heidegger e a psicanálise

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Entrevista realizada por Mario Fleig, em 18.05.2003 na UNISINOS. William J. Richardson,professor do Boston College (EUA), filósofo e psicanalista com formação no WilliamAlanson White Institute, New York City, membro da American Academy of Psychoanalysise da International Federation for Psychoanalytic Education, professor convidadodo Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS em maio de 2003, autor de Heidegger:Through Phenomenology to Thought, 4. ed., Prefácio de M. Heidegger, The Hague: MartinusNijhoff, 2003.

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  • Heidegger e a psicanlise

    Uma entrevista com William J. Richardson*

    Title: Heidegger and Phychoanalysis. An Interview with William J.Richardson

    M. Fleig: Sabemos que o Sr. realizou seus estudos na Universida-de de Lovaina, na Blgica, e gostaramos de saber como se deu seuencontro com Heidegger (1889-1976) e como o Sr. conseguiuque Heidegger lhe respondesse de modo to generoso na famosacarta de abril de 1962.

    W. Richardson: Minha relao com Heidegger aconteceu quasepor acaso, pois quando eu comeava meus estudos de doutoradona Universidade de Lovaina, em 1956, consegui me inscreverpara assistir ao curso de inverno de Heidegger, Sobre o princpioda razo, em Freiburg. L, morei junto com um colega italianomuito alegre e loquaz que tinha sido convidado por Heideggerpara assistir a seu seminrio privado sobre a Lgica de Hegel. Este

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    _________________* Entrevista realizada por Mario Fleig, em 18.05.2003 na UNISINOS. William J. Richard-

    son, professor do Boston College (EUA), filsofo e psicanalista com formao no WilliamAlanson White Institute, New York City, membro da American Academy of Psychoa-nalysis e da International Federation for Psychoanalytic Education, professor convidadodo Ps-Graduao em Filosofia da UNISINOS em maio de 2003, autor de Heidegger:Through Phenomenology to Thought, 4. ed., Prefcio de M. Heidegger, The Hague: Marti-nus Nijhoff, 2003.

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  • colega, que estava bem mais adiantado do que eu, insistia muitona diferena entre o primeiro Heidegger de Ser e tempo (1927)e o segundo Heidegger, colocando-me assim a par da situao dosestudos sobre seu pensamento. Aproveitei a ocasio deste semes-tre na Alemanha para encontrar um tema aceitvel para minhatese. Refleti muito, e, no final do semestre, achei que eu era uminiciante e decidi que no tinha ainda nenhum motivo para con-versar seriamente com Heidegger sobre filosofia. Contudo, penseique eu poderia pedir sua opinio sobre um tema de tese vivel. Eutinha vrias idias, como a relao entre Husserl e Heidegger notocante noo de fenomenologia, mas ele me disse que isto eraalgo muito extenso. Tambm pensei no tema da diferena ontol-gica e lhe perguntei se tinha escrito algo sobre isso aps A essn-cia do fundamento (1929). Ele sorriu. E eu perguntei: Ao longodos anos? E ele disse: Sim. Ento eu propus o tema, que tinhasurgido ao longo das conversas dirias, sobre a possibilidade dodesenvolvimento da noo de pensar (Das Denken) a partir de suaidia da fenomenologia. E Heidegger me disse: Sim, sim, issodar certo. Este foi meu primeiro contato com ele, que foi muitoatencioso e gentil, e at mesmo paternal, encorajando-me a darcontinuidade ao que eu tinha proposto. Voltei a Lovaina para ter-minar meus compromissos acadmicos e retornei a Freiburg parame dedicar ao tema de minha tese. Trabalhei ento com um gru-po de colegas na leitura de Ser e tempo e, aps trs anos e meiode pesquisa, elaborei um esboo de tese suficientemente claro. Foiatravs do Prof. Max Mller, amigo de Heidegger, que, alis, foiquem salvou sua biblioteca de ser destruda aps a guerra, que eupude ser recebido por ele. Mller conhecia bem meu trabalho eescreveu a Heidegger uma carta de introduo ao que eu tinhafeito, um resumo de 25 pginas. E ento Heidegger marcou umencontro para fevereiro de 1959. Ele me recebeu de um modomuito gentil. Vi que meu texto estava todo sublinhado com faixasvermelhas, parecendo a bandeira americana, e de fato ele o tinhalido com muita ateno. E ento ele me disse que tinha apenasduas correes a serem feitas. Uma era a respeito de uma expres-so e a outra relativa questo do sujeito. Eu tinha falado da sub-jetividade aps Descartes em Leibniz. Ele me disse: No, no! A

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  • subjetividade vale para Descartes, mas em Leibniz se trata da sub-jetidade. uma nuance que tem seu valor, mas no era nenhumacrtica profunda ao meu texto, que, alis, ele aceitou. Aps isso,ele me contou algumas histrias a respeito de Husserl. Eu tinhapreparado em torno de 15 perguntas, e ele teve a gentileza de res-pond-las, sempre sendo gentil e atencioso. A certa altura, olhan-do atravs da grande janela com vista para o comeo da FlorestaNegra e para seus livros, ele me disse: Eu pude fazer isso, mas jestou velho ele tinha j 70 anos , mas penso e ento olhavapara a paisagem que agora sou capaz de dizer o que eu quero di-zer. At agora eu fazia isso atravs dos outros, mas agora pensoque eu mesmo posso me expressar. Eu tive a impresso de ummstico natural, pois no havia nada de religioso nesta viso. Pa-recia que ele via alguma coisa atravs daquela paisagem, um alm.E sua mulher nos serviu um caf. E ento ele se desculpou por terque terminar, dizendo que estava um pouco gripado. A conversatinha se estendido por quatro horas. Voltei para minha casa, esta-va esgotado. No dia seguinte, ao ir para a Universidade de bicicle-ta, encontrei Mller, que me perguntou como tinha sido a entre-vista com Heidegger. Eu lhe disse que fora cansativo, mas achavaque tinha me sado bem e que tinha sido uma grande experinciapara mim. Ele ento me disse que, depois da entrevista, Heideggerlhe telefonou, perguntando: Mas quem este aluno, pois os da-qui sabem como eu penso, mas este realmente me compreendeumuito bem, como isso possvel? E, alm disso, ele americano!Como isso possvel? E isso me encorajou muito, pois era umaexpresso espontnea do que ele pensava sobre o que eu tinhaapresentado. Mller, que orientava meu trabalho, tambm ficoucontente. Depois eu lhe escrevi uma carta perguntando se ele po-deria escrever um prefcio para meu livro, caso estivesse de acor-do com minha interpretao de seu pensamento. Para minha sur-presa, ele me respondeu que em princpio estava de acordo em es-crever algumas palavras para o prefcio e que responderia uma ouduas perguntas. Eu lhe agradeci, dizendo que iria refletir sobre asquestes que poderia lhe colocar. Aps dois anos, antes da publi-cao de meu livro, lhe enviei duas questes que podem ser resu-midas no seguinte: Como realmente se deve compreender sua

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  • primeira experincia da questo do ser em Brentano? e Admi-tindo-se que no seu pensamento aconteceu uma viravolta, comoesta pode ter acontecido, ou, em outros termos, como precisopensar um tal acontecimento nele mesmo? Ele tambm queriasaber o nvel da recepo e da discusso de seu pensamento nosEUA, e eu fiz o melhor que pude para lhe dar uma apresentaohonesta. Ele ento me enviou a resposta s minhas questes,como prefcio para meu livro, e isso foi a primeira vez a respeitode um livro sobre seu pensamento, confirmando o que j se diziadele, ou seja, que seu pensamento estava referido essencialmentea Aristteles e tambm confirmando o que dizia a respeito da Kehre,da viravolta no seu pensamento.

    M. Fleig: Como o Sr. v a questo do envolvimento da Heideggercom o nazismo, no perodo em que assumiu o cargo de Reitor daUniversidade de Freiburg, em 1933, assim como sua recusa a re-conhecer publicamente seu erro em sua adeso ao nazismo?

    W. Richardson: O livro que se tornou famoso, da V. Farias, noapresentou praticamente nada de novo em relao ao que ns jconhecamos na dcada de 50. E por isso no se compreende porque este livro foi rejeitado pelo editor alemo e igualmente porque fez tanto furor quando foi publicado na Frana. Ns j tnha-mos discutido muito, examinando a fundo Ser e tempo, commeus amigos alemes que tinham participado da juventude hitle-rista, recebendo formao nazista, mas que no chegaram a com-bater por serem muito jovens. Ento, lemos juntos Ser e tempo,de modo cuidadoso e no encontramos nada que pudesse exigir acatstrofe nazista. Lembro-me que se dizia que Heidegger tinharetirado de Husserl a permisso para utilizar a biblioteca da Uni-versidade, mas no foi encontrada nenhuma prova que confir-masse esse boato. Contudo, Heidegger viveu num ambiente niti-damente anti-semita, em Messkirch, sua cidade natal, onde hou-ve um grande pregador no sculo XVII Abrao de Santa Clara que deixou sua marca. Contudo, eu nunca vi em seu pensamentoalgo que pudesse exigir uma capitulao ao nazismo. Por outrolado, h um livro que sair no prximo semestre, pela Universida-

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  • de de Cornell, sobre as razes de Heidegger e que apresenta evi-dncias convincentes sobre uma tradio qual ele pertencia,que remonta a Abrao de Santa Clara. Supe-se uma ligao es-treita entre as formas da natureza e a continuidade viva de umatradio historial determinada, incluindo os costumes, o trabalhoe o jogo. Tradio celebrada tambm pelo poeta Hlderlin, naqual h um certo narcisismo coletivo. Isso algo que no aparece emSer e tempo, mas sim em cartas e textos posteriores, especial-mente sobre a poesia e a linguagem. Pode-se, ento, dizer que huma certa radicalidade de sua experincia cultural que no de-sencorajou seu engajamento no nacional-socialismo.

    M. Fleig: Ento no se pode simplesmente dizer que o engaja-mento poltico de Heidegger foi fruto de sua ingenuidade e inex-perincia no campo da poltica?

    W. Richardson: Eu mesmo pensei assim durante muito tempo,mas este livro nos mostra que no se trata de ingenuidade. Hei-degger foi um conservador, mas no se pode dizer que ele tenhasido um nacional-socialista to radical quanto os do III Reich, ain-da que tenha tomado posio favorvel ao mesmo. Mas isso no suficiente para justificar esta tendncia radical. Em segundo lu-gar, penso que ele foi ingnuo no sentido de que acreditou que po-deria influenciar na formao dos homens de cincias, podendo,assim, humanizar a cincia e a tcnica. Por outro lado, ele nuncafoi corajoso. Por exemplo, no foi capaz de se manifestar a favorde seu amigo Max Mller, afirmando que ele no era politicamen-te confivel, precisamente por ser catlico. Heidegger era fisica-mente corajoso, podendo, por exemplo, esquiar de modo agressi-vo e audaz, mas humanamente no era nada corajoso. Era hesi-tante e reservado quando se defrontava com situaes difceis. Ogrande problema que ele no disse nada, depois do seu engaja-mento poltico, para se desculpar do que tinha feito.

    M. Fleig: E por que ele nunca se desculpou do que tinha feito?

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  • W. Richardson: Pode-se supor que ele pensasse que no iria ja-mais satisfazer as pessoas com qualquer coisa que dissesse, sobre-tudo os judeus. Uma outra explicao que sua mulher ElfrideHeidegger era a nazista convicta da famlia. Quando Paul Ce-lam visitou Heidegger e lhe falou durante o jantar, este estava de-cidido a dizer algo sobre seu engajamento poltico. Contudo, nodia seguinte, aps a noite com sua mulher, ele voltou atrs.

    M. Fleig: Ento tambm o fato de nunca ter se desligado do Parti-do Nacional-Socialista se inscreve nesta mesma posio?

    W. Richardson: Ter feito isso seria um gesto bastante combativo,mas isso no pertencia ao modo de proceder de Heidegger. Apster renunciado ao reitorado, ele continuou a lecionar, esquivan-do-se de fazer um ato dramtico e pblico. De fato, essa foi sua fal-ta, pois se pretendesse renunciar, deveria faz-lo publicamente,como disse Jaspers. Mas este no era seu estilo e nem tinha a cora-gem para isso. E certamente sua mulher sempre se ops a isso.

    Eu ouvi uma histria que me contou um amigo. Ele foiconvidado para o casamento de um neto de Heidegger e entoteve oportunidade de falar com seu filho, que lhe contou que apsa guerra, numa reunio da famlia, a Frau Heidegger disse a todos:A partir de agora, o que aconteceu nos ltimos 13 anos no exis-te mais nesta casa, no se falar jamais disso. Ela era uma mulherdifcil. Na primeira semana que eu cheguei a Freiburg, a filha deuma senhora onde me hospedei me disse que a mulher de Heideg-ger era nazista desde cedo, e ento d para imaginar o quanto issopode t-lo influenciado. Assim, ele poderia estar convencido deque nada do que dissesse poderia ser suficiente para responder sacusaes. Eu no penso assim, pois ele bem poderia dizer, ao me-nos pela imprensa, que lamentava o que tinha acontecido.

    M. Fleig: Mas que mulher!

    W. Richardson: Quando fui sua casa, para a entrevista, eu nosabia como ela me receberia, pois eu sabia que ela era anticlerical.Coloquei meu colarinho romano, e temia que ela pudesse no me

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  • receber, apesar de ter uma entrevista marcada com Heidegger. Eutentei evitar qualquer confronto. Estvamos no inverno, e porcima de meu sobretudo ainda coloquei um cachecol, de modo quepude entrar na casa sem problema. H uma histria com RomanoGuardini, contada por M. Mller, que ilustra bem isso. Ele e Hei-degger eram grandes amigos e chegaram a ter o projeto de escre-ver um livro em conjunto. Numa ocasio em que Guardini foi aFreiburg, para uma conferncia, Heidegger o convidou para umcaf s 4 horas em sua casa, e quando este chegou, ele lhe disse:Eu sinto muito, no posso te receber dentro de minha casa, mi-nha mulher no o permite.

    M. Fleig: E a respeito da relao entre Lacan e Heidegger? O quepoderia nos dizer? At que ponto isso interessa psicanlise?

    W. Richardson: Heidegger nunca teve qualquer interesse pelapsicanlise, apesar de ter uma proximidade maior com o trabalhode L. Binswanger e de M. Boss. Ele considerou Freud sempre eapenas como um positivista e neokantiano, para quem tudo nopassava de um sistema de causa e efeito, e via a noo de incons-ciente como algo vazio, que no lhe servia para nada.

    A primeira vez que me encontrei com Lacan, quando ele foiaos EUA em 1966, eu me apresentei como um estudioso de Heideg-ger e ele me disse: Heidegger, isso no me interessa! Lacan apren-deu muito de Heidegger atravs de Beaufret, que era seu analisantee tentou aproximar os dois, organizando um encontro. Eles se en-contraram, mas de fato nada aconteceu. Heidegger no era nadafalador e tambm j tinha se referido, nas cartas a M. Boss, aosEscritos de Lacan como sendo um texto barroco, dizendo que opsiquiatra precisa de um psiquiatra. Heidegger fala de Lacan nomesmo tom com que se refere a Sartre, como algum que provocouum interesse alucinante, como algo moda francesa.

    Por outro lado, penso que o interesse de Lacan por Hei-degger foi bem mais srio, pois ele mesmo chegou a fazer uma ex-celente traduo do texto Logos. Creio que ele esperava queHeidegger pudesse dizer alguma coisa de interessante sobre anoo de linguagem, e penso que isso verdadeiro. Lacan tem

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  • uma noo de linguagem puramente ntica, sem ter uma baseontolgica, e penso que isso que Heidegger lhe fornece, a di-menso ontolgica da linguagem.

    M. Fleig: A respeito disso, como o Sr. v o progressivo afastamen-to feito por Lacan em relao a Heidegger, assim como sua crtica,at mesmo agressiva e irnica, cosmetologia heideggeriana,ou seja, que jamais consegue sair do mundo e do campo do sen-tido? Ou seja, Heidegger parece no ajudar em nada Lacan a res-peito do real.

    W. Richardson: Creio que Lacan no soube tirar todas as conse-qncias da noo heideggeriana de leth, de aletheia, e pen-so que nesta que se encontra a noo de real. J discuti issocom colegas lacanianos e penso que falta a Lacan uma noo deverdade e a noo de agente tico, que no um sujeito substanti-vo. Lacan fala muito da verdade, mas sem jamais explicar o quequer com isso. Diz eu, a verdade, falo, assim como fala da verda-de que se exprime pela no-verdade, pela distoro. A distoro necessria para Lacan, mas o que isso pode querer dizer? Creioque a negatividade, que supe a lethe, se exprime pelo inexpri-mvel. nisso que eu procuraria a noo de Real e mesmo a noodo mal. No Seminrio sobre Parmnides,1 h textos que indicamque para Heidegger a fonte do mal, da malignidade, se encontra nalethe. Penso que esta noo de negatividade da aletheia ajudaa explicar a prpria queda de Heidegger, que tambm foi vtimadesta negatividade da verdade, assim como desenvolver algo quepode nos ajudar na discusso da questo da responsabilidade. Sopontos bem precisos no ltimo Heidegger que poderiam forneceruma base para formulaes interessantes e produtivas, e no setrata apenas de repetir o que j foi dito. Trata-se de um modo defalar de uma concepo da verdade, que no a toma como algoabsoluto, mas que permite uma espcie de revelao, que poderiaacenar para uma verdade absoluta. Contudo, a verdade que expe-rienciamos sempre uma verdade limitada, que aponta para a fi-

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    1M. HEIDEGGER, Parmenides, Frankfurt am Main: V. Klostermann, 1982.

  • nitude humana. Considero esta concepo de verdade propostapor Heidegger extremamente rica, mesmo para um absolutista, eque permite pensar de modo interessante nossos problemas.

    Para Lacan, tudo o que diz sobre a linguagem e o incons-ciente situa-se no mbito de questes nticas, ou seja, no campoda cincia, ao passo que Heidegger se interessa pelas questesontolgicas, que esto pressupostas na dimenso ntica. Lacan,pelo contrrio, permanece sempre nos limites da dimenso nti-ca da linguagem, recusando aceitar seus pressupostos ontolgi-cos. E o que Heidegger pode trazer para Lacan uma dimensoontolgica da linguagem.

    M. Fleig: Mas Lacan insistentemente recusa a dimenso ontol-gica da linguagem?

    W. Richardson: Sim, mas eu creio que ele est errado nisso. Em1978, Lacan me disse: Eu empreguei Heidegger de uma maneirapropedutica, e isso aconteceu na dcada de 50, mas depois en-contrei um modo de formular isso, topologicamente, e agora no Heidegger que me interessa.

    Lacan afirma que no h Outro do Outro, e penso que issoquer dizer que no h linguagem da linguagem, e nisso estou deacordo. Contudo, o ser heideggeriano no significa uma outra lin-guagem, mas sim uma dimenso que revela a linguagem, uma di-menso que permite prpria linguagem ser, que permite ao sig-nificante ser significante, ou seja, a fora da ordem simblica.Deste modo, o ser da linguagem no uma outra linguagem, masa dimenso que permite linguagem ser. Assim, o ser heidegge-riano no pode ser pensado como um Outro do Outro, ou seja, adimenso ontolgica me parece ser indispensvel para pensar adimenso ntica da linguagem. Trata-se da noo heideggerianada diferena ontolgica entre ser e entes, mas pela qual Lacannunca se interessou. Tambm penso que Lacan nunca refletiusobre essa noo, assim como sobre a aletheia como aquilo quese revela e se vela. Para mim, a lethe, como fonte do que se es-conde, do erro, da falha, nos d a experincia da verdade comofinita e permite explicar o erro e a falha moral. A partir de Hei-

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  • degger, podemos situar o imaginrio e o simblico como revela-o e o real como lethe, e o n borromeano pode funcionarsem ser um sujeito substancial, pois h a unidade do tempo quegarante a unidade do sujeito, o Dasein como temporalidade ex-ttica. Estes so modos de considerar o inconsciente que aindano foram totalmente desenvolvidos.

    M. Fleig: Mas isso uma maneira interessante de formular oproblema do inconsciente. Lacan sempre deu muita nfase di-menso espacial, especialmente atravs da topologia, e conside-ra o tempo na perspectiva lgica, como o tempo lgico. Contu-do, a maneira heideggeriana de considerar o tempo no utiliza-da por Lacan.

    W. Richardson: De fato, no o caminho que Lacan segue. Elese volta para a topologia. O que me causa problema que a partirdisso me parece que no h como se construir uma tica. E me pa-rece que deve haver uma maneira de formular o que poderia ser olimite do desejo. Penso que a tica supe uma norma a respeito dohumano, seja com Aristteles, com Kant ou qualquer outra for-mulao. Isso que significa ser humano, que haja um limite. Masem Lacan, vejo que o exemplo do que verdadeiramente humanose encontra em Antgona, a dimenso do desejo puro. Ora, pra-ticamente o mesmo que a herona sadiana.

    M. Fleig: Mas ento o Sr. aproxima Antgona de Sfocles da Jus-tine de Sade, por exemplo?

    W. Richardson: Creio que o que Lacan faz, pois ele prefere aconcepo de lei moral de Sade de Kant. Ele fala de Antgonacomo desejo ou dor, sendo essencial que a beleza no mais doque a cobertura da putrefao humana, at o ponto dela represen-tar o sujeito moral, o parltre.2 Ora, a concepo do ser humano58

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    2Neologismo criado por Lacan, condensa parler+tre+lettre, traduzido de modo insuficien-te em portugus por falasser, pois no inclui lettre, letra e carta. Lacan utiliza esta noopara nomear o Inconsciente freudiano.

  • do parltre de Lacan vem de Sade e de Bataille. Tudo o que elediz a respeito do gozo vem de Sade atravs de Bataille, e entoAntgona, em sua beleza, a mscara da putrefao.

    M. Fleig: Mas essa aproximao entre Antgona e Sade nova. OSr. poderia precisar mais?

    W. Richardson: Eu procuro situar de um modo preciso esta ex-ploso de desejo que nos cega para a putrefao. Lacan fala destajovem amvel e surpreendente e precisamente este termo, a sur-presa, que ele emprega para se referir a Justine. Uma posio ticadepende da noo de humanidade que se tem, e a tica o modocomo se deve fazer para ser humano. Ora, a noo de humanida-de de Lacan de um ser que fala, o parltre, e sua posio tica articulada dentro do modelo de Sade e de Bataille. E, alm disso,ele atribui a Antgona uma posio que vem de dipo, o me finai,isto , antes no tivesse nascido. Trata-se de um desejo puro,um desejo pela morte. Lacan tentou durante um ano inteiro for-mular uma tica da psicanlise, e ento pde dizer que a nica ra-zo de algum ser culpado de ter cedido a seu desejo. Essa for-mulao me incomoda, pois no consigo ver como poderia ser su-ficiente para um analista situar seu trabalho, pois neste Seminriode Lacan sobre a tica da psicanlise no h nada que interditeuma posio de gozo, sobretudo no que seja o bem do outro.

    M. Fleig: Se eu o interpreto bem, isso significa que sua hiptese que a tica da psicanlise proposta por Lacan , no fundo, uma ti-ca sadiana, na qual no caberia a noo de piedade ou de justia?

    W. Richardson: Sim, isso que eu penso.

    M. Fleig: Seria ento uma tica que interpreta o desejo no re-gistro do gozo? Como o Sr. v a formulao de Lacan a respeitodo desejo?

    W. Richardson: O que me parece que no h uma diferencia-o clara entre desejo e gozo, assim como no h uma noo do

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  • humano que permita introduzir a noo de respeito pelo outro, e apartir disso oferecer uma noo de justia. No me causam pro-blema os exageros a que Lacan tenha chegado, mas sim que tenhaanunciado a tica da psicanlise e acabe no nos dando umanoo da mesma. Mais tarde ele vai dizer que seu seminrio sobrea tica da psicanlise deveria ser reescrito e no Seminrio 11, Osquatro conceitos fundamentais da psicanlise, vai afirmar que odesejo da psicanlise, e no do psicanalista ou do psicanalisante,no um desejo puro. Sobre isso estou de acordo, mas isso aindano nos d uma tica. Ento, a questo que se coloca : qual atica da psicanlise? Existe uma tica da psicanlise? esta ques-to que tenho colocado para os lacanianos, e isso no significa di-zer que ento seriam imorais ou amorais. O que se passa que elespraticam uma tica que no se baseia na noo de humanidade doparltre como Lacan o explica, e, segundo me parece, no hcomo derivar disso uma noo de vida humana que engaje a di-menso do respeito pelo outro. Ou seja, a noo de humanidadesubjacente ao que Lacan prope no explica como possvel a di-menso da responsabilidade. Penso que a noo de responsabili-dade fundamental na tica, e eu mesmo tenho me interrogadosobre isso: como algum poderia ser responsvel por algo que nosabe, por exemplo, um ato praticado inconscientemente? Aindano tenho uma resposta para essa questo, mas tenho procuradodiscutir isso com meus colegas.

    Tambm temos o problema da noo de bom e de bem,e Lacan fala disso, seguindo a noo de bem freudiana que seencontra no princpio do prazer. Mas isso no seria coerente coma posio de Antgona, pois todos sabemos que no o prazer queela procura. A tradio fala do bem honesto, o bem til e o bem doprazer e do agradvel. Lacan fala do bem agradvel e do bem til(que denomina de servio dos bens), mas o bem honroso e hones-to completamente rejeitado. Ora, isso que aparece de sada naposio tomada por Antgona, pois ela afirma a honra e o bem ho-nesto ao dizer para Ismnia: Fao isso porque kalos, isto ,belo, honroso, honesto. a pergunta que formula Scrates: paraque se vive? preciso viver bem. O que significa viver bem?

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  • Esta a pergunta tica que nos deixou Scrates, assim como Pla-to e Aristteles.

    M. Fleig: Uma pergunta sobre seu percurso: como que o Sr.,vindo da filosofia de Heidegger, entrou no campo da psicanlise?

    W. Richardson: Quando voltei para os EUA, me pediam para fa-lar de Heidegger, e eu apresentei seu pensamento para muitaspessoas. Mas chegou um momento em que vi que tinha que fazeruma escolha diferente da hermenutica, a partir do que me pe-diam. Ento vi que deveria fazer uma formao sria em psican-lise ou ento renunciar a tudo o que estava fazendo. Ento passeium ano numa clnica psicanaltica privada, o que me levou a pro-curar uma formao psicanaltica, tendo sido aceito no WilliamAlanson White Institute, de Nova Iorque. Tambm tentei formu-lar fundamentos para a psicanlise e encontrei-os nesta espcie deantropologia heideggeriana. Foi assim que eu comecei. Quandoterminei minha formao, consegui um lugar na clnica onde ti-nha passado um ano e encontrei um colega, que era um grandeclnico, que me props um trabalho em comum. Pensei que pode-ramos comear com o livro de Paul Ricouer sobre Freud, masmeu colega me disse que no queria ler Freud. Pensei em Heideg-ger, mas no tinha ainda uma formulao suficiente da clnica apartir deste. Ento, a nica coisa que eu poderia sugerir que pu-desse interessar a este colega era Lacan. Foi assim que ns come-amos, tornando-se ele mais entusiasmado por Lacan do que eumesmo. Assim fomos formando jovens clnicos dentro da perspec-tiva de Lacan. E o aprofundamento do estudo resultou no livroAbrir os Escritos de J. Lacan,3 escrito junto com J. Mller. Tambmcomecei uma anlise com um analista que fora muito prximo deLacan, em Paris, e continuei por 10 anos. E sempre me interesseimuito pelos fundamentos filosficos da psicanlise, sobretudo ade Lacan. E por isso sempre fao perguntas, sobretudo a respeito 61

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    3W. J. RICHARDSON, J. P. MULLER, Lacan and Language: A Readers Guide to the crits,New York: International Universities Press, 1982, traduzido e adaptado para o francs: P.Julien, Ouvrir les crits de Lacan, Toulouse: Ers, 1987.

  • da questo do sujeito e da tica da psicanlise, mesmo que no te-nha respostas para muitas destas questes. Como que um sujeitopode ser capaz de um ato tico? Com isso, comeamos a discutir anoo de responsabilidade em um sujeito, pois sem a possibilidadede um agente verdadeiramente tico no se poderia falar de umatica. Constato que muitas pessoas tentam resolver esse proble-ma, seja de uma maneira hegeliana ou kantiana, e admiro estes es-foros, que so realmente muito elegantes. Mas no vejo comoeles podem conservar as intuies de Lacan e, ao mesmo tempo,transform-las numa formulao kantiana ou hegeliana. Em con-trapartida, Heidegger est muito afastado da maneira kantiana deconsiderar a tica.

    M. Fleig: Mudando um pouco de assunto, como que o Sr. v aquesto da clnica psicanaltica atualmente nos EUA?

    W. Richardson: Em geral, a clnica psiquitrica, baseada nos psi-cofrmacos, dominante. A clnica psicolgica tende a se reduzir questo do conhecimento e do comportamento. H um interes-se enorme e cada vez mais crescente em relao clnica psicana-ltica, sobretudo a lacaniana. Tambm grande o nmero de li-vros que saem sobre psicanlise. A psicanlise lacaniana entrounos EUA mais pelos estudos de literatura francesa e inglesa do quepelos psiquiatras e psiclogos.

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