higiene & prevenção

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ALGUMAS ABORDAGENS APLICADAS AO ESTUDO DAS DOENÇAS INFECCIOSAS Existem vários conceitos e esquemas que facilitam a compreensão dos principais fatores envolvidos no comportamento das doenças infecciosas. Entre eles, apresentaremos alguns que nos parecem mais adequados aos objetivos deste livro. Estrutura epidemiológica Inicialmente, tentaremos discutir o conceito de estrutura epidemiológica tomando como referencial a evolução do comportamento de algumas doenças infecciosas no município de São Paulo. Com a ressalva de que faremos algumas simplificações, uma vez que nosso objetivo não é discutir a epidemiologia de cada uma das doenças citadas, passaremos a analisar as figuras 15 a 19. A figura 15 chama-nos a atenção por uma aparente tendência de elevação da mortalidade por difteria nas duas primeiras décadas deste século, possivelmen- te expressando mais uma melhora do diagnóstico do que um aumento da mor- talidade por essa causa. Entre 1920 e 1970 temos uma reversão dessa tendência, que poderia ser em boa parte explicada possivelmente (lembre-se: estamos falando em termos de hipóteses) pelo aprimoramento das medidas terapêuticas. A partir da década de 70, quando as coberturas de vacinação tornam-se mais elevadas, a mortalidade por difteria no município de São Paulo já era muito bai- xa e praticamente desaparece como causa de óbito a partir de 1980. Com fundamento nesses dados, podemos dizer que eles sugerem que a queda da difteria como causa de óbito no município de São Paulo esteve intimamente ligada à introdução de tecnologias médicas de aplicação terapêutica e profilática, sendo ainda aceitável a hipótese de que o aparente aumento da mortalidade, no começo do século, refletiu um aprimoramento das técnicas de diagnóstico. VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA 57 A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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Dinamica das doenças infecciosas.

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Page 1: Higiene & Prevenção

ALGUMAS ABORDAGENS APLICADAS AOESTUDO DAS DOENÇAS INFECCIOSASExistem vários conceitos e esquemas que facilitam a compreensão dos

principais fatores envolvidos no comportamento das doenças infecciosas. Entreeles, apresentaremos alguns que nos parecem mais adequados aos objetivosdeste livro.

Estrutura epidemiológicaInicialmente, tentaremos discutir o conceito de estrutura epidemiológicatomando como referencial a evolução do comportamento de algumas doençasinfecciosas no município de São Paulo. Com a ressalva de que faremos algumassimplificações, uma vez que nosso objetivo não é discutir a epidemiologia decada uma das doenças citadas, passaremos a analisar as figuras 15 a 19.

A figura 15 chama-nos a atenção por uma aparente tendência de elevação damortalidade por difteria nas duas primeiras décadas deste século, possivelmen-te expressando mais uma melhora do diagnóstico do que um aumento da mor-talidade por essa causa.

Entre 1920 e 1970 temos uma reversão dessa tendência, que poderia ser emboa parte explicada possivelmente (lembre-se: estamos falando em termos dehipóteses) pelo aprimoramento das medidas terapêuticas.

A partir da década de 70, quando as coberturas de vacinação tornam-se maiselevadas, a mortalidade por difteria no município de São Paulo já era muito bai-xa e praticamente desaparece como causa de óbito a partir de 1980.

Com fundamento nesses dados, podemos dizer que eles sugerem que a quedada difteria como causa de óbito no município de São Paulo esteve intimamenteligada à introdução de tecnologias médicas de aplicação terapêutica e profilática,sendo ainda aceitável a hipótese de que o aparente aumento da mortalidade, nocomeço do século, refletiu um aprimoramento das técnicas de diagnóstico.

VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA

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A DINÂMICA DAS DOENÇASINFECCIOSAS

Page 2: Higiene & Prevenção

Ao analisarmos a figura 16, vemos uma associacão temporal entre a cloraçãoda água de abastecimento e a diminuição da mortalidade por febre tifóide,doença que apresentava elevado nível endêmico no município de São Paulo, aponto de ter sido denominada, no início deste século, “febre paulista”. Nessecaso, temos a alteração de uma das características do meio – o saneamento –,possivelmente constituindo o principal fator de modificação do comportamen-to de uma doença.

Tomando agora a trajetória da mortalidade por tuberculose (figura 17), cha-ma-nos a atenção o nível elevadíssimo das taxas verificadas desde o início doséculo até a década de 40, quando é introduzida a terapêutica específica. A par-tir daí, temos uma rápida e contínua queda da mortalidade.

No entanto, a partir de 1986 assistimos a uma reversão dessa tendência, pos-sivelmente relacionada, ao menos em parte, à elevação da incidência da AIDS.Nesse exemplo, podemos salientar o papel de dois fatores como provavelmen-te associados ao comportamento da mortalidade por tuberculose:

• introdução de uma tecnologia médica, a terapêutica específica;

• introdução de um fator que alterou ao menos uma das característicasdo hospedeiro, a imunidade.

VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA

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Figura 15Mortalidade por difteriaMunicípio de São Paulo, 1900 – 1995

Fonte: Fundação SEADE

1900

10

12

14Coeficiente por100.000 habitantes

Aprimoramentodo diagnóstico Aprimoramento do tratamento

Aumento da cobertura vacinal

8

6

4

2

01910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990

Page 3: Higiene & Prevenção

Nas figuras 18 e 19, referentes ao comportamento da poliomielite no muni-cípio de São Paulo, observamos alguns aspectos interessantes. A poliomieliteapresentou um comportamento muito distinto da tendência geral das demaisdoenças infecciosas e da própria tendência da mortalidade infantil.

A partir da década de 50, sem que fatos semelhantes tenham sido verificadosanteriormente, surgem grandes epidemias, perfeitamente evidenciadas tantopelos dados de mortalidade como pelos de morbidade.

Somente com a introdução da vacinação de rotina, em meados dos anos 60, éque a doença tende a ser controlada e apenas com a incorporação das campanhasanuais de vacinação em massa conseguimos atingir a eliminação dessa doença.

A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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Figura 16Mortalidade por febre tifóideMunicípio de São Paulo, 1900 – 1993

Figura 17Mortalidade por tuberculoseMunicípio de São Paulo, 1900 – 1995

Fonte: Fundação SEADE

Fonte: Fundação SEADE

1900

50

60

70Coeficiente por100.000 habitantes Início da cloração da água

de abastecimento público

40

30

20

10

01910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990

1900

100

120140

160

180

80

60

40200

1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990

Coeficiente por100.000 habitantes Introdução do tratamento específico

Elevação daincidência da AIDS

Page 4: Higiene & Prevenção

A explicação desse comportamento muito peculiar da poliomielite, se compa-rada com as demais doenças infecciosas, é controvertida, mas como fatos seme-lhantes ocorreram em períodos não muito distintos em outras regiões do mundo,inclusive em países industrializados, é possível que a fase epidêmica dessadoença possa ser explicada pela introdução de cepas modificadas de poliovírusque se caracterizavam pela maior patogenicidade ou neurovirulência.

Essa modificação das características do agente teria determinado epidemiasdas formas paralíticas da doença pela diminuição das infecções subclínicas eoligossintomáticas, que seriam responsáveis por cerca de 95% das infecçõescausadas pelos poliovírus e não, obrigatoriamente, pelo aumento da circulaçãodo agente ou da proporção de suscetíveis na comunidade.

Aceitas essas hipóteses, temos que o comportamento da poliomielite, noperíodo analisado, esteve associado principalmente às características do agentee à intervenção de tecnologias médicas (vacinação).

VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA

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Figura 18Mortalidade por poliomieliteMunicípio de São Paulo, 1924 – 1990

Fonte: Fundação SEADE

Figura 19Mortalidade por poliomielite e mortalidade infantilMunicípio de São Paulo, 1933 – 1990

Fonte: Museu Emílio Ribas da Secretaria Estadual da Saúde de São PauloFundação SEADE

1924

4

3

2

1

01930 1940 1950 1960 1970 1980 1990

Coeficiente por100.000 habitantes

Período endêmico

Período epidêmico

Início da vacinaçãode rotina

Início das campanhas anuaisde vacinação em massa

33 35 37 39 41 43 45 47 49 51 53 55 57 59 61 63 65 67 69 71 73 75 77 79 81 83 85 87 90

25

20

15

10

5

0

200

150

100

50

0

Incidência por 100.000 habitantes

Mortalidade infantil

Mortalidade infantil Incidência

Mortalidade infantil por 1.000 N.V.

Page 5: Higiene & Prevenção

Finalmente, analisando a figura 20, referente à mortalidade por gripe nomunicípio de São Paulo, verificamos uma epidemia que custou a vida de 1% dapopulação paulistana, em 1918. Na realidade, esse evento não constituiu fatoisolado, mas a pandemia da chamada “gripe espanhola”, que levou a óbito umnúmero estimado em 25 milhões de pessoas em todo o mundo.

Essa pandemia deveu-se à introdução de um vírus da gripe mutante, que sur-preendeu toda a população humana como suscetível. Portanto, nesse caso ofator preponderante na determinação do comportamento da doença foi umacaracterística do agente.

Figura 20Mortalidade por gripeMunicípio de São Paulo, 1990 – 1980

Fonte: Fundação SEADE

Com esses exemplos, procuramos mostrar que o comportamento das doen-ças infecciosas na comunidade varia em cada ponto no tempo e no espaço (secomparássemos os dados do município de São Paulo com os de outras cidadesdo Brasil e/ou de outros países, poderíamos verificar semelhanças e diferençasem cada momento e lugar).

A determinação desse contínuo estado de mudanças estaria vinculada àforma particular de interação dos diversos fatores relacionados ao agente,meio e hospedeiro, caracterizando o que conceituamos como estrutura epi-demiológica.

Portanto, em cada ponto no tempo e no espaço a forma particular de com-portamento das doenças na comunidade estaria condicionada pela estruturaepidemiológica.

Por sua vez, a forma de apresentação das doenças na comunidade emcada momento e lugar expressaria o que podemos denominar caracteres epi-demiológicos relativos à pessoa, tempo e lugar. O estudo dos caracteres epide-miológicos seria o objeto de estudo da epidemiologia descritiva.

A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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1900

1200

1000

800

600

400

200

01910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980

Coeficiente por100.000 habitantes

Epidemia da “gripe espanhola” em 1918

Page 6: Higiene & Prevenção

História natural e espectro clínico das doenças infecciosasO conceito de estrutura epidemiológica facilita a compreensão do comporta-mento das doenças infecciosas na comunidade, ao passo que o de histórianatural e de espectro clínico das doenças aborda a mesma questão, mas noplano individual.

A história natural das doenças abrange o conhecimento da evolução dadoença num indivíduo, na ausência de tratamento, num período suficientepara que chegue a um desfecho (cura ou óbito).

Esse processo, portanto, tem início com a exposição a fatores capazes decausar a doença e seu desenvolvimento, se não houver a intervenção médica,e culminará com a recuperação, incapacidade ou morte. As fases da histórianatural das doenças são apresentadas na figura 21.

Embora o tempo de evolução e as manifestações específicas possam variarde pessoa para pessoa, as características gerais da história natural de muitasdoenças são bem conhecidas, permitindo a aplicação de medidas de interven-ção (de prevenção ou terapêuticas) que podem alterar o seu curso pela cura,diminuição da incapacidade ou pelo prolongamento da vida.

Figura 21Esquema da história natural das doenças

Fonte: Adaptado de Centers for Disease Control and Prevention

Nas doenças infecciosas, a história natural inicia-se com a exposição efe-tiva de um hospedeiro suscetível a um agente (microrganismo ou parasita). Apartir desse momento, via de regra, temos um período de modificações ana-tômicas e/ou funcionais que caracterizam a fase subclínica ou inaparente,que terminará com o início dos sintomas. Essa fase é denominada período deincubação. Para as doenças crônicas, essa fase é chamada de período delatência.

Portanto, devemos entender por período de incubação o intervalo entre aexposição efetiva do hospedeiro suscetível a um agente biológico e o início dossinais e sintomas clínicos da doença nesse hospedeiro.

VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA

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Exposição

Alteraçõespatológicas

Horizonte clínico(início dos sintomas)

Momento mais freqüentedo diagnóstico

Fase suscetível Fase de doença subclínica Fase de doença commanifestações clínicas

Fase de recuperação,incapacidade ou morte

Page 7: Higiene & Prevenção

O período de incubação das doenças pode apresentar um intervalo de varia-ção; o da hepatite, por exemplo, situa-se entre duas e seis semanas. Vale assina-lar que, embora as doenças infecciosas sejam inaparentes durante o período deincubação, algumas alterações patológicas podem ser detectadas durante essafase por meio de métodos laboratoriais. Muitos programas de triagem (screening)têm por objetivo tentar identificar a doença nessa fase da história natural, umavez que, freqüentemente, a intervenção nesse momento é mais efetiva.

O início dos sintomas – momento denominado horizonte clínico – marca atransição entre as fases subclínica e clínica da doença. Em boa parte dos casos,o diagnóstico ocorre nesse momento.

No entanto, por variações individuais, em algumas pessoas o progresso dadoença a partir da fase subclínica nem sempre se faz na direção da fase clínicae, mesmo quando isso ocorre, as manifestações podem variar amplamente noque tange ao grau de gravidade da doença.

A figura 22 apresenta-nos o conceito de “iceberg”, que procura salientar que,muitas vezes, boa parte dos casos ficam abaixo do horizonte clínico e, portan-to, não podem ser identificados com fundamento em sintomas e sinais. Poroutro lado, aqueles clinicamente discerníveis podem variar quanto à gravidade.

Figura 22Conceito de “Iceberg” em doenças infecciosas

Portanto, o espectro clínico das doenças pode ser muito amplo, variando emdiferentes proporções de:

• casos inaparentes;

• com manifestações clínicas moderadas;

• graves, evoluindo ou não para óbito.

A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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Manifestações clínicas moderadas

Óbitos Casos graves Linha do horizonte clínico

Infecção inaparente

Proporção decasos clinicamente

discerníveis

Proporção decasos não

discerníveisclinicamente

Page 8: Higiene & Prevenção

O conhecimento do verdadeiro espectro clínico das doenças infecciosas éfundamental para compreendermos seu comportamento na comunidade e, pordecorrência, estabelecermos medidas eficientes de controle.

Quanto maior a proporção de casos inaparentes, maiores serão as dificul-dades de conhecermos a cadeia do processo infeccioso e de identificarmos osprincipais responsáveis pela manutenção da transmissão da doença nacomunidade, uma vez que os casos conhecidos representam somente o topodo iceberg.

Cadeia do processo infecciosoO esquema da cadeia do processo infeccioso procura integrar e detalhar os con-ceitos de estrutura epidemiológica, de história natural e de espectro clínico dasdoenças infecciosas.

Nesse ponto, faz-se necessário conceituar doença infecciosa, que pode serentendida como uma doença, humana ou animal, clinicamente manifesta queresulta de uma infecção.

Por sua vez, infecção é a penetração, alojamento e, em geral, multiplicação deum agente etiológico animado no organismo de um hospedeiro, produzindo-lhedanos, com ou sem aparecimento de sintomas clinicamente reconhecíveis.

Em essência, a infecção é uma competição vital entre um agente etiológicoanimado (parasita sensu lato) e um hospedeiro; é, portanto, uma luta pelasobrevivência entre dois seres vivos que visam à manutenção de sua espécie(Forattini, 1976).

Existem ainda alguns termos relacionados à infecção, mas que dela diferem,entre eles:

• Infestação, que pode ser entendida como o alojamento, desenvolvi-mento e reprodução de artrópodes na superfície do corpo ou nas rou-pas de pessoas ou animais.

• Colonização, que ocorre quando o agente está presente na superfíciedo organismo em quantidade mínima, multiplicando-se numa propor-ção suficiente para manter-se, mas sem produzir evidência de qualquerreação do hospedeiro.

• Contaminação, que se refere à presença de agente na superfície docorpo ou na de objetos inanimados (fômites) que podem servir de fon-te de infecção.

A construção do esquema da cadeia do processo infeccioso (figura 23) funda-menta-se na compreensão da infecção como resultante de uma particular inte-ração dos diversos fatores do agente, meio e hospedeiro.

VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA

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Page 9: Higiene & Prevenção

Mais especificamente, a infecção ocorreria quando o agente deixa o reserva-tório por diferentes vias de eliminação e, por meio de uma forma convenientede transmissão, com maior ou menor participação do ambiente, introduz-se nonovo hospedeiro suscetível pela via adequada de penetração.

Figura 23Cadeia do processo infeccioso

Fonte: Centers for Disease Control and Prevention

Características do reservatórioEntende-se por reservatório o hábitat de um agente infeccioso, no qual estevive, cresce e se multiplica. Aceita-se que a característica que distingue o reser-vatório da fonte de infecção diz respeito ao fato de o reservatório ser indispen-sável para a perpetuação do agente, ao passo que a fonte de infecção é a res-ponsável eventual pela transmissão.

Podem comportar-se como reservatório ou fontes de infecção:

• o homem

• os animais

• o ambiente

Reservatório humanoBoa parte das doenças infecciosas tem o homem como reservatório. Entre asdoenças de transmissão pessoa a pessoa incluem-se o sarampo, as doençassexualmente transmissíveis, a caxumba, a infecção meningocócica e a maioriadas doenças respiratórias. Existem dois tipos de reservatório humano:

A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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Reservatório

AgenteContato direto

Vetor

Veículo

Via aérea

Gotículas

Portas deentrada

Hospedeirosuscetível

Modo de Transmissão

Page 10: Higiene & Prevenção

• pessoas com doença clinicamente discernível;

• portadores.

Portador é o indivíduo que não apresenta sintomas clinicamente reconhecí-veis de uma determinada doença transmissível ao ser examinado, mas que estáalbergando e eliminando o agente etiológico respectivo.

Os portadores podem se apresentar na comunidade de diferentes formas,entre elas:

• Portador ativo convalescente: indivíduo que se comporta como porta-dor durante e após a convalescença de uma doença infecciosa. Écomum esse tipo de portador entre pessoas acometidas pela febretifóide e difteria.

• Portador ativo crônico: indivíduo que continua a albergar o agenteetiológico muito tempo após a convalescença da doença. O momentoem que o portador ativo convalescente passa a crônico é estabelecidoarbitrariamente para cada doença. No caso da febre tifóide, por exem-plo, o portador é considerado como ativo crônico quando alberga aSalmonella thyphi por mais de um ano após ter estado doente.

• Portador ativo incubado ou precoce: indivíduo que se comporta comoportador durante o período de incubação de uma doença.

• Portador passivo: indivíduo que nunca apresentou sintomas de deter-minada doença transmissível, não os está apresentando e não os apre-sentará no futuro; somente pode ser descoberto por meio de examesadequados de laboratório.

Em termos práticos os portadores, independentemente da sua posição naclassificação acima, podem comportar-se de forma eficiente ou não, ou seja,participando ou não da cadeia do processo infeccioso, o que nos permite clas-sificá-los ainda em:

• Portador eficiente: aquele que elimina o agente etiológico para o meioexterior ou para o organismo de um vetor hematófago, ou que possi-bilita a infecção de novos hospedeiros. Essa eliminação pode se fazerde maneira contínua ou intermitente.

• Portador ineficiente: aquele que não elimina o agente etiológico parao meio exterior, não representando, portanto, um perigo para a comu-nidade no sentido de disseminar o microrganismo.

Em saúde pública têm maior importância os portadores do que os casosclínicos, porque, muito freqüentemente, a infecção passa despercebida nos

VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA

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Page 11: Higiene & Prevenção

primeiros. Os que apresentam realmente importância são os portadores efi-cientes, de modo que na prática o termo portador se refere quase sempre aosportadores eficientes.

Reservatório animalAs doenças infecciosas que são transmitidas em condições normais de animaispara o homem são denominadas zoonoses. Via de regra, essas doenças sãotransmitidas de animal para animal, atingindo o homem só acidentalmente.Como exemplo, poderíamos citar: leptospirose (reservatórios: roedores e eqüi-nos), raiva (reservatórios: várias espécies de mamíferos), doença de Chagas(reservatórios: mamíferos silvestres), etc.

Reservatório ambientalAs plantas, o solo e a água podem comportar-se como reservatórios para algunsagentes infecciosos. Como exemplo, podemos citar: o fungo (Paracoccidioidesbrasiliensis) responsável pela blastomicose sul-americana, cujos reservatórios sãoalguns vegetais ou o solo; a bactéria causadora da doença-dos-legionários (Legio-nellae pneumophila) tem a água como reservatório, sendo encontrada com cer-ta freqüência em sistemas de aquecimento de água, tais como na água de torresde refrigeração existente em sistemas de circulação de ar, umidificadores, etc.; oreservatório do Clostridium botulinum, produtor da toxina botulínica, é o solo.

Vias de eliminaçãoVia de eliminação é o trajeto pelo qual o agente, a partir do reservatório oufonte de infecção, atinge o meio ambiente. Os tratos respiratório e digestivo sãoas principais vias de eliminação, cabendo citar também a urina, sangue, pele,mucosas e secreções.

Fatores do agenteOs agentes apresentam uma série de características que interagem com o meioe o hospedeiro, influenciando o comportamento das doenças infecciosas nacomunidade; entre eles destacamos:

• Infectividade: capacidade de o agente etiológico alojar-se e multipli-car-se no organismo do hospedeiro e transmitir-se deste para um novohospedeiro.

• Patogenicidade: capacidade de um agente biológico causar doençaem um hospedeiro suscetível.

•Virulência: grau de patogenicidade de um agente infeccioso que seexpressa pela gravidade da doença, especialmente pela letalidade eproporção de casos com seqüelas.

A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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Page 12: Higiene & Prevenção

• Poder imunogênico (ou imunogenicidade): capacidade do agente bio-lógico de estimular a resposta imune no hospedeiro; conforme ascaracterísticas desse agente, a imunidade obtida pode ser de curta oulonga duração e de grau elevado ou baixo. Dependendo também dascaracterísticas do agente, a imunidade conferida pode ser:

a. tipo específica: quando a imunidade produzida protege somentecontra um dos tipos do agente. Por exemplo, a imunidade conferi-da pela infecção pelo poliovírus tipo 1, selvagem ou vacinal, nãonos protege contra os poliovírus tipos 2 e 3.

b. grupo específica: quando a imunidade produzida protege somen-te contra um dos grupos do agente. Por exemplo, a imunidade con-ferida pelo meningococo A não protege contra as infecções causa-das pelos meningococos B, C, X, Y, etc.

• Valência ecológica: capacidade de um agente sobreviver em um oumais reservatórios. Quanto maior sua valência ecológica, maior serásua capacidade de perpetuação no ambiente; por decorrência, na mes-ma proporção crescerão as dificuldades de eliminação do agente.

• Resistência às condições do meio: capacidade de sobreviver nas con-dições do meio ambiente. Essa característica condiciona, até certo pon-to, as formas de transmissão. Por exemplo, um agente de baixa resis-tência às condições do meio, como é o caso do meningococo, somen-te poderá ser transmitido de forma direta pessoa a pessoa. O bacilo datuberculose, por sua vez, resistindo por vários dias no ambiente, quan-do na presença de umidade e ausência de luz solar pode ser transmiti-do por via indireta.

• Inóculo ou dose infectante: é a quantidade do agente que penetra nonovo hospedeiro suscetível. Quanto maior o inóculo, maior a gravida-de da doença e, geralmente, menor o período de incubação.

Fatores do ambiente físico e socialAs doenças infecciosas são significativamente influenciadas pelo ambiente, sejaem seus aspectos físicos, biológicos ou sociais. O ambiente físico, como, porexemplo, a temperatura média e umidade relativa do ar, influencia a eficiênciado contato na transmissão pessoa a pessoa, além de favorecer a transmissão dealguns agentes veiculados por vetores.

Quanto aos aspectos biológicos do ambiente, podemos citar como exemploo grau de adaptação de determinadas espécies em sua função de parasitar ohomem. Quanto maior essa adaptação, maior será a proporção de casos subclí-nicos da doença infecciosa por ele causados.

Por fim, o ambiente social, em aspectos como a aglomeração, migrações,

VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA

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Page 13: Higiene & Prevenção

distribuição das riquezas, está intimamente ligado aos níveis endêmicos dasdoenças infecciosas. Como exemplo, podemos citar a doença meningocócica,cujas epidemias são, geralmente, causadas pela introdução na comunidade deuma cepa mais patogênica; no entanto, os patamares a serem alcançados poressa epidemia dependerão, principalmente, das condições de aglomeraçãodessa população, especialmente de aglomeração no domicílio.

TransmissãoEntendemos transmissão como a transferência de um agente etiológico animadode um reservatório ou fonte de infecção para um novo hospedeiro suscetível. Atransmissão pode ocorrer de forma direta ou indireta.

1. Transmissão direta (contágio): transferência rápida do agente etiológico,sem a interferência de veículos. Ela pode ocorrer de duas formas distintas:

•Transmissão direta imediata: transmissão direta em que há um conta-to físico entre o reservatório ou fonte de infecção e o novo hospedeirosuscetível.

•Transmissão direta mediata: transmissão direta em que não há conta-to físico entre o reservatório ou fonte de infecção e o novo hospedeiro;a transmissão se faz por meio das secreções oronasais transformadasem partículas pelos movimentos do espirro e que, tendo mais de 100micras de diâmetro, são dotadas da capacidade de conduzir agentesinfecciosos existentes nas vias respiratórias. Essas partículas são deno-minadas “gotículas de flügge”.

2. Transmissão indireta: transferência do agente etiológico por meio de veícu-los animados ou inanimados. A fim de que a transmissão indireta possa ocor-rer, torna-se essencial que:

• os agentes sejam capazes de sobreviver fora do organismo durante umcerto tempo;

• existam veículos que transportem os microrganismos ou parasitas deum lugar a outro.

Entende-se por veículo o ser animado ou inanimado que transporta umagente etiológico. Não são consideradas como veículos as secreções e excreçõesda fonte de infecção, que são, na realidade, um substrato no qual os micror-ganismos são eliminados.

Transmissão indireta por veículo animado (ou vetor) é aquela que se dá pormeio de um artrópode que transfere um agente infeccioso do reservatório oufonte de infecção para um hospedeiro suscetível.

A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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Page 14: Higiene & Prevenção

Este artrópode pode comportar-se como:

• vetor biológico: vetor no qual se passa, obrigatoriamente, uma fase dodesenvolvimento de determinado agente etiológico; erradicando-se ovetor biológico, desaparece a doença que ele transmite. Os anofelí-neos que transmitem a malária são exemplos desse tipo de vetor;

• vetor mecânico: vetor acidental que constitui somente uma das moda-lidades da transmissão de um agente etiológico. Sua erradicação retiraapenas um dos componentes da transmissão da doença. São exemplosas moscas, que podem transmitir agentes eliminados pelas fezes, àmedida que os transportam em suas patas ou asas após pousarem emmatéria fecal.

Transmissão indireta por veículo inanimado é aquela que se dá por meiode um ser inanimado que transporta um agente etiológico. Os veículos inani-mados são:

• água

• ar

• alimentos

• solo

• fômites

Vias de penetraçãoEntende-se por via de penetração o trajeto pelo qual o agente introduz-se nonovo hospedeiro. A via de penetração oferece acesso a tecidos nos quais oagente pode multiplicar-se ou local onde a toxina, por ele produzida, pode agir.Freqüentemente, as vias de eliminação e de penetração são as mesmas. As viasmais importantes, como já salientamos, são:

• trato respiratório

• trato digestivo

• trato urinário

• pele, mucosas e secreções

Fatores do novo hospedeiro suscetívelO elo final da cadeia do processo infeccioso é o novo hospedeiro suscetível. Asuscetibilidade do hospedeiro depende de fatores genéticos, de imunidadeespecífica adquirida e de outros fatores que alteram a habilidade individual deresistir à infecção ou limitar a patogenicidade.

VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA

70

Page 15: Higiene & Prevenção

A compreensão dos fatores envolvidos na resposta do novo hospedeiro àinfecção importa no conhecimento de alguns conceitos que passaremos aapresentar:

• Suscetibilidade: situação de uma pessoa ou animal que se caracterizapela ausência de resistência suficiente contra um determinado agentepatogênico que a proteja da enfermidade na eventualidade de entrarem contato com esse agente.

• Resistência: conjunto de mecanismos específicos e inespecíficos doorganismo que servem de defesa contra a invasão ou multiplicação deagentes infecciosos, ou contra os efeitos nocivos de seus produtostóxicos. Os mecanismos específicos constituem a imunidade humorale os inespecíficos abrangem os desempenhados por vários mecanismos,entre eles: pele, mucosa, ácido gástrico, cílios do trato respiratório,reflexo da tosse, imunidade celular.

• Imunidade: resistência usualmente associada à presença de anticorposespecíficos (imunidade humoral) que têm o efeito de inibir microrga-nismos específicos ou suas toxinas responsáveis por doenças infecciosasparticulares. A imunidade pode apresentar-se de duas formas:

a. Imunidade ativa: imunidade adquirida naturalmente pela infecção,com ou sem manifestações clínicas, ou artificialmente pela inocu-lação de frações ou produtos de agentes infecciosos, ou do próprioagente morto modificado, ou de uma forma variante, na forma devacinas. A imunidade ativa natural ou artificialmente adquiridapode ser duradoura ou não, dependendo das características doagente e/ou vacina.

b. Imunidade passiva: imunidade adquirida naturalmente da mãeou artificialmente pela inoculação de anticorpos protetores espe-cíficos (soro imune de convalescentes ou imunoglobulina sérica).A imunidade passiva natural ou artificialmente adquirida é poucoduradoura.

Além dos acima citados, um importante aspecto para compreendermos osfatores envolvidos na resposta do novo hospedeiro à infecção são os mecanismosde ação patogênica dos agentes infecciosos ou de seus produtos. Os principaismecanismos encontrados são:

• Invasão direta dos tecidos: esse mecanismo é comum à grande varie-dade de parasitas e microrganismos patogênicos para o homem. Valecitar, entre eles: amebíase, giardíase, meningites bacterianas, arbovirosesresponsáveis por encefalites, etc.

A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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• Produção de toxina: algumas doenças infecciosas resultam primaria-mente da produção de toxinas, entre elas a difteria, o tétano e as infec-ções causadas pela Escherichia coli toxigênica. Em outras situações,como na infecção pelo Staphylococus aureus, com a invasão direta dostecidos pode ocorrer a produção de toxina, como acontece na síndro-me do choque tóxico.

• Reação alérgica ou imunológica exacerbada: em algumas situações asdoenças infecciosas resultam de mecanismos imunoalérgicos; entreelas, vale citar a tuberculose, a glomérulo-nefrite pós-infecção estrep-tocócica, o dengue hemorrágico, etc.

• Infecção latente ou persistente: infecções bacterianas crônicas ou per-sistentes ou infecções virais latentes constituem importante mecanismopatogênico de uma variedade de doenças infecciosas. Certas bactérias,em alguns casos, podem persistir assintomaticamente ou após a doen-ça na faringe (exemplos: Hemophilus influenzae, Neisseria meningiti-dis, etc.). Alguns vírus como herpes I e II, a varicela zoster, o vírus dosarampo na pan-encefalite subaguda esclerosante, entre vários outros,podem determinar infecções persistentes.

ALGUNS CONCEITOS BÁSICOS PARA ACOMPREENSÃO DO PROCESSO INFECCIOSO

Período prodrômicoÉ o período que abrange o intervalo entre os primeiros sintomas da doença eo início dos sinais ou sintomas que lhe são característicos e, portanto, com osquais o diagnóstico clínico pode ser estabelecido. Pródromos são os sintomasindicativos do início de uma doença.

Período de transmissibilidadePeríodo de transmissibilidade (ou período de contágio) é o intervalo de tempodurante o qual uma pessoa ou animal infectados eliminam um agente biológi-co para o meio ambiente ou para o organismo de um vetor hematófago, sendopossível, portanto, a sua transmissão a outro hospedeiro.

Imunidade de rebanhoVale notar que a cadeia do processo infeccioso pode ser interrompida quandoum agente não encontra um hospedeiro suscetível. Isso pode ocorrer quandoexistir na população uma elevada proporção de imunes ao agente.

Imunidade de rebanho ou imunidade coletiva é a resistência de um grupoou população à introdução e disseminação de um agente infeccioso. Conformeesquema apresentado na figura 24, essa resistência é baseada na elevada pro-porção de indivíduos imunes entre os membros desse grupo ou população ena uniforme distribuição desses indivíduos imunes.

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Figura 24Esquema da imunidade de rebanho

Fonte: Adaptado de Timmereck, T.C., 1994.

MEDIDAS GERAIS DE PROFILAXIA E CONTROLEAs principais medidas de profilaxia e controle são:

• Isolamento: segregação de um caso clínico do convívio das outras pessoasdurante o período de transmissibilidade, a fim de evitar que os suscetíveissejam infectados. Em certos casos, o isolamento pode ser domiciliar ouhospitalar; em geral, é preferível este último, por ser mais eficiente.

• Profilaxia: conjunto de medidas que têm por finalidade prevenir ouatenuar as doenças, suas complicações e conseqüências.

• Quarentena: isolamento de indivíduos ou animais sadios pelo perío-do máximo de incubação da doença, contado a partir da data do últi-mo contato com um caso clínico ou portador, ou da data em que essecomunicante sadio abandonou o local em que se encontrava a fontede infecção. Na prática, a quarentena é aplicada no caso das doençasquarentenárias.

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Caso índice

Disseminação de doença infecciosanuma comunidade com elevada

proporção de suscetíveis Comunidade protegida pela imunização

Suscetível ou infectado

Imune

Caso índice

Suscetível ou infectado

Imune

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• Quimioprofilaxia: administração de uma droga, inclusive antibióticos,para prevenir uma infecção ou a progressão de uma infecção commanifestações da doença.

• Tratamento profilático: tratamento de um caso clínico ou de um por-tador com a finalidade de reduzir o período de transmissibilidade.

• Vigilância sanitária: constitui a observação dos comunicantes duran-te o período máximo de incubação da doença, a partir da data do últi-mo contato com um caso clínico ou portador, ou da data em que ocomunicante abandonou o local em que se encontrava a fonte primá-ria da infecção.

CONTROLE, ELIMINAÇÃO E ERRADICAÇÃO DEDOENÇAS INFECCIOSASA incorporação dos conceitos de controle e de ações de controle de

doenças é muito importante para entendermos, mais à frente, a distinção entreas ações de controle e vigilância como instrumentos de saúde pública.

Podemos entender o termo controle, quando aplicado a doenças transmis-síveis, como a redução da incidência e/ou prevalência de determinada doen-ça por meio de diferentes tipos de intervenções, a níveis muito baixos, de for-ma que ela deixe de ser considerada um problema importante em saúdepública. No controle, aceita-se a convivência com determinadas doenças,porém em níveis toleráveis ao homem.

Alguns autores propõem um conceito mais amplo de “controle de doenças”,definindo-o como “uma série de esforços e intervenções integradas, dirigidasà população ou a subgrupos de alto risco nela existentes, visando prevenir,diagnosticar precocemente ou tratar um agravo à saúde, assim como limitaros danos por ele gerados”.

Segundo Evans (1985), existem três níveis biológicos de controle:

• o controle da doença clínica, das seqüelas e mortalidade a elaassociadas;

• o controle da infecção, quer ela se manifeste clinicamente oucomo infecção assintomática;

• o controle da presença do agente causal no ambiente e nafonte de infecção.

Salienta, também, que todos esses níveis devem ser atingidos antes que aerradicação seja possível.

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A erradicação é uma forma radical de controle que, de modo sucinto, podeser definido como a extinção, por métodos artificiais, do agente etiológico deum agravo, ou de seu vetor, sendo por conseqüência impossível sua reintro-dução e totalmente desnecessária a manutenção de quaisquer medidas deprevenção.

A erradicação é atingida quando não mais existir o risco de infecção oudoença, mesmo na ausência de vacinação ou qualquer outra medida de contro-le, sendo inclusive indicada a suspensão da vigilância.

Cumpre salientar que a erradicação é um objetivo raramente atingido – aerradicação da varíola é uma exceção e não uma regra em saúde pública.

Uma alternativa próxima à erradicação, porém mais viável, é a eliminaçãode uma doença, que é atingida quando se obtém a cessação da sua transmis-são em extensa área geográfica, persistindo, no entanto, o risco de sua rein-trodução, seja por falha na utilização dos instrumentos de vigilância ou con-trole, seja pela modificação do comportamento do agente ou vetor.

Um exemplo de eliminação é a do poliovírus selvagem nas Américas, ondedesde 1993 não ocorre um caso de poliomielite por transmissão autóctone, ain-da que tenha sido comprovada, por duas vezes, a reintrodução do poliovírusselvagem no Canadá após a certificação da eliminação.

Tanto na eliminação como no controle de doenças, é indispensável a manu-tenção regular e contínua, não só das medidas de intervenção pertinentes àprevenção e ao controle, mas também as da vigilância, visando à avaliação doimpacto das ações de controle ou de mudanças por diversas causas no compor-tamento das doenças ou de seus agentes etiológicos.

Finalmente, cabe conceituar ações de controle, que pode ser entendido como“a aplicação de um conjunto de medidas de intervenção visando ao controle”.

Sem entrar em detalhes, pois foge aos objetivos deste livro, pode-se dizer queos instrumentos utilizados para as ações de controle de eventos adversos à saú-de dependem do tipo da estrutura do serviço de saúde que as implementará.

São dois os tipos polares de organização de serviços de saúde. De um lado,os de estrutura denominada “vertical”, em que cada órgão desenvolve ativida-des voltadas ao controle de um único agravo ou de um número restrito dedoenças, cujas medidas de intervenção utilizem tecnologias idênticas ou muitosemelhantes. Neste caso, o instrumento utilizado são as campanhas.

O termo campanha surge no início do século e pode ser entendida como umaintervenção institucional temporária e localizada, planejada e centralizada, queparte da concepção de que é possível controlar problemas coletivos de saúde,sejam eles epidêmicos ou endêmicos, através de ações que interromperiam o pro-cesso de contaminação da coletividade pelo bloqueio da cadeia de transmissão.

A DINÂMICA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

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A outra alternativa é a estrutura “horizontal” dos serviços, que são organiza-dos de forma descentralizada e hierarquizada, com atribuição de implementarprogramas de saúde, isto é, voltados ao desenvolvimento regular de ações depromoção, prevenção, controle e recuperação da saúde.

DOENÇAS INFECCIOSAS EMERGENTESA morbi-mortalidade por doenças infecciosas apresentou no Brasil, no

correr das últimas décadas, uma nítida tendência de redução, principalmente àscustas da diminuição das doenças diarréicas, mas refletindo também o decrés-cimo da incidência das doenças preveníveis por vacinação.

Tal fenômeno, com algumas variações regionais, foi observado em todo omundo, mas não implicou, como era esperado, a retirada das doenças infeccio-sas da agenda de prioridades em saúde pública.

Tomando como referência os anos 80 e 90, podemos assinalar o surgimentode doenças até então desconhecidas, como é o caso da AIDS e da febre purpú-rica brasileira; o ressurgimento de doenças há décadas não identificadas emnosso país, como a cólera e o dengue; o recrudescimento da malária na Ama-zônia brasileira, etc.

Esses são alguns dos exemplos do que recentemente recebeu a denomina-ção doenças infecciosas emergentes e reemergentes, definidas como aquelassó recentemente identificadas na população humana ou já existentes, masque rapidamente aumentaram sua incidência e ampliaram sua distribuiçãogeográfica.

As doenças infecciosas emergentes e reemergentes, de uma maneira geral,estão associadas aos seguintes fatores:

• modelos de desenvolvimento econômico determinando alteraçõesambientais; migrações e processos de urbanização, etc.;

• aumento do intercâmbio internacional, que assume o papel de “vetorcultural” na disseminação das doenças infecciosas;

• incorporação de novas tecnologias médicas;

• ampliação do consumo de alimentos industrializados, especialmenteos de origem animal;

• desestruturação dos serviços de saúde e/ou desatualização das estraté-gias de controle de doenças;

• aprimoramento das técnicas de diagnóstico;

• processo de evolução de microrganismos.

As doenças infecciosas, por vários fatores, alguns deles relacionados aos deter-minantes das denominadas transição demográfica e transição epidemiológica

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(ver capítulo A epidemiologia na prática dos serviços de saúde na página 11),deixam de constituir um grupo de doenças associadas quase que exclusivamen-te à miséria, à fome, à falta de saneamento, às condições insuficientes de higie-ne e ao baixo nível de instrução, ou seja, doenças próprias da pobreza. A AIDS,o dengue e as bactérias resistentes a antimicrobianos e responsáveis pela eleva-da mortalidade por infecções hospitalares, são exemplos da modificação docomportamento das doenças infecciosas no mundo moderno.

Ao observarmos a figura 25 verificamos que, entre as doenças infecciosasemergentes ou reemergentes dos anos 90, estão, por um lado, o hantavírus, afebre de Lassa, o dengue e, por outro, a cólera, a coqueluche e a febre amarela –portanto, lado a lado, novos e velhos problemas de saúde pública.

Figura 25Doenças infecciosas emergentes e reemergentes dos anos 90

Fonte: Centers for Disease Control and Prevention.

Assim, quando tratamos atualmente das doenças emergentes e reemergen-tes, nada mais estamos fazendo do que abordar as doenças infecciosas sob umnovo enfoque, em que os principais instrumentos para o seu controle deixamde ser exclusivamente o saneamento, a melhoria das condições habitacionais ede educação.

Para enfrentarmos essa nova situação e para garantirmos um mínimo deauto-sustentação ao Sistema Nacional de Saúde, é indispensável que incorpo-remos os seguintes instrumentos às práticas de saúde pública:

• vigilância em saúde pública, no sentido de inteligência epidemiológi-ca, como instrumento de indução da pesquisa e de incorporação doconhecimento produzido (assunto do capítulo seguinte);

Coqueluche1993

Hantavirus1993 Hantrax

1993

Febre de Lessa1992

Febre amarela1993

Difteria1993

Dengue1993

Dengue1992

Cólera1991

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• pesquisa epidemiológica e de laboratório;

• serviços de saúde organizados de maneira a incorporarem regularmen-te, de forma ágil, novos conhecimentos e tecnologias indispensáveis àelaboração, avaliação e reformulação contínuas de estratégias de con-trole de doenças.

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