helena - machado de assis

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Helena Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. I, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em folhetins, a partir de 06/08/1876, em O Globo. ADVERTÊNCIA Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876. Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo. M. de A. CAPÍTULO PRIMEIRO O Conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, — segundo costumava dizer, — e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr. Camargo, chamado à pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência; o Padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da religião: a morte fora instantânea. No dia seguinte fez-se o enterro, que foi um dos mais concorridos que ainda viram os moradores do Andaraí. Cerca de duzentas pessoas acompanharam o finado até à morada última, achando-se

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  • Helena

    Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. I,

    Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

    Publicado originalmente em folhetins, a partir de 06/08/1876, em O Globo.

    ADVERTNCIA

    Esta nova edio de Helena sai com vrias emendas de linguagem e outras, que no alteram a feio do livro. Ele o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo assim ao captulo da histria do meu esprito, naquele ano de 1876.

    No me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que ento fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que h tanto me fui a outras e diferentes pginas, ouo um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e f ingnua. claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feio passada; cada obra pertence ao seu tempo.

    M. de A.

    CAPTULO PRIMEIRO

    O Conselheiro Vale morreu s 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, segundo costumava dizer, e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr. Camargo, chamado pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos da cincia; o Padre Melchior no pde dar-lhe as consolaes da religio: a morte fora instantnea.

    No dia seguinte fez-se o enterro, que foi um dos mais concorridos que ainda viram os moradores do Andara. Cerca de duzentas pessoas acompanharam o finado at morada ltima, achando-se

  • representadas entre elas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto no figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relaes adquiridas, cabedais, educao e tradies de famlia. Seu pai fora magistrado no tempo colonial, e figura de certa influncia na corte do ltimo vice-rei. Pelo lado materno descendia de uma das mais distintas famlias paulistas. Ele prprio exercera dois empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do que lhe adveio a carta de conselho e a estima dos homens pblicos. Sem embargo do ardor poltico do tempo, no estava ligado a nenhum dos dois partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que ali se acharam na ocasio de o dar sepultura. Tinha, entretanto, tais ou quais idias polticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e liberais, justamente no ponto em que os dois domnios podem confundir-se. Se nenhuma saudade partidria lhe deitou a ltima p de terra, matrona houve, e no s uma, que viu ir a enterrar com ele a melhor pgina da sua mocidade.

    A famlia do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr. Estcio, e uma irm, D. rsula. Contava esta cinqenta e poucos anos; era solteira; vivera sempre com o irmo, cuja casa dirigia desde o falecimento da cunhada. Estcio tinha vinte e sete anos, e era formado em matemticas. O conselheiro tentara encarreir-lo na poltica, depois na diplomacia; mas nenhum desses projetos teve comeo de execuo.

    O Dr. Camargo, mdico e velho amigo da casa, logo que regressou do enterro, foi ter com Estcio, a quem encontrou no gabinete particular do finado, em companhia de D. rsula. Tambm a dor tem suas volpias; tia e sobrinho queriam nutri-la com a presena dos objetos pessoais do morto, no lugar de suas predilees quotidianas. Duas tristes luzes alumiavam aquela pequena sala. Alguns momentos correram de profundo silncio entre os trs. O primeiro que o rompeu, foi o mdico.

    Seu pai deixou testamento?

    No sei, respondeu Estcio.

    Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou trs vezes, gesto que lhe era habitual quando fazia alguma reflexo.

    preciso procur-lo, continuou ele. Quer que o ajude?

    Estcio apertou-lhe afetuosamente a mo.

    A morte de meu pai, disse o moo, no alterou nada as nossas relaes. Subsiste a confiana anterior, do mesmo modo que a amizade, j provada e antiga.

    A secretria estava fechada; Estcio deu a chave ao mdico; este abriu o mvel sem nenhuma comoo exterior. Interiormente estava abalado. O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade,

  • expresso em que, alis, nenhum dos outros reparou. Logo que comeou a revolver os papis, a mo do mdico tornou-se mais febril. Quando achou o testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que sucedeu a serenidade habitual.

    isso? perguntou Estcio.

    Camargo no respondeu logo; olhou para o papel, como a querer adivinhar o contedo. O silncio foi muito demorado para no fazer impresso no moo, que alis nada disse, porque o atribura comoo natural do amigo em to dolorosas circunstncias. Sabem o que estar aqui dentro? Disse enfim Camargo. Talvez uma lacuna ou um grande excesso. Nem Estcio, nem D. rsula, pediram ao mdico a explicao de semelhantes palavras. A curiosidade, porm, era natural, e o mdico pde l-la nos olhos de ambos. No lhes disse nada; entregou o testamento a Estcio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido em suas prprias reflexes, ora arranjando maquinalmente um livro da estante, ora metendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista queda, alheio de todo ao lugar e s pessoas.

    Estcio rompeu o silncio:

    Mas que lacuna ou que excesso esse? perguntou ao mdico.

    Camargo parou diante do moo.

    No posso dizer nada, respondeu ele. Seria inconveniente, antes de saber as ltimas disposies de seu pai.

    D. rsula foi menos discreta que o sobrinho; aps longa pausa, pediu ao mdico a razo de suas palavras.

    Seu irmo, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excelentes. Era seu amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem a confiana que ambos depositvamos um no outro. No quisera, pois, que o ltimo ato de sua vida fosse um erro.

    Um erro! exclamou D. rsula.

    Talvez um erro! suspirou Camargo.

    Mas, doutor, insistiu D. rsula, por que motivo nos no tranqiliza o esprito? Estou certa de que no se trata de um ato que desdoure meu irmo; alude naturalmente a algum erro no modo de entender... alguma coisa, que eu ignoro o que seja. Por que no fala claramente?

    O mdico viu que D. rsula tinha razo; e que, a no dizer mais nada, melhor fora ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impresso de

  • estranheza que deixara no nimo dos dois; mas da hesitao com que falava, concluiu Estcio que ele no podia ir alm do que havia dito.

    No precisamos de explicao nenhuma, interveio o filho do conselheiro; amanh saberemos tudo.

    Nessa ocasio entrou o Padre Melchior. O mdico saiu s 10 horas, ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estcio, recolhendo-se ao seu quarto, murmurava consigo:

    Que erro ser esse? E que necessidade tinha ele de vir lanar-me este enigma no corao?

    A resposta, se pudesse ouvi-la, era dada nessa mesma ocasio pelo prprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava porta:

    Fiz bem em preparar-lhes o esprito, pensou ele; o golpe, se o houver, h de ser mais fcil de sofrer.

    O mdico ia s; alm disso, era noite, como sabemos. Ningum pde ver-lhe a expresso do rosto, que era fechada e meditativa. Exumou o passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu, nada foi comunicado a ouvidos estranhos.

    As relaes do Dr. Camargo com a famlia do conselheiro eram estreitas e antigas, como dissera Estcio. O mdico e o conselheiro tinham a mesma idade; cinqenta e quatro anos. Conheceram-se logo depois de tomado o grau, e nunca mais afrouxara o lao que os prendera desde esse tempo.

    Camargo era pouco simptico primeira vista. Tinha as feies duras e frias, os olhos perscrutadores e sagazes, de uma sagacidade incmoda para quem encarava com eles, o que o no fazia atraente. Falava pouco e seco. Seus sentimentos no vinham flor do rosto. Tinha todos os visveis sinais de um grande egosta; contudo, posto que a morte do conselheiro no lhe arrancasse uma lgrima ou uma palavra de tristeza, certo que a sentiu deveras. Alm disso, amava sobre todas as coisas e pessoas uma criatura linda, a linda Eugnia, como lhe chamava, sua filha nica e a flor de seus olhos; mas amava-a de um amor calado e recndito. Era difcil saber se Camargo professava algumas opinies polticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se as tinha, nunca deu manifestao prtica; e no meio das lutas de que fora cheio o decnio anterior, conservara-se indiferente e neutral. Quanto aos sentimentos religiosos, a aferi-los pelas aes, ningum os possua mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom catlico. Mas s pontual; interiormente, era incrdulo.

    Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher, D. Tomsia, meio adormecida numa cadeira de balano e Eugnia ao piano, executando um trecho de Bellini. Eugnia tocava com habilidade; e Camargo gostava de a ouvir. Naquela ocasio, porm,

  • disse ele, parecia pouco conveniente que a moa se entregasse a um gnero de recreio qualquer. Eugnia obedeceu, algum tanto de m vontade. O pai, que se achava ao p do piano, pegou lhe nas mos, logo que ela se levantou, e fitou-lhe uns olhos amorosos e profundos, como ela nunca lhe vira.

    No fiquei triste pelo que me disse, papai, observou a moa. Tocava por distrar-me. D. rsula como est? Ficou to aflita! Mame queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que no podia ver a tristeza daquela casa.

    Mas a tristeza necessria vida, acudiu D. Tomsia, que abrira os olhos logo entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as prprias, e so um corretivo da alegria, cujo excesso pode engendrar o orgulho.

    Camargo temperou esta filosofia, que lhe pareceu demasiado austera, com algumas idias mais acomodadas e risonhas.

    Deixemos a cada idade a sua atmosfera prpria, concluiu ele, e no antecipemos a da reflexo, que tornar infelizes os que ainda no passaram do puro sentimento.

    Eugnia no compreendeu o que os dois haviam dito. Voltou os olhos para o piano, com uma expresso de saudade. Com a mo esquerda, assim mesmo de p, extraiu vagamente trs ou quatro notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fit-la com desusada ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiao interior. A moa sentiu-se enlaada nos braos dele; deixou-se ir. Mas a expanso era to nova, que ela ficou assustada e perguntou com voz trmula:

    Aconteceu l alguma coisa?

    Absolutamente nada, respondeu Camargo, dando-lhe um beijo na testa.

    Era o primeiro beijo, ao menos o primeiro de que a moa tinha memria. A carcia encheu-a de orgulho filial; mas a prpria novidade dela impressionou-a mais. Eugnia no creu no que lhe dissera o pai. Viu-o ir sentar-se ao p de D. Tomsia e conversarem em voz baixa. Aproximando-se, no interrompeu a conversa, que eles continuaram no mesmo tom, e versava sobre assuntos puramente domsticos. Percebeu-o; contudo, no ficou tranqila. Na manh seguinte escreveu um bilhete, que foi logo caminho de Andara. A resposta, que lhe chegou s mos no momento em que provava um vestido novo, teve a cortesia de esperar que ela terminasse a operao. Lida finalmente, dissipou todos os receios da vspera.

  • CAPTULO II

    No dia seguinte, foi aberto o testamento com todas as formalidades legais. O conselheiro nomeava testamenteiros Estcio, o Dr. Camargo e o Padre Melchior. As disposies gerais nada tinham que fosse notvel: eram legados pios ou beneficentes, lembranas a amigos, dotes a afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes.

    Uma disposio havia, porm, verdadeiramente importante. O conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena, havida com D. ngela da Soledade. Esta menina estava sendo educada em um colgio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de seus bens, e devia ir viver com a famlia, a quem o conselheiro instantemente pedia que a tratasse com desvelo e carinho, como se de seu matrimnio fosse.

    A leitura desta disposio causou natural espanto irm e ao filho do finado. D. rsula nunca soubera de tal filha. Quanto a Estcio, ignorava menos que a tia. Ouvira uma vez falar em uma filha de seu pai; mas to vagamente que no podia esperar aquela disposio testamentria.

    Ao espanto sucedeu em ambos outra e diferente impresso. D.rsula reprovou de todo o ato do conselheiro. Parecia-lhe que, a despeito dos impulsos naturais e licenas jurdicas, o reconhecimento de Helena era um ato de usurpao e um pssimo exemplo. A nova filha era, no seu entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinho da herana e deix-la porta. Receb-la, porm, no seio da famlia e de seus castos afetos, legitim-la aos olhos da sociedade, como ela estava aos da lei, no o entendia D.rsula, nem lhe parecia que algum pudesse entend-lo. A aspereza destes sentimentos tornou-se ainda maior quando lhe ocorreu a origem possvel de Helena. Nada constava da me, alm do nome; mas essa mulher quem era? em que atalho sombrio da vida a encontrara o conselheiro? Helena seria filha de um encontro fortuito, ou nasceria de algum afeto irregular embora, mas verdadeiro e nico? A estas interrogaes no podia responder D. rsula; bastava, porm, que lhe surgissem no esprito, para lanar nele o tdio e a irritao.

    D. rsula era eminentemente severa a respeito de costumes. A vida do conselheiro, marchetada de aventuras galantes, estava longe de ser uma pgina de catecismo; mas o ato final bem podia ser a reparao de leviandades amargas. Essa atenuante no a viu D. rsula. Para ela, o principal era a entrada de uma pessoa estranha na famlia.

    A impresso de Estcio foi muito outra. Ele percebera a m vontade com que a tia recebera a notcia do reconhecimento de Helena, e no podia negar a si mesmo que semelhante fato criava para a famlia uma nova situao. Contudo, qualquer que ela fosse, uma vez que seu pai assim o ordenava, levado por sentimentos de eqidade ou impulsos da natureza, ele a aceitava tal qual, sem pesar nem reserva. A questo

  • pecuniria pesou menos que tudo no esprito do moo; no pesou nada. A ocasio era dolorosa demais para dar entrada a consideraes de ordem inferior, e a elevao dos sentimentos de Estcio no lhe permitia inspirar-se delas. Quanto camada social a que pertencia a me de Helena, no se preocupou muito com isso, certo de que eles saberiam levantar a filha at classe a que ela ia subir.

    No meio das reflexes produzidas pela disposio testamentria do conselheiro, ocorreu a Estcio a conversa que tivera com o Dr. Camargo. Provavelmente era aquele o ponto a que aludira o mdico. Interrogado acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o filho do conselheiro:

    Aconteceu o que eu previa, um erro, disse ele. No houve lacuna, mas excesso. O reconhecimento dessa filha um excesso de ternura, muito bonito, mas pouco prtico. Um legado era suficiente; nada mais. A estrita justia...

    A estrita justia a vontade de meu pai, redargiu Estcio.

    Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia s-lo custa de direitos alheios.

    Os meus? No os alego.

    Se os alegasse seria pouco digno da memria dele. O que est feito, est feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa famlia e afetos de famlia. Persuado-me de que ela saber corresponder-lhes com verdadeira dedicao...

    Conhece-a? inquiriu Estcio, cravando no mdico uns olhos impacientes de curiosidade.

    Vi-a trs ou quatro vezes, disse este no fim de alguns segundos; mas era ento muito criana. Seu pai falava-me dela como de pessoa extremamente afetuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem olhos de pai.

    Estcio desejara ainda saber alguma coisa acerca da me de Helena, mas repugnou-lhe entrar em novas indagaes, e tentou encarreirar a conversa para outro assunto. Camargo, entretanto, insistiu:

    O conselheiro falou-me algumas vezes no projeto de reconhecer Helena; procurei dissuadi-lo, mas sabe como era teimoso, acrescendo neste caso o natural impulso de amor paterno. O nosso ponto de vista era diferente. No me tenho por homem mau; contudo, entendo que a sensibilidade no pode usurpar o que pertence razo.

    Camargo proferiu estas palavras no tom seco e sentencioso que to natural e sem esforo lhe saa. A velha amizade dele e do finado era sabida de todos; a inteno com que falava podia ser hostil famlia?

  • Estcio refletiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir ao mdico, curta reflexo que por nenhum modo lhe abalou a opinio j assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos como o esprito que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor.

    No quero saber, disse ele, se h excesso na disposio testamentria de meu pai. Se o h, legtimo, justificvel pelo menos; ele sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa irm, como se fora criada comigo. Minha me faria com certeza a mesma coisa.

    Camargo no insistiu. Sobre ser esforo baldado dissuadir o moo daqueles sentimentos, que aproveitava j agora discutir e condenar teoricamente a resoluo do conselheiro? Melhor era execut-la lealmente, sem hesitao nem pesar. Isso mesmo declarou ele a Estcio, que o abraou cordialmente. O mdico recebeu o abrao sem constrangimento, mas sem fervor.

    Estcio ficara satisfeito consigo mesmo. Seu carter vinha mais diretamente da me que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a nica paixo forte que realmente teve, a das mulheres, no lhe acharemos nenhuma outra saliente feio. A fidelidade aos amigos era antes resultado do costume que da consistncia dos afetos. A vida correu-lhe sem crises nem contrastes; nunca achou ocasio de experimentar a prpria tmpera. Se a achasse, mostraria que a tinha mediana.

    A me de Estcio era diferente; possura em alto grau a paixo, a ternura, a vontade, uma grande elevao de sentimentos, com seus toques de orgulho, daquele orgulho que apenas irradiao da conscincia. Vinculada a um homem que, sem embargo do afeto que lhe tinha, despendia o corao em amores adventcios e passageiros, teve a fora de vontade necessria para dominar a paixo e encerrar em si mesma todo o ressentimento. As mulheres que so apenas mulheres, choram, arrufam-se ou resignam-se; as que tm alguma coisa mais do que a debilidade feminina, lutam ou recolhem-se dignidade do silncio. Aquela padecia, certo, mas a elevao de sua alma no lhe permitia outra coisa mais do que um procedimento altivo e calado. Ao mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial de sua organizao, concentrou-a toda naquele nico filho, em quem parecia adivinhar o herdeiro de suas robustas qualidades.

    Estcio recebera efetivamente de sua me uma boa parte destas. No sendo grande talento, deveu vontade e paixo do saber a figura notvel que fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se cincia com ardor e afinco. Aborrecia a poltica; era indiferente ao rudo exterior. Educado maneira antiga e com severidade e recato, passou da adolescncia juventude sem conhecer as corrupes de esprito nem as influncias deletrias da ociosidade; viveu a vida de famlia, na idade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e perdiam em coisas nfimas a virgindade das primeiras sensaes. Da veio que, aos dezoito anos, conservava ele tal ou qual timidez infantil,

  • que s tarde perdeu de todo. Mas, se perdeu a timidez, ficara-lhe certa gravidade no incompatvel com os verdes anos e muito prpria de organizaes como a dele. Na poltica seria talvez meio caminho andado para subir aos cargos pblicos; na sociedade, fazia que lhe tivessem respeito, o que o levantava a seus prprios olhos. Convm dizer que no era essa gravidade aquela coisa enfadonha, pesada e chata, que os moralistas asseveram ser quase sempre um sintoma de esprito chocho; era uma gravidade jovial e familiar, igualmente distante da frivolidade e do tdio, uma compostura do corpo e do esprito, temperada pelo vio dos sentimentos e pela graa das maneiras, como um tronco rijo e reto adornado de folhagens e flores. Juntava s outras qualidades morais uma sensibilidade, no feminil e doentia, mas sbria e forte; spero consigo, sabia ser terno e mavioso com os outros.

    Tal era o filho do conselheiro; e se alguma coisa h ainda que acrescentar, que ele no cedia nem esquecia nenhum dos direitos e deveres que lhe davam a idade e a classe em que nascera. Elegante e polido, obedecia lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes dela. Ningum entrava mais corretamente numa sala; ningum saa mais oportunamente. Ignorava a cincia das nugas, mas conhecia o segredo de tecer um cumprimento.

    Na situao criada pela clusula testamentria do conselheiro, Estcio aceitou a causa da irm, a quem j via, sem a conhecer, com olhos diferentes dos de Camargo e D. rsula. Esta comunicou ao sobrinho todas as impresses que lhe deixara o ato do irmo. Estcio procurou dissipar-lhas; repetiu as reflexes opostas ao mdico; mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade de um morto.

    Bem sei que no h j agora outro remdio mais que aceitar essa menina e obedecer s determinaes solenes de meu irmo, disse D. rsula, quando Estcio acabou de falar. Mas s isso; dividir com ela os meus afetos no sei que possa nem deva fazer.

    Contudo, ela do nosso mesmo sangue.

    D. rsula ergueu os ombros como repelindo semelhante consanginidade. Estcio insistiu em traz-la a mais benvolos sentimentos. Invocou, alm da vontade, a retido do esprito de seu pai, que no havia dispor uma coisa contrria boa fama da famlia.

    Alm disto, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que meu pai a legitimou, convm que no se ache aqui como enjeitada. Que aproveitaramos com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da nossa vida interior. Vivamos na mesma comunho de afetos; e vejamos em Helena uma parte da alma de meu pai, que nos fica para no desfalcar de todo o patrimnio comum.

    Nada respondeu a irm do conselheiro. Estcio percebeu que no vencera os sentimentos da tia, nem era possvel consegui-lo por meio

  • de palavras. Confiou ao tempo essa tarefa. D. rsula ficou triste e s. Aparecendo Camargo da a pouco, ela confiou-lhe todo o seu modo de sentir, que o mdico interiormente aprovava.

    Conheceu a me dela? perguntou a irm do conselheiro.

    Conheci.

    Que espcie de mulher era?

    Fascinante.

    No isso; pergunto-lhe se era mulher de ordem inferior, ou...

    No sei; no tempo em que a vi, no tinha classe e podia pertencer a todas; demais, no a tratei de perto.

    Doutor, disse D. rsula, depois de hesitar algum tempo; que me aconselha que faa?

    Que a ame, se ela o merecer, e se puder.

    Oh! confesso-lhe que me h de custar muito! E merec-lo-? Alguma coisa me diz ao corao que essa menina vem complicar a nossa vida; alm disso, no posso esquecer que meu sobrinho, herdeiro...

    Seu sobrinho aceita as coisas filosoficamente e at com satisfao. No compreendo a satisfao, mas concordo que nada mais h do que cumprir textualmente a vontade do conselheiro. No se deliberam sentimentos; ama-se ou aborrece-se, conforme o corao quer. O que lhe digo que a trate com benevolncia; e caso sinta em si algum afeto, no o sufoque; deixe-se ir com ele. J agora no se pode voltar atrs. Infelizmente!

    Helena estava a concluir os estudos; semanas depois determinou a famlia que ela viesse para a casa. D. rsula recusou a princpio ir busc-la; convenceu-a disso o sobrinho, e a boa senhora aceitou a incumbncia depois de alguma hesitao. Em casa foram-lhe preparados os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para ser a moa trasladada a Andara. Dona rsula meteu-se na carruagem, logo depois do jantar. Estcio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido. Voltou tarde. Ao penetrar na chcara, deu com os olhos nas janelas do quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia algum dentro. Pela primeira vez sentiu Estcio a estranheza da situao criada pela presena daquela meia-irm e perguntou a si prprio se no era a tia quem tinha razo. Repeliu pouco depois esse sentimento; a memria do pai restituiu-lhe a benevolncia anterior. Ao mesmo tempo, a idia de ter uma irm sorria-lhe ao corao como promessa de venturas novas e desconhecidas. Entre sua me e as demais mulheres, faltava-lhe essa

  • criatura intermediria, que ele j amava sem conhecer, e que seria a natural confidente de seus desalentos e esperanas. Estcio contemplou longo tempo as janelas; nem o vulto de Helena apareceu ali, nem ele viu passar a sombra da habitante nova.

    CAPTULO III

    Na seguinte manh, Estcio levantou-se tarde e foi direito sala de jantar, onde encontrou D.rsula, pachorrentamente sentada na poltrona de seu uso, ao p de uma janela, a ler um tomo do Saint-Clair das Ilhas, enternecida pela centsima vez com as tristezas dos desterrados da ilha da Barra; boa gente e moralssimo livro, ainda que enfadonho e maudo, como outros de seu tempo. Com ele matavam as matronas daquela quadra muitas horas compridas do inverno, com ele se encheu muito sero pacfico, com ele se desafogou o corao de muita lgrima sobressalente. Veio? perguntou Estcio.

    Veio, respondeu a boa senhora, fechando o livro. O almoo esfria, continuou ela, dirigindo-se mucama que ali estava de p, junto da mesa; j foram chamar...nhanh Helena?

    Nhanh Helena disse que j vem.

    H dez minutos, observou D. rsula ao sobrinho.

    Naturalmente no tarda, respondeu este. Que tal?

    D.rsula estava pouco habilitada a responder ao sobrinho. Quase no vira o rosto de Helena; e esta, logo que ali chegou, recolheu-se ao aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de repouso. O que D.rsula pde afianar foi somente que a sobrinha era moa feita.

    Ouviu-se descer a escada um passo rpido, e no tardou que Helena aparecesse porta da sala de jantar. Estcio estava ento encostado janela que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda, donde se viam os fundos da chcara. Olhou para a tia como esperando que ela os apresentasse um ao outro. Helena detivera-se ao v-lo.

    Menina, disse D. rsula com o tom mais doce que tinha na voz, este meu sobrinho Estcio, seu irmo.

    Ah! disse Helena, sorrindo e caminhando para ele.

    Estcio dera igualmente alguns passos.

    Espero merecer sua afeio, disse ela depois de curta pausa. Peo desculpa da demora; estavam minha espera, creio eu...

  • amos para a mesa agora mesmo, interrompeu D. rsula, como protestando contra a idia de que ela os fizesse esperar.

    Estcio procurou corrigir a rudez da tia.

    Tnhamos ouvido o seu passo na escada, disse ele. Sentemo-nos, que o almoo esfria.

    D. rsula j estava sentada cabeceira da mesa; Helena ficou direita, na cadeira que Estcio lhe indicou; este tomou lugar do lado oposto. O almoo correu silencioso e desconsolado; raros monosslabos, alguns gestos de assentimento ou recusa, tal foi o dispndio da conversa entre os trs parentes. A situao no era cmoda nem vulgar. Helena, posto forcejasse por estar senhora de si, no conseguia vencer de todo o natural acanhamento da ocasio. Mas, se o no vencia de todo, podiam ver-se atravs dele certos sinais de educao fina. Estcio examinou aos poucos a figura da irm.

    Era uma moa de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima da mediana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de um moreno-pssego, tinha a mesma imperceptvel penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasio tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princpio mais rubros, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas do rosto parecia que as traara a arte religiosa. Se os cabelos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranas lhe cassem espalhadamente sobre os ombros, e se os prprios olhos alassem as pupilas ao cu, dissreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor. No exigiria a arte maior correo e harmonia de feies, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. Uma s coisa pareceu menos aprazvel ao irmo: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expresso de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o nico seno que lhe achou, e no era pequeno.

    Acabado o almoo, trocadas algumas palavras, poucas e soltas, Helena retirou-se ao seu quarto, onde durante trs dias passou quase todas as horas, a ler meia dzia de livros que trouxera consigo, a escrever cartas, a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janelas. Alguma vez desceu a jantar, com os olhos vermelhos e a fronte pesarosa, apenas com um sorriso plido e fugitivo nos lbios. Uma criana, subitamente transferida ao colgio, no desfolha mais tristemente as primeiras saudades da casa de seus pais. Mas a asa do tempo leva tudo; e ao cabo de trs dias, j a fisionomia de Helena trazia menos sombrio aspecto. O olhar perdeu a expresso que primeiro lhe achou o irmo, para tornar-se o que era naturalmente, mavioso e repousado. A palavra saa-lhe mais fcil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar do acanhamento.

    No quarto dia, acabado o almoo, Estcio encetou uma conversa geral, que no passou de um simples duo, porque D. rsula contava os fios

  • da toalha ou brincava com as pontas do leno que trazia ao pescoo. Como falassem da casa, Estcio disse irm:

    Esta casa to sua como nossa; faa de conta que nascemos debaixo do mesmo teto. Minha tia lhe dir o sentimento que nos anima a seu respeito.

    Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizendo que a casa e a chcara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. rsula que lhas fosse mostrar mais detidamente. A tia fechou o rosto e secamente respondeu:

    Agora no, menina; tenho por hbito descansar e ler.

    Pois eu lerei para a senhora ouvir, replicou a moa com graa; no bom cansar os seus olhos; e, alm disso, justo que me acostume a servi-la. No acha? Continuou ela voltando-se para Estcio.

    nossa tia, respondeu o moo.

    Oh! ainda no minha tia! interrompeu Helena. H de s-lo quando me conhecer de todo. Por enquanto somos estranhas uma outra; mas nenhuma de ns m.

    Estas palavras foram ditas em tom de graciosa submisso. A voz com que ela as proferiu, era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso, tinha um misterioso encanto, a que a prpria D rsula no pde resistir.

    Pois deixe que a convivncia faa falar o corao, respondeu a irm do conselheiro em tom brando. No aceito o oferecimento da leitura, porque no entendo bem o que os outros me lem; tenho os olhos mais inteligentes que os ouvidos. Entretanto, se quer ver a casa e a chcara, seu irmo pode conduzi-la.

    Estcio declarou-se pronto para acompanhar a irm. Helena, entretanto, recusou. Irmo embora, era a primeira vez que o via, e, ao que parece, a primeira que podia achar-se a ss com um homem que no seu pai. D. rsula, talvez porque preferisse ficar s algum tempo, disse-lhe secamente que fosse. Helena acompanhou o irmo. Percorreram parte da casa, ouvindo a moa as explicaes que lhe dava Estcio e inquirindo de tudo com zelo e curiosidade de dona da casa. Quando chegaram porta do gabinete do conselheiro, Estcio parou.

    Vamos entrar num lugar triste para mim, disse ele.

    Que ?

    O gabinete de meu pai.

  • Oh! deixe ver!

    Entraram os dois. Tudo estava do mesmo modo que no dia em que o conselheiro falecera. Estcio deu algumas indicaes relativas ao teor da vida domstica de seu pai; mostrou-lhe a cadeira em que ele costumava ler, de tarde e de manh; os retratos de famlia, a secretria, as estantes; falou de quanto podia interess-la. Sobre a mesa, perto da janela, estava ainda o ltimo livro que o conselheiro lera: eram as Mximas do Marqus de Maric. Helena pegou nele e beijou a pgina aberta. Uma lgrima brotou-lhe dos olhos, quente de todo o calor de uma alma apaixonada e sensvel; brotou, deslizou-se e foi cair no papel.

    Coitado! murmurou ela.

    Depois sentou-se na mesma cadeira em que o conselheiro costumava dormir alguns minutos depois de jantar, e olhou para fora. O dia comeava a aquecer. O arvoredo dos morros fronteiros estava coberto de flores de quaresma, com suas ptalas roxas e tristemente belas. O espetculo ia com a situao de ambos. Estcio deixou-se levar ao sabor de suas recordaes da meninice. De envolta com elas veio pousar-lhe ao lado a figura de sua me; tornou a v-la, tal qual se lhe fora dos braos, uma crua noite de outubro, quando ele contava dezoito anos de idade. A boa senhora morrera quase moa, ainda bela, pelo menos, daquela beleza sem outono, cuja primavera tem duas estaes.

    Helena ergueu-se.

    Gostava dele? perguntou ela.

    Quem no gostaria dele?

    Tem razo. Era uma alma grande e nobre; eu adorava-o. Reconheceu-me; deu-me famlia e futuro; levantou-me aos olhos de todos e aos meus prprios. O resto depende de mim, do juzo que eu tiver, ou talvez da fortuna.

    Esta ltima palavra saiu-lhe do corao como um suspiro. Depois de alguns segundos de silncio, Helena enfiou o brao no do irmo e desceram chcara. Fosse influncia do lugar ou simples mobilidade de esprito, Helena tornou-se logo outra do que se revelara no gabinete do pai. Jovial, graciosa e travessa, perdera aquela gravidade quieta e senhora de si com que aparecera na sala de jantar; fez-se lpida e viva, como as andorinhas que antes, e ainda agora, esvoaavam por meio das rvores e por cima da grama. A mudana causou certo espanto ao moo; mas ele a explicou de si para si, e em todo o caso no o impressionou mal. Helena pareceu-lhe naquela ocasio, mais do que antes, o complemento da famlia. O que ali faltava era justamente o gorjeio, a graa, a travessura, um elemento que temperasse a austeridade da casa e lhe desse todas as feies

  • necessrias ao lar domstico. Helena era esse elemento complementar.

    A excurso durou cerca de meia hora. D. rsula viu-os chegar, ao cabo desse tempo, familiares e amigos, como se houvessem sido criados juntos. As sobrancelhas grisalhas da boa senhora contraram-se, e o lbio inferior recebeu uma dentada de despeito.

    Titia... disse Estcio jovialmente; minha irm conhece j a casa toda e suas dependncias. Resta somente que lhe mostremos o corao.

    D. rsula sorriu, um sorriso amarelo e acanhado, que apagou nos olhos da moa a alegria que os tornava mais lindos. Mas foi breve a m impresso; Helena caminhou para a tia, e pegando-lhe nas mos, perguntou com toda a doura da voz:

    No querer mostrar-me o seu?

    No vale a pena! respondeu D. rsula com afetada bonomia; corao de velha casa arruinada.

    Pois as casas velhas consertam-se, replicou Helena sorrindo.

    D. rsula sorriu tambm; desta vez, porm, com expresso melhor. Ao mesmo tempo, fitou-a; e era a primeira vez que o fazia. O olhar, a princpio indiferente, manifestou logo depois a impresso que lhe causava a beleza da moa. D. rsula retirou os olhos; porventura receou que o influxo das graas de Helena lhe torcessem o corao, e ela queria ficar independente e inconcilivel.

    CAPTULO IV

    As primeiras semanas correram sem nenhum sucesso notvel, mas ainda assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera, de hesitao, de observao recproca, um tatear de caracteres, em que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar posio. O prprio Estcio, no obstante a primeira impresso, recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos poucos o procedimento de Helena.

    Helena tinha os predicados prprios a captar a confiana e a afeio da famlia. Era dcil, afvel, inteligente. No eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelncia eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade de triunfo, era a arte de acomodar-se s circunstncias do momento e a toda a casta de espritos, arte preciosa, que faz hbeis os homens e estimveis as mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa, com igual interesse e gosto, frvola com os frvolos, grave com os que o eram, atenciosa e ouvida, sem entono nem vulgaridade. Havia nela a

  • jovialidade da menina e a compostura da mulher feita, um acordo de virtudes domsticas e maneiras elegantes.

    Alm das qualidades naturais, possua Helena algumas prendas de sociedade, que a tornavam aceita a todos, e mudaram em parte o teor da vida da famlia. No falo da magnfica voz de contralto, nem da correo com que sabia usar dela, porque ainda ento, estando fresca a memria do conselheiro, no tivera ocasio de fazer-se ouvir. Era pianista distinta, sabia desenho, falava correntemente a lngua francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de costura e bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graa e lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita pacincia, arte e resignao, no humilde, mas digna, conseguia polir os speros, atrair os indiferentes e domar os hostis.

    Pouco havia ganho no esprito de D. rsula; mas a repulsa desta j no era to viva como nos primeiros dias. Estcio cedeu de todo, e era fcil; seu corao tendia para ela, mais que nenhum outro. No cedeu, porm, sem alguma hesitao e dvida. A flexibilidade do esprito da irm afigurou-se-lhe a princpio mais calculada que espontnea. Mas foi impresso que passou. Dos prprios escravos no obteve Helena desde logo a simpatia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de D. rsula. Servos de uma famlia, viam com desafeto e cime a parenta nova, ali trazida por um ato de generosidade. Mas tambm a esses venceu o tempo. Um s de tantos pareceu v-la desde princpio com olhos amigos; era um rapaz de 16 anos, chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta ltima circunstncia o ligou desde logo filha do seu senhor. Despida de interesse, porque a esperana da liberdade, se a podia haver, era precria e remota, a afeio de Vicente no era menos viva e sincera; faltando-lhe os gozos prprios do afeto, a familiaridade e o contato, condenado a viver da contemplao e da memria, a no beijar sequer a mo que o abenoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos instintos, Vicente foi, no obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da senzala.

    As pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma hesitao de D. rsula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociais, explicava-os e tratava de os torcer em seu favor, tarefa em que se esmerou, superando os obstculos na famlia; o resto viria de si mesmo.

    Uma pessoa, entre os familiares da casa, no os acompanhou no procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior era capelo em casa do conselheiro, que mandara construir alguns anos antes uma capelinha na chcara, onde muita gente da vizinhana ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta anos o padre; era homem de estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabelos, e uns olhos no menos sagazes que mansos. De compostura quieta e grave, austero sem formalismo, socivel sem mundanidade, tolerante sem

  • fraqueza, era o verdadeiro varo apostlico, homem de sua Igreja e de seu Deus, ntegro na f, constante na esperana, ardente na caridade. Conhecera a famlia do conselheiro algum tempo depois do consrcio deste. Descobriu a causa da tristeza que minou os ltimos anos da me de Estcio; respeitou a tristeza, mas atacou diretamente a origem. O conselheiro era homem geralmente razovel, salvo nas coisas do amor; ouviu o padre, prometeu o que este lhe exigia, mas foi promessa feita na areia; o primeiro vento do corao apagou a escritura. Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as ocasies graves, e o voto de Melchior pesava em seu esprito. Morando na vizinhana daquela famlia, tinha ali o padre todo o seu mundo. Se as obrigaes eclesisticas no o chamavam a outro lugar, no se arredava de Andara, stio de repouso aps trabalhosa mocidade.

    Das outras pessoas que freqentavam a casa e residiam no mesmo bairro de Andara, mencionaremos ainda o Dr. Matos, sua mulher, o Coronel Macedo e dois filhos.

    O Dr. Matos era um velho advogado que, em compensao da cincia do direito, que no sabia, possua noes muito aproveitveis de meteorologia e botnica, da arte de comer, do voltarete, do gamo e da poltica. Era impossvel a ningum queixar-se do calor ou do frio, sem ouvir dele a causa e a natureza de um e outro, e logo a diviso das estaes, a diferena dos climas, influncia destes, as chuvas, os ventos, a neve, as vazantes dos rios e suas enchentes, as mars e a pororoca. Ele falava com igual abundncia das qualidades teraputicas de uma erva, do nome cientfico de uma flor, da estrutura de certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio s paixes da poltica, se abria a boca em tal assunto era para criticar igualmente de liberais e conservadores, os quais todos lhe pareciam abaixo do pas. O jogo e a comida achavam-no menos ctico; e nada lhe avivava tanto a fisionomia como um bom gamo depois de um bom jantar. Estas prendas faziam do Dr. Matos um conviva interessante nas noites que o no eram. Posto soubesse efetivamente alguma coisa dos assuntos que lhe eram mais prezados, no ganhou o peclio que possua, professando a botnica ou a meteorologia, mas aplicando as regras do direito, que ignorou at a morte.

    A esposa do Dr. Matos fora uma das belezas do primeiro reinado. Era uma rosa fanada, mas conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselheiro ardera aos ps da mulher do advogado, sem repulsa desta; mas s era verdade a primeira parte do boato. Nem os princpios morais, nem o temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra coisa que no fosse repelir o conselheiro sem o molestar. A arte com que o fez iludiu os malvolos; da o sussurro, j agora esquecido e morto. A reputao dos homens amorosos parece-se muito com o juro do dinheiro: alcanado certo capital, ele prprio se multiplica e avulta. O conselheiro desfrutou essa vantagem, de maneira que, se no outro mundo lhe levassem coluna dos pecados todos os que lhe atribuam na Terra, receberia dobrado castigo do que mereceu.

  • O Coronel Macedo tinha a particularidade de no ser coronel. Era major. Alguns amigos, levados de um esprito de retificao, comearam a dar-llhe o ttulo de coronel, que a princpio recusou, mas que afinal foi compelido a aceitar, no podendo gastar a vida inteira a protestar contra ele. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sobre o peclio da experincia, possua imaginao viva, frtil e agradvel. Era bom companheiro, folgazo e comunicativo, pensando srio quando era preciso. Tinha dois filhos, um rapaz de vinte anos, que estudava em So Paulo, e uma moa de vinte e trs, mais prendada que formosa.

    Nos primeiros dias de agosto a situao de Helena podia dizer-se consolidada. D.rsula no cedera de todo, mas a convivncia ia produzindo seus frutos. Camargo era o nico irreconcilivel; sentia-se, atravs de suas maneiras cerimoniosas, uma averso profunda, prestes a converter-se em hostilidade, se fosse preciso. As demais pessoas, no s domadas, mas at enfeitiadas, estavam s boas com a filha do conselheiro. Helena tornara-se o acontecimento do bairro; seus ditos e gestos eram o assunto da vizinhana e o prazer dos familiares da casa. Por uma natural curiosidade, cada um procurava em suas reminiscncias um fio biogrfico da moa; mas do inventrio retrospectivo ningum tirava elementos que pudessem construir a verdade ou uma s parcela que fosse. A origem da moa continuava misteriosa; vantagem grande, porque o obscuro favorecia a lenda, e cada qual podia atribuir o nascimento de Helena a um amor ilustre ou romanesco, hipteses admissveis, e em todo o caso agradveis a ambas as partes.

    CAPTULO V

    Por esse tempo resolveu Estcio dar um passo decisivo. Ligado por amor filha de Camargo, desde antes da morte do conselheiro, hesitara sempre em pedi-la ao pai, diferindo a resoluo para quando fosse propcio o ensejo. A condio no era fcil, porque o sentimento que ele nutria em relao Eugnia tinha alternativas de tibieza e fervor. A causa disso pode crer-se estava tambm em seu corao; mas principalmente residia nela. Num dos primeiros dias de agosto, assentara Estcio de ir solicitar de Eugnia autorizao para fazer oficialmente o pedido. Assim disposto, dirigiu-se casa de Camargo.

    Mal o avistou de longe, desceu Eugnia porta do jardim. O chapelinho de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do sol, eram trs horas da tarde, tornava mais bela a figura da moa. Eugnia era uma das mais brilhantes estrelas entre as menores do cu fluminense. Agora mesmo, se o leitor lhe descobrir o perfil em camarote de teatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile, compreender, atravs de um quarto de sculo, que os contemporneos de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as graas que ento alvoreciam com o frescor e a pureza das primeiras horas.

  • Era de pequena estatura; tinha os cabelos de um castanho escuro, e os olhos grandes e azuis, dois pedacinhos do cu, abertos em rosto alvo e corado; o corpo, levemente refeito, era naturalmente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e at com arte, no possua o dom de alcanar os mximos efeitos com os meios mais simples.

    Estcio contemplou-a namorado sem ousar dizer palavra; a primeira que lhe ia sair dos lbios, era justamente o pedido que o levava ali. Mas Eugnia deteve-lha, mostrando o anel que a madrinha, fazendeira de Cantagalo, lhe mandara na vspera. Era uma opala magnfica, a tal ponto que Eugnia dividia os olhos entre o namorado e ela. Esta simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D.Tomsia os esperava. A me de Eugnia sabia combinar o decoro com os desejos de seu corao; no seria obstculo aos dois namorados; infelizmente, a presena de duas visitas veio destruir o clculo dos trs. Estcio espreitava uma ocasio de pedir a Eugnia a autorizao que desejava; at ao jantar no se lhe deparou nenhuma.

    Desceram todos ao jardim. D. Tomsia entreteve uma das visitas; Camargo foi mostrar outra a sua coleo de flores. Estcio e Eugnia afastaram-se cautelosamente dos dois grupos, a pretexto de no sei que flor aberta na manh daquele dia. A flor existia; Eugnia colheu-a e deu a Estcio.

    No v perd-la; h de entreg-la a Helena da minha parte. Diga-lhe que estou com muitas saudades.

    Estcio colocou a flor na botoeira.

    Vai cair! disse Eugnia. Quer que pregue um alfinete?

    Estcio no teve tempo de responder, porque a filha de Camargo, tirando um alfinete do cinto, prendeu o p da flor, gastando muito mais tempo do que o exigia a operao. A moa no era mope; todavia aproximou de tal modo a cabea ao peito do mancebo, que este teve mpetos de lhe beijar os cabelos, e seria a primeira vez que seus lbios lhe tocassem.

    Pronto! disse ela. Diga a Helena que a flor mais bonita do nosso jardim. Sabe que eu gosto muito de sua irm?

    Acredito.

    Suponho que minha amiga; h de s-lo com certeza. Oh! eu preciso muito de uma amiga verdadeira!

    Sim?

    Muito! Tenho tantas que no prestam para nada, e s me do desgostos, como Ceclia... Se soubesse o que ela me fez!

  • Que foi?

    Eugnia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por no interessar ao nosso caso, bastando saber que a razo capital da divergncia entre as duas amigas fora uma opinio de Ceclia acerca da escolha de um chapu.

    Estcio no escutou a histria com a ateno que a moa desejara; limitou-se a ouvir a voz de Eugnia, que era na verdade anglica. Alguma coisa, porm lhe ficou; e quando ela ps termo s suas queixas:

    O que me parece, observou o sobrinho de D. rsula, que no valia a pena brigar por to pouca coisa...

    Pouca coisa! exclamou Eugnia. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa e de mau gosto?

    Fez mal, se o disse, em todo o caso...

    Estcio fez uma pausa e continuou a andar. Eugnia esperou que ele continuasse o que ia dizer; mas o silncio prolongou-se mais do que era natural.

    Em todo o caso? repetiu a moa erguendo para ele os olhos lmpidos e curiosos.

    Eugnia, disse Estcio, quer saber a verdadeira razo do mau sucesso de suas afeies? deixar-se levar mais pelas aparncias que pela realidade; porque d menos apreo s qualidades slidas do corao do que s frvolas exterioridades da vida. Suas amizades so das que duram a roda de uma valsa, ou quando muito, a moda de um chapu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas so estreis para as necessidades do corao.

    Jesus! exclamou Eugnia, estacando o passo; um sermo por to pouca coisa! Se tivesse algum pedao de latim, era o mesmo que estar ouvindo o Padre Melchior.

    Estcio no respondeu; contentou-se com erguer os ombros, e os dois continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do outro. A diferena que o enfado de Eugnia se manifestava por um movimento nervoso de impacincia e despeito.

    Se o ofendi, perdoe-me, disse ela, com um leve tom de ironia.

    Oh! exclamou ele, apertando-lhe a mo, como quem s esperava um pretexto para reatar a conversa interrompida.

  • Talvez ofendesse, continuou a moa; eu sei dizer as coisas como elas me vm boca, e parece que no so as mais acertadas...

    No digo que o sejam sempre, replicou Estcio sorrindo. Agora, pelo menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era justo e de boa inteno. Francamente, para lastimar uma amizade, ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapu? No vale a pena esperdiar afetos, Eugnia; sentir mais tarde que essa moeda do corao no se deve nunca reduzir a trocos midos nem despender em quinquilharias.

    Eugnia ouviu calada as palavras do moo; no as entendeu muito. Sabia-lhes a significao; no lhes viu, porm nexo nem sentido; sobretudo, no lhes sentiu a aplicao. O que a irritou mais foi o tom pedagogo de Estcio; estouvada e voluntariosa, no admitia que ningum lhe falasse sem submisso ou a repreendesse por atos seus, que ela julgava legtimos e naturais. A insistncia do moo foi o ponto de partida a um desses arrufos, no raros entre amantes, e comuns entre aqueles dois. Os de Eugnia no eram simples silncios; seu esprito rebelde e livre no adormecia nesses momentos de enfado; pelo contrrio, irritava-se e traduzia a irritao por meio de pirraas e acessos de mau humor. Estcio viu murmurar, crescer e desabar a tempestade. A moa articulava algumas frases soltas, batia no cho com o pezinho mimoso, que por acaso esmagou uma pobre erva, alheia s divergncias morais daquelas duas criaturas. Ora parava e desandava o caminho; mas logo se dirigia para o moo, com as plpebras trmulas de clera e um remoque nos lbios; comprazia-se em torcer a ponta da manga ou morder a ponta do dedo. Estcio, afeito a essas exploses, no lhes sabia remdio prprio: tanto o silncio como a rplica eram ali matrias inflamveis. Contudo, o silncio era o menor dos dois perigos. Estcio limitava-se a ouvir calado, olhando sorrelfa para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais belo quando a raiva o coloria. Uma terceira pessoa era a nica esperana de pacificao; Estcio alongou o olhar pelo jardim em busca desse deus ex-machina. Apareceu ele enfim sob a forma de um Carlos Barreto, estudante de medicina, que cultivava simultaneamente a patologia e a comdia, mas prometia ser melhor Esculpio que Aristfanes. Mal os viu de longe, apertou o passo para o grupo.

    Vem gente, Eugnia, disse Estcio; no demos espetculos e... perdoe-me.

    Eugnia ergueu os ombros, procurou com os olhos o intruso que da a pouco lhes estendia a mo.

    O cu no ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens. Carlos Barreto deu a Eugnia a agradvel notcia de que trouxera a seu pai um convite para o baile que daria no sbado prximo uma de suas parentas. A perspectiva do baile foi uma brisa salutar que dispersou o resto das nuvens; Eugnia sorriu. J'ai ri; me voil dsarme, como na comdia

  • de Piron. Vinte minutos depois, no havia em Eugnia vestgio da cena do jardim. Mas a idia do casamento estava adiada.

    O efeito foi agro e doce para Estcio. Estimando ver dissipada a clera, doa-lhe que a causa fosse, no a prpria virtude do amor, mas um motivo comparativamente ftil. A resoluo de a consultar sobre o pedido de casamento esvaiu-se-lhe como de outras vezes. Saiu dali noite, antes do ch, aborrecido e azedo. Esse estado no durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo, sentiu alguma coisa semelhante dentada de um remorso. O amor de Estcio tinha a particularidade de crescer e afirmar-se na ausncia e diminuir logo que estava ao p da moa. De longe, via-a atravs da nvoa luminosa da imaginao; ao p era difcil que Eugnia conservasse os dotes que ele lhe emprestava. Da, um dissentimento provvel e um remorso certo. Agora que a deixava, ia ele irritado contra si mesmo; achava-se ridculo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade de Eugnia; concedia alguma coisa idade, educao, aos costumes, ignorncia da vida.

    Nesse estado de esprito entrou em casa, onde o esperava um incidente novo.

    CAPTULO VI

    Chegando casa, achou Estcio remdio ao mau humor. Era uma carta de Lus Mendona, que dois anos antes partira para a Europa, donde agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, anunciando-lhe que dentro de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendona fora o seu melhor companheiro de aula. Havia entre eles certos contrastes de gnio. O de Mendona era mais folgazo e ativo. Quando este partiu para a Europa, quis que o antigo colega o acompanhasse, e o prprio conselheiro opinara nesse sentido. Estcio recusou pelo receio de que, sendo diferente o esprito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao sacrifcio de hbitos e preferncias de um deles.

    A notcia da volta de Mendona encheu de contentamento o sobrinho de D. rsula. D. rsula estava ento na sala de costura, relendo algumas pginas do seu Saint-Clair, encostada a uma mesa. Do outro lado, ficava Helena, a concluir uma obra de crochet .

    Titia, disse ele, dou-lhe uma novidade agradvel para mim.

    Que ?

    O Mendona chegou a Pernambuco; est aqui dentro de pouco tempo.

    O Mendona?

  • Lus Mendona.

    O que foi para a Europa, sei. H quanto tempo?

    Dois anos.

    Dois anos! Parece que foi ontem.

    No lhe leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que devo ir tambm Europa, quanto antes. Querem ir?

    Eu? disse D. rsula, marcando a pgina do livro com os culos de prata que at ento conservara sobre o nariz. No so folias para gente velha. Daqui para a cova.

    A cova! exclamou Helena. Est ainda to forte! Quem sabe se no me h de enterrar primeiro?

    Menina! exclamou D. rsula em tom de repreenso.

    Helena sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de verdadeira simpatia que ouvia a D. rsula. Bem o compreendeu esta; e talvez a mortificou aquela espontaneidade do corao. Mas era tarde. No podia recolher a palavra, no podia sequer explic-la.

    Que tal vir o teu amigo? perguntou ela ao sobrinho. Era bom rapaz antes de ir; um pouco tonto, apenas.

    H de vir o mesmo, respondeu Estcio; ou ainda melhor. Melhor decerto, porque dois anos mais modificam o homem.

    Estcio fez aqui um panegrico do amigo, intercalado com observaes da tia, e ouvido silenciosamente pela irm. Vieram chamar para o ch. D. rsula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o crochet na cestinha de costura.

    Pensa que gastei toda a tarde em fazer crochet? perguntou ela ao irmo, caminhando para a sala de jantar.

    No?

    No, senhor; fiz um furto.

    Um furto!

    Fui procurar um livro na sua estante.

    E que livro foi?

    Um romance.

  • Paulo e Virgnia?

    Manon Lescaut.

    Oh! exclamou Estcio. Esse livro...

    Esquisito, no ? Quando percebi que o era, fechei-o e l o pus outra vez.

    No livro para moas solteiras...

    No creio mesmo que seja para moas casadas, replicou Helena rindo e sentando-se mesa. Em todo o caso, li apenas algumas pginas. Depois abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo...

    Imagino! interrompeu D. rsula.

    O desejo de aprender a montar a cavalo, concluiu Helena.

    Estcio olhou espantado para a irm. Aquela mistura de geometria e equitao no lhe pareceu suficientemente clara e explicvel. Helena soltou uma risadinha alegre de menina que aplaude a sua prpria travessura.

    Eu lhe explico, disse ela; abri o livro, todo alastrado de riscos que no entendi. Ouvi porm um tropel de cavalos e cheguei janela. Eram trs cavaleiros, dois homens e uma senhora. Oh! com que garbo montava a senhora! Imaginem uma moa de vinte e cinco anos, alta, esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa cauda do vestido cada a um lado. O cavalo era fogoso; mas a mo e o chicotinho da cavaleira quebravam-lhe os mpetos. Tive pena, confesso, de no saber montar a cavalo...

    Quer aprender comigo?

    Titia consente?

    D. rsula levantou os ombros com o ar mais indiferente que pde achar no seu repertrio. Helena no esperou mais.

    Escolha voc o dia.

    Amanh?

    Amanh.

    Estcio costumava dar um passeio a cavalo quase todas as manhs. O do dia seguinte foi dispensado; comeariam as lies de Helena. Antes disso, porm, escreveu Estcio filha de Camargo uma carta

  • recendente a ternura e afeto. Pedia-lhe desculpa do que se passara na vspera; jurava-lhe amor eterno; coisas todas que lhe dissera mais de uma vez, com o mesmo estilo, se no com as mesmas palavras. A carta dissipou-lhe a ltima sombra de remorso. Antes que ela chegasse ao seu destino, reconciliara-se ele consigo mesmo. O portador saiu para o Rio Comprido, e ele desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao p do qual estava situada a cavalaria. Naquele lado da casa corria a varanda antiga, onde a famlia costumava s vezes tomar caf ou conversar nas noites de luar, que ali penetrava pelas largas janelas. Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ter ao terreiro.

    J ali estava Helena. D. rsula emprestara-lhe um vestido de amazona, com que algumas vezes montara, antes da morte do irmo. O vestido ficava-lhe mal; era folgado demais para o talhe delgado da moa. Mas a elegncia natural fazia esquecer o acessrio das roupas.

    Pronta! exclamou Helena apenas viu o irmo assomar no alto da escada.

    Oh! isso no vai assim! respondeu Estcio. No suponha que h de montar j hoje como a moa que ontem viu passar na estrada. Vena primeiramente o medo...

    No sei o que medo, interrompeu ela com ingenuidade.

    Sim? No a supunha valente. Pois eu sei o que ele .

    O medo? O medo um preconceito dos nervos. E um preconceito desfaz-se; basta a simples reflexo. Em pequena educaram-me com almas do outro mundo. At a idade de dez anos era incapaz de penetrar numa sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possvel que uma pessoa morta voltasse Terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma coisa. Lavei o meu esprito de semelhante tolice, e hoje era capaz de entrar, de noite, num cemitrio... E da talvez no: os corpos que ali dormem tm direito de no ouvir mais um s rumor de vida.

    Estcio chegara ao ltimo degrau da escada. As derradeiras palavras ouviu-as ele com os olhos fitos na irm e encostado ao poial de pedra.

    Quem lhe ensinou essas idias? perguntou ele.

    No so idias, so sentimentos. No se aprendem; trazem-se no corao. Senhor gemetra, continuou brandindo caprichosamente o chicote, veja se transcreve em algum compndio estas figuras de minha inveno, e ande cavalgar comigo.

    Com um movimento rpido travou da cauda do vestido, e caminhou para diante. Estcio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dois sentimentos diferentes: a afeio que o prendia irm, e a

  • estranha impresso que ela lhe fazia sentir. Quando chegou porta da cavalaria, viu aparelhados dois animais, o cavalo de seus passeios da manh, e a gua que a tia cavalgava uma ou outra vez.

    Que isso? disse ele. Por ora vamos a algumas indicaes somente, aqui no terreiro.

    Justamente! respondeu a moa.

    Um escravo, que ali estava, trouxe um tamborete. Estcio aproximou-se de Helena, que afagava com a mo alva e fina as crinas da gua.

    Como se chama? perguntou ela.

    Moema.

    Moema! Ora espere... um nome indgena, no ?

    Estcio fez um sinal afirmativo. Helena tinha um p sobre o tamborete; repetiu ainda o nome da gua, como quem refletia sobre ele, sem que o irmo percebesse que no era aquilo mais do que um disfarce. De repente, quando ele menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no selim. A gua alteou o colo, como vaidosa do peso. Estcio olhou para a irm, admirado da agilidade e correo do movimento, e sem saber ainda o que pensasse daquilo. Helena inclinou-se para ele.

    Fui bem? perguntou sorrindo.

    No podia ir melhor; mas o que me admira...

    As patas de Moema interromperam a reflexo do moo. A cavaleira brandira o chicotinho, e o animal sara a trote largo pelo terreiro fora. Estcio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mo como para tomar a rdea ao animal; mas a segurana da moa logo lhe deixou ver que ela no fazia ali os primeiros ensaios. Ficou parado, de longe, a admirar-lhe o garbo e a destreza. No fim de vinte passos, Helena torceu a rdea e regressou ao ponto donde sara.

    Que tal? disse ela logo que estacou. Terei jeito para a equitao?

    Criana!

    Que isso? J aprendeu? interveio D. rsula, do alto da varanda, aonde acabava de chegar.

    Estava caoando conosco, disse Estcio. V como sabe montar?

    Ela sabe tudo, murmurou D. rsula entre dentes.

  • Estcio montou no cavalo. Consultou o relgio; eram sete horas e meia.

    Permite que o acompanhe? perguntou Helena.

    Com uma condio, disse ele; que h de ter juzo. No quero temeridades; a gua aparentemente mansa; convm no brincar com ela. J vejo que voc capaz de muitas coisas mais...

    Prometo ir pacificamente.

    Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de rdea ao animal e seguiu ao lado do irmo. Transposto o porto, seguiram os dois para o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manh fresca. Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a gua, instigada por ela, adiantava-se alguns passos ao cavalo; Estcio repreendia a irm, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudncia, gostava de lhe ver o airoso do busto e a firme serenidade com que ela conduzia o animal.

    No me dir voc, perguntou ele, por que motivo, sabendo montar, pedia-me ontem lies?

    A razo clara, disse ela; foi uma simples travessura, um capricho... ou antes um clculo.

    Um clculo?

    Profundo, hediondo, diablico, continuou a moa sorrindo. Eu queria passear algumas vezes a cavalo; no era possvel sair s, e nesse caso...

    Bastava pedir-me que a acompanhasse.

    No bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto em sair comigo; era fingir que no sabia montar. A idia momentnea de sua superioridade neste assunto era bastante para lhe inspirar uma dedicao decidida...

    Estcio sorriu do clculo; logo depois ficou srio, e perguntou em tom seco:

    J lhe negamos algum prazer que desejasse?

    Helena estremeceu e ficou igualmente sria.

    No! murmurou; minha dvida no tem limites.

    Esta palavra saiu-lhe do corao. As plpebras caram-lhe e um vu de tristeza lhe apagou o rosto. Estcio arrependeu-se do que dissera. Compreendeu a irm; viu que, por mais inocentes que suas palavras

  • fossem, podiam ser tomadas m parte, e, em tal caso, o menos que se lhe podia argir era a descortesia. Estcio timbrava em ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ela e rompeu o silncio.

    Voc ficou triste, disse Estcio; mas eu desculpo-a.

    Desculpa-me? perguntou a moa erguendo para o irmo os belos olhos midos.

    Desculpo a injria que me fez, supondo-me grosseiro.

    Apertaram-se as mos, e o passeio continuou nas melhores disposies do mundo. Helena deu livre curso imaginao e ao pensamento; suas falas exprimiam, ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexo da experincia prematura, e iam direitas alma do irmo, que se comprazia em ver nela a mulher como ele queria que fosse, uma graa pensadora, uma sisudez amvel. De quando em quando faziam parar os animais para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um acidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam falando das desvantagens da riqueza.

    Valem muito os bens da fortuna, dizia Estcio; eles do a maior felicidade da Terra, que a independncia absoluta. Nunca experimentei a necessidade; mas imagino que o pior que h nela no a privao de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitrios, mas sim essa escravido moral que submete o homem aos outros homens. A riqueza compra at o tempo, que o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. V aquele preto que ali est? Para fazer o mesmo trajeto que ns, ter de gastar, a p, mais uma hora ou quase.

    O preto de quem Estcio falara, estava sentado no capim, descascando uma laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava filosoficamente para ele. O preto no atendia aos dois cavaleiros que se aproximavam. Ia esburgando a fruta e deitando os pedaos de casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabea, com o que parecia alegr-lo infinitamente. Era homem de cerca de quarenta anos; ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapu que lhe cobria a cabea, tinha j uma cor inverossmil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da satisfao; em todo o caso, a serenidade do esprito.

    Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmo lhe mostrara. Ao passarem por ele, o preto tirou respeitosamente o chapu e continuou na mesma posio e ocupao que dantes.

    Tem razo, disse Helena: aquele homem gastar muito mais tempo do que ns em caminhar. Mas no isto uma simples questo de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o economizemos. O essencial no fazer muita coisa no menor prazo; fazer muita coisa aprazvel ou til. Para aquele preto o mais aprazvel , talvez, esse mesmo caminhar a p,

  • que lhe alongar a jornada, e lhe far esquecer o cativeiro, se cativo. uma hora de pura liberdade.

    Estcio soltou uma risada.

    Voc devia ter nascido...

    Homem?

    Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais melindrosas. Nem estou longe de crer que o prprio cativeiro lhe parecer uma bem-aventurana, se eu disser que o pior estado do homem.

    Sim? retorquiu Helena sorrindo; estou quase a fazer-lhe a vontade. No fao; prefiro admirar a cabea de Moema. Veja, veja como se vai faceirando. Esta no maldiz o cativeiro; pelo contrrio, parece que lhe d glria. Pudera! Se no a tivssemos cativa, receberia ela o gosto de me sustentar e conduzir? Mas no s faceirice, tambm impacincia.

    De qu?

    Impacincia de correr por essa estrada da Tijuca fora, e beber o vento da manh, espreguiando os msculos, e sentindo-se alguma coisa senhora e livre. Mas que queres tu, minha pobre gua? continuou a moa inclinando a cabea at s orelhas do animal; vai aqui ao ps de ns um homem muito mau e medroso, que ao mesmo tempo meu irmo e meu inimigo...

    Helena! interrompeu Estcio; voc muito capaz de disparar a correr.

    E se fosse?

    Eu deixava-a ir, e nunca a traria em meus passeios. Voc monta bem; mas no desejo que faa temeridades. Ns somos responsveis, no s por sua felicidade, mas tambm por sua vida.

    Helena refletiu um instante.

    Quer dizer, perguntou ela, que se eu fosse vtima de um desastre, no faltaria quem o imputasse minha famlia?

    Justo.

    Singular gente! No h de ser tanto assim... Pois se eu me lembrasse uma suposio se eu me lembrasse de deixar a vida por aborrecimento ou capricho, seria voc acusado de me haver propinado o veneno? No h melhor modo de me fazer evitar a morte.

  • Deixemos conversas lgubres, e voltemos para casa, interrompeu Estcio.

    J!

    Raras vezes passo daqui; e no pense voc que perto.

    Parece-me que ainda agora samos de casa. Vamos uns cinco minutos adiante? Sim?

    Estcio consultou o relgio.

    Cinco minutos justos, disse ele.

    At aquela casa que ali est com uma bandeira azul.

    Havia, efetivamente, cerca de quatro minutos adiante, esquerda da estrada, uma casa de insignificante aparncia, sobre cujo telhado flutuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estcio conhecia a casa, mas era a primeira vez que via a bandeira. Helena pediu-lhe a explicao daquele apndice.

    V l saber, disse o irmo rindo.

    Helena deu de rdea gua e adiantou-se alguns passos. Estcio apertou o animal e alcanou-a.

    No v fazer tolices! disse ele em tom de branda repreenso. Aquilo fantasia do morador, ou algum sinal de pssaros, ou qualquer outra coisa que no vale a pena de uma travessura. Contemplemos antes a manh, que est deliciosa.

    Helena no atendeu proposta do irmo e foi andando, a passo lento, na direo da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o alpendre antigo que lhe corria na frente. As colunas deste estavam j lascadas em muitas partes, aparecendo, aqui e ali, a ossada de tijolo. A porta estava meio aberta. Havia absoluta solido, aparente ao menos. Quando eles lhe passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se algum espreitava por ela, ficou sumido na sombra, porque ningum de fora o viu.

    Cerca de cinco braas adiante, Estcio resolveu definitivamente regressar, e Helena no ops objeo nenhuma. Torceram a rdea aos animais e desceram.

    No poderei falar bandeira? perguntou a moa. Deixe-me ao menos dizer-lhe adeus.

    Tinha j tirado da algibeira o seu fino leno de cambraia; agitou-o na direo da casa. Quis o acaso que a bandeira, at ento quieta, se movesse ao sopro de uma aragem que passou.

  • V como ela me respondeu? No se pode ser mais corts! exclamou Helena rindo.

    Estcio riu tambm da lembrana da irm, e ambos desceram, a passo lento, como haviam subido. Helena vinha taciturna e pensativa. Os olhos, cravados nas orelhas de Moema, no pareciam ver sequer o caminho que o animal seguia. Estcio, para arranc-la ao silncio, fez-lhe uma observao acerca de um incidente do caminho. Helena respondeu distraidamente.

    Que tem voc? perguntou ele.

    Nada, disse ela; ia. . . ia embebida naquela toada. No ouve?

    Ouvia-se, efetivamente, a algumas braas adiante, uma cantiga da roa, meio alegre, meio plangente. O cantor apareceu, logo que os cavaleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquele lugar. Era o preto, que pouco antes tinham visto sentado no cho.

    Que lhe dizia eu? observou a irm de Estcio. Ali vai o infeliz de h pouco. Uma laranja chupada no capim e trs ou quatro quadras, o bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar comprar o tempo. Ns poderamos dizer o mesmo?

    Por que no?

    A moa recolheu-se ao silncio.

    Helena, isso que voc acaba de dizer... Vamos, estamos ss; confesse alguma tristeza que tenha.

    Nenhuma, respondeu a moa. Peo-lhe, entretanto, uma coisa.

    Diga.

    Peo-lhe que me comunique todas as ms impresses que tiver a meu respeito. Explicarei umas, procurarei desvanecer-lhe outras, emendando-me. Sobretudo, peo-lhe que escreva em seu esprito esta verdade: que sou uma pobre alma lanada num turbilho.

    Estcio ia pedir explicao mais desenvolvida daquelas ltimas palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote, e deitou a gua a correr. Estcio fez o mesmo ao cavalo; da a alguns minutos entravam na chcara, ele aturdido e curioso, ela com a face vermelha e a bater-lhe violentamente o corao.

    CAPTULO VII

  • Apearam-se os dois no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter varanda. Pisando o primeiro degrau, disse Estcio:

    Helena, explique-me suas palavras de h pouco.

    Quais?

    E como Estcio levantasse os ombros, com ar de despeito, continuou Helena:

    Perdoe-me; a pergunta no tem nem podia ter outra resposta mais do que a simples recusa. No lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer meias confisses; mas, neste caso, a confisso inteira seria imprudncia maior. Se se tratasse de fatos, creia que a ningum melhor podia confi-los do que a voc; mas por que motivo irei perturbar-lhe o esprito com a narrao de meus sentimentos, se eu prpria no chego a entender-me?

    Estcio no insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e entraram na sala de jantar, onde acharam Dona rsula dando as ordens daquele dia a dois escravos. Estcio entrou pensativo; Helena mudou totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a melancolia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara jovialidade de costume. Dissera-se que a alma da moa era uma espcie de comediante que recebera da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que a obrigava a mudar continuamente de vesturio. D. rsula viu-a entrar risonha e ir a ela dar-lhe os costumados bons dias, que eram sempre um beijo, ou antes dois, um na mo, outro na face.

    Demorei-me muito? perguntou ela voltando rapidamente o corpo, de maneira a ver o relgio que ficava do outro lado da sala. Nove horas! Que passeio, senhor meu irmo!

    Estcio olhava para ela silencioso e no lhe respondeu. Foram logo depois mudar de roupa, e o almoo reuniu a famlia. D.rsula props, durante ele, algumas mudanas na disposio da chcara, mudanas que foram longamente discutidas com o sobrinho, e aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. rsula desceu chcara com Estcio.As alteraes foram ainda estudadas e combinadas no prprio terreno, com assistncia do feitor. Logo que acabou a deliberao e que o projeto de D. rsula foi definitivamente assentado, Estcio reteve-a e lhe disse:

    Preciso falar-lhe um instante.

    Tambm eu.

    Quais so os seus sentimentos atuais em relao a Helena? Oh! no precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo

  • so meras aparncias. No creio que seja absolutamente amiga dela; mas no pode negar que a antipatia desapareceu ou diminuiu muito.

    Diminuiu, talvez.

    E com razo. Pensa que tambm eu no tive repugnncias, depois que ela aqui entrou? Tive-as; mas se no houvessem desaparecido, desapareceriam hoje de manh.

    Como?

    Estcio referiu tia a cena do captulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena. D. rsula sorriu ironicamente.

    No a impressiona isto? perguntou Estcio.

    No, respondeu D. rsula com deciso; a frase de Helena achada em algum dos muitos livros que ela l. Helena no tola; quer prender-nos por todos os lados, at pela compaixo. No te nego que comeo a gostar dela; dedicada, afetuosa, diligente; tem maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Alm disso, naturalmente simptica. J vou gostando dela; mas um gostar sem fogo nem paixo, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presena de outra mulher nesta casa conveniente, porque eu estou cansada. Helena preenche essa lacuna. Se alguma coisa, entretanto, a podia prejudicar nas nossas relaes esse dito.

    Estcio tomou calorosamente a defesa da irm.

    O que eu lhe contei, disse ele, foram apenas as palavras. No pude nem poderei reproduzir a expresso sincera com que ela as proferiu, e a profunda tristeza que havia em seus olhos. No lhe nego que, ao v-la mudar to depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de dvida, mas passou logo. Ela tem o poder de concentrar a amargura no corao; tambm a dor tem suas hipocrisias...

    Mas que dor? que amargura? interrompeu D. rsula. A dor de ser legitimada? a amargura de uma herana?

    Estcio protestou calorosamente contra aquele caminho que a tia dava s suas idias; enfim pediu-lhe que interrogasse com cautela a irm.

    Um homem, concluiu ele, menos apto para obter tais confisses; uma senhora, respeitvel e parenta, est mais no caso de lhe captar a confiana e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel?

    Pedes muito, respondeu D. rsula. Verei se te posso dar metade disso. Era s o que tinhas para dizer?

    S.

  • Uma criancice! Eu tenho coisa mais sria. O Dr. Camargo escreveu-me; trata-se...

    No precisa dizer mais nada, interrompeu Estcio; l vem ele.

    Camargo aparecera efetivamente a vinte passos de distncia.

    Doutor, disse D. rsula, logo que este se aproximou deles, chega um pouco fora de propsito. Eu mal tive tempo de assustar meu sobrinho, que ainda no sabe o que o senhor lhe quer.

    Saber agora; s bastante que a senhora lhe diga que me aprova.

    Completamente.

    Trata-se... disse Estcio.

    De uma conspirao; todos conspiramos em seu benefcio.

    D. rsula retirou-se para casa; os dois ficaram ss. Uma vez ss, Camargo pousou a mo no ombro de Estcio, fitou-o paternalmente, enfim perguntou-lhe se queria ser deputado. Estcio no pode reprimir um gesto de surpresa.

    Era isso? disse ele.

    Creio que no se trata de um suplcio. Uma cadeira na Cmara! No a mesma coisa que um quarto no Aljube...

    Mas a que propsito...

    Esta idia apoquentava-me h algumas semanas. Doa-me v-lo vegetar os seus mais belos anos numa obscuridade relativa. A poltica a melhor carreira para um homem em suas condies; tem instruo, carter, riqueza; pode subir a posies invejveis. Vendo isso, determinei met-lo na Cadeia... Velha. Fala-se em dissoluo. Para facilitar-lhe o sucesso, entendi-me com duas influncias dominantes. O negcio afigura-se-me em bom caminho.

    Estcio ouviu com desagrado as notcias que lhe dava o mdico.

    Mas, doutor, disse ele depois de curto silncio, houve de sua parte alguma precipitao. Pelo menos, devia consultar-me. Do modo por que arranjou as coisas, quase me acho desobrigado de lhe agradecer a inteno. Quanto a aceitar, no aceito.

    Camargo no perdeu a tramontana; deixou passar por cima da cabea a primeira onda de desagrado, surgiu fora e insistiu tranqilamente:

    Vejamos as coisas com os culos do senso comum. Em primeiro lugar, no creio que tenha outros projetos na cabea...

  • Talvez.

    Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A cincia rdua e seus resultados fazem menos rudo. No tem vocao comercial nem industrial. Medita alguma ponte pnsil entre a Corte e Niteri, uma estrada at Mato Grosso ou uma linha de navegao para a China? duvidoso. Seu futuro tem por ora dois limites nicos, alguns estudos de cincia e os aluguis das casas que possui. Ora, a eleio nem lhe tira os aluguis nem obsta a que continue os estudos; a eleio completa-o, dando-lhe a vida pblica, que lhe falta. A nica objeo seria a falta de opinio poltica; mas esta objeo no o pode ser. H de ter, sem dvida, meditado alguma vez nas necessidades pblicas, e...

    Suponha, mera hiptese, que tenho alguns compromissos com a oposio.

    Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na Cmara embora pela porta dos fundos. Se tem idias especiais e partidrias, a primeira necessidade obter o meio de as expor e defender. O partido que lhe der a mo, se no for o seu, ficar consolado com a idia de ter ajudado um adversrio talentoso e honesto. Mas a verdade que no escolheu ainda entre os dois partidos; no tem opinies feitas. Que importa? Grande nmero de jovens polticos seguem, no uma opinio examinada, ponderada e escolhida, mas a do crculo de suas afeies, a que os pais ou amigos imediatos honraram e defenderam, a que as circunstncias lhe impem. Da vm algumas legtimas converses posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circunstncias da origem, e do boto luzia ou saquarema nasce um magnfico lrio saquarema ou luzia. Demais, a poltica cincia prtica; e eu desconto de teorias que s so teorias. Entre primeiro na Cmara; a experincia e o estudo dos homens e das coisas lhe designaro a que lado se deve inclinar.

    Estcio ouviu atento estas vozes com que a serpente lhe apontava para a rvore da cincia do bem e do mal. Menos curioso que Eva, entrou a discutir filosoficamente com o rptil.

    Entra-se na poltica, disse ele, por vocao legtima, ambio nobre, interesse, vaidade, e at por simples distrao. Nenhum desses motivos me impele a dobrar o cabo Tormentrio...

    Da Boa Esperana, emendou Camargo rindo; no suprima trs sculos de navegao.

    Estcio riu tambm. Depois falou ao mdico da sua ndole e ambies. No negava que tivesse ambies; mas nem s as havia polticas, nem todas eram da mesma estatura. Os espritos, disse ele, nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras espcies intermdias. A uns necessrio o horizonte vasto, a elevada montanha, de cujo cimo batem as asas e sobem a encarar o sol; outros contentam-se com algumas

  • longas braas de espao e um telhado em que vo esconder o ninho. Estes eram os obscuros, e, na opinio dele, os mais felizes. No seduzem as vistas, no subjugam os homens, no os menciona a Histria em suas pginas luminosas ou sombrias; o vo do telhado em que abrigaram a prole, a rvore em que pousaram, so as testemunhas nicas e passageiras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os colhe, vo eles pousar no regao comum da eternidade, onde dormem o mesmo perptuo sono, tanto o capito que subiu ao sumo estado por uma escada de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o esqueceu duas horas depois. Suas ambies no eram to nfimas como seriam as do cabreiro; eram as do proprietrio do campo que o capito atravessasse. Um bom peclio, a famlia, alguns livros e amigos, no iam alm seus mais arrojados sonhos.

    Um sorriso de lstima foi a primeira resposta do mdico.

    Meu caro Estcio, disse ele depois, esse trocadilho de andorinhas e cabreiros a coisa mais extraordinria que eu esperava ouvir a um matemtico. Saiba que detesto igualmente a filosofia da obscuridade e a retrica dos poetas. Sobretudo, gosto que respondam em prosa quando falo em prosa.

    Parece-lhe que poetei? perguntou Estcio rindo.

    Despropositadamente! Ora, eu falo de coisas srias; e convm no confundir alhos, que so a metade prtica da vida, com bugalhos, que so a parte ideolgica e v.

    Eu serei idelogo.

    No tem direito de o ser.

    Pois bem, deixe-me com as minhas matemticas, as minhas flores, as minhas espingardas.

    No! H de intercalar tudo isso com um pouco de poltica.

    Puxando-o familiarmente pela gola do palet, Camargo f-lo sentar ao p de si, no banco que ali estava mais prximo. Depois falou. O novo discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma das vantagens da vida pblica deixou de ser apontada com uma complacncia de tentador; todas as glrias, pompas e satisfaes da poltica, e no s as reais, mas as fictcias ou duvidosas, foram inventariadas, pintadas, douradas e iluminadas pelo mdico. A palavra revelou um poder de evocao, uma veemncia, uma energia, que ningum era capaz de supor-lhe. O taciturno desabrochou tagarela. Para falar tanto e com tal fora era preciso que o animasse um grande sentimento ou um grande interesse.

  • Estcio, lisonjeado com a afeio que ele lhe mostrava, no teve ensejo de fazer essa reflexo. Nem se animou a repetir a recusa; adotou o alvitre de diferir a resposta para outra ocasio.

    J lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou pronto a refletir, e a consultar o Padre Melchior e Helena.

    O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente, no passou o efeito de um sorriso sardnico e dissimulado. Interveio uma pitada de rap, que o mdico inseriu lentamente, depois de a extrair de uma caixa de tartaruga, presente do conselheiro Vale.

    Helena! disse ele com alguma hesitao. Que vem fazer sua irm neste negcio?

    um voto, redargiu Estcio; e menos leve do que lhe parece. H nela muita reflexo escondida, uma razo clara e forte, em boa harmonia com as suas outras qualidades feminis.

    Entre as sobrancelhas de Camargo projetou-se uma longa ruga, e foi toda a expresso de seu espanto e desgosto. A resposta de Estcio revelara-lhe uma situao nova na famlia: o voto de Helena, consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Esta soluo, que porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, no a previra o mdico. Limitou-se a not-la de si para si; e, terminando subitamente a conversa, disse:

    Consulte as pessoas de seu agrado. Quem no estiver com a minha opinio, no seu amigo. Em todo o caso, ningum lhe poder afirmar que no a amizade, a longa amizade...

    Estcio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe afetuosamente a mo. Tinham-se levantado. Era quase meio-dia; Camargo despediu-se ali mesmo; ia ver dois doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro atravessou sozinho a chcara; ia pensativo, e aborrecido. A poltica, na sua opinio, era uma noiva importuna; mas, se todos conspirassem a favor dela, no seria ele obrigado a despos-la? A esta reflexo respondeu a voz do Padre Melchior, do alto de uma janela:

    Venha c, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso?

    CAPTULO VIII

    D. rsula tinha j confiado ao velho capelo a proposta de Camargo. Consultado por Estcio, respondeu o padre:

    Consulte as suas foras e a responsabilidade do cargo, e escolha.

  • J escolhi, disse Estcio; pedia-lhe conselho para apoiar melhor a minha prpria deciso. No esse o destino de todos os conselhos? Decidi que no aceito a candidatura. A vida poltica turbulenta demais para o meu esprito. Estou pronto para a ao, mas no h de ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar Cmara, alm de algumas prerrogativas e um papel acessrio? Eu s me meteria na poltica se pudesse oficiar; mas ser apenas sacristo...

    Entre o oficiante e o sacristo, observou Melchior, est o pregador, que cargo nobre e influente.

    Mas o tema do sermo, padre-mestre? retorquiu Estcio rindo; falta-me o tema.

    D. rsula, a quem seduziam exclusivamente a posio e o rumor pblico em favor do sobrinho, viu naquelas razes um pretexto ou uma puerilidade. Defendeu, como pde, a causa de Camargo; instou com o sobrinho para que refletisse maduramente, antes de qualquer resposta definitiva. Estcio prometeu como prometera ao mdico, por simples condescendncia; mas sobretudo para pr termo ao assunto e ir saber a causa do sorriso quase imperceptvel que viu roar os lbios de Helena. A moa erguera-se e dirigira-se para uma das janelas; Estcio foi at ali.

    Adivinhei, pelo seu sorriso, disse ele, que tudo isto lhe parece pueril, e que eu fao bem em no aceitar o que se me oferece.

    Helena olhou um pouco espantada para ele, mas respondeu com tranqilidade:

    Pelo contrrio, penso que deve aceitar. Alm de haver consentimento de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugnia.

    Era a primeira vez que Helena aludia ao amor de Estcio, e fazia-o por modo encoberto e oblquo. Estcio escapou dessa vez regra de todos os coraes amantes; resvalou pela aluso e discutiu gravemente o assunto da candidatura. Era pesado demais para cabea feminina; Helena intercalou uma observao sobre dois passarinhos que bailavam no ar, e Estcio aceitou a diverso, deixando em paz os eleitores.

    Durante dois dias no saiu ele de casa. Tendo recebido alguns livros novos, gastou parte do tempo em os folhear, ler alguma pgina, coloc-los nas estantes, alterando a ordem e a disposio dos anteriores, com a prolixidade e o amor do biblifilo. Helena ajudava-o nesse trabalho, um pouco parecido com o de Penlope, porque a ordem estabelecida ao meio-dia era s vezes alterada s duas horas, e restaurada na seguinte manh. Estcio, entretanto, no ficava todo entregue aos livros; admirava a solicitude da irm, a ordem e o cuidado com que ela o auxiliava. Helena parecia no andar; o vulto

  • resvalava silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo s indicaes do irmo, ou pondo em experincia uma idia sua. Estcio parava s vezes, fatigado; ela continuava imperturbavelmente o servio.Se ele lhe fazia algum reparo, a moa respondia erguendo os ombros ou sorrindo, e prosseguia. Ento Estcio segurava-lhe nos pulsos e exclamava rindo:

    Sossega, borboleta!

    Helena parava, mas eram s poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a mesma serena agitao. Era assim que as horas se passavam na intimidade mais doce, e que a recproca afeio ia excluindo toda a preocupao alheia; era assim que a influncia de Helena assumia as propores de voto preponderante.

    No terceiro dia, D. Tomsia e Eugnia foram jantar a Andara. Eugnia estava nesse dia mais sisuda e dcil que nunca; dissera-se que trazia a alma to nova como o vestido, e menos enfeitada q