A

ARPANET nunca precisou captar o temido ataque atômico soviético. Em vez disso,

ela foi aberta para o tráfego público. Dela originou-se a internet. De defesa militar,

/ela se t ransformou em ofensiva civil, cuja vitória sobrepuja toda vitória militar. Um

r izoma tornou-se hegemônico.

Com isso o hipertexto teve um salto qualitativo, pois desde então ele não se

dissemina apenas pelos CDs, mas também por meio de linhas telefônicas e

transmissões via satélite. A massa de dados da internet, para a qual todos que não

podem renunciar ao e-mail e à observação do mercado eletrônico são sugados,

tende realmente para o "Dokuversum" previsto por Ted Nelson, só que de outra

maneira. As hiper-histórias, embora inflacionadas nesse novo ambiente digital, são

degradadas a um playground adventures. O próprio hipertexto, por sua vez, se torna

sério e cada vez mais se converte em apodítica alternativa de ou ser deixado para

trás, ou ser clicado, por bem ou por mal, entre as massas de dados. Ninguém

acredite que isso deixe totalmente intocada sua forma de pensar. Talvez o saltar

brusco de u m link para outro ocasione estímulos acelerantes, talvez acione a busca

para conceitos precisos. Em geral, entretanto, ele torna o pensamento mais fugaz e

sem fôlego. Copiar um texto manualmente , de fo rma correta, exige dos alunos

atuais incomparavelmente mais concentração do que a exigida dos seus pais. Ler "de

M Ibidem, p. 16.

forma não-l inear" é a grande sensação para todos que não têm paciência para o

romance mais longo. Uma vez incapazes de se a p r o f u n d a r no texto, se a p r o f u n d a m

no computador . Olhar constante e f ixamente para a tela do mon i to r al iado à falta

de movimento resulta, atualmente, no sur to de crianças c o m sobrepeso e problemas

de visão.

Ted Nelson se considerou u m guerri lheiro. Sua defesa de u m "Dokuversum"

foi u m a defesa para o livre acesso a dados , PCs para todos e luta con t ra o

monopó l io e a política de restr ição da IBM. Desse modo , ele t a m b é m é o pai dos

hackers. Eles t êm seus méritos. O ato de pene t ra r nos dados secretos das g randes

f i rmas ou dos militares é u m ato de guerr i lha a mos t ra r que toda codi f icação é

decodificável, que n e n h u m código é to ta lmente seguro. Ainda assim, é subversivo

de m o d o limitado, apenas enquan to sua in tenção não for nada mais do que u m

livre navegar pelos dados .

Os m é t o d o s de guerr i lha não são fac i lmente ident i f icados c o m o subversão

crítica. A internet mostra o que ocorre q u a n d o eles se t r ans fo rmam em d o m í n i o

público. Plantas que se espalham r izomat icamente p o d e m ser podadas . Não por

acaso, o ja rd im foi o ant igo ideal da na tureza pacif icada. A internet , en t re tan to ,

deixa-se represar apenas de fo rma parcial, não se consegue dominá- la totalmente.

Ela se t r ans fo rmou no meio principal e no s ímbolo do capi ta l i smo neol iberal

espalhado de m o d o global. Em tais condições , lê-se o Rizoma c o m o car t i lha da

desregulação. E a "não-linearidade", glorif icada c o m o recurso radical contra todo

progresso linear falso, se revela como o seu melhor lubrificante.

DA SUPERPRODUÇÃO SEMIÓTICA: caracterização e implicações estéticas

Fábio Akcelrud Durão

I .

Uma das armadi lhas mais traiçoeiras no estudo contemporâneo da indústria

cultural está na facilidade de adotar uma postura moralizante, na tendência quase

natural a u m a condenação in toto, que resulta do impulso, advindo da visão crítica,

para a lamentação a respeito do valor ou da qualidade dos produtos culturais de

massa. Em oposição a isso, é sempre bom lembrar que o aspecto determinante

no f u n c i o n a m e n t o da indústria cultural, sua força motriz, a princípio não tem

nada a ver com a qual idade ou mesmo a natureza das coisas, porque essa força

mo t r i z é econômica: qualquer que seja o conteúdo a ser veiculado, o mais

impor tan te é que ele gere lucro, que leve à acumulação de capital1. Para muitos

crí t icos do concei to de "indústria cultural", no entanto, essa lógica teria como

pressupos to u m a natureza monolít ica da mídia: ela seria dominada por u m a

racional idade malévola e maquiavélica, que faria dos consumidores meros fan-

toches em suas garras manipuladoras . Tais críticos con t ra -a rgumentam que a

pulverização dos gêneros e a abundância de escolhas desmentem uma pretensa

homogene idade no conceito forjado por Adorno e Horkheimer. Segundo Paulo

Puterman, por exemplo, a

possibilidade real e atual que a tecnologia apresenta de colocar à disposição do

espectador quinhentos canais de tevê em sua casa é muito mais um reflexo do

processo de segmentação verificado na sociedade do que uma imposição da

Cf. Detlev Claussen,"I ;ortzusetzen: Die Aktualitiil der Kulturindustriekrit ik Adornos" ,em Frithjof Hager e

H e r m a n n 1'fütze (eds.), Das unerhòrt Moderne (Lüneburg, zu KJanipen, 1990); Chris t ine Resch e Heinz

Steinert , "Kul tur industr ie : Konflikte uni die Produkt ion der gebildeten Kasse", em Alex Demirovic (ed.),

Modelte kritischer Gesellschajtstheorie (Stuttgarl, Metzler, 2003).