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1 HEGEL E O CETICISMO: SOBRE AS POSSIBILIDADES E OS LIMITES DA SUPERAÇÃO DO CETICISMO PELA FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA Lucas Nascimento Machado (Departamento de filosofia / FFLCH USP) [email protected] Resumo: Neste artigo, buscaremos discutir, em linhas gerais, como a fundamentação hegeliana da filosofia estaria intimamente ligada a uma necessidade de responder aos tropos céticos da diversidade, da regressão ao infinito, da relação, do postulado e da circularidade. Para tanto, discutiremos os modos pelos quais Hegel buscaria superar, quer na sua juventude, quer na sua maturidade, as objeções tipicamente céticas desses tropos, mostrando como a retomada da reflexão pelo Hegel de maturidade leva à necessidade de superar essas objeções de maneira distinta daquela que é utilizada em sua juventude. Esperamos, desse modo, mostrar como a internalização de toda exterioridade pela Razão, pela qual se deve remover toda espécie de independência da primeira em relação à segunda, se faz chave para concepção hegeliana de filosofia e de sua fundamentação, bem como para a problematização dos limites e possibilidades dessa concepção e dessa fundamentação. Nesse sentido, pensar a relação entre ceticismo e filosofia na filosofia de Hegel seria pensar questões centrais a ela e à própria filosofia contemporânea, em seu diálogo com Hegel e para além dele. Palavras-chave: ceticismo fundamento - tropos do ceticismo - reflexão negação exterioridade internalização

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Resumo: Neste artigo, buscaremos discutir, em linhas gerais, como a fundamentação hegeliana da filosofia estaria intimamente ligada a uma necessidade de responder aos tropos céticos da diversidade, da regressão ao infinito, da relação, do postulado e da circularidade. Para tanto, discutiremos os modos pelos quais Hegel buscaria superar, quer na sua juventude, quer na sua maturidade, as objeções tipicamente céticas desses tropos, mostrando como a retomada da reflexão pelo Hegel de maturidade leva à necessidade de superar essas objeções de maneira distinta daquela que é utilizada em sua juventude. Esperamos, desse modo, mostrar como a internalização de toda exterioridade pela Razão, pela qual se deve remover toda espécie de independência da primeira em relação à segunda, se faz chave para concepção hegeliana de filosofia e de sua fundamentação, bem como para a problematização dos limites e possibilidades dessa concepção e dessa fundamentação. Nesse sentido, pensar a relação entre ceticismo e filosofia na filosofia de Hegel seria pensar questões centrais a ela e à própria filosofia contemporânea, em seu diálogo com Hegel e para além dele. Palavras-chave: ceticismo – fundamento - tropos do ceticismo - reflexão – negação – exterioridade – internalização

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Page 1: Hegel e o ceticismo: sobre as possibilidades e os limites da superação do ceticismo pela fundamentação da filosofia (Apresentação no XVII Congresso da Sociedade Interamericana

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HEGEL E O CETICISMO:

SOBRE AS POSSIBILIDADES E OS LIMITES DA

SUPERAÇÃO DO CETICISMO PELA FUNDAMENTAÇÃO DA

FILOSOFIA

Lucas Nascimento Machado

(Departamento de filosofia / FFLCH – USP)

[email protected]

Resumo: Neste artigo, buscaremos discutir, em linhas gerais, como a fundamentação

hegeliana da filosofia estaria intimamente ligada a uma necessidade de responder aos

tropos céticos da diversidade, da regressão ao infinito, da relação, do postulado e da

circularidade. Para tanto, discutiremos os modos pelos quais Hegel buscaria superar,

quer na sua juventude, quer na sua maturidade, as objeções tipicamente céticas desses

tropos, mostrando como a retomada da reflexão pelo Hegel de maturidade leva à

necessidade de superar essas objeções de maneira distinta daquela que é utilizada em

sua juventude. Esperamos, desse modo, mostrar como a internalização de toda

exterioridade pela Razão, pela qual se deve remover toda espécie de independência da

primeira em relação à segunda, se faz chave para concepção hegeliana de filosofia e de

sua fundamentação, bem como para a problematização dos limites e possibilidades

dessa concepção e dessa fundamentação. Nesse sentido, pensar a relação entre ceticismo

e filosofia na filosofia de Hegel seria pensar questões centrais a ela e à própria filosofia

contemporânea, em seu diálogo com Hegel e para além dele.

Palavras-chave: ceticismo – fundamento - tropos do ceticismo - reflexão – negação –

exterioridade – internalização

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Introdução

Responder às objeções céticas: eis uma exigência recorrente na história da

filosofia, à qual se buscou satisfazer de diversas maneiras. Afinal, para garantir a certeza

e verdade do discurso filosófico que buscam instaurar, diversos filósofos sentiram a

necessidade de responder às objeções céticas sobre qualquer pretensão de conhecimento

a respeito do objeto de suas reflexões filosóficas. Nesse sentido, ser capaz de responder

às objeções céticas seria condição de possibilidade para que um discurso filosófico seja

fundamentado e, desse modo, seja efetivamente capaz de dar conta de seu objeto.

Ora, o idealismo alemão é um dos momentos da história da filosofia nos quais

essa necessidade de responder aos céticos se encontra mais forte e explicitamente dada.

Basta lembrarmos-nos da bem conhecida afirmação de Kant de que foi Hume – um

cético moderno – que o despertou do seu ‘sono dogmático’, levando-o a conceber sua

Crítica da Razão Pura como resposta às objeções deste cético quanto à possibilidade de

se ter algum conhecimento certo e seguro das coisas. Entretanto, essa necessidade de se

responder ao ceticismo não é apenas o que impulsiona o idealismo alemão em seu

começo, mas também a exigência recorrente com a qual os filósofos desse período

tiveram que se confrontar, a fim de darem conta de construir e firmar os seus próprios

discursos filosóficos – como se houvesse uma necessidade constante de responder às

objeções céticas, onde estas ainda não tinham sido satisfatória ou suficientemente

respondidas pelos filósofos antecedentes. O caso de Fichte é paradigmático: com efeito,

é a crítica de Schulze à filosofia crítica, em seu Aenesidemus1, que leva Fichte a

considerar necessária uma nova exposição de tal filosofia, levando-o a construir, por

esse meio, o seu próprio sistema filosófico23

. Desse modo, parece-nos não ser exagero

afirmar que a possibilidade (ou impossibilidade) de se responder às objeções céticas

sobre a efetividade do conhecimento, bem como o modo com essa resposta poderia ser

feita, é uma das questões centrais em torno das quais o idealismo alemão se mobiliza.

No que diz respeito a esse ponto, Hegel não é nenhuma exceção. Muito pelo

contrário, suas reflexões sobre a relação entre ceticismo e filosofia são desenvolvidas

desde a sua juventude, mostrando o quanto, para ele, a possibilidade de uma

1 Cf. SCHULZE,, 2000.

2 Cf. FICHTE, 2000.

3 Cf. BREAZEALE, 1981.

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fundamentação legítima da filosofia seria indissociável de uma apreensão correta da

relação existente entre ceticismo e filosofia. De fato, é à exposição da relação entre

ceticismo e filosofia que Hegel dedica um de seus artigos de juventude, apresentando

nele aquelas que considera serem as diferentes figuras do ceticismo, e quais seriam os

modos de cada uma delas de se relacionar com a filosofia. Desse modo, Hegel espera

mostrar não apenas como certas figuras do ceticismo são, em verdade, subversões dele -

incapazes, portanto, de atingir a filosofia, na medida em que carecem de um fundamento

autêntico para suas objeções -, mas também como o ceticismo genuíno é indissociável

da filosofia genuína, e só nessa união com ela é capaz de fundamentar suas objeções. O

que quer dizer, em outras palavras, que, para Hegel, dar conta das objeções céticas

significa, em última instância, mostrar que elas não precisam de resposta, porque não

concernem à filosofia genuína; antes, essas objeções dizem respeito ao modo do senso

comum de pôr seus objetos, ao pensamento dentro dos moldes do entendimento. O que

importa mostrar é, portanto, como a Razão, por não ser entendimento, não se submete

às críticas do ceticismo, e toda tentativa de se aplicar as críticas do ceticismo à Razão

falha, porque voltá-las contra a Razão é voltá-las contra o seu próprio fundamento –

como se o ceticismo, para lançar sua sombra, precisasse da luz infindável da Razão.

Assim, Hegel recorre, em seu artigo, a uma discussão sobre os tropos do

ceticismo antigo, tais como expostos por Sexto Empírico. Desses tropos, destaca cinco

como produzidos devido à virada do ceticismo contra a filosofia: o tropo da diversidade

de opiniões, o da regressão ao infinito, o da relação, o dos postulados e o da

circularidade. Seriam esses tropos que, para Hegel, estariam completamente voltados e

dedicados à suspensão da cognição filosófica, na medida em que atacam a certeza de tal

cognição pelo recurso às dificuldades de fundamentação que estariam envolvidas na

possibilidade dessa cognição. Diante da diversidade de opiniões e posicionamentos

filosóficos, como saber qual opinião é verdadeira? Como fundamentar a cognição

filosófica, se cada fundamento fornecido a ela careceria, por sua vez, de um fundamento

para si próprio, e assim ao infinito? Como essa cognição poderia ser verdadeira e

absoluta, se, muito pelo contrário, aparece-nos sempre como tudo é relativo, tudo só é

como é dentro de uma relação com alguma outra coisa? Como fornecer certeza para

essa cognição por meio da postulação de algo como uma verdade que não pode nem

deve ser provada, se se poderia postular igualmente aquilo a que esse algo se opõe? E,

por fim, como uma cognição filosófica poderia ser certa e absoluta, se o fundamento de

sua verdade depender e se fundamentar, por sua vez, na própria cognição filosófica, de

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tal forma que a cognição e o seu fundamento se encontrem em uma relação de

circularidade? São essas as dificuldades oferecidas por esses tropos à efetividade de

qualquer cognição filosófica, e são essas dificuldades que Hegel busca mostrar, em seu

artigo, que não atingem a filosofia e a Razão, enquanto são dificuldades próprias ao

entendimento, e não o modo racional de apreensão do Absoluto, no qual as dicotomias

da reflexão são dissolvidas e superadas na intuição intelectual do Absoluto.

Porém, sendo o artigo de Hegel sobre a relação entre ceticismo e filosofia um

artigo de sua juventude, sua compreensão acerca do que seja a cognição do Absoluto

sem dúvidas difere da compreensão que adquire a partir de sua Fenomenologia do

Espírito – e com a mudança dessa compreensão, também muda o modo pelo qual Hegel

concebe a relação entre ceticismo e filosofia. Sendo assim, cabe-nos perguntar: de que

maneira, com essa mudança no interior da filosofia hegeliana, muda também a resposta

às objeções céticas e o modo com que se espera pôr a Razão e a cognição filosófica do

Absoluto para além do alcance destas? Como a filosofia de maturidade de Hegel, o

clássico fecho do idealismo alemão, daria conta de superar as objeções céticas? Em que

medida a filosofia hegeliana teria sido capaz de dar conta de uma das principais

exigências de fundamentação postas para o idealismo alemão, de responder ao

ceticismo? De que maneira, em outras palavras, Hegel pretenderia contornar e superar

as dificuldades céticas postas pelos cinco tropos céticos ‘voltados contra a filosofia’? E

como as dificuldades e possíveis problemas relacionados ao seu modo próprio de

superar as objeções céticas estariam intimamente ligadas a problemas e dificuldades

maiores do sistema hegeliano, e, desse modo, às objeções que podem ser (e que por

muitas vezes foram) feitas a esse?

São essas as perguntas que este artigo visa discutir, em suas linhas gerais e em

alguns de seus aspectos, os quais julgamos centrais. Para nós, a relevância de tal

discussão não reside apenas na importância e no lugar do ceticismo para a compreensão

aprofundada e apurada da filosofia hegeliana, mas também e, sobretudo, pela relevância

que tal discussão pode ter para a reflexão sobre problemas maiores da filosofia, no que

diz respeito à sua possibilidade de auto-fundamentação e do que está em jogo nela.

A fim de organizar a discussão aqui proposta, o artigo seguirá o seguinte

percurso: em primeiro lugar, discutiremos a resposta de Hegel aos tropos céticos em seu

artigo de juventude, Sobre a relação entre ceticismo e filosofia, apontando em que

medida essa resposta consistiria na afirmação de que a Razão, por estar acima da

reflexão e se realizar pela dissolução desta, está acima das objeções céticas, que só

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possuem validade no domínio da reflexão. Em segundo lugar, discutiremos como a

mudança pela qual a filosofia hegeliana passa exige uma mudança na resposta aos

tropos céticos, na medida em que a reflexão (não mais limitada à reflexão externa,

característica ao entendimento) passa a ser o modo de operação próprio ao pensamento

pelo qual se pode apreender e realizar o fundamento incondicionado da própria

filosofia. Para fazer essa discussão, recorreremos ao modo como Hegel opera, em sua

maturidade, com diferentes modalidades de negação, por meio das quais, ainda que não

sejam colocadas sempre explicitamente como respostas ao ceticismo, visar-se-ia,

entretanto, superar dificuldades fundamentalmente céticas e colocadas pelos tropos

céticos que lhes são característicos. Por fim, discutiremos brevemente alguns possíveis

problemas da e objeções à resposta hegeliana a essas objeções céticas, e como a

discussão sobre esses possíveis problemas e objeções está intimamente ligada a

questões centrais da e para a filosofia contemporânea.

A auto-cognição da Razão e a dissolução da reflexão

Em seu artigo de juventude, Sobre a relação do ceticismo com a filosofia, Hegel

faz uma resenha do livro de Schulze, Crítica da Razão Teórica. Nesse livro, Schulze,

um dos céticos modernos mais proeminentes de sua época, busca demonstrar como a

filosofia especulativa – aquela que busca ‘as causas mais incondicionadas das coisas

condicionais cuja atualidade nós temos certeza’ – estaria fadada ao fracasso. Isto porque

tal filosofia buscaria conhecer as coisas incondicionadas, quer dizer, aquilo que as

coisas são fora da consciência, quer dizer, em-si mesmas, por meio daquilo que as

coisas são dentro da consciência, quer dizer, segundo elas são pensadas e

representadas na consciência. No entanto, como aquilo que as coisas são, enquanto

pensadas por meio de conceitos, não é o mesmo que elas são em si mesmas, resta que

toda tentativa de conhecer o que elas são em si mesmas por meio de conceitos jamais

poderá ter o valor de uma cognição certa e definitiva das coisas em si mesmas. Afinal,

isso seria inferir a causa a partir do efeito, as coisas tais como elas são em si mesmas a

partir do efeito que elas produzem em nós, dos conceitos e representações delas que são

causados em nossa consciência por elas. E toda inferência da causa a partir do efeito é,

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necessariamente, incerta4 – de tal modo que a filosofia especulativa jamais poderia

assegurar uma cognição efetiva de seu objeto.

Nesse estado de coisas, para Schulze, apenas um tipo de objeto pode ser efetiva

e seguramente conhecido: trata-se precisamente, das ‘coisas condicionadas de cuja

atualidade temos certeza’, dos fatos da consciência, que, enquanto dados da

consciência, estão ao pleno alcance dela e podem ser plena e seguramente conhecidos

por ela. Aquilo que aparece à consciência possui certeza indubitável enquanto

aparência – não se pode duvidar que aquilo que aparece à consciência apareça tal como

aparece mais do que se pode duvidar da própria consciência, o que faz que esses fatos

da consciência, enquanto aquilo que aparece para a consciência, possam ser

perfeitamente conhecidos como tais. Por isso, é aos fatos da consciência que a filosofia

deve reportar-se em suas especulações, jamais buscando ultrapassar os limites e o

domínio próprios à consciência5.

É essa ‘grosseira’ concepção da filosofia especulativa e do ‘reino do racional’

que Hegel pretende atacar em seu artigo. Para tanto, propõe-se a expor as diferentes

figuras do ceticismo em sua relação com a filosofia, a fim de mostrar como o ceticismo,

muito antes de se colocar em oposição a e separado da filosofia, é, em sua forma

genuína, indissociável da genuína filosofia. O ceticismo não se opõe à filosofia

especulativa; antes, apreendido em sua verdade, é um momento essencial e

indispensável da própria, que é tão incapaz de se sustentar sem a filosofia quanto a

filosofia é de se sustentar sem ele. Nesse sentido, trata-se de mostrar como o ceticismo

de Schulze é inconsequente, a começar pela sua adesão aos assim chamados fatos da

consciência.

Com efeito, para Hegel, uma das maiores distinções a serem feitas entre o

ceticismo moderno e o antigo (quer seja o ceticismo de Pirro, quer seja o de Sexto

Empírico) diz respeito à relação que o cético mantém com o senso comum, com a

consciência ordinária comum e as ‘verdades finitas’, determinadas, às quais ela se

aferra. Enquanto o ceticismo moderno, assim como a consciência ordinária comum, se

aferra àquilo que é condicionado – ou seja, às aparências – como a algo que pode ser

certo e seguro por si próprio, o cético antigo, muito pelo contrário, denuncia a

instabilidade e efemeridade de tudo aquilo que aparece para a consciência, expondo

como aquilo que é condicionado, precisamente por ser condicionado, não tem nada de

4 Cf. HEGEL, 2000, p.345

5 Cf. HEGEL, 2000, p.318

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certo e seguro em si mesmo. Não se pode ter nenhum conhecimento certo e seguro

sobre as aparências, porque as aparências não possuem nada de certo em seguro em si

mesmas – o modo de as coisas aparecerem muda de acordo com a relação que elas

estabelecem com aquele para quem aparecem 6, de tal maneira que não se pode, como

Schulze gostaria, ter um conhecimento certo e seguro das coisas tais como elas são

enquanto aparências. Não se pode conhecer como a aparência é na consciência,

precisamente porque, por ser aparência, ela não é – a aparência da coisa não é uma ou

outra, mas antes varia conforme a relação com aquele para quem aparece varia. É isso

que os céticos antigos buscavam apontar, denunciando a impropriedade da consciência

ordinária comum ao considerar que pelas aparências seria possível obter qualquer

espécie de conhecimento dotado de certeza e segurança inquestionáveis. Isso porque

tudo que é da ordem daquilo que aparece é da ordem daquilo que é determinado – e, por

isso mesmo, daquilo que é condicionado, relativo. Sendo assim, cabe considerar mais

detalhadamente porque, para o Hegel da juventude, tudo aquilo que é determinado só

pode ter um estatuto condicionado e relativo.

Determinar é negar; nisso, Hegel segue o adágio espinosista, omni determinatio

est negatio. Determinar um objeto significa defini-lo por meio daquilo que ele não é,

constituindo seu conceito pela negação daquilo que não pertence a ele. Dessa maneira,

estabelece-se entre o objeto e aquilo que ele nega uma relação de exclusão, na qual tudo

aquilo que não se encontra no interior da determinação do objeto é colocado para fora

dele, sendo nessa exclusão que o objeto se define. Determinar um objeto significa,

portanto, estabelecer uma relação de oposição dele com aquilo que carrega a

determinação que lhe é oposta. O que é doce não é amargo; o que é claro não é escuro, e

assim por diante.

Se determinar um objeto é estabelecer uma relação de oposição entre ele e aquilo

que porta a determinação oposta, isso significa que todo objeto determinado só existe no

interior da relação de oposição pela qual ele é determinado. Em outras palavras, é só

enquanto se opõe e exclui de si aquilo que é oposto à sua própria determinação que o

objeto subsiste enquanto determinado – o que quer dizer que só subsiste em sua

determinação enquanto se relaciona com outro ao qual se opõe. Todo objeto

determinado, portanto, é um objeto que não subsiste por si próprio, mas sim apenas no

interior de uma relação, tendo, por conseguinte, um estatuto relativo, condicionado e

6 Cf. HEGEL, 2000, p.330 e p.332

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dependente da relação na qual se encontra. O objeto determinado, precisamente porque,

para ser determinado, precisa manter-se no interior de seus limites e, portanto, de sua

finitude, só pode subsistir enquanto determinado dentro de uma relação de oposição: o

que ele é enquanto determinado não é absoluto, valendo por si mesmo e

independentemente de qualquer condição, mas sim relativo, só subsistindo no interior

da relação de oposição que estabelece com seu outro.

Se tudo que é determinado é da ordem do relativo, precisamente na medida em

que não subsiste em si e por si mesmo, então tudo que é da ordem das aparências é

igualmente relativo. Isso porque é precisamente na ordem do sensível que os objetos são

dispostos de acordo com as suas determinações e opostos uns aos outros desse modo: o

que é doce não é amargo, o que é claro não é escuro, o que é causa não é efeito, etc.

Sendo assim, todo o conhecimento e pensamento do sensível enquanto sensível, quer

dizer, todo o conhecimento obtido por meio de conceitos determinados que se referem

aos objetos tais como eles são enquanto determinados, é um conhecimento relativo, que

não dá a conhecer as coisas tais como elas são em si mesmas, mas sim apenas como são

no interior das relações de oposição pelas quais se tornam determinadas. Esse é o modo

de pensamento e conhecimento característico do entendimento, que busca conhecer as

coisas, por meio de seus conceitos e categorias, na medida em que elas são

determinadas. O entendimento, que tem por seu modo próprio de operar reflexivamente,

é precisamente o modo de pensamento que, a partir da reflexão acerca de seu objeto,

precisa instaurar dicotomias apenas a partir das quais lhe é possível pensá-lo, justamente

porque só é capaz de pensar seu objeto enquanto algo determinado. Pensar, para o

entendimento, é refletir; e refletir é produzir dicotomias, pensar o seu objeto sempre em

oposição ao seu outro – o que significa, igualmente pensar a si mesmo em oposição ao

seu objeto: o entendimento não é seu objeto; por isso, jamais pode ter pleno acesso ao

que ele é em-si.

Nesse sentido, não seria à toa que o procedimento próprio ao ceticismo antigo

era o de opor, a todo argumento a favor de que a coisa seja determinada de um modo,

argumentos igualmente persuasivos a favor de que ela seja determinada da maneira

oposta, de tal modo que, ao fim dessa operação, fosse impossível decidir se a coisa é,

em si mesma, determinada de uma ou de outra forma7. Dessa maneira, o cético antigo

pretendia mostrar que não há conhecimento seguro que se possa obter por meio das

7 Cf. EMPÍRICO, 2000, I, seção iv

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aparências ou do pensamento acerca delas, porque elas, assim como o modo pelo qual

são pensadas, são meramente relativos e, por isso mesmo, incapazes de alcançar aquilo

que a coisa é absoluta e incondicionalmente. Se Schulze gostaria de afirmar que é

possível ter um conhecimento certo e seguro daquilo que é condicionado, os céticos

antigos lembravam precisamente que aquilo que é condicionado não tem nada de certo e

seguro em si mesmo, não podendo ser fonte de qualquer conhecimento desse tipo. O

que o ceticismo antigo fazia, portanto, ao denunciar a impossibilidade de se ter qualquer

conhecimento certo e seguro por meio das aparências, era denunciar a incapacidade do

entendimento de sustentar-se por si próprio. Pois o entendimento, capaz apenas de

cognições meramente relativas, se atua isoladamente, é incapaz de fornecer um

fundamento absoluto para suas cognições, na medida em que só é capaz de apreender

aquilo que é relativo, condicionado. É por isso que o verdadeiro ceticismo, muito antes

de se aferrar às verdades determinadas e finitas do senso comum, realiza a crítica desse

apego dogmático da consciência ordinária comum às suas verdades finitas8. Para Hegel,

que o ceticismo antigo ataque ao senso comum e ao entendimento, em seu apego àquilo

que é meramente relativo, pode ser visto por meio dos dez primeiros tropos do

ceticismo9, pelos quais far-se-iam a exposição e denúncia da diversidade e relatividade

presente naquilo que é da ordem das aparências, da ordem do sensível. Se o cético

moderno, na sua adesão aos fatos da consciência, acredita poder permanecer dentro dos

limites do entendimento e, ainda assim, ser capaz de uma cognição certa e segura, o

cético antigo, por sua vez, insistia na impossibilidade de que o conhecimento obtido

pela reflexão operada pelo entendimento acerca daquilo que é determinado possa ter

algo de certo e seguro em si mesmo.

Entretanto, Hegel observa, se o ceticismo antigo mantinha-se fiel à sua própria

essência, ao denunciar a finitude das verdades da consciência ordinária comum, a forma

que ele adquire com Sexto Empírico já revela uma subversão sua. Isso porque, a partir

desse momento, o cético não dirige suas críticas apenas à consciência ordinária comum

e às suas verdades finitas, mas também à própria Razão em sua auto-cognição. Essa

virada do ceticismo contra a filosofia seria, para Hegel, claramente visível pelos cinco

tropos do ceticismo que se seguem aos dez primeiros, cujo conteúdo revelaria serem

tropos voltados não contra o senso comum, mas sim contra as pretensões de uma

8 Cf. HEGEL, 2000, p.336

9 Cf. idem ibid., pp. 330-332

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cognição racional e filosófica10

. Trata-se, como mencionamos anteriormente, dos tropos

da diversidade de opiniões, da regressão ao infinito, da relação, dos postulados e da

circularidade. Por meio desses tropos, o cético pretenderia deslegitimar a pretensão da

filosofia de ter uma cognição racional do Absoluto; afinal, se ela realmente tivesse tal

cognição, como explicar as divergências de opinião acerca dessa cognição e do que ela

seja? Como fundamentar tal cognição sem que se caia em uma regressão ao infinito, na

qual cada fundamento precise por sua vez de um fundamento para si próprio? Como

fornecer um fundamento absoluto para essa cognição, se tudo que existe, existe apenas

em relação com alguma outra coisa? Como fundamentar essa cognição por meio do

postulado de um princípio que não pode ser provado e deve ser evidente por si mesmo,

se é possível postular igualmente o princípio contrário? E, por fim, como fundamentar

essa cognição por meio de uma relação de circularidade entre o fundamento e a

cognição, se nesse caso nem a cognição, nem o seu fundamento, possuem validade em

si próprios, mas sim só são válidos nessa relação um com o outro?

Ora, para Hegel, se o cético questiona a efetividade da cognição filosófica – que

nada mais é do que a auto-cognição da Razão, precisamente porque apenas o

incondicionado pode ter uma apreensão efetiva daquilo que é incondicionado -, isso se

deve ao fato de confundir a Razão com o entendimento, o que seria constatável

precisamente pelos tropos com os quais o cético tenta atacar a filosofia. Com efeito, da

forma como Hegel os compreende, esses tropos, ao serem voltados contra a filosofia –

e, portanto, contra a Razão – a subvertem em entendimento, na medida em que a

concebem como algo de determinado, algo de finito11

. Afinal, concebem a cognição

filosófica – ou, em outras palavras, a auto-cognição da Razão, a cognição do

incondicionado pelo incondicionado - como algo de determinado, algo que se encontra

em uma relação de exterioridade com outra coisa. Só desse modo pode-se conceber uma

diversidade irreconciliável de opiniões que desvalidaria a cognição filosófica, ou

conceber a necessidade de se buscar um fundamento para essa cognição que seja

exterior a ela, de tal modo que cairíamos na regressão ao infinito ou na circularidade.

Igualmente, só desse modo pode-se tomar a Razão como um postulado não provado,

como se em oposição a ela pudesse se postular aquilo a que ela se opõe e que é exterior

a ela; e, por fim, só desse modo pode-se conceber que a Razão só é o que é no interior

de uma relação com algo exterior a ela, sendo, portanto, meramente relativa. Em outras

10

Cf. idem ibid., pp.334-335 11

Cf. idem ibid., p.337

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palavras: os tropos céticos, para poderem se aplicar à Razão, precisam subvertê-la a

algo de determinado, que se encontra em uma relação de exterioridade com alguma

outra coisa. Mas a Razão, precisamente porque não é algo de determinado, algo

marcado pela relação com um outro que lhe é externo, não pode ser submetida ao ataque

desses tropos:

“No que diz respeito ao primeiro tropo (da diversidade), o racional é sempre e em todo

lugar idêntico a si mesmo; pura não-igualdade é possível apenas para o entendimento; e tudo que

é dessemelhante é posto pela Razão como um e o mesmo. (...) Não pode ser provado sobre o

racional, de acordo com o terceiro tropo, que ele apenas existe dentro da relação, que ele se

encontra em uma relação com outro; pois ele é ele mesmo nada mais que a relação. Já que o

racional é a relação ela mesma, os termos que se encontram em uma relação um com o outro,

que devem fundar um ao outro, quando postos pelo entendimento, podem muito bem cair em

circularidade, ou no quinto tropo, o tropo da reciprocidade; mas o mesmo não ocorre com o

racional ele mesmo, pois dentro da relação, nada é reciprocamente fundado. Similarmente o

racional não é um postulado não-provado, de tal modo que a sua contraparte pudesse com o

mesmo direito ser pressuposta sem prova em oposição a ele; pois o racional não tem contraparte

oposta; ele inclui ambos dos finitos opostos, que são contrapartes mútuas, dentro de si mesmo.

Os dois tropos precedentes contém o conceito de um fundamento e um conseqüente, de acordo

com o qual um termo estaria fundado no outro; já que para a Razão, não há oposição de um

termo em relação ao outro, esses dois tropos se tornam irrelevantes, assim como a demanda por

um fundamento que é avançada na esfera das oposições, e repetida infindavelmente (no segundo

tropo, o da regressão ao infinito). Nem essa demanda, nem a do regresso ao infinito, dizem

respeito à Razão.” (HEGEL, 2000, p.336)

A Razão é o incondicionado que é condição de todo o condicionado; mas, se o

condicionado é aquilo que é determinado, e que, por esse motivo, tem como condição

de sua existência a relação de oposição na qual se encontra, a Razão, enquanto o

indeterminado que é condição de todo o determinado, nada mais é do que a relação ela

mesma e, portanto, aquilo que não se encontra em oposição ou em relação de exclusão

com nenhuma coisa, posto que todo e qualquer termo que seja contraposto se encontra

dentro dessa mesma relação. Por isso ela não é afetada pelos tropos que o cético busca

usar contra ela: esses tropos só são aplicáveis aos objetos da reflexão, ao entendimento

que, ao refletir sobre seu objeto, o cinde e o coloca em oposição com algo que é externo

a ele. Mas a Razão, enquanto é a relação de oposição que torna possível os termos da

relação que se opõem um ao outro, não pode ser apreendida do mesmo modo que esses

termos o são, quer dizer, por meio de sua oposição a alguma outra coisa; antes, a Razão,

Page 12: Hegel e o ceticismo: sobre as possibilidades e os limites da superação do ceticismo pela fundamentação da filosofia (Apresentação no XVII Congresso da Sociedade Interamericana

12

o Absoluto, deve ser apreendido em sua indeterminação característica. Por isso que, não

apenas o ceticismo não atinge a filosofia, como também, para poder fundamentar as

suas objeções, deve fundar-se nela, quer dizer, na Razão, porque só a partir do patamar

do indeterminado, do infinito, que tudo aquilo que é finito pode ser denunciado e

exposto enquanto tal. É em função disso que Hegel considera o ceticismo genuíno como

o lado negativo da auto-cognição da Razão: para que a Razão possa apreender a si

mesma em sua indeterminação característica e intuir a si mesma enquanto tal, ela

precisa dissolver a fixidez das determinações que é posta pela reflexão12

. Para que a

auto-cognição da Razão se dê, é preciso que a reflexão dissolva a si mesma, negando a

negação que ela põe pelas determinações que opera em seu objeto e, assim, abrindo

caminho para a intuição intelectual do Absoluto13

; mas essa dissolução da reflexão por

si mesma não é outra coisa senão o ceticismo, enquanto este é genuíno. O ceticismo

genuíno, portanto, é inseparável da filosofia genuína, da auto-cognição efetiva da

Razão. E, por isso mesmo, os tropos céticos não apenas dizem respeito unicamente

àquilo que é da ordem da reflexão, que dispõe os objetos como externos uns aos outros,

como também só podem ser aplicados legitimamente à reflexão quando se fundam na

Razão. É só por meio dela que o ceticismo pode expor que aquilo que é produzido pela

reflexão, pelo entendimento que reflete sobre os seus objetos, não subsiste por si

mesmo, só se sustentando na medida em que se encontra no interior da Razão, que não

reconhece nada como sendo externo a ela. Os tropos céticos só são capazes de

demonstrar a insuficiência de tudo aquilo que se encontra em uma relação de

exterioridade com alguma outra coisa; porém, a Razão, precisamente porque não tem

nada que seja exterior a si mesma, não apenas não pode ser abalada pelos tropos céticos,

como é a condição de possibilidade para que a insuficiência daquilo que possui algo

exterior a si mesmo possa ser criticado em sua insuficiência, que só se revela enquanto

tal frente à plenitude indeterminada da Razão.

12

Cf. HEGEL, 2003, p.38 13

Cf. idem ibid., p.34

Page 13: Hegel e o ceticismo: sobre as possibilidades e os limites da superação do ceticismo pela fundamentação da filosofia (Apresentação no XVII Congresso da Sociedade Interamericana

13

Razão e reflexão: a reflexão para além do ceticismo

Se, para o Hegel da juventude, a cognição filosófica do Absoluto só poderia ser

dar por meio da intuição intelectual do incondicionado em sua indeterminação

característica, para o Hegel da maturidade o fundamento incondicional de todas as

coisas, com o qual a filosofia se ocupa, só pode ser conhecido e realizado plenamente

por meio do caminho de suas próprias determinações e mediações internas14

. O

fundamento não pode jamais ser plenamente conhecido e realizado se permanece em

sua indeterminação abstrata, em sua imediaticidade abstrata; antes, é preciso seguir o

percurso de suas determinações internas pelas quais a imediaticidade e indeterminação

do fundamento não são apenas asseveradas, mas também deduzidas e efetivadas. Em

outras palavras: a necessidade de se provar e deduzir o fundamento em sua

incondicionalidade, mais do que simplesmente asseverá-la para além de toda a prova e

dedução possíveis, leva o Hegel da maturidade a conceber a determinação não mais

como aquilo que deve ser meramente dissolvido, a fim de que se possa apreender o

fundamento, mas sim como condição de possibilidade para que ele possa se realizar em

sua verdade15

.

Entretanto, conceber a determinação ou, melhor dizendo, o percurso das

determinações internas do fundamento como condição de possibilidade de sua

realização, significa não mais poder conceber a reflexão como aquilo que deve ser

meramente dissolvido, a fim de que se possa ter a cognição do fundamento. Muito antes

de se subtrair à reflexão, o fundamento agora terá que mergulhar completamente nela,

na medida em que só por meio da operação e produção de determinações próprias à

reflexão que ele poderá se realizar em sua verdade, que ele poderá ser não apenas

asseverado em sua incondicionalidade, mas sim igualmente provado16

. Não por outro

motivo Hegel afirma que “a verdade só no conceito tem o elemento de sua existência”

(HEGEL, 2007, §6).

Mas se Hegel, em sua juventude, concebia a reflexão como a esfera na qual as

objeções céticas são insuperáveis, de que maneira será possível tornar o fundamento

14

Cf. HEGEL, 2007, §10 e §16 15

Cf. idem ibid., §18 16

Cf. idem ibid., §5 e HEGEL, 2005, §1

Page 14: Hegel e o ceticismo: sobre as possibilidades e os limites da superação do ceticismo pela fundamentação da filosofia (Apresentação no XVII Congresso da Sociedade Interamericana

14

aquilo que se realiza por meio da reflexão, sem, entretanto, submetê-lo às limitações

postas e expostas pelos tropos céticos a que Hegel respondia, em seu artigo de então?

Para que se possa responder a essa pergunta, é preciso lembrar o que Hegel

associava à reflexão, na sua juventude: ela era, com efeito, o modo próprio de operar do

entendimento. Isso porque ela operava determinações, constituindo seus objetos através

de negações que os colocavam em uma relação de oposição um com o outro e os

tornavam relativos a essa oposição. Nessa medida, sua operação de determinação dos

objetos era uma organização destes a partir de um regime de exterioridade; ao

determinar os objetos como opostos uns aos outros, o entendimento os colocava, por

meio de sua reflexão, como externos uns aos outros, e colocava a si mesmo, em sua

reflexão sobre os objetos, como externo àquilo que os objetos são em-si (daí a

impossibilidade do entendimento de apreender o fundamento incondicional em sua

incondicionalidade). Nesse sentido, a reflexão que Hegel considerava incapaz de

apreender ou realizar o Absoluto, aquela que se prestava à crítica por meio da aplicação

dos tropos céticos, é aquela que concebe os seus objetos em uma relação de

exterioridade uns com os outros e que concebe a si mesma em uma relação de

exterioridade com o seu objeto. Trata-se de uma reflexão que só sabe operar a

determinação dos objetos por meio da negação simples, uma determinação que só se

constitui por meio da simples negação e exclusão de tudo aquilo que a contradiz.

Ocorre, porém, que, se para o Hegel da juventude, a reflexão se confundia com a

reflexão operada pelo entendimento, de tal maneira que dissolver esse modo de reflexão

seria dissolver a reflexão ela mesma, o Hegel da maturidade conceberá essa reflexão

externa apenas como um momento interno à reflexão, o qual, entretanto, é superado. O

que quer dizer que os modos de determinação da reflexão não se limitarão aos modos de

determinação da reflexão externa; o que significa, por sua vez, que as negações

operadas pela reflexão na organização de seus objetos não serão mais apenas a negação

operada pela reflexão externa em sua relação com o seu objeto – não serão, portanto,

negações que se limitam à exclusão mútua dos termos que se encontram nessa relação

de negação17

. Por isso, se era o regime de negação próprio à reflexão externa que a

tornava vítima dos tropos céticos, parece adequado considerar que é a superação desse

regime de negação que tornará possível, ao mesmo tempo em que não se abandona a

reflexão na cognição do fundamento, dar conta dos tropos céticos pelos quais buscar-se-

17

Cf. HEGEL, 2002, p.405

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15

ia comprometer tal apreensão e realização. Sendo assim, buscaremos esboçar aqui, de

maneira bastante esquemática, de que modo, pelo que nos parece, Hegel organiza os

diversos modos de negação operados pela reflexão de maneira a dar conta dos tropos

céticos. Para tanto, comecemos pela negação simples – a negação própria ao

entendimento, à reflexão externa – e vejamos como, já por meio desta negação, Hegel

daria conta do tropo do ceticismo referente aos postulados.

Se para a reflexão dar conta da apreensão e realização do fundamento

incondicionado é necessário que ela supere o regime de negação da reflexão externa,

isso não significa, entretanto, que essa mesma negação já não desempenhe um papel

fundamental e indispensável para a cognição do fundamento: daí porque ela não deve

ser meramente dissolvida, mas sim superada. Com efeito, é a negação simples que

possibilita à ciência filosófica – quer estejamos falando da Fenomenologia, quer da

Ciência da Lógica - possuir um começo que não seja arbitrário. A fim de melhor

compreendermos essa afirmação, retomemos as nossas considerações sobre o

indeterminado, tal como ele é tratado pelo Hegel da juventude.

Efetivamente, para o jovem Hegel, o Absoluto deve ser apreendido pela negação

da negação, quer dizer, pelo aniquilamento das determinações do entendimento a partir

do qual o Absoluto é apreendido em sua indeterminação característica. Essa negação da

negação é, no entanto, uma negação simples da negação simples. O indeterminado é,

assim, a negação simples (ou abstrata) de toda determinidade. Nesse sentido,

poderíamos igualmente dizer: ele é a negação simples tomada em si mesma, na medida

em que essa negação simples, enquanto não é tomada como a negação de uma ou outra

determinidade em particular, mas sim em si mesma, é a negação de toda e qualquer

determinidade – é, em outras palavras, o indeterminado. O indeterminado é, por

conseguinte, pura negatividade.

É essa pura negatividade que tornará possível à ciência filosófica possuir um

começo que não seja arbitrário, que não seja um começo meramente postulado, frente

ao qual poder-se-ia propor começos diversos e opostos a esse. Afinal, é só começando

pelo puramente indeterminado que se tem a garantia de se estar começando com o

fundamento incondicionado, com aquilo que não é apenas um começo subjetivo da

filosofia, mas igualmente o seu princípio objetivo18

. Começar por algo de determinado

seria um começo arbitrário, um começo relativo, na medida em que toda determinação

18

Cf. MULLER, 2011, p.2

Page 16: Hegel e o ceticismo: sobre as possibilidades e os limites da superação do ceticismo pela fundamentação da filosofia (Apresentação no XVII Congresso da Sociedade Interamericana

16

já supõe uma mediação anterior por meio da qual ela veio a ser. Daí porque todo

começo feito por meio de algo determinado teria necessariamente esse algo como seu

pressuposto ou como seu postulado, na medida em que começar pelo determinado seria

começar por algo que possui uma mediação anterior a ele a qual, entretanto, não é

provada19

. Sendo assim, esse começo é um começo relativo e subjetivo, não absoluto e

objetivo; é um começo apenas em relação à reflexão que escolhe esse ponto

determinado da Coisa como ponto de partida, e não o começo, o princípio da Coisa ela

mesma. Sendo assim, começar a filosofia por um começo determinado é tornar-se

vítima do tropo cético do postulado: uma pressuposição não possui vantagem alguma

em relação com a pressuposição oposta, de tal maneira que qualquer começo

determinado, e por isso meramente pressuposto, não dá conta de servir de base e

fundamento para a filosofia. Pois a filosofia, enquanto ciência que deve servir de

fundamento para as outras filosofias, não pode se dar ao luxo destas de pressupor o seu

objeto como dado20

. Para não ser alvo do tropo cético do postulado, então, é necessário

à filosofia começar pelo indeterminado, tomando-o como sua base e fundamento, já que

apenas o indeterminado, na medida em que é a negação simples de toda determinidade,

imediaticidade simples sem nenhuma mediação, pode ser simultaneamente o começo da

filosofia e o princípio da própria coisa, a partir da qual a filosofia se desdobra e por

meio desse desdobramento produz o seu próprio objeto. Nesse sentido, podemos dizer

que a negatividade pura do começo, a negação abstrata em si mesma que é esse começo,

é o que possibilita à filosofia não se tornar vítima do tropo do postulado.

A filosofia deve começar pelo indeterminado; nisso, o Hegel da juventude e o da

maturidade estão de acordo. Todavia, se para o primeiro, o fundamento já é plenamente

realizado nessa sua indeterminação inicial, para o segundo, essa indeterminação só pode

ser a primeira manifestação do Absoluto, de tal forma que, para que ele se realize

plenamente, é preciso que ele percorra o caminho de suas determinações internas. Isso

porque se o fundamento, em sua indeterminação, é a negação simples de toda

determinidade, essa no entanto, é a sua própria determinidade. O indeterminado,

enquanto é essa imediaticidade simples, precisamente porque exclui de si toda

determinação, é algo que só pode ser simplesmente asseverado, e não provado – e,

igualmente, algo que só põe como imediato, mas que ainda não é capaz de corresponder

à sua própria imediaticidade na medida em que ainda se encontra preso à sua

19

Cf. HEGEL, 2010, p.70 20

Cf. idem ibid., p.74

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17

determinidade de negação simples de toda determinidade. A negação simples não dá

conta, isoladamente, de realizar o fundamento incondicionado em sua

incondicionalidade, já que coloca toda determinação como exterior ao fundamento, e é

precisamente por meio do percurso de suas determinações que ele deve se realizar.

É aqui que o próximo modo de negação, a saber, o de negação determinada,

desempenha um papel fundamental. É graças à negação determinada que o fundamento

não permanece como algo meramente indeterminado, frente ao qual toda determinação

é externa a ele próprio. Isso porque a negação determinada não é mais uma negação na

qual o termo que é negado permanece exterior àquilo que o nega; antes, nessa negação,

o que está em questão é, precisamente, a passagem de um termo ao seu oposto. Mas

como é possível que algo passe ao seu oposto, que a determinação do objeto, mais do

que defini-lo por meio daquilo que o nega, torne o objeto a sua própria negação? Ora,

para responder a essa pergunta, podemos antes nos perguntar: qual é a condição de

possibilidade para que, na negação simples, uma tal passagem ao oposto não seja

possível?

Relembremos, mais uma vez: a negação simples determina aos seus objetos por

meio de uma relação de exterioridade. Em um regime de negação simples, o que é

negado permanece em uma relação de pura exterioridade com aquilo que o nega: por

exemplo, as determinações são completamente exteriores à imediaticidade simples e

indeterminada do começo. Sendo assim, não há como, por meio da negação simples,

conceber que os termos de uma oposição passem um ao outro, na medida em que a sua

relação é uma relação de exterioridade, na qual nenhuma ligação que torne ambos os

termos internos um ao outro é possível.

Entretanto, há de se lembrar que o começo foi definido como pura negatividade.

O começo nada mais é do que a negação em si, do que a negação imediata – ele não

possui outro substrato senão esse. Sendo assim, se o começo é a negação de toda

determinidade, a fim de realizar-se enquanto tal, ele deve negar mesmo a sua

determinidade de ser negação de toda determinidade21

; deve, por isso mesmo, passar à

determinidade com a qual ele se confrontava anteriormente como algo puramente

externo. Sendo assim, a negatividade pura da própria Coisa já exige que aquilo a que ela

se opunha como algo externo seja aquilo que ela deve se tornar a fim de pode realizar a

si mesma. Só é possível permanecer-se no regime da negação simples enquanto não se

21

Cf. MULLER, 2011, p.14

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18

reconhece que todas as coisas são em si mesmas a sua própria negação, que não

possuem outro modo de se produzirem e se realizarem do que por meio da sua própria

negação. As coisas tornam-se elas mesmas, pela negação de si mesmas, o seu oposto; e

é apenas por essa passagem no seu oposto que elas podem efetivamente se realizar no

que são22

, precisamente porque são, essencialmente, essa negatividade auto-referencial,

essa negatividade pura da própria Coisa. Assim, a negação simples do fundamento

indeterminado leva necessariamente à negação determinada unicamente pela qual ele

pode realizar-se em sua imediaticidade negativa. Por isso, aquilo que aparece

inicialmente como puramente externo à Coisa se revela como sendo desde sempre

interno a ela: a exteriorização é apenas um momento interior à própria Coisa.

Se a negação simples do começo dava conta do tropo dos postulados, podemos

dizer que a negação determinada que advém desse começo dá conta, por sua vez, do

tropo da diversidade. De fato, Hegel afirma explicitamente, na introdução à sua

Fenomenologia do Espírito que, se o cético enxerga nas opiniões filosóficas (ou,

colocado de outra forma, nos saberes fenomenais e imperfeitos), apenas a pura

diversidade, fazendo dessas opiniões completamente externas umas às outras, isso se

deve ao fato de enxergar a contradição entre elas como um produto da negação simples,

produto que não é senão o nada abstrato. Por isso, na medida em que se aferra a

conceber a contradição entre opiniões como irreconciliáveis, na medida em que cada

opinião é a negação simples da outra, o cético ele mesmo é apenas uma das figuras da

consciência imperfeita, que, por mais que seja absolutamente necessária e interna à

apreensão do Saber Absoluto pela consciência, deve, no entanto, ser superada23

. Por

outro lado, o ceticismo que apreende a sua atividade própria de produção de contradição

entre saberes fenomenais na negação verdadeiramente operante nela – a saber, não a

negação simples, mas sim a negação determinada – reconhece, a partir daí, que essas

opiniões filosóficas não são puramente externas umas às outras, mas sim produzem

umas às outras na série de figuras da consciência passando de si mesmas ao seu oposto.

Esse ‘ceticismo perfeito’ se confunde com o próprio caminho do desespero, o percurso

fenomenológico que a consciência deve passar para aceder ao Saber Absoluto24

. Nesse

sentido, o ceticismo não apenas é interno à filosofia na medida em que, enquanto é

imperfeito, figura como um dos momentos internos e necessários à ascensão da

22

Cf. SAFATLE, 2006, p.131 23

Cf. HEGEL, 2007, §79 24

Cf. idem ibid., §78

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19

consciência ao Saber Absoluto; concebido em sua perfeição; ele é a própria atividade

filosófica pela qual se reconhece cada figura da consciência imperfeita como ligada

àquela a que se opõe e passando a ela, e só por meio dessa passagem se realizando em

seu conceito. Se a filosofia não pode ser vitimada pelo tropo da diversidade, isso se

deve ao fato de que, nela, nenhum dos termos de uma oposição permanece exterior

àquilo a que se opõe.

Por fim, se é por meio do percurso de suas negações determinadas que o

fundamento incondicionado poderá realizar-se, isso se deve ao fato de que, por meio

dessas negações, a negatividade do começo negará a si mesma, realizando-se enquanto

negação absoluta. Isso porque, se a negação determinada leva à passagem de um termo

ao seu oposto, por meio das inversões próprias à Verkehrung25

, ela também produz,

como resultado dessas inversões, a superação delas, ou seja, a Aufhebung da passagem

dos oposto um ao outro. É esse movimento de um oposto a outro, tomado como

resultado da negação determinada, que permitirá o avanço pelas determinações próprias

do fundamento, na medida em que, nesse movimento, o próprio movimento é produzido

como algo novo que ultrapassa os momentos opostos nos quais ele ocorre ao mesmo

tempo em que contém a ambos os opostos em seu interior. Assim, se a negação absoluta

é aquela que se realiza por meio das Aufhebungen resultantes das negações

determinadas do percurso do fundamento, e se essa realização é a realização do próprio

fundamento em sua verdade, isso é porque só dessa maneira o fundamento se torna em

verdade a negatividade que desde sempre foi. Lembremos da nossa afirmação anterior

quanto à pura negatividade do fundamento: essa pura negatividade, para realizar-se,

precisava negar a si mesma. Agora, podemos dizer, mais especificamente: o

fundamento, para realizar-se em sua pura negatividade, deve negá-la ela mesma, quer

dizer, deve negar a negação simples do seu começo para que, assim, realize aquilo que

ele é, a saber, negação em si. Ora, mas negar a negação simples significa, justamente,

negar todo regime de exterioridade – o que significa, em outras palavras, não mais

conceber os opostos de acordo com uma relação de exterioridade, mas sim de acordo

com uma relação de interioridade, na qual cada termo já contém e já é em si mesmo a

passagem ao seu oposto. Ora, mas é precisamente essa interioridade dos opostos que a

negação determinada possibilita, produzindo como resultado a negação absoluta. Afinal,

a negação absoluta não é simplesmente um termo que passa ao seu oposto26

, mas sim o

25

Cf. SAFATLE, 2006, p.132 26

Cf. idem ibid. p.135

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20

movimento ele mesmo de passagem de um oposto ao outro que, por isso mesmo,

contém em seu próprio interior ambos os opostos, superando, nessa medida, a sua

oposição. E é na superação dessa oposição que, por fim, o fundamento realiza e retorna

a si mesmo – de tal modo que o percurso da ciência filosófica não é outro senão o

percurso circular, no qual o avanço nas determinações do fundamento é, ao mesmo

tempo, uma retrogressão àquilo que ele sempre foi. A exteriorização do fundamento, em

suas determinações, é, na verdade, o que realiza aquilo que ele sempre foi, de tal

maneira que, o ponto final da especulação coincide com o ponto inicial. A negatividade

absoluta do final nada mais é que a negatividade simples do início, na medida em que

essa negatividade pura do início só é verdadeiramente por meio das suas mediações

internas e da superação delas. Aquela negatividade do fundamento que aparecia,

inicialmente, como pura indeterminação, já era ela mesma, entretanto (e desde sempre),

possível e produzível apenas pelo processo de determinação e mediação por meio do

qual ela retorna a si mesma.27

Dessa maneira, no que diz respeito a dar conta dos demais tropos céticos, a

negação absoluta possui um lugar peculiar. Isso porque, pelo que parece, sua

possibilidade de responder aos tropos da regressão ao infinito e da relação deve-se a

uma espécie de aceitação do tropo da circularidade, na qual a circularidade da filosofia,

por mais que seja reconhecida, não se torna um obstáculo a essa. Na verdade, a resposta

a esses três últimos tropos precisa conjugar, de alguma forma, todos os modos de

negação abordados até aqui, já que o modo de responder a esses tropos deve recorrer à

relação existente entre as negações aqui trabalhadas. Para que essa conjugação seja

possível, entretanto, é necessário admitir, ao mesmo tempo, como a circularidade é ela

mesma o modo de superação das objeções céticas oferecidas por esses tropos.

Assim, se o tropo da regressão ao infinito não atinge a filosofia, podemos

atribuir isso tanto ao seu começo indeterminado, quanto à sua circularidade. Isso

porque, por um lado, o começo indeterminado garante que esse começo não é nenhuma

pressuposição, não é nada de determinado a partir do qual se deva buscar um

fundamento determinado e, para esse fundamento outro fundamento, igualmente

determinado, e assim por diante. Por outro lado, a circularidade da negação absoluta,

produzida pelo percurso das negações determinadas da filosofia, garante que o avanço

pelas determinações do fundamento não seja uma ‘regressão ao infinito’ invertida,

27

Cf. Müller, 2011, p.8

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21

levando-nos a cair no infinito ruim no qual nenhuma determinação é capaz de suprir a

necessidade da correspondência entre o finito e o infinito.

Igualmente, o tropo da relação não compromete a filosofia no seu modo de

relacionamento próprio enquanto ciência. Afinal, os termos de uma relação só

permanecem relativos um ao outro na medida em que são externos um ao outro: só

nesse sentido dependem de algo outro do que de si mesmo. Se a relação, porém, não é

concebida como uma relação com algo externo, mas sim é uma relação da Coisa

consigo mesma, então a Coisa, por mais que esteja em uma relação, não é relativa. E,

com efeito, o que é mostrado pelo percurso das negações do fundamento é que mesmo a

sua relação com aquilo que lhe aparecia inicialmente como exterior a si já era uma

relação consigo mesmo. Por isso, na medida em que não se relaciona com nada que seja

puramente exterior a si mesmo, a ciência filosófica, que nada mais é que o

desdobramento da própria Coisa, nada possui de relativo.

Entretanto, mais uma vez, o que torna essa relação consigo mesma possível é,

precisamente, a circularidade do fundamento em seu desdobramento: é só por meio

dessa circularidade que o seu relacionamento com suas determinações, isto é, com as

suas exteriorizações, realiza-se como um relacionamento consigo mesmo. Por isso, cabe

a pergunta: se o percurso próprio da filosofia é o percurso circular, não estaria ela, por

isso mesmo, submetida às dificuldades oferecidas pelo tropo cético da circularidade?

Não teria ela se rendido à impossibilidade de superar essas dificuldades?

A esse respeito, parece ser possível oferecer a seguinte resposta: a filosofia é um

círculo que não está, ele mesmo, em relação de circularidade com nada – por isso, a

filosofia, apesar de seu percurso circular, não se torna presa do tropo cético da

circularidade. O fundamento, plenamente realizado em suas determinações, não é

imediata e abstratamente idêntico ao fundamento em sua indeterminação inicial; por

isso, a relação de circularidade entre as determinações do fundamento e a sua

indeterminação inicial não colocam o fundamento plenamente realizado em uma relação

de circularidade com qualquer coisa; afinal, ele não é meramente o início da filosofia,

nem meramente o seu resultado, nem qualquer uma das determinações pelas quais passa

para ir do seu início ao seu resultado. O fundamento plenamente realizado é a totalidade

do percurso da filosofia de seu início para o seu resultado, o fundamento como união de

seu início e de seu resultado. Em outras palavras: o fundamento plenamente realizado é

o círculo que une o fundamento a si mesmo em suas duas faces, a de início e a de

resultado, superando ambas em sua unilateralidade. O fundamento, quer enquanto

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22

início, quer enquanto resultado, encontra-se em uma relação de circularidade; porém, o

fundamento plenamente realizado e apreendido em sua totalidade é o círculo que funda

a circularidade do fundamento enquanto início e enquanto resultado. Daí a necessidade,

frequentemente ressaltada por Hegel, de não considerar o fundamento como plenamente

dado quer apenas no seu início, quer apenas no seu fim, mas sim apenas na sua

atualização28

. Se é só no fim do percurso de suas determinações que o fundamento se

realiza plenamente, isso não se deve ao fato de o fundamento se encontrar plenamente

no fim a que chega, de tal maneira que poder-se-ia deixar de lado tudo aquilo que é

anterior a esse fim. Antes, deve-se ao fato de que só chegando ao fim de seu percurso

que o fundamento se fecha enquanto círculo, no interior do qual o fundamento enquanto

início e enquanto fim encontram-se em relação de circularidade, mas o qual, enquanto o

círculo próprio dessa relação, ultrapassa a relação de circularidade por meio da qual

advém círculo. E advir círculo nada mais significa do que advir absoluta relação

consigo mesmo, relação a si mesmo na qual não há nenhuma pressuposição, nenhuma

regressão ao infinito, nenhuma diversidade, nenhuma relatividade, nenhuma

circularidade enquanto reciprocidade de si com algo externo a si mesmo. Pois a

reciprocidade da circularidade é a reciprocidade daquilo que se encontra no interior do

círculo, e não do círculo ele mesmo em relação com algo que seja exterior a ele. Assim,

as objeções levantadas pelos tropos céticos contra a filosofia seriam plenamente

superáveis e superadas no interior da própria reflexão, e a filosofia, muito antes de dever

abdicar da reflexão para respondê-las, só pode responder a essas objeções levando a

reflexão até seus últimos limites ou, melhor dizendo, até a superação de seus próprios

limites.

28

Cf. Hegel 2007, §3

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23

Considerações Finais: A filosofia entre a interioridade e a exterioridade

Quer no Hegel de juventude, quer no de maturidade, a possibilidade de

responder aos tropos céticos voltados contra a filosofia dependem, no limite, de uma

mesma operação: a de tornar tudo, em última instância, interior à Razão. Essa

necessidade de internalização de tudo aquilo que se oferece como objeto à filosofia

teria, pelo que nos parece, levado Hegel a desdobrar essa exigência de internalização até

os seus últimos limites, transformando-a em uma exigência de circularidade. Tornar

tudo interior à Razão significa dizer, em outras palavras, que a Razão gira em torno de

si mesma. Ou, colocado de outra forma, para se fazer tudo interno à Razão é preciso

fazer com que ela se feche em si mesma, referenciando-se apenas a si mesma em sua

reflexão acerca de seus objetos – e fechar-se em si mesma em sua auto-referência é,

precisamente, advir círculo, fechando seus objetos em seu próprio interior. Poderíamos

dizer, então, que a possibilidade hegeliana de resposta ao ceticismo depende de uma

dissolução da autonomia da exterioridade. Para que a filosofia possa fundamentar-se

para além das objeções céticas, é necessário acabar com toda exterioridade em si, a qual

é pressuposto dos tropos céticos e aquilo que os legitima. Nesse sentido, não é à toa que

a exigência de interiorizar o próprio ceticismo se faz absolutamente necessária.

Assim, a resposta hegeliana ao ceticismo, da qual depende, em alguma medida, a

fundamentação de sua filosofia e de sua concepção de filosofia, ainda que

profundamente conseqüente, não deixa, a nosso ver, de possuir aspectos cuja

problematização é possível, devido à própria forma com que se configuram. Pois

mesmo o círculo, em sua auto-referência, pressupõe um plano exterior a partir do qual

ele possa ser traçado. Nessa medida, pressupõe uma referência a um exterior autônomo,

que não é o exterior dos pontos do círculo em relação uns aos outros, o qual é

interiorizado pelo traçado do círculo. Poderia se objetar que se está aqui abusando da

imagem do círculo: que ela, enquanto mera concepção figurativa do sistema, não

deveria ser levada tão a sério. Entretanto, é possível com igual direito perguntar-se se a

relação com a exterioridade existente na concepção figurada do círculo não é, na

verdade, uma relação que extrapola a figuração do círculo, na qual podemos vê-la com

maior clareza; se não é, em verdade, uma relação constituinte de toda e qualquer auto-

referência com uma exterioridade que, mais do que ser irredutível, jamais pode ser

plenamente internalizada por essa auto-referência. É possível, em outras palavras,

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perguntar-se em que medida toda e qualquer auto-referência já não deve portar,

simultaneamente, uma relação com uma exterioridade que não lhe é interna, como mero

momento de seu próprio interior. E, talvez, mesmo onde o ceticismo não pode acusar o

círculo de cair em circularidade, ele possa ainda acusar o círculo de ser mero círculo, e

mais do que isso, de ser círculo apenas em relação ao centro a partir do qual é traçado,

podendo ser igualmente visto como mero ponto em relação ao plano no qual é traçado.

Cabe notar que todas essas questões relativas aos limites e possibilidades da

filosofia enquanto auto-referência fechada, isto é, enquanto círculo no qual tudo é

interior à Razão, são questões centrais para a filosofia contemporânea, intimamente

ligadas às objeções feitas a Hegel por Adorno29

, de um lado, e por Deleuze30

, de outro.

Ainda que as alternativas oferecidas por esses filósofos acerca do que é a filosofia e do

que é seu fundamento sejam bastante distintas, ambas parecem empenhar-se em pensar

uma filosofia que não precise internalizar os seus objetos para que possa pensá-los, uma

filosofia que dê conta de objetos que não podem ser plenamente internalizados pela

Razão em suas pretensões de identidade (mesmo que de identidade da identidade e da

não-identidade). Nesse sentido, acreditamos que a reflexão sobre o modo como Hegel

concebe a relação entre ceticismo e filosofia e, mais do que isso, sobre o modo como a

sua filosofia da maturidade busca dar conta de objeções fundamentalmente céticas, são

fundamentais para que se possa pensar e problematizar os limites e possibilidades de

sua concepção e fundamentação da filosofia. Problematização essa que, a nosso ver, é

central para a filosofia contemporânea e para que se possa pensá-la em seus temas e

questões centrais e na qual vale sempre lembrar as palavras de Foucault:

Mas escapar realmente de Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa se

separar dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, se aproximou de

nós; supõe saber, nisso que nos permite pensar contra Hegel, isso que ainda é

hegeliano; e de medir em que nosso recurso contra ele é, talvez, ainda uma astúcia

que ele nos opõe e ao termo da qual nos espera, imóvel e em outro lugar

(FOUCAULT, 1986, p.81).

Sendo assim, pensar o custo de se separar de Hegel parece, pelo que discutimos

neste artigo, ser indissociável de pensar em que medida podemos nos desvencilhar da

operação hegeliana de internalização de todas as coisas à Razão, ou talvez, por outra

29

Cf. Adorno, 2009, introdução 30

Cf. Deleuze, 2006, introdução

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via, em que medida é possível concebê-la de um modo distinto, no qual a internalização

não se confunda mais com a remoção da autonomia daquilo que é exterior. Nesse

sentido, a problematização da internalização hegeliana por meio da reflexão sobre sua

relação com o ceticismo e suas objeções pode ter um papel chave para a indicação e

possibilidade de novos caminhos.

Abstract: In this article we aim to discuss how the hegelian grounding of philosophy is

intimately connected with a demand to answer the skeptical tropes of diversity,

regression to infinity, relationship, postulate and circularity. To that end, we’ll discuss

the ways through which Hegel attempts to overcome, be it in his youth, be it in his

maturity, the typically skeptical objections of these tropes, exposing how the recovery

of reflection done by mature Hegel requires him to overcome these objections in a

manner other than the one attempted at his youth – a manner in which, as we shall see,

the different kinds of negation conceived by Hegel play a key role. We hope, this way,

to show how the internalization of all exteriority by Reason, made through the removal

of all autonomy of the former in relation to the latter, is key to Hegel’s conception of

philosophy and its grounding, as well as to questioning the limits and possibilities of

said conception and grounding. To that extend, to reflect upon the relationship of

skepticism and philosophy on Hegel’s philosophy is to reflect upon matters central to it

and to contemporary philosophy itself, in its dialogue with Hegel and beyond it.

Key-words: skepticism – ground – skeptical tropes – reflection – negation – exteriority

– internalization.

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