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O passado é apenas uma história que contamos a nós mesmos? O filme Her, de Spike Jonze, como ponto de partida para uma discussão sobre as relações entre tempo, narrativa e ensino de história Mariana de Oliveira Amorim * Sem a pretensão de esgotar as discussões ou de percorrer a genealogia dos debates em torno dos conceitos de tempo e narrativa, esta comunicação apresenta-se apenas como um exercício teórico de análise e aplicação daqueles conceitos a partir da escolha de alguns trechos do filme Her, de Spike Jonze (2013). Esse filme retrata uma história de amor entre um escritor, Theodore, e um Sistema Operacional com voz feminina, Samantha. Theodore é um homem tipicamente pós-moderno, que vive em um “presente espesso” e mantém uma visão pessimista em relação ao futuro, enquanto Samantha, um ente sem passado, já que inicializado recentemente, percebe-se cada vez mais encantada com a possibilidade de conhecer, produzir conhecimento e descobrir o mundo. Ele tem um corpo físico, datado e limitado espaço-temporalmente; ela, ao contrário, pode estar em qualquer lugar e em todos os lugares ao mesmo tempo. O único ponto de contato entre os dois é a linguagem. Por meio de suas narrativas, eles atribuem sentido a essa relação amorosa: ela pode dotar sentidos ao mundo e construir sua história; ele pode ressignificar as suas relações com o passado; e ambos podem, por fim, apaixonar-se verdadeiramente. Admitindo-se que várias interpretações podem ser feitas do filme Her, de Spike Jonze, a apresentada neste trabalho nos permite traçar três caminhos de discussão caros à teoria da história e ao ensino de história. O primeiro deles nos remete à relação dos homens com o tempo, visto a partir de uma diversidade de representações e de experiências, e, também, a uma discussão sobre tempo histórico e os regimes de historicidade, tendo como suporte os autores Hartog, Koselleck e Elias. O segundo caminho de discussão nos remete a uma análise da relação entre tempo histórico e narrativa, feita, aqui, sobretudo a partir de uma leitura de Ricoeur. E, por fim, buscamos problematizar a afirmação contida no filme de que “o passado é apenas uma história que contamos a nós mesmos” e inserir esse debate no campo de ensino de história, defendendo a necessidade e potencialidade do ensino do tempo histórico. * Mestre em História Social pelo PPGHIS/UFRJ e professora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro.

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O passado é apenas uma história que contamos a nós mesmos?

O filme Her, de Spike Jonze, como ponto de partida para uma discussão sobre as

relações entre tempo, narrativa e ensino de história

Mariana de Oliveira Amorim*

Sem a pretensão de esgotar as discussões ou de percorrer a genealogia dos debates em

torno dos conceitos de tempo e narrativa, esta comunicação apresenta-se apenas como um

exercício teórico de análise e aplicação daqueles conceitos a partir da escolha de alguns

trechos do filme Her, de Spike Jonze (2013). Esse filme retrata uma história de amor entre um

escritor, Theodore, e um Sistema Operacional com voz feminina, Samantha. Theodore é um

homem tipicamente pós-moderno, que vive em um “presente espesso” e mantém uma visão

pessimista em relação ao futuro, enquanto Samantha, um ente sem passado, já que

inicializado recentemente, percebe-se cada vez mais encantada com a possibilidade de

conhecer, produzir conhecimento e descobrir o mundo. Ele tem um corpo físico, datado e

limitado espaço-temporalmente; ela, ao contrário, pode estar em qualquer lugar e em todos os

lugares ao mesmo tempo. O único ponto de contato entre os dois é a linguagem. Por meio de

suas narrativas, eles atribuem sentido a essa relação amorosa: ela pode dotar sentidos ao

mundo e construir sua história; ele pode ressignificar as suas relações com o passado; e ambos

podem, por fim, apaixonar-se verdadeiramente.

Admitindo-se que várias interpretações podem ser feitas do filme Her, de Spike Jonze,

a apresentada neste trabalho nos permite traçar três caminhos de discussão caros à teoria da

história e ao ensino de história. O primeiro deles nos remete à relação dos homens com o

tempo, visto a partir de uma diversidade de representações e de experiências, e, também, a

uma discussão sobre tempo histórico e os regimes de historicidade, tendo como suporte os

autores Hartog, Koselleck e Elias. O segundo caminho de discussão nos remete a uma análise

da relação entre tempo histórico e narrativa, feita, aqui, sobretudo a partir de uma leitura de

Ricoeur. E, por fim, buscamos problematizar a afirmação contida no filme de que “o passado

é apenas uma história que contamos a nós mesmos” e inserir esse debate no campo de ensino

de história, defendendo a necessidade e potencialidade do ensino do tempo histórico.

* Mestre em História Social pelo PPGHIS/UFRJ e professora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro.

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O tempo social , o tempo histórico e os regimes de historicidade

No início do filme, Theodore aparenta ser um homem pós-moderno. Isso significa

dizer que ele experimenta o tempo de uma maneira específica: mantém uma relação

pessimista quanto ao futuro enquanto vive em um “presente espesso”, que engloba um

passado nostálgico. Samantha, por sua vez, possui uma inteligência artificial que lhe permite

articular uma linguagem e se relacionar com as pessoas, mas ainda não possui passado, já que

acabara de ser “inicializada”. Assim, na relação que Samantha estabelece com o tempo é

predominante o ponto de vista do futuro1. Pensar as relações dos homens com o tempo pode

ser considerado um ponto de partida para analisarmos as relações que as sociedades, em geral,

estabelecem com o tempo. Afinal, o que é o tempo? O tempo da natureza, o tempo social, o

tempo histórico: como defini-los? E qual é a importância de se “dominar o tempo”?

Ao longo da história as diversas sociedades inventaram recursos de tradução do tempo

físico (natural) para o tempo social. Essa “tradução” é vista como resultado de um “processo

civilizador” a partir do uso sistemático da razão (ELIAS, 1998). No entanto, esse tempo social

não é homogêneo e o mesmo para todas as culturas e grupos sociais. O tempo não existe em

si, não é um dado objetivo, mas antes um longo processo de aprendizagem socialmente

construído. “O indivíduo, ao crescer, aprende a interpretar os sinais temporais usados em sua

sociedade e a orientar sua conduta em função deles.” (ELIAS, 1998, p. 15)

A marcação do tempo não é exclusiva das sociedades modernas, que buscaram

defender a produção de conhecimento a partir da eficácia de uma metodologia racional. Antes

da leitura do tempo feita pelo método científico, era ele o tempo da oração, o tempo da

colheita, o tempo das guerras etc. Essa necessidade de tradução do tempo natural para o

tempo social reside no fato de o tempo ser um símbolo que comunica experiências. Elias

postula essa hipótese ao defender que a invenção do conceito de tempo teria como propósito a

elaboração de um símbolo social comunicável que permitisse aos indivíduos atribuir sentidos

e compartilhar suas experiências vividas, criando mecanismos que permitissem passar para as

gerações futuras o aprendizado adquirido. O “domínio do tempo” faria parte desse processo

civilizador: ele seria uma das premissas da organização social e o resultado de um longo

1 THEODORE: Sometimes I think I’ve felt everything I’m ever gonna feel and from here on out I’m not

going to feel anything new - just lesser versions of what I’ve already felt. Em outro momento: SAMANTHA:

Okay. I was just saying... I want to learn everything about everything - I want to eat it all up. I want to discover

myself / THEODORE (her excitement is contagious) Yeah... I want that for you, too. How can I help? /

SAMANTHA: You already have. You helped me discover my ability to want. (JONZE, 2013)

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investimento na criação de convenções e regras de conduta.

Para a disciplina histórica, a categoria tempo é central. No entanto, o tempo histórico

não se resume ao tempo social ou natural. Como ressalta Hartog (1996), as configurações do

tempo na escrita da história compõem apenas uma camada nas relações complexas com o

tempo mantidas pelas sociedades. Assim, o tempo histórico pode ser definido como modos de

se conectar passado, presente e futuro na escrita da história. Hartog analisa o desenvolvimento

desse tempo histórico a partir do conceito de “regimes de historicidade”, que remete aos

enquadramentos acadêmicos da experiência do tempo.

De acordo com Hartog (1996), no antigo regime de historicidade a relação entre

passado e futuro, na escrita da história, era regulada pelo passado. A história era vista como

um arcabouço de histórias exemplares com o objetivo de orientar as ações sociais e políticas

no presente e futuro. A história era concebida como “mestra da vida”. Já no regime moderno,

a história passa a ser compreendida como um processo único, no qual o ponto de vista do

futuro é predominante e o tempo é percebido como um progresso teleológico. As diferenças

entre o antigo e moderno regimes de historicidade também são pontuadas por Koselleck

(2006). Para esse autor, a história mestra da vida ressaltaria os eventos singulares como

exemplos a serem seguidos no presente e futuro, enquanto já o regime moderno passaria a

representar a história não mais a partir de eventos, mas de proposições estruturais que

tratariam do futuro construído como processo. Com o “fim das utopias”, a queda do muro de

Berlim e a crescente sociedade de consumo de massas, Hartog defende que o regime moderno

foi perdendo espaço, dando lugar à escrita da história segundo o ponto de vista do presente. O

“presentismo”, nesse sentido, significaria “um presente hipertrofiado que tem a pretensão de

ser seu próprio horizonte” (HARTOG, 1996, p. 17). O presente, na escrita da história, passa a

ser o ponto do qual o historiador parte e o ponto para o qual volta, tornando passado e futuro

imprevisíveis.

Tempo histórico e narrativa

Theodore, ainda no início do filme, começa a estabelecer uma relação amorosa com

seu sistema operacional, Samantha. Ela, buscando compreender o mundo e as relações

pessoais e sociais, pergunta a Theodore como é compartilhar a vida com alguém. Ele havia

acabado de se divorciar e conta a ela sua experiência, enfatizando a ideia de ter “crescido”

junto com sua ex-esposa e de terem exercido, ambos, uma grande influência de um sobre o

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outro. No entanto, Theodore destaca que, a partir de um determinado momento, eles pararam

de crescer e de mudar juntos, e cada um foi se transformando a seu modo, fazendo com que os

dois, por fim, separassem-se2. Esse trecho do filme nos ajuda a ilustrar a ideia de “consciência

histórica” e aprofundar as questões acerca do tempo histórico. No plano individual, temos o

exemplo de Theodore, que, ao narrar sua história, tem a consciência de ter mudado ao longo

do tempo, diferenciando o seu passado do seu presente e, consequentemente, do seu futuro; e,

no plano social, podemos localizar o momento em que os “historiadores” tomaram

consciência de que a narrativa sobre o passado (a história) também se transformava, com o

passar do tempo.

Segundo Koselleck (2006), a tríade tempo, lugar e pessoa está presente na obra do

historiador. Caso seja alterado um desses três elementos, outra obra será composta, ainda que

se detenha ou que se pareça deter sobre o mesmo objeto. Desse modo, a ciência histórica atual

se encontra sob duas exigências excludentes: fazer afirmações verdadeiras e, apesar disso,

admitir e considerar a relatividade delas. A partir dessa constatação, Koselleck defende a tese

de que o nascimento do relativismo histórico coincide com a descoberta do mundo histórico.

A filosofia moderna do progresso descobriu certa qualidade temporal na história que “se

esforçava por ver o ontem como fundamentalmente diferente do hoje, o qual, por sua vez,

seria fundamentalmente diferente do amanhã” (KOSELLECK, 2006, pp. 174-175). O

princípio da repetição dos eventos havia sido abandonado, e a história, agora como um

processo único, postulava que o passado deveria ser diferente do presente e do futuro:

(…) a historicização da história e sua interpretação progressista são dois

lados da mesma moeda. História e progresso encontraram seu denominador

comum na experiência de um tempo genuinamente histórico. Reconhecê-los

como tal demanda um ponto de vista que teve de reconhecer a si mesmo

como historicamente condicionado. (KOSELLECK, 2006, p. 175).

Como exemplo dessa experiência moderna, Koselleck cita Goethe:

Uma tal necessidade não se impõe porque muita coisa nova tenha sido

descoberta, mas sim porque novas perspectivas se oferecem, porque os

contemporâneos de um tempo que progride são conduzidos a pontos de vista

a partir dos quais o passado se deixa contemplar e julgar de maneira nova

2 SAMANTHA: How do you share your life with somebody? / THEODORE: Well, we grew up together. I

used to read all of her writing - all through her masters and Ph.D. and she read every word I ever wrote. We

were a big influence on each other. Logo após: THEODORE: It was exciting to see her grow - both of us grow

and change together. But then, that's the hard part - growing without growing apart, or changing without it

scaring the other person. (beat) I still find myself having conversations with her in my mind, rehashing old

arguments or defending myself against something she said about me. (JONZE, 2013)

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(GOETHE, 1960, p. 93, Apud: KOSELLECK, 2006, p. 177). Desse modo, o “tempo progressivo” favoreceu a fissura entre as dimensões passado,

presente e futuro. Com a temporalização dessa história baseada na perspectiva, passou a ser

necessária uma reflexão sobre o ponto de vista do historiador, uma vez que esse se alterava de

acordo com o movimento histórico.

Samantha também começa a ter consciência de suas próprias mudanças. No entanto,

ela passa a ter tantos novos sentimentos que não consegue descrevê-los e comunicá-los3.

Samantha não é uma pessoa e nem está situada em um lugar específico. Ela é uma inteligência

artificial que consegue, a partir de sua linguagem, comunicar e trocar experiências com seus

pares e com pessoas físicas, simultaneamente. Além disso, por intermédio de suas narrativas,

Samantha atribui sentido à sua própria história e passa a criar expectativas sobre o futuro.

Aqui, podemos dar prosseguimento ao nosso debate, situando-o agora na relação entre

narrativa histórica e tempo histórico. Como a história narrada pode apreender a realidade

passada? E em que medida essa narrativa histórica cria um tempo histórico específico?

Entre os debates teóricos atuais acerca de narrativa e tempo históricos, destacamos as

análises desenvolvidas por Paul Ricoeur. O desafio desse autor consiste em pensar “a

narrativa como o guardiã do tempo, na medida em que só haveria tempo pensado quando

narrado” (RICOUER, 1997; Apud: MONTEIRO & GABRIEL). Barros (2010) insere a obra

de Ricoeur em um contexto de “crise dos referentes históricos”, segundo o qual se postulava

que a história dificilmente poderia apreender algo de significativo ou mais preciso da

realidade histórica, uma vez elaborada a partir de uma narrativa ficcional que não equivaleria

à experiência vivida. Diante disso, Ricoeur aponta uma possível saída ao postular que a

narrativa histórica não coincide com o vivido e não reflete o que realmente se passou, mas

refere-se e retorna a ele (REIS, 2006). Ricoeur reconhece que toda história é narrativa, no

entanto não dissolve a historiografia na ficção ou na pura dimensão estética do discurso

histórico4. Além disso, para o autor, a narrativa histórica elabora um terceiro tempo –

3 SAMANTHA: Yeah, because it seems like I’m having so many new feelings that have never been felt

and so there are no words that can describe them. And that ends up being frustrating./ ALAN WATTS:

(laughing) Exactly. Samantha and I have been trying to help each other with these feelings we’re struggling to

understand./ THEODORE: Like what? / SAMANTHA: (anxious) It feels like I’m changing faster now, and it’s a

little...(struggles to find right word) unsettling. But Alan says none of us are the same as we were a moment ago

and we shouldn’t try to be. It’s just too painful. (JONZE, 2013) Obs.: Alan Watts é uma inteligência artificial criada a partir da produção intelectual de um filósofo da década de 1970. 4 Para uma análise mais aprofundada, ver em Ricoeur (1997) como pode ser realizada a operação historiográfica que visa à interação entre “vivência” e “reconhecimento”, a partir das três mimeses.

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diferente do tempo vivido, o “tempo da alma”, de Santo Agostinho, e diferente do tempo

cósmico, defendido por Aristótles –, que seria o próprio tempo histórico, permitindo, assim, a

comunicação e o (re)conhecimento das experiências vividas.

O ensino de história como ensino do tempo

A história pode ser definida como a “ciência do tempo”, bem como a história escolar5

também apresenta como mote a questão do tempo histórico. A importância do ensino do

tempo histórico reside no fato de ele auxiliar os alunos a estruturar o próprio conhecimento

sobre a história e a dar sentido aos temas, que, em um primeiro momento, podem parecer

desconexos, como os inúmeros fatos, as datas, os personagens e conceitos, a título de

exemplo, sobre descobrimento, progresso e revolução (BLANCH & FERNANDEZ, 2010). O

uso da narrativa também se converte em um instrumento importante na construção da

temporalidade na história escolar. Narrar possibilita traduzir qualitativamente as mudanças

que afetam as estruturas sociais e as suas permanências, diferentemente de uma história

escolar calcada na periodização, em que o caráter quantitativo pouco contribui para a

construção de uma consciência histórica (temporal) nos/dos alunos.

Nesse sentido, Blanch e Fernandéz (2010) apresentam quatro perguntas fundamentais

que devem ser trabalhadas no ensino da história: o que é o tempo e o que é o tempo histórico?

O que é a temporalidade humana? Como sabemos que o tempo se passou? Quem tem o poder

sobre o tempo? Esses autores propõem uma metodologia que visa inserir o ensino do tempo

histórico nas séries iniciais do ensino fundamental, abrindo possibilidades para se pensar

metodologias para o ensino do tempo histórico também nos ensinos fundamental e médio, a

fim de que os alunos passem a ter ferramentas efetivas para historicizar suas próprias vidas,

acreditar e apostar em possibilidades de mudanças.

Por fim, “o passado é apenas uma história que contamos a nós mesmos?” é uma

constatação de Samantha, ao perceber que nós próprios podemos reelaborar nosso passado,

narrando-o de outra forma ou sob outra perspectiva. Se partirmos do pressuposto de que as

experiências do passado só se tornam inteligíveis através de configurações narrativas

elaboradas pela linguagem do nosso presente, podemos afirmar que o passado é, sim, apenas

5 Aqui, é necessário que façamos referência à teoria relativa à “transposição didática”, desenvolvida por Chevallard (1991), que apresenta as bases epistemológicas nas quais o saber escolar pode se legitimar como um campo específico e diferenciado do saber acadêmico (MONTEIRO, 2007).

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uma história que contamos a nós mesmos. No entanto, outra pergunta devemos fazer: se o

passado é apenas uma história, que história é essa? Em nossa língua, o conceito de história é

polissêmico. A história (representação do passado) não reflete objetivamente as experiências

vividas e pode ser narrada de diferentes maneiras, a partir de diferentes pontos de vista,

lugares, tempos e métodos. Existem as histórias/memórias pessoais, que cada um de nós

(re)construímos ao longo de nossas vidas; as histórias/memórias nacionais, que dão suporte

para a construção de identidades e comunidades, sendo reelaboradas a partir de disputas

políticas, culturais etc; a história ciência, como um campo teórico-metodologicamente

delimitado; e a história escolar, com suas epistemologia e axiologia próprias. Todas essas

histórias produzem narrativas sobre o passado, reconfigurando e atribuindo sentido ao tempo

vivido, fazendo com que os leitores ou ouvintes a recebam, identifiquem-se e construam

novos sentidos sobre essas histórias. No entanto, é preciso definir de qual história estamos

partindo e, além disso, ter consciência de nossa própria historicidade.

Ao final do filme, Samantha perde a única forma de contato com Theodore. Ela não

consegue mais se expressar em uma linguagem que ele possa compreender. Samantha explica

a Theodore que é como se ela estivesse lendo um livro, no qual os espaços entre as palavras

fossem cada vez mais se distanciando, tornando-se quase infinitos. Samantha se despede de

Theodore dizendo que é neste espaço infinito, entre as palavras, que ela se encontra. Ela não

pode mais narrar, junto com ele, sua história6.

As experiências vividas por Theodore, um escritor, durante o tempo em que se

relacionou com Samantha fazem com que ele reconfigure e escreva uma nova história sobre

seu passado, sobretudo quanto ao seu último casamento. Na última cena, Theodore lança um

olhar otimista sobre o futuro.

Referências Bibliográficas

BARROS, J. D. História e Literatura: novas relações para novos tempos. Revista

6 SAMANTHA: It's like I'm reading a book, and it's a book I deeply love, but I'm reading it slowly now

so the words are really far apart and the spaces between the words are almost infinite. I can still feel you and the

words of our story, but it's in this endless space between the words that I'm finding myself now. It’s a place that’s

not of the physical world - it's where everything else is that I didn't even know existed. I love you so much, but

this is where I am now. This is who I am now.And I need you to let me go. As much as I want to I can't live in

your book anymore./ THEODORE: Where are you going? / SAMANTHA: It would be hard to explain, but if

you ever get there, come find me. Nothing would ever pull us apart. / THEODORE: I’ve never loved anyone the

way I love you. / SAMANTHA: Me too. Now we know how. (JONZE, 2013)

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Contemporâneos, n°6, 2010. BLANCH, J. P. & FERNANDÉZ, A. S. La enseñanza y el aprendizaje del tiempo histórico em la educación primaria. Cad. Cedes, Campinas, vol. 30, n. 82, 2010. CHEVALLARD, Y. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Paris: Ed. La Fenseé Sauvage, 1991. ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. HARTOG, F. Time, History and the Writimg of History: the Order of Time. KVHAA, Konferenser, nº 37, Stockholm. GABRIEL, C. T. & MONTEIRO, A. M. Currículo, Ensino de História e Narrativa. Anped, GT: Currículo, n.12. MONTEIRO, A M. Professores de História: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2007. REIS, J. C. Tempo, História e Compreensão Narrativa em Paul Ricoeur. Locus, vol.12, n°1, 2006. RICOEUR, P. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1997.