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JSinodal Editora Escola Superior de Teologia Hans Jochen Boecker Orie m 1)aAíxU> llcl IwfatWhtc

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JSinodalEditora

Escola Su p e rio r de Teologia

Hans Jochen Boecker

Orie m

1)aAíxU> llcl IwfatWhtc

Traduzido do original Wegweisung zum Leben,2000 © Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, Alemanha.

Direitos para a língua portuguesa pertencem àEditora Sinodal 2004Caixa Postal 1193001 -970 São Leopoldo - RSTel.: (51) 590-2366Fax: (51) 590-2664E-mail: [email protected] Homepage: www.editorasinodal.com.br

Tradução: Erica L. Ziegler Revisão: Nelson KilppCoordenação de publicação: Luís M. Sander

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Insti­tuto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia (IEPG) da Escola Supe­rior de Teologia (EST) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

B669o Boecker, H ansjochenOrientação para a vida: direito e lei no Antigo Testamento /

Hans Jochen Boecker; tradução Erica L. Ziegler; ilustrações Joachim Krause - São Leopoldo : Sinodal, 2004-

13x18 cm. ; il. ; 128p.ISBN 85-233-0768-0Título original: Wegweisung zum Leben.

1. Antigo Testamento - Bíblia - Dez Mandamentos. I. Ziegler, Erica L. II. Krause, Joachim. III. Título.

C D U 222

Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima - CRB 10/1273

ÍNDICE

Prefácio............................................................................................... 5

PARTE IIN TRO D U ÇÃ O ............................................................................... 7

1. Os procedimentos jurídicos do Antigo Testamento......... 82. As formas básicas dos preceitos jurídicos

veterotestam entários.................. 243. Os códigos legais veterotestamentários..................... 27

PARTE IIEXPLICAÇÃO DE PRECEITOS JURÍDICOS BÍBLIC O S........................................................................................31

1. Preceitos avulsos selecionados ......... 32Agressão física sem conseqüências fatais (Êx 21.18-19) ........ 32O boi chifrador (Êx 21.28-32,35-36)......................................... 35A cova deixada aberta (Êx 21.33-34)........................................ 40Responsabilidade por bens de terceiros (Ex 22.6-7,9-12).......40Aluguel de animais (Êx 22.13-14) ..............................................43Roubo de animais (Êx 21.37; 22.3) .............................................44Danificação da lavoura e da colheita por negligência(Êx 22.4-5)...................................................................................... 47Sedução de uma virgem (Ex 22.15-16)...................................... 49Preceitos jurídicos acerca da proteção dos fracos(Êx 22.20-23)................................................................................. 50

A proibição veterotestamentária de cobrar juros(Êx 22.24; Lv 25.35-38; Dt 23.20-21)........................................ 52Determinações sobre a penhora(Êx 22.25-26; Dt 24.6,10-13,17) .................................................. 55“Amor ao inimigo” no direito veterotestamentário?(Êx 23.4-5).......................................................................................57Determinações jurídicas em favor de animais(Dt 25.4; 22.6-7; Êx 23.12) ...........................................................60A proibição de cozinhar o cabrito no leite de sua mãe(Êx 23.19b; 34.26b; Dt 14.21b).................................................... 63Determinações legais para a preservação de processosjurídicos justos (Ex 23.1-3,6-9).................................................. 65A lei acerca dos reis (Dt 17.14-20).............................................68O levirato (Dt 25.5-10)................................................................. 72O mandamento do amor ao próximo (Lv 19.17-18).................75

2. Os Dez Mandamentos (O Decálogo).................................. 81

3. “ Olho por olho, dente por dente” - a lei de talião veterotestam entária.............................................................. 111

A N EXO ....................................................................................... 119Sobre as ilustrações.................................................................... 119índice de passagens bíblicas..................................................... 125

Vrefído

“O Antigo Testamento é um livro de história”. Esta afir­mação, freqüentemente pronunciada, decerto está correta. Mas ela pode levar a esquecer ou desprezar outros aspectos que pa­recem não coadunar totalmente com essa caracterização. Isto não deveria acontecer. Se este livro se propõe a explicar “o di­reito e a lei no Antigo Testamento”, então, sem dúvida alguma, tematiza uma matéria de importância fundamental para o AT. Isso já se revela no que normalmente se conhece do AT. Se, hoje em dia, alguém sem muita familiaridade com a Bíblia for questionado sobre o AT, possivelmente citará alguns nomes: Abraão, Moisés, Davi, talvez também Elias e Isaías. Mas certa­mente ele se lembrará dos Dez Mandamentos e até conseguirá citar alguns por causa de sua inim itável brevidade e expressividade: “Não matarás”, “Não adulterarás”, “Não furta- rás”. Além disso, esta pessoa talvez ainda se lembre de outro preceito ou lei pertencente a este contexto, que citará com um certo arrepio: “Olho por olho/dente por dente”. Estes são ape­nas alguns poucos exemplos das múltiplas normas jurídicas que se encontram no AT. Este livro se ocupa com elas, tentando entender o direito veterotestamentário a partir de sua época e refletindo também sobre sua importância duradoura. Para tan­to, será necessário, às vezes, ampliar o horizonte do AT para o contexto do direito do Antigo Oriente.

Ao campo do “direito no AT” também pertencem infor­mações sobre os procedimentos jurídicos. Como funcionava a jurisdição no antigo Israel? Quais pessoas participavam dela? Como se podem definir o objetivo e a intenção dos processos

jurídicos? Também a este âmbito da vida, tão importante para o ser humano veterotestamentário, deverá ser dedicada alguma atenção.

Os textos bíblicos são citados segundo a Bíblia Sagrada, traduzida por João Ferreira de Almeida, edição revista e atuali­zada no Brasil. Em alguns momentos indicam-se outras possibi­lidades de tradução, quando estas conseguem alcançar um grau maior de compreensão. As citações do Antigo Oriente foram retiradas da tradução Texte aus der Umwelt des Alten 1estaments (TUAT l/l).

Acerca das ilustrações há mais esclarecimentos no Anexo.

Vrefácío à edição brasileira

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que se empe­nharam pela publicação deste livro em língua portuguesa. Agra­deço principalmente ao Prof. Dr. Nelson Kilpp, que sugeriu sua publicação e acompanhou a realização do plano com cuidado e energia. Este agradecimento se estende também à tradutora, Erica L. Ziegler, de cujo trabalho resultou uma versão acessível e fiel ao original.

Desejo que as leitoras e os leitores percebam que o direi­to do Antigo Testamento, ainda que proveniente de uma época distante, continua relevante e pode contribuir para uma confi­guração adequada da vida humana.

Wuppertal, novembro de 2004 Hans Jochen Boecker

PARTE I

INTRODUÇÃO

1. Os procedimentos jurídicos do Antigo Testamento

A vida jurídica tinha grande importância para as pessoas do Antigo Testamento. Ela marcou sua existência de forma ad­mirável. A dificuldade que existe, apesar disso, de descrever os rituais de um processo jurídico hebraico tem suas causas. Algo assim como um “corpo jurídico” segundo o qual seria possível orientar-se não é transmitido pelo AT, e decerto nunca existiu. Além disso, há que se considerar que os textos do AT surgiram num espaço de cerca de mil anos. Dentro de um tempo tão longo devem-se esperar modificações substanciais em pratica­mente todos os âmbitos do convívio, principalmente quando a estrutura social se modificou tanto como foi o caso de Israel. A existência nômade, que ainda se reflete nas narrativas dos pa­triarcas, seguiu-se o sedentarismo de uma cultura agrícola. Isso influenciou profundamente a estruturação das leis.

A cultura nômade era determinada pela família. Isso tam­bém valia para o direito nômade. A família compreendia os membros de três a quatro gerações; pode-se chamá-la de famí­lia ampliada. Â sua frente está o pai de família, o pater familias, o qual, em tempos remotos, dispunha de poderes jurídicos qua­se ilimitados sobre os membros da família. Ele podia decidir com autoridade sobre conflitos jurídicos que aconteciam dentro da família. Por isso, essa forma de direito era denominada justa­mente de “direito patriarcal”.

Não terás outros deuses diante de mim Não os adorarás, nem os servirás.

No AT ainda existem alguns indícios dessa forma de di­reito, que também era denominada de “jurisdição familiar”. A narrativa de Tamar (Gn 38) é um exemplo muito claro. Con­ta-se que Judá deu Tamar por esposa a Er, seu filho mais velho. Nem o filho nem a mulher são consultados sobre o assunto. Já neste momento Judá age conforme sua competência de chefe de família. Isso também ocorre quando ele ordena seu segun­do filho, Onã, a gerar um descendente com Tamar, após a morte de Er - em outras palavras, a assumir o levirato (sobre o cha­mado levirato cf. infra p. 72-75). Após também Onã morrer e Judá obviamente não conseguir deixar de pensar que Tamar tenha algo a ver com a morte dos dois filhos, ele a manda de volta à sua família paterna, não sem ordenar expressamente que ela viva lá como viúva (de Er), além de anunciar que, mais tarde, seu terceiro filho assumirá o levirato (v. 11). Tamar continua sendo, portanto, membro da família de Judá. Mas ela não se conforma com o fato de ter sido lograda por Judá em seu direito; agora, por iniciativa própria, resolve corrigir a in­justiça que lhe foi feita. Detalhes dos acontecimentos podem ser consultados na própria narrativa. Depois de Tamar aparen­temente ter incorrido em pesada culpa, Judá é inquirido com as seguintes palavras:

Tamar, tua nora, prostítuíu-se e eis que engravidou (v. 24a).

Não se trata aí de fofoca ou calúnia, mas, sim, de uma acusação levada a Judá contra uma mulher que pertencia à sua família. Já que, ao que tudo indica, a gravidez já era visível e certamente não estava sendo ocultada por Tamar, não foi preci­so qualquer outro tipo de exame. Judá pôde agir imediatamente

como chefe de família, dando uma ordem para que se cumprisse a sentença de morte:

firaí-a fora. para que seja. queimada (v. 24b).

Mas Tamar consegue impedir, na última hora, a execução da sentença, apresentando provas concretas. A situação criada a partir deste momento é radicalmente diferente, de modo que Judá é levado a expressar uma nova sentença, agora definitiva, que a versão de Almeida apresenta assim: “Mais justa é ela do que eu, pois não a dei a Selá, meu filho”. Mais explícita é uma outra tradução:

Ela está em seu direito, eu, porém, sou injusto, pois não a dei a meu filho Selá (por esposa) (v. 26).

A narrativa de Tamar não é a única comprovação da com­petência jurídica do pai de família, comum na época veterotes­tamentária remota. Também de Abraão se narra um aconteci­mento comparável, no relato da expulsão de Hagar, que se pode ler em Gn 16. Para nosso questionamento interessam os vv. 1-6. Aqui se percebe que também Abraão faz uso, como chefe de família, da competência jurídica a ele atribuída contra um mem­bro da família.

A esposa de Abraão, Sara, não tinha filhos. Por isso, se­gundo o costume jurídico do Antigo Oriente Médio, ela cede sua serva Hagar a seu marido Abraão, para que, por assim dizer através de um atalho, ainda chegue a ser mãe de um filho. De­pois de Hagar ter engravidado, ela se rebela contra sua patroa

Sara, ameaçando a paz dentro da família ampliada. Nessa situ­ação, Sara se dirige a Abraão com as palavras que se lêem desta forma na Bíblia Sagrada da Editora Vozes: “Caia sobre ti a afronta que sofro.” (v. 5a). Com isso, Sara expressa uma maldição. Mas também é possível entender as palavras de outra forma, talvez mais correta no contexto:

A afronta que sofro pesa sobre tí (v. 5a).

Com estas palavras Sara apela ao pai de família, que é responsável pelo restabelecimento da harmonia jurídica dentro da família ampliada. Junto com esta petição, Sara ainda descre­ve o caso jurídico em jogo:

Eu te dei a minha serva para a possuires; ela, porém, vendo que concebeu, desprezou-me (v. 5b).

Finalmente, Sara apela ao juízo divino para o caso de Abraão não cumprir com sua obrigação:

Julgue o S e n h o r entre mim e tí (v. Sc).

Mas isso não acontece, e assim esse raciocínio não é leva­do adiante. Pelo contrário, Abraão pronuncia a sentença:

A tua serva está nas tuas mãos, procede segundo melhor te parecer (v. 6).

Não se diz como Sara agiu em relação a Hagar com base nessa sentença. Mas sua atitude deve ter sido tão severa que Hagar foge para o deserto, onde se vê exposta ao mais sério perigo de morte.

O sistema social nômade não consiste somente de famí­lias ampliadas isoladas; para além delas, a união de várias famí­lias forma um clã. Entre os membros de famílias ou clãs diferen­tes também são possíveis conflitos jurídicos, mesmo que não apa­reçam tão freqüentemente quanto talvez esperássemos. Nesse caso se fala em processos jurídicos interfamiliais, ou seja, pro­cessos que se desenrolam entre pessoas que pertencem a clãs ou famílias ampliadas diferentes.

No AT só se conservaram poucas pistas de um processo jurídico interfamilial. Pode-se pensar, p. ex., na discussão entre Jacó e Labão, narrada em Gn 31.26-54. Essa discussão acontece quase que totalmente na forma de um conflito jurídico, sendo que Jacó e Labão se apresentam como chefes de família indepen­dentes. Para que o litígio entre eles possa ser decidido, é necessá­rio formar uma nova instância jurídica. Isso é feito por Jacó: ele exorta “os meus e os teus parentes” a tomarem uma decisão jurí­dica entre os dois contendores (v. 37, cf. também v. 32). A função atribuída nesse caso aos “parentes” - na versão de Almeida se fala em “irmãos” - normalmente é desempenhada pelos “anciãos” dos clãs. Estes são os representantes do clã que formam o tribunal que decide os conflitos jurídicos interfamiliais.

Também pertencem ao âmbito do direito nômade fenô­menos tão diversos quanto a instituição da vingança de sangue e o costume de pagar um dote ao pai da noiva, que não deve ser confundido com os presentes do casamento (cf. Gn 34-12). Pode- se perceber tanto na vingança de sangue quanto no dote que o

direito interfamilial não se refere ao indivíduo, mas ao grupo todo. Se a força de uma família ou de um clã estiver fragilizada por causa do assassinato de um de seus membros, a vingança de sangue cria uma compensação, eliminando um membro da fa­mília ou do clã do assassino. Não raramente o AT se refere a ela em suas narrativas, e também em fórmulas jurídicas ela é citada (p. ex. em Nm 35.19; Dt 19.12). Teoricamente, a vingança de sangue foi mantida até a época pós-exílica; na realidade, deve ter sido praticada até a época dos reis. Não é preciso acentuar que ela é de difícil compreensão para nós. Mas temos de consi­derar que ela deve ser vista no seu contexto histórico e socioló­gico, e que, desta forma, pode muito bem ser entendida como um instrumento de proteção da vida humana. Em Dt 24.16 po- der-se-ia reconhecer uma primeira pista veterotestamentária para o abandono da vingança de sangue:

Os país não serão mortos em lugar dos filhos, nem os filhos,

em lugar dos país.

Também o dote deriva desse raciocínio legal (cf. Gn 34.12; Ex 22.15s.; ISm 18.25). O dote era pago como indenização pela força de trabalho da moça, perdida para sua própria família e somada à família do marido. Denominar este tipo de casamento de “compra da noiva” é um equívoco, porque, para as pessoas de hoje, essa expressão é, obrigatoriamente, depreciativa para a mulher. O que se “compra” é uma mercadoria, de modo que essa maneira de falar resulta facilmente num juízo de valor acerca da mulher, que se torna apenas mercadoria ou objeto de pro­priedade do homem. Mas esta é uma avaliação totalmente insu­ficiente do antigo costume. No AT, de maneira nenhuma se

insinua que pagar um dote por ocasião do casamento seja uma depreciação da mulher.

A passagem para o sedentarismo teve por conseqüência um importante desenvolvimento da estrutura jurídica. A jurisdição nômade das famílias ou clãs desenvolveu-se na direção de uma jurisdição local dos habitantes, agora fixados em terras cultivadas. Surge a “comunidade jurídica hebraica”. Como os clãs moravam em aldeias próximas, pode-se supor que tenha havido uma passa­gem lenta e orgânica de uma estrutura jurídica para outra.

Como se apresentavam os processos jurídicos no contexto da comunidade jurídica? Tudo que estava relacionado a estes processos deve ter acontecido de maneira bem mais viva e bem menos burocrática do que somos capazes de imaginar. Não ha­via horários fixos para os procedimentos, nem qualquer local reservado para os julgamentos. Mas estes eram um aspecto im­portante da vida. Como local dos julgamentos, o AT menciona freqüentemente os portões da cidade, cf. Dt 21.19; 25.7; Is 29.21; Am 5.10.12.15; SI 127.5; Pv 22.22 (neste caso, a versão de Almeida traduz “no juízo”). Pensa-se aí no espaço aberto que havia imediatamente após a entrada do portão, mas também nas câmaras internas da passagem do portão; em algumas havia assentos. Nas aldeias palestinas, era este o único espaço maior que estava à disposição para o encontro da população e, por isso, era o local de reunião dessas aldeias. A vida social aconte­cia junto ao portão. Aqui estava instalado o mercado (2Rs 7.1). Aqui as pessoas se encontravam e conversavam, aqui se recebi­am viajantes (cf. Gn 19.1) e se ficava sabendo dos aconteci­mentos do vasto mundo. E aqui também se tratava dos casos jurídicos a serem resolvidos. O portão da cidade era, ao mesmo tempo, o local por onde era preciso passar pela manhã para ir ao

trabalho no campo e por onde se voltava à noite. “O SENHOR

proteja tua saída e tua entrada”, diz o Salmo 121.8. A seqüência saída-entrada, que para nós poderia parecer estranha, encontra sua explicação no ritmo diário do agricultor.

Todos os cidadãos plenos da respectiva localidade tinham o direito de participar ativamente das negociações e decisões da comunidade jurídica. Isso não era sentido como um compro­misso incômodo, mas sim como direito especial. Uma das gran­des desvantagens do “estrangeiro” era não poder fazer uso desse direito. Também as mulheres e as crianças estavam excluídas da participação ativa nos procedimentos jurídicos. Por isso, as admoestações jurídicas veterotestamentárias acentuam constan­temente que é preciso proteger justamente essas pessoas em seus direitos. Cite-se como exemplo Dt 24.17:

Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão; nem tomarás em penhor a roupa da viúva.

Para constituir um tribunal, as pessoas sentavam junto ao portão e convidavam os transeuntes a tomarem lugar ali. Ao que tudo indica, ninguém se esquivava desse convite sem ne­cessidade. Rute 4-1-2 é um bom exemplo para demonstrar a constituição de um tribunal junto ao portão da cidade:

(1) Boaz subiu à porta da cidade e assentou-se ali. Eis que o resgatador de que Boaz havia falado ía passando; então, lhe disse: ó fulano, chega-te para aqui e assenta-te; ele se virou e se assentou. (2) Então, Boaz tomou dez homens dos anciãos da cidade e disse: Assentai-vos aqui. E assentaram-se.

Aqui se fala de dez anciãos chamados por Boaz. Esta é a única passagem veterotestamentária que cita o número dez neste contexto. Freqüentemente devem ter sido mais participantes, às vezes, talvez, menos. As pessoas chamadas para junto do portão devem desempenhar o papel de juizes. Assim é preciso entender o convite para sentar-se. Menciona-se ainda em diversas outras pas­sagens que os juizes ficavam sentados durante o processo (Ex 18.13; Pv 20.8; Dn 7.9s.). As partes em litígio, por outro lado, permane­ciam em pé durante o julgamento (Ex 18.13; lRs 3.16; Zc 3.1).

Como já foi dito, todos os cidadãos plenos presentes ao processo tinham direito a voz e voto, mas com funções que va­riavam constantemente. Com isso, deparamo-nos com um fenô­meno que pode nos parecer bastante estranho. Nós somente podemos imaginar um julgamento em que as funções das pes­soas participantes estejam claramente definidas e em que, cer­tamente, não sejam intercambiáveis entre si. Mas no julgamen­to hebraico isso era diferente. A testemunha e o juiz não eram, necessariamente, pessoas distintas. Ou dito de outro modo: quem tinha deposto como testemunha em determinado processo po­dia, no final, usar seu direito de voto como juiz. O mesmo tam­bém valia - e isso chama ainda mais a atenção - para o acusa­dor e o juiz. Era possível que também o acusador fosse co-res­ponsável, junto com o juiz, pela sentença final. Portanto, aqui não havia nada determinado; pelo contrário, tudo estava aber­to, e essa abertura emprestava à comunidade jurídica hebraica sua vivacidade e seu colorido, seu caráter democrático — se quisermos expressá-lo de maneira moderna. Corresponde ao caráter desse processo que ele era, fundamentalmente, um pro­cesso oral. Apenas uma passagem do AT alude a um processo escrito (Jó 31.35), mas esta passagem deriva do uso jurídico egíp­

cio e não pode, por isso, ser utilizada para explicar o processo jurídico veterotestamentário.

Qual a intenção da comunidade jurídica, o que ela quer atingir com os seus processos? Não se trata de querer corresponder a um ideal abstrato de justiça. Segundo a opinião corrente, é esta a intenção do direito, que foi desenvolvida pelo pensar jurídico romano e que influenciou também o direito alemão. A conhecida sentença fiat íustkia, pereat mundus, que se pode traduzir por “seja feita justiça, mesmo que o mundo pereça”, formula de maneira clássica essa acepção do direito. Ela é ilustrada pela imagem da deusa lustitia, a qual julga sem tomar partido, de olhos vendados e segurando a balança numa mão e a espada na outra. Indepen­dentemente de quanto esse imaginário era realmente normativo para o pensar jurídico romano ou teuto-germânico, a comunida­de jurídica hebraica pensava de forma diferente. Aí era impor­tante resolver conflitos e possibilitar um convívio produtivo entre seus membros. Sob esse aspecto também é possível compreender por que não há um promotor no âmbito da comunidade jurídica hebraica, mas é o próprio prejudicado que apresenta sua causa ao tribunal, ou então é a testemunha de um crime que passa a ser o acusador. Como testemunha, ele é obrigado a denunciar um cri­me acontecido (cf. Lv 5.1; Pv 29.24).

Dessa intenção do processo deriva a função da sentença que encerra o processo. Deixando de lado, nesse momento, pro­cessos de direito de família e de propriedade, onde a sentença tem outra função, a primeira e mais importante tarefa do tribu­nal é declarar o acusado culpado ou inocente. Isso é intencio­nado em Dt 25.1.

v . houver contenda entre alguns, que venham a juízo, e serão julgados, justificando ao justo e condenando ao cul­pado.

Cita-se uma sentença como essa em Pv 24.24. A senten­ça se volta contra um juiz que declara um culpado inocente, dizendo: “Tu tens razão”. Melhor tradução seria: “Tu és justo”. Através de uma sentença desse tipo, o acusado é libertado ofi­cialmente, diante dos olhos e ouvidos de todos, da pecha da acusação que pesa sobre ele, e, no contexto da ordem social antiga, isso tem importância maior ainda do que nas circuns­tâncias atuais. Se a sentença declarar “culpado”, o tribunal tem mais uma tarefa a cumprir. Ele tem de definir as conseqüências legais advindas da condenação. Uma solução eficiente para re­solver o conflito entre os contendores era fazer com que o pre­juízo causado fosse compensado. Conforme o caso jurídico, isso podia acontecer através de reparação ou de castigo físico ou de morte (sanção). O tribunal era responsável também por isso. Ele se desincumbia da tarefa através da definição da “conseqüên­cia jurídica”, ou seja, da fixação da pena.

Até este ponto ainda não se falou do rei. Isso chama a atenção, porque em algumas passagens do AT fala-se claramente de uma competência jurídica do rei. Dessa forma surge a per­gunta pela competência legal ou jurídica do rei em Israel. Ela existia ou não? Essa pergunta, controversa dentro da pesquisa veterotestamentária, não pode ser respondida com um “sim” ou “não” inequívoco.

Ao lidar com o problema, pode-se partir da constatação de que, no AT, em nenhum lugar se fala de uma legislação

promulgada pelo rei. As leis veterotestamentárias não são leis do rei e, com isso, tampouco são leis do Estado. A lei veterotes­tamentária é lei de Deus. O Deus de Israel é o único legislador.

Aqui se percebe uma diferença fundamental em relação ao entorno do Antigo Oriente Médio: mesmo que Hamurábi aja sob incumbência divina, ele redige sua obra legislativa en­quanto rei babilônico e denomina-se a si mesmo, expressamen­te, de legislador.

Mas existe uma referência veterotestamentária que insi­nua algo assim como uma legislação real. Trata-se de uma de­terminação avulsa dentro de um contexto bem definido. Numa das batalhas de Davi, surgira o problema da divisão justa do butim de guerra. Somente aqueles que tinham participado da batalha deveriam receber a sua parte, ou também os que fica­ram guardando a bagagem? Davi decidiu que todos deveriam ganhar a mesma porção do butim (ISm 30.24), e o texto prosse­gue: “E assim, desde aquele dia em diante, foi isso estabelecido por estatuto e direito em Israel, até o dia de hoje” (v. 25). Por­tanto, a decisão jurídica de Davi permaneceu efetiva como pre­cedente. Trata-se aí de uma decisão jurídica do direito marcial. Davi não age como rei - na época do acontecimento citado ele ainda não possui a honra real; age como comandante de guerra. Como tal, ele tem uma autoridade legal ampla sobre os seus subordinados, e essa autoridade legal os reis de Israel também continuaram possuindo e praticando.

Pode-se citar mais um âmbito dentro do qual o rei tinha competências jurídicas. Ele tem de ser definido localmente. Pelo fato de Davi ter conquistado a cidade real dos jebusitas, Jerusa­lém, através de seus mercenários (2Sm 5.6-10), ele fez de Jeru­salém a sua cidade. Ele assumiu os direitos jurídicos de seus

Não farás para ti imagem de escultura [de Deus].

antecessores cananeus. Caso semelhante passou-se com Samaria. A fundação da cidade por Omri sobre um terreno comprado pelo rei (lRs 16.24) fez com que a capital do Reino do Norte também adquirisse um status jurídico especial. Em Jerusalém, o juiz supremo era o rei judaíta, que foi delegando paulatinamen­te as tarefas jurídicas a funcionários; em Samaria, o rei israelita deve ter tido atribuições jurídicas semelhantes.

Entre os textos que pressupõem uma jurisdição real em Je­rusalém pode-se citar a conhecida história da sentença salomônica (lRs 3.16-27), sendo que a pergunta pela historicidade deste acon­tecimento não é relevante no nosso contexto. Deve-se à existên­cia de uma competência jurídica real o fato de se poder narrar uma história desse tipo sobre um rei em Jerusalém. Neste contex­to pode-se mencionar, também, o relato do processo contra o pro­feta Jeremias (Jr 26.1-19). Aí se encontra a descrição mais deta­lhada de um processo jurídico no AT. O caso jurídico é de blasfê­mia contra Deus, acontecida em Jerusalém e relacionada ao tem­plo do Reino. Conseqüentemente, nesse caso, entra em ação o tribunal régio, representado pelos “príncipes de Judá” - ou seja, os funcionários do Reino - cf. o v. 10:

Tendo os príncipes de Judá ouvido estas palavras, subiram da casa do rei á casa do S enhor e se assen taram , à e n tra d a d a

Porta Nova da casa do S e n h o r .

Deste versículo também se depreende que os funcioná­rios do Reino não se ocupavam exclusivamente com assuntos jurídicos. Para coordenar o processo jurídico eles se dirigiam ao respectivo local. Assim, é possível imaginar que funcionários

reais tenham agido como juizes do tribunal real em caso de ne­cessidade.

O que se disse aqui em rápidas pinceladas sobre uma com­petência jurídica atribuída ao rei não desfaz a argumentação anterior. Mesmo que os reis tenham tentado ampliar seus direi­tos jurídicos, o fato é que se conservou, basicamente, a comuni­dade jurídica hebraica como instituição, da maneira como foi descrita.

2. As formas básicas dos preceitos jurídicos veterotestamentários

Tal como a maioria das disposições legais do Antigo Orien­te, os preceitos jurídicos veterotestamentários foram formula­dos, em grande parte, de forma condicional. Cada preceito jurí­dico está originalmente relacionado a um determinado caso ju­rídico. Por isso, fala-se em “direito casuisticamente formulado” ou, resumidamente, “direito casuístico”. Essa forma do direito é um sistema de prótases e apódoses. Primeiramente, descreve-se o caso jurídico a partir da definição do delito (prótase). Depois se determina a conseqüência jurídica (apódose). “Definição do delito” e “determinação da conseqüência jurídica” formam o preceito jurídico casuístico.

Por um lado, o direito casuístico é, na origem, direito pro­fano. Só se fala de Deus muito raramente e a partir de aspectos especiais (cf. Ex 22.7,10). Essa forma de direito se preocupa em resolver conflitos de convívio. Uma vez que esses conflitos po­dem acontecer nos mais diversos âmbitos e situações da vida humana, os preceitos jurídicos casuísticos se ocupam com uma variedade de assuntos, conforme demonstra a seleção aqui apre­sentada. Destes preceitos pode-se aprender muita coisa sobre a vida em Israel naquela época.

Por outro lado, esse direito originalmente profano foi in­corporado, no AT, em códigos legais nos quais, ao lado de e junto aos preceitos jurídicos casuísticos, encontram-se precei­

tos jurídicos formulados de maneira diferente, que possuem uma característica religiosa direta muito mais acentuada. Antes de mais nada, porém, esses códigos legais estão subordinados como um todo à autoridade do Deus de Israel. Podemos reconhecer isso com clareza no código legal mais antigo do AT, o chamado Código da Aliança (cf. p. 27).

Ao lado do grande número de preceitos jurídicos casuísticos, existem no AT preceitos estruturados de maneira bem diferente. Não se consegue defini-los tão claramente do ponto de vista formal como no caso do direito casuístico. Essa outra forma jurídica foi denominada de “direito apodíctico”. Mas sob essa denominação foram reunidos preceitos jurídicos muito diversos, de maneira que não se pode aplicar a eles, ine­quivocamente, o conceito geral de direito apodíctico.

Aqui se pretende apenas apontar para a forma mais im­portante do direito apodíctico, a chamada proibição. Nesse caso, não se apresenta um caso jurídico nem se constata a conse­qüência legal, através de um sistema de prótases e apódoses, como no direito casuístico; ao contrário, uma determinada ação é vedada através de uma proibição. Normalmente, isso se dá na forma de uma formulação proibitiva que se dirige a um tu. Aí não existe uma retrospectiva sobre um delito acontecido, mas, sim, uma prospecção acerca de um possível delito futuro, o qual deve ser impedido pela proibição.

Ê de se questionar se é possível, em princípio, falar em direito nesse caso. Certamente não se pode falar em processo jurídico, no sentido de julgar, condenar e castigar, mas, sim, no sentido de fundamento jurídico ou constituição jurídica. O di­reito se aproxima do campo da ética. Originalmente, a proibi­ção aparecia em forma de normas proibitivas breves, sem justifi­

cativa nem ameaça de castigo. Os preceitos breves do Decálogo - “Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás” (Ex 20.13-15) - são o exemplo mais conhecido. Nessa forma do direito a voz de Deus vem até nós de maneira bem mais imediata do que no direito casuístico. Por isso até mesmo já se falou, nesse contex­to, em direito divino. O tu interpelado é o indivíduo na comu­nidade do povo de Deus.

3. 05 códigos legais veterotestamentários

O direito veterotestamentário não se encontra isolado dentro da vida israelita. Ele está imbricado na história de Deus com seu povo. O Código da Aliança (Ex 20.22-23.33), p. ex., foi colocado, no Livro do Êxodo, no contexto dos acontecimentos no Sinai, ou melhor, ele foi encaixado entre a teofania, narrada em Êx 19.1-20.21, e a firmação da aliança, narrada em Êx 24.1-11. Com isso se quer deixar claro que o direito dado por Deus tem sua base na relação constituída entre Deus e Israel através da eleição divina. O nome normalmente usado na pesquisa ve­terotestamentária para designar este compêndio jurídico foi re­tirado de Êx 24-7, onde se pode ler acerca de um “Livro da Aliança”. Mas é duvidoso que nesta passagem realmente se tra­te do chamado Código da Aliança.

A maioria dos preceitos jurídicos a seguir faz parte do Código da Aliança. Ao lado do Código da Aliança ainda de­vem ser mencionados os outros dois códigos legais veterotesta­mentários, a Lei Deuteronômica e a Lei da Santidade. A Lei Deuteronômica é formada por um trecho do Deuteronômio e se encontra em Dt 12-26. A denominação Deuteronômio para o 5° livro do Pentateuco se deve a uma tradução equivocada da ex­pressão “cópia da lei”, em Dt 17.18, na Septuaginta, a tradução do AT para o grego. A Septuaginta traduziu a expressão como “segunda lei” = deuteronomion, e a partir daí a expressão se

tomou comum para designar o 5o livro do Pentateuco. O livro como um todo representa o discurso de despedida de Moisés na terra de Moabe, antes de Israel partir para a tomada da terra. Historicamente isso não pode ter se passado dessa forma, mas demonstra a grande importância que se deu ao Deuteronômio e, justamente, à Lei Deuteronômica. Na própria Lei Deutero- nôrnica não se indica claramente em nenhuma passagem que o livro se entende como discurso de despedida de Moisés.

Dentro da Lei Deuteronômica há várias linhas de conta­to com o Código da Aliança. Com razão, fala-se em “materiais comuns” que estariam evidentes aqui e ali, o que não deveria, no entanto, impedir a percepção das importantes diferenças existentes entre ambos os conjuntos de leis. Chama a atenção que, diversamente do Código da Aliança, admoestações e tra­tamentos diretos são bem mais determinantes dentro dos textos jurídicos. Também a base humanitária das leis torna-se mais marcante, embora ela esteja visível já no Código da Aliança. Finalmente, no Deuteronômio a reflexão teológica desempenha um papel mais importante do que no Código da Aliança.

A Lei Deuteronômica é claramente mais recente do que o Código da Aliança. Isso pode ser comprovado pela existência da lei sobre os reis (Dt 17.14-20): no Código da Aliança, mais antigo, ainda não se fala do rei; na Lei da Santidade, ainda mais recente, já não se fala mais do rei. Segundo uma tese anti­ga e muito defendida, a Lei Deuteronômica foi aquela que ser­viu de base para a reforma josiânica (cf. 2Rs 22-23). Assim, po- der-se-ia datá-la na época monárquica tardia.

A Lei da Santidade (Lv 17-26) é a mais recente das cole­tâneas legais veterotestamentárias. Ela recebeu seu nome devi­do à exigência divina localizada no centro da coletânea: “San­

t o s sereis, porque eu, o Sen h o r, v o s s o Deus, sou santo” (Lv 19.2;1 1. Lv 20.26). Dentro das coletâneas legais veterotestamentá- r i a s , a Lei de Santidade é uma obra tardia. Ela se originou em uma época em que Israel já não era um Estado. A santidade do S e n h o r é o pano de fundo para a exigência de santidade feita à

comunidade, a qual deve ser realizada através do comporta­mento social e dos esforços investidos no culto.

PARTE 11

EXPLICAÇÃO DE PRECEITOS

JU RÍD ICO S BÍBLICOS

1. Preceitos avulsos

selecionados

Agressão física sem conseqüências fatais (Êx 21.18-19)

( lê ) Se dois brigarem, ferindo um ao outro com pedra ou com o punho, e o ferido não morrer, mas cair de cama; (19) se ele tornar a levantar-se e andar fora, apoiado ao seu bor­dão, então, será absolvido aquele que o feriu; somente lhe pagará o tempo que perdeu e o fará curar-se totalmente.

Como mostra este exemplo, um preceito jurídico casuístico pode ser bastante complexo num caso isolado. Inicialmente, o delito é fixado com exatidão através de seis condicionantes. São as seguintes: 1) Trata-se de uma briga. 2) Um dos conten- dores atingiu o outro com uma pedra ou com o punho (a tradu­ção mais correta talvez seja “com uma enxada”). Essa condição expressa que não se trata de uma ação planejada e preparada, mas de um ato nascido de violenta emoção. Por isso são citados objetos que casualmente estão por perto, que não foram trazidos intencionalmente. 3) A pancada não levou à morte. 4) Mas ela teve conseqüências tão sérias que a vítima caiu de cama. 5) Após certo tempo, a vítima consegue deixar seu leito de doen­te. 6) Ela já está recuperada a ponto de conseguir sair de casa e participar da vida pública. Com estas informações, é possível definir o delito com a exatidão desejada.

Segue-se a conseqüência legal, que nesse caso consiste de três afirmações. Primeiramente, ela está contida na senten­ça principal: o agressor fica sem castigo. Com isso se impede a aplicação da vingança de sangue, mas também a aplicação da pena de Talião. Seguem outras duas prescrições que regula­mentam a indenização do ferido. Traduzido literalmente, fica­ria assim: “Ele deverá pagar os dias parados em casa e os custos do tratamento”. No Israel daquela época ainda não se conheci­am médicos profissionais, aos quais se deveria pagar o tratamen­to. Assim, pode-se cogitar que o pagamento se referisse a poma­das e óleos necessários para a cura (cf. Lc 10.34s.), enquanto a pena anterior é relativa a danos e perdas por causa da impossibi­lidade de trabalhar.

O interesse do direito casuístico é, tal como o de qual­quer direito, compensar corretamente as diferenças entre as partes em litígio para que a paz jurídica seja restabelecida den­tro da comunidade. Pode-se reconhecer claramente em nosso exemplo como os direitos de ambas as partes são protegidos. Como o ferimento não levou à morte, apenas prejudicando a vítima temporariamente, o agressor não deve ser castigado ex­cessivamente. Mas ele tem de se responsabilizar, na medida do possível, pelas conseqüências de seu ato.

Com o direito casuístico, o AT assume uma forma de di­reito que predominava no Antigo Oriente. O exemplo mais co­nhecido é o Código do rei babilônico Hamurábi (1728-1686 a. C.). Mas o famoso Código de Hamurábi (CH), encontrado em 1901/02 por arqueólogos franceses e que se pode ver hoje em dia no Museu do Louvre, em Paris, não é, de maneira alguma, o único nem o mais antigo testemunho da cultura jurídica do Antigo Oriente, da qual, até certo ponto, também o AT participa.

À guisa de ilustração, citamos dois preceitos jurídicos do Antigo Oriente, que apresentam consideráveis concordâncias formais e de conteúdo. O § 206 do CH diz:

Se um cidadão bater em (outro) cidadão durante uma briga e o ferir, este cidadão deverá jurar: "Não bati de propósito”, e pagar o médico.

Também entre as Leis Hititas encontradas na capital hitita, hoje Bogazkõy, existe um paralelo que chama a atenção. As Leis Hititas (LH) são mais recentes que o Código de Hamurábi. Elas surgiram durante o início do chamado Reino Antigo (cer­ca de 1600 a. C.). O § 10A diz:

Se alguém prejudicar uma pessoa e a deixar doente, então ele cuidará dela. Mas em seu lugar ele colocará uma pessoa, e esta trabalhará em sua casa até que aquela se recupere. Mas assim que ela estiver sã, dar-lhe-á 6 siclos de prata, e somente ela dará o pagamento ao médico.

Apesar de alguns detalhes divergentes, os três preceitos jurídicos coincidem em sua base. A principal diferença é que nos exemplos do Antigo Oriente falta, na determinação da con­seqüência jurídica, a sentença geral “O agressor não será casti­gado”.

O boi chifrador (Êx 21.28-32,35-36)

(28) Se algum boi chifrar homem ou mulher e causar sua morte, o boi será apedrejado, e não comerão a sua carne; mas o dono do boi será absolvido.(29) fvtas, se o boi, dantes, era dado a chifrar, e o seu dono era disso conhecedor e não o prendeu, e o boi matar ho­mem ou mulKer, o boi será apedrejado, e o seu dono tam­bém será morto. (30) Se lhe for exigido resgate, dará, então, como resgate da sua vida tudo o que lhe for exigido. (31) Quer tenha chifrado um filho, quer tenha chifrado uma filha, este julgamento lhe será aplicado. (32) Se o boi chifrar um escravo ou uma escrava, dar-se-ão 30 siclos de prata ao senhor destes, e o boi será apedrejado.(35) Se um boi de alguém ferir o boi de outro, e o boi ferido morrer, venderão o boi vivo e repartirão o valor; e dividirão entre si o boi morto. (36) Mas, se for notório que o boi era já, dantes, chifrador, e o seu dono não o prendeu, certamente, pagará boi por boi; porém o boi morto será seu.

No contexto dos preceitos legais acerca de agressões físi­cas, o AT trata do caso de morte provocada por um boi chifrador. Esse caso jurídico é citado também no Código de Hamurábi e aparece, além disso, nas leis de Eshnunna. O Código de Eshnunna (CE) é a mais antiga coletânea de leis vétero- orien­tal redigida em acádico. E provável que este Código seja ante­rior ao Código de Hamurábi. Ele se conservou fragmentaria-

Não tomaras o nome do Senhor, teu Deus, em vão.

mente em placas de argila, que se encontram hoje no Museu do Iraque em Bagdá.

Para uma comparação com o texto veterotestamentário serão citados, abaixo, estes dois preceitos jurídicos do Antigo Oriente. Os §§ 250-252 do CH têm o seguinte teor:

(§ 250) Se um boi, ao andar peía estrada, chifrar e matar um cidadão, este caso não acarretará demanda judieiaL (§ 251) Se o boi de um cidadão for ch.ifra.dor, mas este, embora a autoridade o tenha informado de que seu boi é chífrador, não lhe aparou os chifres e não vigiou seu boi, e se este boi chifrar e matar um cidadão, ele deverá dar meia mina de prata. (§ 252) Se se tratar do escravo de um cidadão, ele de­verá dar um terço de mina de prata.

No CE, §§ 54-55, lê-se:

(§ 54) Se um boi for chífrador e a autoridade informou seu dono acerca disso, mas este, mesmo assim, não faz andar o seu boi de cabeça baixa, (se) este chifrar e matar um cida­dão, o dono do boi deverá pagar V de mina de prata. (§ 55) Se ele chifrar e matar um escravo, ele deverá pagar 15 síclos de prata.

É inegável que os dois preceitos jurídicos do Antigo Oriente citados acima tratam, fundamentalmente, do mesmo assunto que os versículos bíblicos. Os três textos coincidem em

avaliar juridicamente a questão de se a periculosidade do boi era de conhecimento de seu dono ou não. Negligência - esse conceito jurídico moderno pode ser utilizado aqui - acontece apenas quando o dono do animal não age de acordo com a periculosidade deste, embora tenha tomado conhecimento dela. Além disso, os três códigos legais determinam unanimemente que, no caso da morte de um escravo por causa do boi chifrador, deve-se pagar uma quantia em dinheiro ao dono do escravo. Aqui terminam as concordâncias.

As diferenças começam já no fato de que no texto vete­rotestamentário se fala expressamente no ferimento de um ho­mem ou de uma mulher. Diferentemente do direito do Antigo Oriente, nesse caso a mulher é citada de maneira explícita e colocada em nível de igualdade com o homem. Além disso, é característico do direito veterotestamentário o castigo do ani­mal, do qual não se fala no direito do Antigo Oriente. O boi que matou uma pessoa se torna passível de pena de morte não só nem primordialmente por ter se revelado um animal perigoso através de seu ato. Na verdade, o que acontece é que a morte de uma pessoa coloca também o animal numa esfera de maldi­ção. Por isso não se deve comer a carne desse animal (v. 28). Também é interessante a determinação de apedrejar este ani­mal. O apedrejamento é uma pena de maldição no direito vete­rotestamentário, através da qual o apedrejado era excluído da comunidade. Pelo fato de o criminoso ser coberto de pedras fora da localidade (cf. Lv 24.14; Nm 15.35s.; lRs 21.13), a maldição que poderia emanar dele era banida. Isso também valia para um animal que tivesse matado uma pessoa.

Na forma de se castigar um dono negligente de animal percebe-se outra diferença essencial em relação ao direito do

Antigo Oriente. Enquanto neste se prevê uma pena monetária relativamente amena, o direito veterotestamentário exige a pena de morte para aquele que, através de seu comportamento, não lenha, pelo menos, evitado a morte de alguém. Também a de­terminação do v. 30 se orienta fundamentalmente por esta mes­ma noção, quando prevê um pagamento de resgate pela vida humana destruída. Não se esclarece quem autoriza essa possibi­lidade e determina a quantia do resgate. Possivelmente seja a própria família do morto ou a comunidade jurídica.

Também os vv. 35-36 tratam do boi chifrador - aparente­mente um fenômeno bastante comum. Se a periculosidade do animal não era conhecida, o seu comportamento não é de res­ponsabilidade do dono; em caso contrário, este tem de assumir o prejuízo. Chama a atenção que, nesse caso, o boi chifrador não precisa ser apedrejado, mas deverá ser repartido, decerto para fins de alimentação. Fundamentalmente, a morte de outro animal não é comparável à morte de um ser humano.

Existe um paralelo impressionante ao v. 35 no CE § 53:

Se um boi chifrar outro boi e o matar, os dois donos dos bois

repartem entre si o preço de compra do boi vivo e a carne do boi morto.

Êxodo 21.35 e o CE § 53 são os dois preceitos jurídicos mais próximos entre si, na comparação entre direito veterotes­tamentário e direito vétero-oriental. Isso não significa necessa­riamente que tem de haver uma dependência literária entre ambas as formulações. Essas determinações legais são tão claras em si mesmas que parece melhor supor que o direito tenha se desenvolvido de formas paralelas, independentes uma da outra.

A cova deixada aberta (Êx 21.33-34)

(33) Se alguém deixar aberta uma cova (ou cisterna) ou se alguém cavar uma cova e não a tapar, e nela cair boi ou

jumento, (34) o dono da cova o pagará, pagará dinheiro ao seu dono, mas o animal morto será seu.

Entre as duas determinações legais que tratam do boi chífrador há um preceito jurídico que também se ocupa com a negligência. Isso deve ter levado a essa seqüência textual. O caso em si está claro: o prejuízo causado por negligência tem de ser compensado pelo causador do dano. A pena legal conserva os interesses de ambas as partes. O causador tem de pagar o valor do animal morto; em compensação, ele pode ficar com o animal, que também tem o seu valor.

Responsabilidade por bens de terceiros (Êx 22.6-7,9- 12 = Almeida: 22.7-8,10-13)

(6) Se alguém der a seu próximo dinheiro ou objetos para guardar, e isso for furtado àquele que o recebeu, se for acha­do o ladrão, este pagará o dobro. (7) Se o ladrão não for achado, então, o dono da casa será levado perante os juizes, a ver se não meteu a mão nos bens do próximo.(9) Se alguém der ao seu próximo a guardar jumento, ou boi, ou ovelha, ou outro animal qualquer, e este morrer, ou ficar aleijado, ou for afugentado, sem que ninguém o veja,(10) então haverá, entre ambos, juram ento diante do Se-

nhoRj de que não meteu a mão nos bens cio seu próximo; o dono aceitará o juramento, e o outro não fará restituição.(11) Porém, se, de fato, lhe for furtado, pagá-lo-á ao seu dono.(12) Se for dilacerado, trá-lo-á em testemunho disso e não terá de restítuí-lo.

Segundo os vv. 6-7, o que detém a guarda é responsável pelos bens a ele confiados, mas só até certo ponto. Tomando-se vítima de um furto, ele não precisa restituir ao dono o bem depo­sitado. O direito casuístico distingue aí dois subcasos. Se o ladrão for preso, ele tem de indenizar o prejuízo duplamente, segundo o castigo normal por furto. Se o ladrão não for descoberto, o depo­sitário pode se livrar da suspeita de ele mesmo ter roubado o bem a ele confiado através de um juramento de purificação, também chamado ordálio. A versão desta lei apresentada no Código de Hamurábi traz desvantagens para o depositário, sendo mais van­tajosa para o dono do bem, porque aquele tem de indenizar o prejuízo de qualquer maneira. Sua responsabilidade pelo bem a ele confiado tampouco é anulada por circunstâncias especiais. A proteção da propriedade é mais marcante no Código de Hamurábi do que no direito veterotestamentário. No Código de Eshnunna este caso jurídico também é tratado com determinações seme­lhantes. Os §§ 36 e 37 rezam:

(§ 36) Se um cidadão dá suas posses a uma pessoa imune para que as guarde, e esta, mesmo que ninguém, tenha assal­tado a casa, arranhado o estofo da porta e quebrado a janela, perdeu as posses guardadas que o cidadão (em questão) lhe

deu, deve restítuír-lhe seus bens. (§ 37) Se a casa do cidadão for assaltada e, juntam ente com os bens que ele Ike deu, também desaparecerem bens do dono da casa, este deverá

jurar no portão do templo de Tíshpak em nome de Deus: "Junto com as tuas posses também foram roubadas posses minhas, não cometi fraude nem falsidade"; assim ele deve jurar-lhe, e este então não terá mais nenhuma exigência a fazer-lhe.

Também aqui se vê como algumas formulações legais es­tão estreitamente interligadas. Tal como o direito veterotesta­mentário, também o Código de Eshnunna prevê a interferência da divindade como instância legal auxiliar. Através de um jura­mento, o qual deve ser feito no templo, o depositário pode se livrar da suspeita de fraude. Se ele fizer isso, o proprietário dos bens perdidos não tem mais nenhum direito a reivindicar.

Mencione-se ainda outra disposição extraída das leis de depósito de bens veterotestamentárias: os vv. 9-12. No caso prin­cipal (vv. 9-10), esta determinação é essencialmente paralela à dos vv. 6-7. Mas aí não se trata de objetos inanimados, e sim da guarda de animais vivos, e naturalmente há muito mais possibi­lidades de perdas e danos. Por causa disso, e porque a criação de animais era um fator essencial da vida econômica, a guarda dos animais é tratada em separado. O depositário se responsabi­liza pelo animal a ele confiado. No entanto, por motivo de força maior, que deve ser comprovada, caso necessário, por meio de um juramento de purificação, ele se desobriga de sua responsa­bilidade também nesse caso. No caso da guarda de objetos não

se incrimina o depositário de furto, mas isso é diferente no que se refere à guarda de animais. Ao contrário do que se passa com objetos inanimados, o gado tem de ser vigiado sempre e ser, assim, protegido de fuga e roubo. O v. 11 trata dessa questão. Se um animal confiado à guarda de terceiros é furtado, em todos os casos o depositário agiu com negligência e tem de restituir a perda. Deve-se agir de maneira diferente quando o animal con­fiado for dilacerado por animais selvagens. Se o depositário apre­sentar o animal dilacerado como prova, ele está livre de qual­quer restituição do prejuízo (v. 12). De Am 3.12 pode-se depreender que era suficiente se o depositário conseguisse apresentar só os restos de um animal dilacerado por feras. A interpretação que se dá aqui parte do princípio de que as pala­vras “ou for afugentado” do v. 9 não se referem ao roubo comum do qual se fala no v. 11. No v. 9, é mais provável que se fale do afugentamento do gado por ladrões. Diferentemente do roubo comum, este caso se encaixa na categoria “por força maior”.

Aluguel de animais (Êx 22.13-14 = Almeida: Êx 22.14-15)

(13) Se alguém pedir emprestado a seu próximo (um animal), e este ficar aleijado ou morrer, não estando presente o dono, índenizá-lo-á. (14) Se o dono esteve presente, não o indenizará; se foi alugado, o preço do aluguel será o pagamento.

Estes preceitos jurídicos devem ter se referido primordial­mente a animais de carga alugados (jumentos ou bois). O risco de dano a um animal alugado é de responsabilidade quase que total de quem o toma emprestado. Por motivos óbvios, o dono

goza de maior proteção do que no caso da guarda de animais tratada nos vv. 9-12. A obrigação de indenizar o prejuízo só será anulada se o dono presenciou o acidente. Pressupõe-se que o dono poderia ter interferido para proteger seu animal. O v. 14b, cuja tradução literal diz: “Se for um trabalhador assalariado, o [prejuízo] será descontado de seu salário”, apresenta, após o v. 14a, um segundo subcaso. Trata-se de um trabalhador assalari­ado que recebeu emprestado de seu patrão um animal para rea­lizar os trabalhos dele exigidos. Se o animal sofrer danos, o tra­balhador assume a inteira responsabilidade. A indenização do prejuízo é feita através de desconto do seu salário.

Roubo de animais (Êx 21.37; 22.3 = Almeida: Êx 22.1,4)

(21.37) Se alguém furtar boi ou ovelha e o abater ou vender, por um boi pagará cinco bois, e quatro ovelhas por uma ovelha. (22.3) Se aquilo que roubou for achado vivo em seu poder, seja boi, jumento ou ovelha, indenizará o dobro.

Ambos os versículos tratam de um delito que deve ter acontecido com certa freqüência. Mas em Ex 22.1-2 foi incluí­da a apresentação de outro caso. Chama a atenção a diferença do tamanho da indenização existente entre os vv. 37 e 3. Se­gundo o v. 37, exige-se a indenização de cinco ou quatro vezes o valor do animal roubado, enquanto o v. 3 prevê apenas uma indenização em dobro. Por via de regra, o castigo veterotesta­mentário para roubo consiste na indenização dobrada do valor roubado (cf. Ex 22.6,8), isto é, o próprio ladrão tem de devolver o bem roubado e acrescentar algo de igual valor. A isso corresponde

o v. 3. O fato de no v. 37 haver uma disposição penal claramente mais rígida tem a ver com a característica especial do caso. O castigo mais pesado é aplicável quando o animal roubado já foi morto ou venidido (cf. sobre isso 2Sm 12.6). Isso evidencia uma energia criminosa intensificada por parte do ladrão. Da mesma (orma, o animial roubado já não pode ser devolvido, o que se su­bentende no v. 3, e também é complicado entregar ao dono outro animal de igual valor, se o que foi roubado não puder ser encon­trado. Mas coim isso ainda não está claro por que, segundo o v. 37, a atribuição da pena é maior quando se trata de um boi roubado do que quando se trata de uma ovelha roubada. Pode-se consi­derar a seguinte explicação: entre os camponeses israelitas, um boi é muito mais valioso do que uma ovelha, também porque o boi, diferentemente da ovelha, era utilizado como animal de tra­balho (cf. Êx 23.12 e Dt 25.4). Além disso, o camponês israelita deve ter possuído bem mais ovelhas do que gado bovino. Portan­to, o delito é bastante mais grave quando se trata de bois, e por isso a pena é mais pesada. Percebe-se nessas determinações legais o quanto o direito casuístico se orienta pela realidade de vida e não por uma sistemática jurídica abstrata. Diga-se ainda que no v. 3, diferentemente do v. 37, também é citado o jumento. O jumento era um animal de trabalho de especial importância. Por isso, sua menção no v. 3 não é estranha. Ele falta no v. 37 porque aqui se fala em carnear um animal roubado, e para isso ele não entrava em cogitação. Enquanto o gado bovino, a ovelha e a ca­bra são listados expressamente entre os animais comestíveis (Dt 14.4), o jumento não pertence a esse grupo por ser um animal impuro (cf. Êx 34.20).

Constata-se que o tratamento do delito de furto passa a um plano bem inferior nas leis veterotestamentárias, em compa­

ração com o direito do Antigo Oriente, principalmente no Có­digo de Hamurábi. Mais estranha ainda é a diferença existente entre ambas as formas jurídicas no que tange as penalidades previstas. No âmbito babilônico, o furto era originalmente casti­gado com a pena de morte; só paulatinamente isso foi ameniza­do, apesar de, por via de regra, punições muito severas conti­nuarem sendo aplicadas. No AT só se prevê a pena de morte para o furto em casos onde se atinge a propriedade de Deus. Sobre esse fundamento legal também se baseia o seqüestro de seres humanos (Ex 21.16; Dt 24-7); em outros casos, a pena para furto basicamente é uma indenização pecuniária, sendo que as disposições penais são comparativamente amenas. Naturalmen­te podia acontecer que um ladrão também não conseguisse in­denizar um furto de valor relativamente pequeno. Mesmo as­sim, ele não era condenado à morte, tal como o previa a lei babilônica, mas vendido como escravo por dívida: “Um ladrão deverá restituir o valor roubado integralmente. Se não conse­guir fazer isso, ele mesmo terá de ser vendido como escravo” (Ex 22.2b).

Essa valoração do furto está relacionada à valoração ve­terotestamentária da propriedade em si. Diferentemente do Código de Hamurábi, evidencia-se que as disposições legais veterotestamentárias ainda estão fortemente marcadas pela com­preensão de propriedade nômade que se caracteriza por orien- tar-se mais pelo grupo do que pelo indivíduo e, por isso, não valorizar tanto a propriedade individual.

Danificação da lavoura e da colheita por negligência (Êx 22.4-5 = Almeida Êx 22.5-6)

(4) Se alguém fizer pastar o seu animal num campo ou numa vinha e o largar para comer em campo de outrem, pagará com o melhor do seu próprio campo e o melhor da sua pró­pria vinha.(5) Se irromper fogo, e pegar nos espinheíros, e destruir as medas de cereais, ou a messe, ou o campo, aquele que acen­

deu o fogo pagará totalmente o queimado.

Nestes dois versículos trata-se de dois preceitos legais liga­dos entre si pelo assunto, mas internamente independentes um do outro. Se a colheita de outra pessoa for danificada por negli­gência, o causador terá de indenizar o prejuízo. Não se prevê um castigo mais severo para esse fato porque não se pressupõe más intenções. No entanto, a tradução de Almeida pode dar a enten­der, no v. 4 (respectivamente v. 5), que se trata de prejudicar intencionalmente a colheita de outra pessoa, talvez para poupar a própria lavoura. Mas neste caso poder-se-ia esperar um castigo mais severo. Uma tradução mais livre porém mais próxima do hebraico exclui essa possibilidade: “Se um homem leva seu gado para sua lavoura ou sua vinha e não o vigia, de forma que o gado se alimente também de outra lavoura, ele tem de indenizar o prejuízo. Ele deverá entregar ao prejudicado o melhor do produto da própria lavoura ou vinha” (Bíblia Boas Novas).

Estes dois preceitos jurídicos são característicos do direi­to veterotestamentário na medida em que não pretendem casti­gar alguém, mas indenizar prejuízos.

Lembra-te do dia do sábado, para o santificar.

A A

Sedução de uma virgem (Ex 22.15-16 = Almeida: Ex 22.16-17)

( 15) Se alguém seduzir qualquer virgem que não estava pro­metida em casamento e se deitar com ela, pagará seu dote e

a tomará por mulher. (16) Se o pai dela recusar dar-lha, pa­gará ele em dinheiro conforme o dote das vírgeris.

Este é o único preceito jurídico do Código da Aliança que tem a ver com a temática matrimônio, casamento e família, que ocupa um amplo espaço no Código de Hamurábi. O parco tratamento dado a esse assunto no Código da Aliança talvez esteja ligado ao fato de que, em grande parte, ainda era o pater famílias quem se responsabilizava pelo direito de matrimônio e de família. Outro caso era quando havia um conflito entre os membros de famílias diferentes, tal como o que se nos apresenta aqui.

Trata-se da sedução de uma moça solteira que ainda se encontra sob o pátrio poder. Com isso - embora soe estranho a nossos ouvidos - o direito de posse do pai foi prejudicado. Esse prejuízo tem de ser indenizado. Isso acontece através do paga­mento do dote costumeiro por parte do sedutor; e o pai tem a liberdade de optar se quer dar a filha por esposa ao sedutor (v. 15), ou se quer recusar-se a fazer isso (v. 16). Em todos os casos, a sedução de uma moça tem conseqüências sérias para o sedutor.

É possível que o leitor moderno se espante com o fato de que nada se pergunte à própria moça. Este era o costume. Nesse ponto, o comportamento em Israel não era diferente do que na Babilônia, onde a noiva tampouco podia influir sobre o seu ca-

sarnento. Porém, para entender esse fato é necessário dar-se conta de que também o homem só tomava a iniciativa quanto ao seu próprio casamento em casos excepcionais, como, p. ex., o de Judá (Gn 38.2). Nesse sentido é significativo o comportamento de Sansão (Jz 14).

Um casamento ainda não é, na época veterotestamentá­ria, um acontecimento restrito ao nível pessoal de dois indiví­duos. Aqui se trata de interesses do clã. É pressuposto natural do AT que, por ocasião do casamento, tinha que ser pago um dote.

Preceitos jurídicos acerca da proteção dos fracos (Ex 22.20-23=Almeida: Êx 22.21-24)

(20) Não aflígírás o forasteiro, nem o oprímírás; pois forastei­

ros fostes na terra do Egito. (21) A nenhuma viúva nem órfão aflígíreís. (22) Se de algum modo o aflígíres, e ele cla­mar a mim, eu lhe ouvirei o clamor; (23) a minha ira se acenderá, e vos matarei à espada; vossas mulheres ficarão viúvas, e vossos filhos, órfãos.

Nesses versículos encontramos pela primeira vez uma proi­bição (cf. supra I, 2). Nos vv. 20-23 a proibição sofreu amplia­ções e modificações substanciais. Elas se localizam em vários níveis. O “tu” a quem se dirigia o v. 20a só é retomado no v. 22. As orações intermediárias são formuladas no plural, sendo o “tu” absorvido num “vós”. Essa modificação ocorreu graças ao proces­so de desenvolvimento do direito. No v. 20b acrescenta-se à proi­bição anterior - não iremos nos deter aqui no binômio “afligir e oprimir” - uma justificativa: “pois fostes forasteiros na terra do

Ugito”. Assim nos deparamos pela primeira vez com o fenômeno da fundamentação da lei, tão importante para o direito veterotes- lamentário. A fundamentação das leis, que não tem paralelo no direito do Antigo Oriente, é característica e marcante para o direito veterotestamentário. A obediência exigida em relação ao mandamento deve ser uma obediência consciente. A justificati­va tira do direito veterotestamentário o tom autoritário que nor­malmente se faz sentir em preceitos jurídicos.

Ao analisarmos, agora, o conteúdo da justificativa con­tida no v. 20b, evidencia-se que o comportamento social exi­gido não é justificado pela idéia de um humanitarismo univer­sal, mas pela lembrança da história vivida por Israel, da opres­são sofrida e da qual Deus livrou o seu povo. Essa fundamenta­ção se repete várias vezes no direito veterotestamentário (cf. Êx 23.9; Lv 19.34; Dt 10.19).

Inicialmente, no v. 20 são visados e protegidos contra desfavorecimentos diversos os forasteiros. “Forasteiro” não quer dizer o estrangeiro que só está passando uma breve estada no país. “Forasteiro” é alguém que deixou sua pátria em função de circunstâncias políticas, econômicas ou outras quaisquer e ago­ra vive em meio a outro círculo comunitário. Também um mem­bro de uma tribo israelita pode ser forasteiro no âmbito de outra tribo. Um forasteiro que encontrara proteção e moradia junto a outro clã naturalmente era mais vulnerável nesse meio; princi­palmente, por não possuir terra, ele não tinha direitos legais. Na comunidade jurídica ele não tinha direito a voz e voto e depen­dia da intercessão de outros. O fato de que justamente o foras­teiro é protegido de maneira tão insistente no direito veterotes­tamentário é uma característica muito importante desse direi­to. Determinações de proteger viúvas e órfãos também se en­

contram em códigos legais do Antigo Oriente em grande nú­mero, mas nestes o forasteiro não é protegido da mesma maneira como aqui.

A seguir, no v. 21, também se citam viúvas e órfãos, dessa vez em formulação plural, e com isso temos os grupos de pessoas que, além dos pobres, configuram no AT o clássico exemplo das pessoas que hoje chamamos de desprivilegiadas. E a estas que se volta a preocupação especial do direito veterotestamentário. A opressão interditada deve ter consistido principalmente em exploração econômica, que se tornava possível por causa da fal­ta de direitos destas pessoas.

Os vv. 22-23 ampliam as proibições, originalmente trans­mitidas sem nenhuma penalidade, incluindo ameaças de casti­go. Mas aí não se trata de castigos aplicados pela comunidade jurídica, portanto por pessoas, mas de castigos aplicados por Deus, em função do clamor por socorro das pessoas maltratadas. A ameaça de castigo tem caráter retributivo (paga-se com a mes­ma moeda) e, com isso, se estriba um fundamento jurídico mui­to freqüente no direito do Antigo Oriente. Como castigo retri­butivo, a ameaça de castigo só se refere às viúvas e aos órfãos do v. 21, mas não aos estrangeiros do v. 20. Também isso pode ser considerado uma indicação de que as ameaças de castigo são acréscimos.

A proibição veterotestamentária de cobrar juros (Ex 22.24; Lv 25.35-38; Dt 23.20-21)

(Êx 22.24) Se emprestares dinheiro a um de meu povo, ao pobre que está contigo, não agírás com ele como credor que impõe juros.

( Lv 25.35) Se teu irmão que vive contigo empobrecer, e esti­ver sem recursos, então, sustentá-lo-ás como se fosse um es­trangeiro ou agregado para que viva contigo. (36) Não rece- berás dele juros nem vantagens; teme, porém, ao teu Deus, para que teu irmão viva contigo. (37) Não lhe darás teu dinheiro com juros, nem lhe darás o teu mantimento por causa de lucro. (38) Eu sou o S e n h o r , v o s s o Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos dar a terra de Canaã e para ser o vosso Deus.(D t 23.20) A teu irmão não emprestarás com juros, nem dinheiro, nem comida nem qualquer coisa que é costume se emprestar com juros. (21) Ao estrangeiro emprestarás com

juros, porém a teu irmão não emprestarás com juros, para que o S e n h o r , teu Deus, te abençoe em todos os teus empre­endimentos na terra a qual passas a possuir.

A proibição de cobrar juros pertence àqueles preceitos jurídicos veterotestamentários que não têm paralelo na litera­tura jurídica antiga. Ela foi importante no decorrer da história, principalmente no judaísmo, mas também na Idade Média cris­tã, onde a proibição bíblica de cobrar juros teve efeitos profundos, e não por último no islamismo. Sua importância bíblica pode ser verificada já no fato de ela aparecer em todas as três grandes cole­tâneas de leis veterotestamentárias (Código da Aliança, Lei da Santidade, Lei Deuteronômica). Os três preceitos jurídicos vete­rotestamentários são idênticos em sua afirmação básica, apesar de certas divergências de conteúdo, peculiaridades e diferenças for­

mais. Proíbe-se toda e qualquer forma de juro para qualquer forma de empréstimo. A proibição se estende apenas a membros do pró­prio povo, como Dt 23.21 o expressa com a maior clareza.

O assunto “juros” recebe atenção especial nos códigos legais e textos econômicos do Antigo Oriente. Os juros cobra­dos sobre empréstimos concedidos nesse âmbito são considera­dos extorsivos na compreensão atual. No Código de Eshnunna exige-se de 20% a 33% de juros sobre valores monetários e em­préstimo in natura (CE, § 18A). Se o AT, por sua vez, proíbe totalmente a cobrança de juros, é preciso levar em conta que não se trata, nos empréstimos tratados aqui, de créditos ou em­préstimos comerciais, com os quais o tomador pode e quer lu­crar enormemente, tornando, assim, possível o pagamento de altos juros. Ao contrário, o A T refere-se a empréstimos emergenciais, destinados à compra de mantimentos, com os quais os pobres teriam uma possibilidade de sobrevivência. Em Ex 22.24 fala-se explicitamente dos pobres como devedores, e também os outros dois preceitos jurídicos partem desta circunstância.

Observemos mais alguns detalhes! Tal como o v. 25, Ex 22.24 representa uma combinação de leis casuísticas e proibi­ções. O versículo começa com uma oração condicional (prótase) que remete ao direito casuístico, mas que não é seguida por nenhuma sentença, e, sim, por duas proibições de cunho admoestativo. Assim, duas formas básicas do direito veterotes­tamentário foram amalgamadas aqui. Na primeira proibição in- terdita-se a cobrança de juros excessivamente altos: “não sejas um usurário” (esta é a tradução adequada da Bíblia Sagrada, Ed. Vozes). Na segunda proibição interdita-se toda e qualquer cobrança de juros, reforçando a determinação anterior “não lhes deveis cobrar juros” (cf. Bíblia Sagrada, Ed. Vozes). Só através

da segunda determinação é que se chega à proibição radical de cobrar juros. Possivelmente trata-se aqui de um esclarecimento que só aconteceu posteriormente. Isso pode ser corroborado pela observação de que a segunda proibição foi redigida no plural, em seu texto original (cf. a versão citada acima da Ed. Vozes e a Tradução Ecumênica da Bíblia).

A proibição de cobrar juros não tem nenhuma justificati­va em Ex 22.24. Em compensação, os dois outros textos ofere­cem fundamentações teológicas; especialmente detalhado e ple­no de conteúdo é Lv 25.38. O mandamento, que parte de uma motivação social, finaliza com a auto-apresentação do Deus de Israel, na qual se acumulam, num espaço ínfimo, as principais afirmações sobre o agir de Deus em relação ao seu povo de Israel.

Determinações sobre a penhora (Ex 22.25-26; Dt 24.6, 10-13,17)

(Êx 22.25) Se do teu próximo tomares em penhora o seu manto, lho restítuírás antes do pôr-do-sol; (26) porque é com ele que se cobre, é a veste do seu corpo; em que se deitaria? Será, pois, que, quando clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso.(Dt 24.6) Não tomarás em penhor as duas mós, nem apenas a de cima, pois se penhoraría, assim, a vida. (10) Se empres­tarei alguma coisa ao teu próximo, não entrarás em sua casa para lhe tirar o penhor. (11) Fícarás do lado de fora, e o homem, a quem emprestaste, aí te trará o penhor. (12) Po­rém, se for homem pobre, não irás dormir conservando o

seu penhor; (13) e m se pondo o sol, restituir-lhe-ás, sem fal­ta., o penhor para que durma no seu manto e te abençoe; isto te será justiça diante do S enhor , t e u Deus. (17) Não perverterás o direito do forasteiro e do órfão; nem tomarás em penhor a roupa da viúva.

Permite-se, no direito veterotestamentário, a penhora, mas ela é bastante limitada por determinações que protegem o de­vedor. Isso vale nos casos em que o que deu o penhor era uma pessoa pobre. Dessa maneira, as leis sobre a penhora fazem parte dos exemplos mais impressionantes do enfoque social do direito veterotestamentário. Como penhor vale, em princípio, qualquer bem móvel. Nas leis citam-se expressamente peças de vestuário (Êx 22.25-26; Dt 24.13,17). Pode-se depreender de Jó 24.3 que também animais domésticos podiam ser penhorados. E notável a norma de Dt 24.10-11, segundo a qual o credor não pode entrar na casa do devedor para escolher um penhor. Ele tem de esperar diante da casa até que o devedor lhe traga o penhor. Deduz-se destes versículos também que normalmente a penhora aconte­cia no contexto de um empréstimo. O penhor servia como ga­rantia por objetos emprestados. Também chama a atenção a determinação de que o devedor não pode ser privado de objetos essenciais por um período excessivamente longo: o manto tem de ser devolvido até a noite porque serve como cobertor (Ex 22.25-26; Dt 24.12-13). As roupas da viúva são sistematicamen­te excluídas da penhora (Dt 24.17), assim como o moinho ma­nual utilizado em casa (Dt 24-6; a maioria das versões traduz corretamente como “o moinho manual [= as duas mós] ou [so­mente] a mó de cima”). Na interpretação rabínica, essa deter­

minação é ampliada, no mesmo espírito do direito veterotesta­mentário, quando se diz: “Ninguém deverá tomar o moinho ou a mó de cima como penhor. Isso significa não apenas o moinho ou a mó, mas tudo o que é preciso para preparar o alimento necessário”.

“Amor ao inimigo” no direito veterotestamentário? (Êx 23.4-5)

(4) Se encontra.res desgarrado o boi do teu inimigo ou o seu jumento, lho reconduzírás. (5) Se vires cair debaixo da sua carga o jumento daquele que te odeia, não o abandonarás, mas ajudá-lo-ãs a erguê-lo.

Estes versículos são tratados freqüentemente sob a rubri­ca de “amor ao inimigo no AT”. Mas isso desvia do centro da afirmativa. Não se trata, nesse caso, em primeiro lugar do “ini­migo” ao qual se deve fazer o bem, mas de animais a quem se deve fazer o bem. Se animais - nesse caso, animais domésticos - estiverem numa situação difícil, se perderem ou desabarem sob uma carga muito pesada, é preciso cuidar deles, fazer com que se recuperem, e isso justamente quando o dono dos animais for um inimigo ou até mesmo alguém “odiado”. Quer dizer, o cui­dado que se exige para os animais não pode ser comprometido por causa de inimizades existentes entre seres humanos; pelo contrário, exige-se até um esforço conjunto das pessoas inimi­gas, quando se trata de colocar em pé o animal caído (v. 5). Esta maneira de agir tem como efeito secundário favorecer o “inimigo”. Com isso, estes versículos, ao lado de outros textos,

Honra teu pai e tua mãe.

expressam uma afirmativa importante acerca da valoração dos animais no direito veterotestamentário.

É interessante observar a evolução percorrida por esta de­terminação dentro do direito veterotestamentário. O caso tam­bém é citado com algumas modificações nas Lei Deuteronômi­ca. Em Dt 22.1-4 se lê:

( l ) Se vires o boi ou a ovelha de teu irmão extraviados, não fiques indiferente a eles: leva-os de volta ao teu irmão. (2) Mas se o teu irmão não for teu vizinho ou tu não o conhe- ceres, recolhe-os em tua casa para que fiquem, contigo, até o teu irmão os procurar, e então os devolverás a ele. (3) Assim também farás com o seu jumento, com o seu manto e com todas as coisas perdidas que o teu irmão perder e tu encon- trares; não fiques indiferente a elas. (4) Se vires o jumento ou o boi do teu irmão cair no caminho, não fiques indife­rente: ajudá-lo-ás a erguer-se.

Nesse caso não se fala de “inimigos” ou “adversários”, mas de “irmãos”, ou seja membros do próprio povo. Chama a aten­ção, porém, que o v. 3 traz uma ampliação e, com isso, também uma modificação da idéia básica do cuidado pelos animais; a ampliação incorpora os objetos perdidos, que também devem ser devolvidos ao “irmão”.

Determinações jurídicas em favor de animais (Dt 25.4; 22.6-7; Êx 23.12)

(Dt 25.4) Não ata rãs a boca ao boi quando debuLha.(Dt 22.6) Se pelo caminho encontrares algum ninho de ave, nalguma árvore ou no chão, com passarinhos, ou ovos, e a mãe sobre os passarinhos ou sobre os ovos, não tomarás a mãe com os filhotes; (7) deíxarás ir livremente a mãe, e os filhotes tomarás para ti, para que te vá bem e prolongues os teus dias.(Êx 23.12) Seis dias faris a tua obra, mas ao sétimo dia des- cansarás, para que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho da tua serva e o forasteiro.

Tornou-se proverbial o dito do boi que debulha e ao qual não se deve atar a boca. Para isso colaborou o fato de o apósto­lo Paulo ter mencionado este dito em ICo 9.9 e ITm 5.18. Paulo utilizou o preceito jurídico veterotestamentário para jus­tificar biblicamente o direito do trabalhador ao seu salário. O caso concreto que lhe interessa é o trabalho de apóstolo, o qual merece um pagamento como qualquer outro serviço. Para poder afirmar isso, ele se utiliza de uma explicação alegórica, tal como o faz também a interpretação rabínica, quando es­creve (ICo 9.9-10):

(9) Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi que debulha. Acaso é com bois que Deus se preocupai

(10) Ou é, seguramente, por nós que ele o diz? Certo que é por nós que está escrito; pois o que lavra cumpre fazê-lo com esperança; o que debulha faça-o na esperança de rece­

ber a parte que lhe é devida.

Com isso, Paulo abandona o sentido literal veterotesta­mentário. A pergunta “Acaso é com bois que Deus se preocu­pa?” ele espera a resposta “Não”. Mas no AT quer-se dizer justa­mente isso: Deus se preocupa com os bois! Temos aí uma norma para proteger o boi que trabalha na debulha. Objetivamente, a tradução quase que geral de “boi” não confere. Não havia bois em Israel, uma vez que a castração de touros era proibida (Lv 22.24) e não se a praticava.

Ao debulhar, o bezerro puxava o trilho em círculo sobre o cereal espalhado na eira, para separar os grãos das espigas. O direito veterotestamentário proíbe explorar sem escrúpulos o animal que trabalha para o ser humano. Ele tem de receber uma parte adequada do produto de seu trabalho. Freqüentemente, porém, agia-se de outra maneira. Numa descrição do começo do séc. XX lê-se: “Quando os bois estão trilhando, pode parecer vantajoso atar-lhes a boca, principalmente para não ficarem pa­rados a fim de comer da eira”.

Também Dt 22.6-7 trata do cuidado pelos animais no sen­tido mais amplo. Nesse caso, no entanto, não se pensa em ani­mais domésticos, mas em animais selvagens. O preceito jurídi­co, estruturado de forma complexa, não é fácil de interpretar. Isso também se deve ao fato de que este preceito é resultado de uma evolução. A base poderia ser uma proibição, ainda reco­nhecível no final do v. 6: “Não tomarás a mãe de sobre os filho­

tes”. Com isso se protege a mãe sentada sobre os seus ovos ou filhotes da sanha caçadora humana. A mãe pássaro, que fica sentada em cima de seus filhotes até que estes consigam sobre­viver sozinhos, recebe uma proteção especial através deste pre­ceito jurídico. O ser humano impediria a bênção criadora divi­na, que também vale para os animais, se quisesse destruir dessa maneira a nova vida que está surgindo.

Portanto, o v. 7, que parece ter sido acrescentado poste­riormente, representa um abrandamento da determinação clara e inequívoca do v. 6, uma vez que, agora, os filhotes são libera­dos para a caça, enquanto a mãe continua sendo protegida. Da mesma forma como a proibição do v. 6, antigamente explicava- se também a norma do v. 7 no sentido utilitarista: a caça futura não deve ser prejudicada. Essa explicação não mais se adota atualmente. Também nesse caso prevalece a idéia de que o ser humano não deve perturbar a ordem da criação. O mandamen­to divino limita o poder do ser humano sobre os animais ou, mais amplamente, sobre a criação.

O mandamento do sábado, que aparece com mais fre­qüência do que qualquer outro mandamento na legislação do AT, é exposto de forma bastante diversificada em cada passa­gem. O texto mais antigo possivelmente seja o de Ex 34.21. Aqui, o mandamento ainda não apresenta qualquer justificativa. “Seis dias trabalharás, mas, ao sétimo dia, descansarás, quer na aradura, quer na sega”. Os outros exemplos recebem justificati­vas às vezes detalhadas e bastante diferenciadas entre si. Em nosso contexto, apontaremos somente para Ex 23.13. Trata-se da justificativa mais antiga entre todas as existentes. O manda­mento em si diz: “Seis dias trabalharás, mas no sétimo dia des­cansarás”. Acrescenta-se aí a fundamentação do mandamento

do sábado, que é o que interessa no atual contexto. Deve-se descansar no sétimo dia da semana para que os animais domés­ticos usados para trabalhar, o bezerro e o jumento e os escravos e estrangeiros possam “tomar alento”. No trecho em questão se fala também daqueles animais que certamente sofriam sob uma carga especialmente pesada de trabalho. O que mais surpreen­de nesta fundamentação do mandamento do sábado: a sua ori­entação exclusivamente social ou a inclusão como que natural dos animais?

A proibição de cozinhar o cabrito no leite de sua mãe (Êx 23.19b; 34.26b; Dt 14.21b)

(Bx 23.19b) Não cozer ás o cabrito no leite da sua própria mãe. (34. 26b) Não cozerís o cabrito no leite da sua própria mãe. (Dt 14.21 b) Não cozerís o cabrito no leite da sua própria mãe.

Este mandamento, que nos parece bastante estranho, é apre­sentado em três passagens do direito veterotestamentário; ele teve um efeito significativo na história, porque aqui temos a origem da prática judaica de cozinhar à maneira kosher. A cozinha kosher dis­tingue radicalmente pratos à base de leite de pratos com carne, ao ponto de que toda a louça, desde panelas e frigideiras até pratos de servir, tem de ser dupla, para que não se misturem de forma alguma pratos com carne e pratos à base de leite.

As três passagens bíblicas do mandamento apresentam li­teralmente a mesma formulação no texto original hebraico. Em

todas as três passagens, este preceito jurídico, formulado à ma­neira clássica da proibição, encontra-se no fim de sentenças jurí­dicas de cunho cultuai. Tem-se a impressão de que este manda­mento deveria ser obrigatoriamente citado, mesmo que só no fi­nal. Parece ter sido considerado um mandamento especialmente importante, o que se comprova pelo fato de ele aparecer três ve­zes na legislação veterotestamentária. Tanto mais incisivamente se coloca a pergunta pela compreensão deste preceito.

Já o Talmud considerava esta uma pergunta aberta, que os estudiosos judaicos da lei não conseguiam responder. Os ra­binos, nesse contexto, apontam para o fato de que faz parte das alegrias do mundo futuro descobrir o significado dessa lei. Ago­ra ela deverá ser obedecida como lei divina, mesmo que seu significado esteja oculto para nós. Aqui se mostra um respeito admirável pela palavra da lei divina. Mesmo assim, deveria ser feita a tentativa de entender o sentido desse estranho preceito jurídico. Para isso, há que observar detidamente a norma. O termo “cabrito” refere-se - e isso o texto hebraico evidencia claramente - a um “cabritinho novo” ou “cordeiro”, ou seja, é um filhote de cabras ou ovelhas, e não, p. ex., um bezerro. Com isso, torna-se provável que a época nômade seja o ambiente de origem do preceito, pois ovelhas e cabras eram os animais dos nômades; eles ainda não possuíam gado bovino. O caso é que, naquela época, era bem comum cozinhar um cabrito em leite, mais exatamente em leite coalhado, o que era considerado uma iguaria especial. Isso está comprovado em várias fontes, também de épocas mais recentes. A proibição veterotestamentária não se volta contra esse costume amplamente difundido. Não se fala de leite em geral, mas, sim, do “leite de sua mãe”. Por que se proíbe justamente isso? Uma interpretação largamente difundi­

da diz que, dessa forma, expressava-se a rejeição de um rito de fertilidade comum em Canaã, o qual teria sido praticado exata­mente dessa forma. Por este motivo, o preceito jurídico estaria colocado junto com outras normas anticultuais do direito vete- rotestamentário. Essa interpretação é questionada, hoje, com razão. A proibição tem outro sentido, mais elementar. No leite materno, o animal recém-nascido encontra o elixir de vida pro­priamente dito; o leite materno transmite a energia do início da vida. Utilizar o leite materno para cozinhar o filhote destruiria a ordem da criação, pois mesclaria de forma negativa a esfera da vida com a esfera da morte.

Determinações legais para a preservação de processos jurídicos justos (Êx 23.1-3,6-9)

(1) Não espalharás notícias falsas, nem darás mão ao ímpío, para seres testemunha de injustiça. (2) Não seguírás a multidão para fazeres o mal; nem deporás, numa demanda, inclínando-te para

a maioria, para torcer o direito. (3) Nem com o pobre serás par­cial na sua demanda. (6) Não perverterás o direito do teu po­

bre em seu processo. (7) Va falsa acusação te afastarás; não ma- tarás o inocente e o justo, porque não justificarei o culpado. (&)

Também suborno não aceítarás, porque o suborno cega até o perspicaz e perverte as palavras dos justos. (9) Também não oprí- mírás o forasteiro; pois vós conheceis o coração do forasteiro, visto que fostes forasteiros na terra do Egito.

Falava-se acima da grande importância do processo jurí­dico no Israel Antigo. O fato de haver, no Código da Aliança, um parágrafo específico dedicado aos acontecimentos no pro­cesso jurídico sublinha essa importância de maneira marcante. Mesmo que freqüentemente se veja de outra forma, os vv. 4-5 não pertenciam originalmente a esse contexto. Isso se eviden­cia tanto no conteúdo desses versículos quanto na estrutura formal (cf. p. 57-60).

Este texto tem sido denominado de “espelho dos juizes”. Isso significa que ele forneceria normas de conduta aos juizes. Mas essa interpretação é equivocada. Não havia juizes oficiais em Israel. Qualquer cidadão com direitos plenos podia encarar a situação de, num processo jurídico, tomar uma decisão judi­ciária. Além disso, nem todas as normas se referem a uma ação especificamente judiciária. A base das normas jurídicas acima são proibições que se ocupam com delitos que acontecem cons­tantemente no contexto de processos jurídicos. Não será abor­dada em detalhes, aqui, a questão acerca de modificações e ampliações destas proibições.

No que segue, apontar-se-á para algumas circunstâncias que chamam especial atenção. A primeira oração (v. Ia) se re­fere a acontecimentos que se passam antes da audiência em si. Previne-se de boato falso, porque ele pode levar a uma acusa­ção injusta. Na própria audiência exige-se veracidade absolu­ta. De maneira alguma permite-se depor em falso diante do tribunal (v. lb). A falsa testemunha é o motivo decisivo para uma sentença injusta com suas conseqüências devastadoras (cf. lRs 21.9-13). O v. 2 previne de se associar à maioria, se isso levar a uma sentença injusta. Este é um fenômeno que pode ter conseqüências fatais quando processos se transformam em es­

petáculos de natureza política. O direito veterotestamentário sabe e insiste no fato de que o direito não está em todos os casos com a maioria. Observe-se especialmente o v. 3. A afirmação de que não se deve favorecer o humilde chama tanto a atenção que alguns comentários, nesse contexto, facilitam o texto e, através de uma ligeira modificação do texto hebraico, traduzem da seguinte maneira: “Não favorecerás o poderoso”. As tradu­ções da Bíblia não seguiram esta interpretação. Trata-se de rea­lizar um processo justo sem atentar para a pessoa; nem mesmo o pobre deve ser favorecido, mas - o v. 6 sublinha isso expressa­mente - tampouco o direito do pobre deve ser limitado, o que em geral certamente é o perigo maior. No v. 8 critica-se o cân­cer de toda jurisdição, a corruptibilidade dos participantes do processo. A proibição está vinculada a uma justificativa que soa como um dito sapiencial (cf. Pv 17.23).

Deve-se prestar atenção especial ao v. 9. Este versículo é bastante diferente das normas proibitivas reunidas aqui. Isso parece referir-se inicialmente à sua formulação plural. Mas o texto original hebraico coloca o plural só na segunda parte do versículo: “ [...] pois vós conheceis o coração do forasteiro [...]”. Assim, o v. 9 não se refere exclusivamente ao processo jurídico, tal como é o caso nos versículos anteriores. A opressão dos es­trangeiros, que é proibida, também acontece fora do processo jurídico, mesmo que justamente neste ela tenha sido muito fre­qüente. O v. 9 é especialmente destacado por sua posição no final. Isso chama a atenção mais ainda quando se considera que o v. 9 repete a afirmação de Êx 22.20. Estes dois versículos for­mam a moldura em torno das normas colocadas entre eles. Isso se destaca também pelo fato de que a fundamentação jurídica apresentada em Ex 22.20 é repetida aqui. A proteção dos foras­

teiros é um dos preceitos jurídicos fundamentais de maior des­taque no direito veterotestamentário.

A lei acerca dos reis (Dt 17.14-20)

0 4 ) Quando entrares na terra que te dá o S e n h o r , teu Deus, e a possuíres, e nela habítares, e dísseres: Estabelecerei sobre mim um rei, como todas as nações que se acham em redor de mim, (15) estabelecerás sobre ti como rei aquele que o S e n h o r , teu Deus, escolher; um dos teus irmãos estabelecerás como rei; um estrangeiro que não seja dentre os teus irmãos,

não nomearás. (16) Porém este não multiplicará para si ca­valos, nem fará voltar o povo ao Egito, para multiplicar ca­valos; pois o S e n h o r v o s disse: Nunca mais voltareís por este caminho. (17) Tampouco para si multiplicará mulheres, para que o seu coração não se desvie; nem multiplicará muito para si prata ou ouro. (18) Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si uma cópia desta lei num livro, da que está diante dos levítas sacerdotes. (19) E a terá consigo e nela lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o S e n h o r , seu Deus, a fim de guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para os cumprir. (20) Isto fará para que o seu coração não se eleve sobre os seus irmãos e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda; de sorte que prolongue os dias do seu reinado, ele e seus filhos no meio de Israel.

Esta é a única passagem dentro dos códigos legais vetero- testamentários na qual se fala do rei. Diferentemente do direito do Antigo Oriente, em nenhum lugar do AT o rei aparece como autor das leis. Um biblista judaico expressou isto de maneira resumida: “Uma diferença fundamental é que o Código de Hamurábi é uma lei real, e a Torá pretende ser lei divina”. Além disso, a lei real se encontra no contexto das leis deuteronômicas relativas a cargos e funções (Dt 16.18-18.22). Também através disso evita-se destacar explicitamente o rei.

Ao examinarmos agora este único “texto acerca dos reis” nas leis veterotestamentárias, não pretendemos analisar os de­talhes da complexa história de seu surgimento. A pesquisa ve- terotestamentária fez isso de forma marcante. Nós observaremos o texto final, tal como o encontramos em Dt 17.14-20. Pode-se constatar que este texto, diferentemente do que seu início no v. 14 poderia fazer supor, não surgiu antes da instituição da monar­quia em Israel, mas reflete e trabalha experiências que se fize­ram com a realeza. Deve-se ver o início da lei sobre o rei em conexão com ISm 8-12, onde se fala do surgimento da monar­quia em Israel; especialmente com ISm 8 constatam-se coinci­dências parcialmente literais. O reinado não é, no fundo, uma instituição israelita; seu surgimento é exigido pelo povo, porque as outras nações também têm um rei, e em vista disso Deus elege o rei para o povo. Isso acontece a partir de imposições e restrições consideráveis.

A primeira dessas restrições consiste no fato de que o rei não pode ser estrangeiro (v. 15). Esta não é uma orientação xenofóbica. A norma resulta, de forma lógica, do tom geral da lei acerca dos reis. O que quer que se diga sobre o rei, decisivo é o fato de que ele é responsável por cumprir a lei divina (vv.

Não matarás.

18-20). Mas isso só pode ser feito por um membro do povo de Deus. O rei está e permanece unido aos outros como “irmão".

Dessa vinculação também tratam as determinações que se seguem nos vv. 16-17. Proíbem-se três coisas ao rei: muitos cavalos, muitas mulheres e muita prata e ouro. Note-se a pala­vra “muito”, que se repete inalteradamente por três vezes. Não se proíbe ao rei uma vida e uma postura compatíveis com um rei - isso se reflete nos objetos citados - , mas tudo isso tem de permanecer dentro de limites responsáveis, não podendo levar a luxo e gastos exagerados. Nem sempre os reis de Israel corresponderam a essas exigências. O relato bíblico sobre Salo­mão fala de seu grande número de cavalos (lRs 5.6; 10.26), suas muitas mulheres (lRs 11.3) e sua imensa riqueza em prata e ouro (lRs 10.10,14). Mesmo que não de maneira tão acentu­ada como no caso de Salomão, essas coisas aconteciam também em outras cortes. A lei sobre os reis, porém, coloca o rei em seu devido lugar. Ele tem de permanecer um irmão entre irmãos, sendo que, obviamente, o pano de fundo também é o raciocínio de que um aumento excessivo de poder e luxo reais só se dá às custas do povo. Por trás disso tudo encontram-se experiências amargas que se fizeram com a realeza em Israel.

Tudo desemboca nos vv. 18-20. Antes foram citados, de­forma negativa, objetos proibidos ao rei; agora tematiza-se de maneira positiva o que o rei deve fazer; basicamente é uma coi­sa apenas: ele deve ler na lei divina “por toda a sua vida”, o que também significa “diariamente”. Para isso ele tem de mandar fazer uma “cópia da lei” (v. 18). O rei deverá ler na lei para obedecê-la. Assim, a única tarefa e função do rei passa a ser fazer valer a palavra de Deus em Israel. Esta é uma imagem do rei que, a princípio, pouco tem a ver com a realidade dos reis de

Jerusalém e Samaria. O rei em Israel é colocado, nesse caso, sob uma norma teológica. A partir dessa norma, a realeza, que é um corpo estranho na tradição de Israel, é incorporada no povo de Deus, e forma-se a imagem do rei cuja existência, afinal, teria sido desejada por Deus.

O levirato (Dt 25.5-10)

(5) Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer sem filhos, então, a mulher do que morreu não se casará com outro estranho, fora da família; seu cunhado virá até ela, e a toma­rá por mulher, e exercerá para com ela o dever de cunhado.

(6) O primogênito que ela lhe der à luz será sucessor do nome do seu irmão falecido, para que o nome deste não se

apague em Israel. (7) Vorém, se o homem não quiser tomar sua cunhada, subirá esta à porta, aos anciãos, e dirá: tvteu cunha­do recusa preservar a seu irmão nome em Israel; não quer exercer para comigo o dever de cunhado. (8) Então, os anciãos da sua cidade devem chamá-lo e falar-lhe; e, se ele persistir e disser: Não quero tomá-la, (9) então, sua cunhada se chegará a ele na presença dos anciãos, e lhe tirará a sandália do pé, e lhe cuspirá no rosto, responderá e dirá: Assim se fará ao homem que não quer edífícar a casa de seu irmão; (10) e o seu nome

se chamará em Israel: A casa do descalçado.

O “casamento entre cunhados”, que, segundo o termo latino levir (cunhado), também é chamado de levirato, perten­

ce àquelas instituições jurídicas do AT que, a princípio, pare­cem ao ser humano ocidental moderno muito estranhas, até mesmo esquisitas. Em compensação, fala-se freqüentemente dessa instituição nos códigos legais do Antigo Oriente, sendo que as determinações se diferenciam nos detalhes. No direito veterotestamentário só se fala do levirato numa única passa­gem, mas nas narrativas do AT ele desempenha um papel signi­ficativo por duas vezes, em Gn 38 e Rt 4-

A idéia básica do levirato é expressa nos vv. 5-6. Se um homem casado morrer sem deixar um herdeiro, o irmão do fale­cido deverá casar com a viúva. Nesse caso, o primogênito desse casamento não é considerado filho do pai biológico, mas, sim, do irmão falecido. Ele continua o seu nome e providencia para que o nome do falecido “não se apague em Israel” (v. 6), i. e., sua linhagem se conservará em Israel. Possivelmente, a origem jurídica se encontra na época nômade, quando a estrutura fa­miliar era de suma importância. Existem várias conjecturas de que, em épocas mais remotas, ainda não se tratava, nesse con­texto, de um “casamento” em sentido estrito; tratava-se muito mais de arranjar um herdeiro para o falecido, com o auxílio de seu irmão, para conservar o seu nome. Nesse sentido pode-se traduzir Gn 38.8: “Vai até a mulher do teu irmão e consuma com ela o dever de cunhado, para suscitar um herdeiro para o teu irmão”. Mais tarde, porém, a instituição se transforma real­mente em casamento, tal como o demonstra inequivocamente a formulação no v. 5. Também a pergunta feita a Jesus pelos saduceus pressupõe o contexto do “levirato” (cf. Mc 12.18-27).

Além do que já se disse, o levirato tinha também importân­cia para o direito de sucessão, o que se evidencia no AT princi­palmente na história de Rt 4 e chama a atenção muito mais ainda

nos textos jurídicos do Antigo Oriente. Segundo o direito vetero- testamentário, a viúva não tem direito à herança, portanto ela fica sem sustento após a morte de seu marido, já que a parte da herança que caberia a ele fica para o irmão sobrevivente. Através do levirato este problema se resolve: a mulher que ficou sozinha é acolhida numa nova família, sendo que assim também se assegu­ra, não por último, sua subsistência.

Após estas constatações fundamentais, ainda há que se analisar os vv. 7-10. Trata-se da situação, provavelmente ocorri­da com certa freqüência, na qual o irmão responsável pelo levirato se nega a cumprir seu compromisso. Não se cita uma justificativa para a negação. Mas pode-se pensar em muita coi­sa. Em Gn 38.9, p. ex., cita-se como motivo para a negação do levirato que o filho seria atribuído ao irmão morto. Mas essas reflexões não podem ser aprofundadas aqui; importante é so­mente o fato de que, através da negação do irmão, a mulher é privada de um direito que lhe cabe.

Provavelmente faz parte da natureza do fenômeno que o levirato não possa ser forçado. Mas a negação tampouco fica sem conseqüências. A mulher, que, neste caso, não tem nin­guém que interceda por ela, pode apelar para o tribunal dos anciãos. Os anciãos, então, insistirão com o irmão renitente para que ele mude de idéia.

Se também isso não fizer efeito, a mulher tem o direito de estigmatizar publicamente o homem que fugiu ao seu compro­misso. Nitidamente o fato de se tirar as sandálias representa uma desonra para o atingido; segundo Is 20.2-4, tiram-se as san­dálias aos prisioneiros de guerra; isso vale mais ainda para o cuspir no rosto (cf. Dt 12.14; Is 50.6; Mc 14.65).

O mandamento do levirato tem de ser entendido dentro do contexto da época veterotestamentária, que hoje não é mais o nosso. O futuro da família e do povo de Deus já não depende de uma descendência biológica.

O mandamento do amor ao próximo (Lv 19.17-18)

(17) Não od.ia.ris o teu irmão no teu coração; mas repreen­der ás o teu próximo para que não te tornes culpado de pe­cado por causa dele. (18) Não te vingarás, nem guardar ás rancor contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próxi­mo como a ti mesmo. Eu sou o S e n k o r .

A sentença “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” per­tence às frases mais conhecidas e citadas do direito veterotesta- mentário, e mesmo de todo o AT. O motivo se encontra não por último no NT, onde a frase é citada freqüentemente. O apósto­lo Paulo entende o mandamento do amor ao próximo como cri­tério para todo agir ético. Ele escreve em Rm 13.8-10:

(8) A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próxi­mo tem cumprido a lei. (9) Pois o que foi dito: Não adulte- rarás, não matarás, não furtaris, não cobíçarás, e, se há qual­quer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (10) O amor não pratica o mal contra o próximo; de sorte que o cumprimen­to da lei é o amor.

Não adulterarás.

Além disso, pode-se citar G1 5.14; Tg 2.8 e, não por últi­mo, Mt 22.34-40; Mc 12.28-31; Lc 10.25-28, onde Jesus inter­preta o mandamento do amor a Deus e o mandamento do amor ao próximo como resumo da vontade divina ordenada ao ser humano. Na sentença “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” fica claro como é difícil diferenciar, no AT, entre direito e ethos, ou, dito de outra maneira, fica claro como o direito e a ética estão próximos no AT.

Não se pode deixar de perceber que o mandamento do amor ao próximo em Levítico não se encontra isolado, mas den­tro de um determinado contexto. Analisaremos este contexto agora. O nexo objetivo consiste dos vv. 17-18. A pesquisa inter­preta a compreensão básica destes versículos de formas varia­das. Com certa freqüência se diz que as instruções destes dois versículos, tal como se verifica nos vv. anteriores 15-16, se refe­rem ao comportamento dentro da comunidade jurídica. Se a famosa sentença do amor ao próximo estivesse localizada nesse âmbito, uma vez mais ficaria evidente a grande importância que se dá no AT à discussão e resolução de conflitos jurídicos. Mas essa interpretação provavelmente é equivocada. No final do v.16, tal como no final do v. 18, a frase “Eu sou o S enhor” , marca o final de um parágrafo. Os vv. 17-18 são, portanto, indepen­dentes dos vv. 15-16. Quanto a estes, serão dadas algumas indi­cações a seguir.

O pressuposto comum dos preceitos jurídicos contidos nos vv. 17-18a provavelmente consiste no fato de que um “irmão”, ou um “próximo”, tornou-se culpado em relação a um membro do povo. Como se deve reagir nesse caso? A essa pergunta se responde aqui: “Não odiarás teu irmão no teu coração”, diz o v.17. O que o outro fez e como, portanto, o ódio poderia ser justi­

ficado, não se diz. Portanto, todos os motivos possíveis e imagináveis estão na mira deste mandamento. A injustiça acontecida não deve, no entanto, ser simplesmente ignorada, mas deve ser mencionada e expressa claramente. O texto exige: “Repreenderás o teu próximo”. Se isso não acontecer, conside­ra-se a omissão culposa, porque a exigência vem com a seguinte fundamentação: “para que não te tornes culpado de pecado por causa dele”. Com vistas ao v. 18b, que é o alvo destes preceitos, pode-se dizer: faz parte do amor ao próximo que este deva ser advertido com toda a clareza acerca de seu delito. Amor ao próximo é tudo menos sentimentalismo piegas, ele também possui uma dimensão crítica.

O v. 18a continua o raciocínio do v. 17 e o acentua: por um lado, proíbe a vingança, que é a ação dirigida intencional­mente contra o outro, e, por outro lado, exige que não se guar­de o rancor contra o próximo. O problema deve estar realmente resolvido. Mesmo que a raiva tenha sido plenamente justificada, ela não deverá exceder os limites da admoestação havida. Quan­do considerado dentro do contexto em que se encontra, o man­damento do amor ao próximo mostra sua radicalidade com total nitidez.

Vamos voltar nossa atenção, agora, ao mandamento do amor ao próximo em si! Cada palavra dessa famosa sentença tornou-se objeto de análises aprofundadas, sendo que se defendem vários modelos de interpretação. Eles não podem ser e não serão apre­sentados aqui em detalhes. Só nos referiremos ao mais importan­te deles. Não se questiona o fato de que a palavra “amar” não deve ser restrita a uma dimensão romântica ou mesmo caritativa. O amor se mostra numa postura diante do outro que é baseada em sentimentos e leva a ações práticas. O amor busca a ação. Por

isso também se pode admoestar para o que praticamente seria impossível se entedêssemos o amor como mera emoção.

Mas a quem se dirige o amor, segundo Lv 19.18, ou dito de outra forma: “Quem é o meu próximo?” Assim o escriba per­guntara a Jesus quando este, diante de sua pergunta pelo cami­nho para a vida eterna, lhe indicara o duplo mandamento do amor (cf. Lc 10.25-27). A resposta de Jesus, dada através da parábola do bom samaritano, é conhecida. Pode-se resumi-la assim: o próximo é todo ser humano que necessita da minha dedicação e do meu auxílio. Esta interpretação tornou-se referencial, desde então, para a compreensão do mandamento. Nesta compreensão, o mandamento do amor ao próximo con­quistou sua importância fundamental para a ética em geral e a ética cristã em particular.

No entanto, é preciso constatar que, dessa forma, assu­me-se uma interpretação que ainda não existe em Lv 19.18. O nexo textual e o vocabulário eliminam qualquer dúvida acerca do fato de que aqui se visa o membro do próprio povo. Os diver­sos termos utilizados nos vv. 17-18 - irmão, próximo, filhos do teu povo -, que nesse caso são quase sinônimos, levam a essa interpretação. Trata-se, porém, de uma compreensão que já é ampliada no próprio cap. 19, quando se inclui expressamente o “forasteiro” no mandamento do amor (cf. os vv. 33-34):

(33) Se o forasteiro peregrinar na vossa terra, não o oprímíreís.(34) Como o natural, será entre vós o forasteiro que peregri­na convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois forasteiros fostes na terra do Egito. Eu sou o S e n h o r , vosso Veus.

Esta determinação jurídica evidencia que o mandamen­to do amor ao próximo no AT traz em si a tendência de ampliar- se, e que a total eliminação de limites no NT já está preparada no mandamento veterotestamentário.

As últimas palavras do mandamento, a expressão “como a ti mesmo”, provocam sérias controvérsias e múltiplas discussões. A questão é: trata-se, nesse caso, de amor próprio? E amor pró­prio não é o mesmo que egoísmo, devendo por isso, sempre ser condenado do ponto de vista ético? Por este motivo tem-se su­gerido outra tradução, como, por exemplo: “Ele é igual a ti” ou “que é igual a ti”. Com isso se evitaria a idéia do amor próprio. Mas essa tradução não é possível filologicamente. Por outro lado, o amor próprio é considerado importante e estimulante para o desenvolvimento da personalidade e não tem uma conotação negativa. Nesse caso o final do mandamento não representa nenhum problema. Não se deveria ver nas palavras mais do que está expresso nelas. Não se ordena, aqui, o amor próprio; ele é, antes, pressuposto como fenômeno humano natural e assumido dessa forma. O amor ao próximo parte desse fenômeno.

2. Os Vez Mandamentos (O Vecálogo)

Os Dez Mandamentos, designados de Decálogo na lin­guagem teológica, pertencem aos textos do AT mais conheci­dos e historicamente importantes. Aqui, a totalidade da ética humana aparece de forma extraordinariamente concisa e con­centrada, tanto em vista do comportamento em relação a Deus quanto do comportamento em relação às outras pessoas. Por isso, pode-se considerar o Decálogo a culminância e o resumo do direito veterotestamentário, sendo que a expressão “direito” é utilizada aqui em sentido amplo. Temos diante de nós normas que se dirigem a cada um de maneira direta, normalmente na forma negativa da proibição “Não farás...”, em dois casos na forma positiva “Farás...”. Não há determinações penais para o caso de transgressão; espera-se e pressupõe-se o cumprimento dos mandamentos como algo óbvio. Essa forma dos mandamen­tos do Decálogo é de fundamental importância para sua com­preensão, como ainda se verá abaixo.

No AT, o Decálogo pode ser localizado em duas passa­gens. Ele se encontra em Êx 20.1-17 e Dt 5.6-21. Ambas as pas­sagens deixam transparecer que o Decálogo é, por si só, uma grandeza independente, que foi inserida num determinado con­texto. Isso se pode perceber com especial clareza no livro doA A

Exodo. Os últimos versículos de Ex 19 não apontam para o Decálogo que vem a seguir; Ex 20.18-21 tampouco volta os olhos para o Decálogo que o antecede; ele é, pelo contrário, uma

continuação indireta dos acontecimentos narrados em Êx 19. Portanto, literariamente o Decálogo é uma inserção, o que vale também para Dt 5. O fato de o AT transmitir o Decálogo nestas passagens sublinha sua importância teológica. No contexto de Ex 20, o Decálogo se localiza no começo da comunicação da vontade divina ao povo, acontecida ao pé do Sinai; em Dt 5, o Decálogo é citado no contexto do grande discurso de despedi­da de Moisés antes da entrada de Israel na terra prometida.

Em largos trechos, ambas as versões do Decálogo são lite­ralmente idênticas. Mas, observando-se com atenção, perce- bem-se algumas diferenças no texto hebraico. A maioria das mais de 20 divergências textuais é de menor monta e insignifi­cante do ponto de vista do conteúdo. Mas também há algumas diferenças importantes entre as duas versões. As mais importan­tes serão comentadas a seguir.

A maioria das divergências aparece no mandamento do sábado. Em relação a Ex 20.8-11 encontram-se três ampliações em Dt 5.12-15. São elas: “como te ordenou o S enhor , teu Deus (v. 12); “nem o teu boi, nem o teu jumento, nem algum [animal teu] ” e “para que o teu servo e a tua serva descansem como tu” (v. 14). Além disso, no início do mandamento as versões usam um verbo diferente. A tradução de João Ferreira de Almeida reflete isso quando lê, em Ex 20.8, “lembra-te do dia do sábado” e, em Dt 5.12, “guarda o dia do sábado”. Mas o que mais chama a atenção é que, em cada uma das versões, foi acrescentada uma fundamentação diferente. Em Ex 20.11 se lê: “porque, em seis dias, fez o S enhor o s céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o S enhor abençoou o dia de sábado e o santificou”. Porém Dt 5.15 diz: “porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que o S enhor , teu

Deus, te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que o S enhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o sábado". Uma vez que a referência à escravidão no Egito aparece freqüentemente no Deuteronômio, essa justificativa do manda­mento é normalmente denominada de “justificativa deuteronô- mica”, e a outra, por causa de sua relação com o relato da cria­ção do Escrito Sacerdotal, de “justificativa sacerdotal”. Em fun­ção do conteúdo, é mais adequado falar-se em “justificativa ético-social” e “justificativa teológico-criacional”.

Também quanto ao mandamento dos pais observam-se am­pliações em Dt 5.16, a saber: “como o S enhor, teu Deus, te orde­nou” e “ [para que] te vá bem”. Finalmente, há duas diferenças dentro da proibição da cobiça. Em Ex 20.17 a proibição da cobiça é introduzida com as palavras: “Não cobiçarás a casa do teu pró­ximo”. Segue-se um recomeço: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva...”. Dessa forma, a casa aparece, num primeiro momento, como conceito amplo; a segun­da oração como que enumera, então, o conteúdo desta “casa”. Em Dt 5.21 isso é bastante diferente. Destaca-se a mulher de entre os bens que formam a casa, e ela é citada por primeiro e em separado: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo”. Segue-se, então, a enumeração dos bens, acrescida do termo “campo”: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem seu campo, nem seu servo, nem sua serva...”. Certamente não é equivocado pensar que, nessa inversão, se expressa uma valorização da mulher.

A comparação entre as duas versões mostra que o texto do Decálogo não estava imutavelmente fixo para todos os tem­pos; ele teve uma história. Também o texto do Decálogo está dentro de uma tradição viva.

Diga-se de passagem que a tradução de J. F. de Almeida apresenta, além disso, pequenas diferenças estilísticas entre as duas versões do Decálogo que, no entanto, não são respaldadas pelo texto original hebraico. Por exemplo, em Ex 20.2 ele tra­duz: “que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”, en­quanto que, em Dt 5.6, verte: “que te tirei do Egito, da casa da servidão”; em Ex 20.4 Almeida menciona “céus” (plural), en­quanto que, em Dt 5.8, fala de “céu” (singular); o mesmo termo é traduzido, em Ex 20.10, por “forasteiro” e, em Dt 5.14, por “estrangeiro”. Por fim, o mesmo texto hebraico é traduzido, em Ex 20.17, por “nem coisa alguma que pertença ao teu próximo” e, em Dt 5.21, por “nem coisa alguma do teu próximo”. Não fica claro por que a Bíblia de J. F. de Almeida faz estas diferenças estilísticas. Parece haver, nesse caso, uma peculiaridade do pró­prio tradutor, condicionada não pelo texto hebraico, mas talvez pela Bíblia latina (Vulgata).

No contexto bíblico, o Decálogo não é denominado como tal, ou seja, ele não recebe o nome “dez palavras”. Mesmo assim, pode-se supor que o Decálogo realmente tenha sido uma cole­tânea de “dez palavras”, o que se comprova em algumas passa­gens veterotestamentárias que usam essa expressão. É o caso de Ex 34-28; Dt 4.13; 10.4. Uma vez que outras coletâneas de leis veterotestamentárias também consistem de dez elementos, co­loca-se a pergunta pelo significado desse número. O algarismo 10 poderia ter um significado mnemotécnico; ele facilita a enu­meração de todos os elementos da série, porque é possível con­trolar a contagem com a ajuda dos dez dedos.

Uma das dificuldades que aparece em qualquer reflexão sobre o Decálogo é o fato de que os Dez Mandamentos não são definidos sempre da mesma forma. Existem tradições de enu­

meração diversas. As três mais importantes serão citadas a se­guir. Em primeiro lugar menciona-se a enumeração católica ro­mana. Ela ganhou importância também porque Martim Lutero a adotou em seus dois catecismos. Ela remonta a Agostinho e é utilizada até hoje na Igreja Católica Romana e nas Igrejas Evan­gélicas Luteranas. Caracteriza-se por entender a proibição de adorar deuses estranhos e a proibição de imagens como sendo juntas o primeiro mandamento. A partir do séc. XIII a proibição de imagens foi deixada totalmente de lado, como também ocor­re nos catecismos de Lutero. Para conservar o número dez, divi­diu-se a proibição da cobiça em duas, que se contam, então como nono e décimo mandamentos. Isso foi possível por causa da repetição da expressão “não cobiçarás”.

Outra maneira de enumerar é praticada nos catecismos reformados. Ela remonta a Filo e foi retomada por Zwínglio e Calvino. Nesse caso, a proibição de imagens aparece como se­gundo mandamento, após a proibição de deuses estranhos, que é o primeiro mandamento. Assim não se faz necessária uma sub­divisão da proibição da cobiça.

Finalmente, cite-se ainda a enumeração do judaísmo or­todoxo. Nessa tradição, o preâmbulo do Decálogo eqüivale ao primeiro mandamento; como segundo mandamento contam o preceito da adoração exclusiva a Javé e a proibição de imagens; e depois disso a enumeração segue como na tradição reformada.

Em seu todo, a enumeração reformada é a que mais se aproxima do texto original. Mas também a tradição católico- luterana tem uma referência importante no texto do Decálogo, pelo menos no que diz respeito à junção do mandamento da adoração exclusiva e da proibição de imagens. E possível cons­tatar que os vv. 5 e 6 de Ex 20 podem ser objetiva e sintatica-

mente ligados ao v. 3; portanto, na forma final do Decálogo a proibição de imagens está circundada por afirmações do primei­ro mandamento. A enumeração judaico-ortodoxa merece aten­ção porque sublinha a importância do preâmbulo do Decálogo, mesmo que seja necessário afirmar que a introdução, tão impor­tante para o Decálogo como um todo, não pode ser entendida como preceito no mesmo sentido dos outros mandamentos.

Do ponto de vista formal, o Decálogo não apresenta uma unidade. Isso o diferencia das outras séries de leis do AT. So­mente o começo do Decálogo foi formulado como discurso divi­no, i. e., o começo do Decálogo tem a marca do “eu” de Deus. A partir de Ex 20.7, no entanto, Deus aparece na terceira pessoa - “Não tomarás o nome do S enhor , teu Deus, em vão” - e assim continua até o final. Também chama a atenção que o manda­mento do sábado e o mandamento do respeito aos pais, em con­traste com os outros mandamentos, são formulados positivamente. Pode-se supor que a formulação positiva “Lembra-te do dia de sábado” e “Honra teu pai e tua mãe” seja o resultado de uma modificação posterior. E possível pensar que, originalmente, um dos mandamentos tenha sido uma proibição de trabalhar no sá­bado e o outro tenha proibido amaldiçoar os pais. A transforma­ção das proibições em mandamentos com formulação positiva resulta numa ampliação do conteúdo do preceito. Pode-se per­guntar por que isso aconteceu justamente e só com esses dois mandamentos. Como se evidencia nas justificativas adiciona­das, continuou-se relembrando e modificando de maneira es­pecialmente intensiva exatamente esses dois mandamentos. Mas é provável que a reelaboração não tenha ocorrido apenas nestes dois preceitos. Ela se mostra, p. ex., na grande diferença de tamanho dos mandamentos. Três deles consistem, no texto

hebraico, cada qual de apenas duas palavras (Êx 20.13-15); en­quanto isso, o mandamento do sábado em Dt 5.12-15 contém 64 palavras. As diferenças formais dos mandamentos levam a supor que o Decálogo, tal como ele se nos apresenta hoje, seja o resul­tado de uma evolução. E provável que tenham existido séries anteriores, que ainda não tinham dez elementos, antes de se desenvolver a forma atual do Decálogo.

Uma questão importante para a compreensão do Decálogo é a pergunta pela sua estrutura. Em todo caso, pode-se partir do pressuposto de que sua estrutura não é arbitrária e, conseqüen­temente, merece atenção. O princípio estruturador decisivo é tanto óbvio quanto significativo. Na primeira parte se encon­tram os mandamentos que ordenam a relação com Deus; na segunda parte seguem os mandamentos referentes à vida em sociedade. A coordenação dessas duas partes - os mandamen­tos teológicos em sentido restrito e os mandamentos de orienta­ção ética da segunda parte — constitui o caráter peculiar dessa série. Freqüentemente, ambas as partes têm sido consideradas sob o ponto de vista das duas “tábuas da lei” nas quais Deus - ou Moisés - escreveu os mandamentos (cf. Ex 24-12; 31.18; 34.1- 4; Dt 10.1-5). Quais mandamentos pertencem à chamada pri­meira tábua e quais à segunda é uma questão controvertida. Concretamente, o mandamento do respeito aos pais deve ser atribuído à primeira ou à segunda tábua? Mais provável é a atri­buição à segunda tábua. A coisa se torna de fato problemática se a denominação “primeira” e “segunda” for compreendida no sentido de um juízo de valor. Assim não se faz jus ao Decálogo, pois sua singularidade reside justamente no nexo indissolúvel de mandamentos “teológicos” e “éticos”.

Não furtarás.

De importância fundamental é, além disso, a introdução ao Decálogo. Denomina-se a oração introdutória de preâmbulo do Decálogo: “Eu sou o Sen h o r, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão”. A oração principal do preâmbulo pode, do ponto de vista puramente filológico, ser traduzida de maneira diferente, ou seja: “Eu, o S en h o r, s o u teu Deus”. Mas não há nenhuma dúvida de que a tradução costumeira está correta. Trata-se de uma oração que aparece freqüentemente no AT. Assim se apresenta um desconhecido, dizendo o seu nome. Aqui não é qualquer pessoa, mas o próprio Deus que se apresenta. Dizendo o seu nome, ele revela ao mesmo tempo o seu ser. Mostra seu ser também ao expressar, através do aposto “teu Deus”, sua dedicação a Israel. A afirmação recebe sua im­portância plena na oração subordinada. Nela, a ação salvífica de Deus por seu povo Israel, a libertação do povo do Egito, não só é chamada à lembrança como, ao mesmo tempo, toma-se a base dos mandamentos seguintes. Assim, o preâmbulo é tudo menos uma introdução casual; pelo contrário, ele indica aos manda­mentos subseqüentes seu lugar teológico. Deus dá antes de exi­gir. Ele exige como aquele que se revelou o Deus da libertação. O preâmbulo do Decálogo deixa inequivocamente claro que o que se exige nos mandamentos se fundamenta na dádiva divina.

Nesse contexto, também merece atenção a formulação negativa dos mandamentos; estes são, na verdade, proibições. Encontramos no Decálogo a forma mais marcante das proibi­ções, sobre as quais já falamos acima, em 1,2. A formulação ne­gativa do tipo “não farás...” revela o caráter específico destes preceitos jurídicos. Não se trata de criar uma ordem de convi­vência social. Nesse caso seria adequada uma formulação posi­tiva de ponta a ponta. Pelo contrário, pressupõe-se uma ordem

existente. É a organização social do povo de Israel escolhido e libertado por Deus. Essa organização é limitada e protegida pe­las proibições. Nas fronteiras deste ordenamento social erigem- se sinais que as pessoas devem respeitar enquanto pertencentes a Israel. Não há o interesse, nesse caso, de construir um ethos, colocando exigências máximas que possibilitem o desenvolvi­mento das pessoas. Trata-se de preservar o espaço de vida con­cedido por Deus, de mostrar ao ser humano o limite que circun­da este espaço de vida salvífico que lhe foi dado.

E difícil apresentar o significado de cada mandamento do Decálogo num espaço reduzido. Isso acontecerá a seguir. De tempos em tempos indicar-se-ão possibilidades de interpretação divergentes. A enumeração dos mandamentos segue a tradição reformada.

I (3) Não terás outros deuses diante de mim. (5) Não os adorarás, nem os servírás; porque eu sou o S e n h o r ,

teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam (6) e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam. e guardam os meus manda­mentos. (Êx 20.3,5-6)

O primeiro mandamento é a base dos mandamentos divi­nos apresentados ao povo de Israel. Mas isso não significa, de maneira alguma, que este primeiro mandamento negue a exis­tência de outros deuses. Ao contrário, a existência de outros deuses é pressuposto pela formulação do mandamento. Não se trata aí, portanto, de monoteísmo; e isso corresponde à visão

que se encontra em outras partes do AT. Pressupõe-se e expres- sa-se com freqüência que, em outros países, são adorados outros deuses (cf. Js 24-14; Jz 6.10; lRs 11.33; Jn 1.5). Mas - e esta é a ênfase do mandamento da adoração exclusiva - para Israel não devem existir outros deuses senão o S enh o r , o Deus de Israel, ao qual o povo deve sua existência desde o princípio, tal como o profeta Oséias formulou de maneira tão marcante. “Eu sou o S enhor , teu Deus, desde a terra do Egito; portanto, não conhe- cerás outro deus além de mim, porque não há salvador senão eu” (Os 13.4). O peso do primeiro mandamento é sublinhado pelo fato de que não existe, no Antigo Oriente, analogia para a exclusividade da relação com Deus, tal como ela é exigida nes­se caso, de forma que se chegou a falar num fenômeno único da história da religião. Entre os profetas mais antigos foi principal­mente Elias quem defendeu rigorosamente a idéia de que, para Israel, só existe e só pode existir um único Deus. Elias pode ser chamado de profeta do primeiro mandamento. De maneira im­pressionante ele conclama o povo, na narrativa do Carmelo, a se decidir: “Até quando coxeareis sobre dois lados? Se o SENHOR é Deus, segui-o; se é Baal, segui-o” (lRs 18.21).

Ao mandamento da adoração exclusiva pertencem tam­bém os vv. 5 e 6, nos quais se oferece algo como uma justificati­va do mandamento. Como no AT há relativamente poucos predicados atribuídos a Deus, deve-se considerar especialmen­te o que se utiliza aqui. “Eu, o S enhor, teu Deus, sou um Deus zeloso”, traduz a Bíblia de J. F. de Almeida. Também se pode traduzir - e assim ficaria mais claro o que se quer dizer - de acordo com a Bíblia Sagrada (Ed. Vozes): “Eu, o S enh o r , teu Deus, sou um Deus ciumento”. O que para nós pode parecer uma afirmativa chocante é uma constatação freqüente no AT,

utilizada para esclarecer inequivocamente como Deus luta por seu povo (cf., por exemplo, Êx 34.14; Dt 6.15; 32.16; Js 24.19). O “ciúme” de Deus não se volta contra os outros deuses, mas con­tra o próprio povo, na medida em que este se volta a outros deuses. E muito importante o que se dirá em seguida acerca da extensão do ciúme de Deus. O ciúme de Deus e o castigo dele decorrente atingem os membros de três ou quatro gerações, ou seja, ele se volta contra os membros da família ampliada, na qual convivem três ou quatro gerações. A misericórdia de Deus, porém, da qual fala o v. 6, dirige-se a mil gerações, o que se refere a um espaço de tempo humanamente impossível de me­dir. Assim, a misericórdia de Deus é imensuravelmente maior que o ciúme de Deus.

II Não farás para tí imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. (Êx 20.4)

Da mesma forma como o primeiro mandamento, a proibi­ção de imagens é característica e importante para a fé em Deus do AT. No texto do Decálogo, tal como o conhecemos hoje, a proibição de imagens está circundada pelas determinações do primeiro mandamento. Este é o resultado da história da forma­ção do Decálogo; originalmente tratava-se de dois mandamen­tos independentes. A junção destes dois primeiros mandamen­tos evidencia, porém, quão próximos eles estão, o quanto um complementa e amplia o outro. Também dentro da própria proi­bição de imagens pode-se constatar uma evolução. Original­mente, o mandamento parece ter consistido da sentença breve

“Não farás para ti imagem”. Pensa-se aí - sem sombra de dúvida - numa imagem do Deus de Israel. Portanto, o mandamento não se volta em absoluto contra as artes plásticas. O que se proíbe é a imagem de Deus fabricada e adorada por seres huma­nos. O que segue, no v. 4, ao breve texto original é um comple­mento explicativo posterior que tem em vista todo o universo imaginável. Nada, realmente nada pode ser considerado e ado­rado como imagem de Deus.

Tal como o primeiro mandamento, também a proibição de imagens não tem qualquer analogia no entorno de Israel; sua origem permanece obscura. Por isso, sua interpretação é compli­cada e controvertida. Provavelmente não se quer, com a proibi­ção de imagens, defender o caráter espiritual de Deus diante de tentativas de prender a manifestação de Deus a objetos concre­tos. A contraposição entre espírito e matéria pressuposta nesta noção, no entanto, nada tem a ver com o AT. Para entender a proibição de imagens, pode-se considerar, com ressalvas, a idéia de que um Deus representado por imagens tornar-se-ia, de certa maneira, disponível para o ser humano. A imagem de Deus pode­ria ser desvirtuada para a feitiçaria e a magia; e isso seria eviden­temente incompatível com a imagem que se tem de Deus no AT

A proibição de imagens veterotestam entária está enraizada numa compreensão de mundo fundamentalmente di­ferente da que se encontra no entorno de Israel e mais além. Neste a divindade se manifesta na natureza ou, de forma mais ampla, no universo. De certa maneira, a imagem de Deus é a culminação e a expressão definitiva dessa manifestação. O divi­no se toma imanente no mundo. Mas esse é um imaginário contra o qual o AT se levanta com toda a energia. No AT Deus é criador do universo e, como tal, não se dilui no universo; pelo contrário,

está fundamentalmente separado dele. Assim, pode-se afirmar que a proibição de imagens reflete, com toda a nitidez, essa diferença existente entre Deus e o universo. Isso tem a ver com o fato de que no AT a relação com Deus se constitui não pelo ver, mas pelo ouvir. O ser humano não pode e não deve ver Deus (Ex 33.20), mas ele pode e tem a permissão de ouvir a voz de Deus.

III Não tomarás o nome do S e n h o r , teu Deus, em vão, porque o S e n h o r não deixará impune o que tomar o seu nome em vão. (Ex 20.7)

O terceiro mandamento é exegeticamente menos con­trovertido do que a proibição de imagens. Estilisticamente ele é diferente do primeiro e do segundo mandamentos porque não se apresenta, como estes, na forma do discurso direto em pri­meira pessoa, mas por falar de Deus na terceira pessoa. Intér­pretes judeus fazem questão de afirmar que isso não significa que agora, haja um outro sujeito do discurso. Pelo contrário, o Decálogo deve ser entendido, apesar dessa mudança de estilo, como comunicação divina. A referência ao preâmbulo apóia esta visão. O terceiro mandamento forma junto com o primeiro e o segundo uma unidade na medida em que também ele contém uma justificativa. Este não é o caso dos outros mandamentos. O abuso do nome de Deus provoca o castigo divino, sendo que a forma deste castigo fica em aberto. Também dentro deste man­damento existe uma mudança de estilo, pois o mandamento em si dirige-se a uma pessoa, enquanto a justificativa está formula­da de maneira impessoal.

Deve-se entender o terceiro mandamento sobre o pano

de fundo da grande importância que tem a revelação do nome de Deus no AT. Quando Deus diz o seu nome, ele de certa forma se entrega a si mesmo ao seu povo de Israel. Quando Moisés pergunta a Deus pelo seu nome, este lhe responde com o famoso “Eu serei o que serei” respectivamente “Eu sou o que sou” (Ex 3.14); mais exato talvez seja “Eu ajo como aquele que age”. Através desta afirmação - que não deveria ser mal-inter- pretada como uma definição do nome divino Javé - Deus se revela e ao mesmo tempo se oculta, já que a frase também se nega a fazer uma afirmação clara.

O ser humano pode usar o nome de Deus; isso está implíci­to no terceiro mandamento. O que se proíbe é o abuso do nome de Deus. Coloca-se a pergunta: o que se entende por abuso? Na época veterotestamentária isso decerto não acontecia da mesma maneira como entre nós, que tantas vezes pronunciamos a pala­vra “Deus” de maneira impensada e supérflua, o que certamente também cai sob o veredito do terceiro mandamento. Na época veterotestamentária, o mandamento se volta contra o perjúrio, o qual se pronuncia em nome de Deus e, com isso, profana o seu nome. “Não jurareis falso pelo meu nome, pois profanaríeis o nome do vosso Deus. Eu sou o S enhor” (Lv 19.12). Além do perjúrio, o terceiro mandamento tem em vista a maldição injustificada, que também acontecia em nome de Deus. Também se pode pensar em fórmulas de juramento e no uso do nome de Deus em práticas de feitiçaria e magia. Há muitas possibilidades de se usar o nome de Deus em vão; elas podem assumir tons bem diferentes em épocas e contextos sociais diversos.

No judaísmo, evitava-se completamente pronunciar o nome de Deus, para excluir qualquer forma de abuso. É total­mente inadequado designar isto de medo supersticioso, pois por

trás disso há uma grande seriedade. Por outro lado, não deveria passar desapercebido que a proibição do abuso quer justamente possibilitar o uso correto do nome de Deus, tal como ocorre na adoração, no louvor e na lamentação.

IV (8) Lembra-te do dia. do sábado, para o santificar. (9) Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. (10) Mas o sétimo dia é o sábado do S e n h o r , teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro;(11) porque, em seis dias, fez o S e n h o r o s céus e a ter­ra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, des­

cansou; por isso, o S e n h o r abençoou o dia de sábado e o santíficou. ( Êx 20.8-11)

O mandamento do sábado desempenha, no AT, um papel importante para além do Decálogo. Ele é, em princípio, o man­damento veterotestamentário mais freqüentemente atestado. Em todas as coleções legais veterotestamentárias o sábado é tematizado, sendo mencionado também pelos profetas (p. ex., Is 1.13; Os 2.13; Am 8.5), e não por último ele tem um papel im­portante em textos narrativos, a começar por aqueles que rela­tam sobre a época da migração de Israel pelo deserto (Ex 16) até o livro de Neemias (Ne 13). A palavra “sábado” tem a ver com o verbo hebraico shabat = “parar”, “pôr fim a”, “descansar”. Para ouvidos hebreus, a assonância é evidente.

“Sábado” é o nome do último dia da semana; é o único nome de um dia da semana que existe no AT; os outros dias da semana são denominados com os números correspondentes. Tal como o primeiro e o segundo mandamentos, também o manda­mento do sábado pertence às peculiaridades da história da reli­gião do AT. A essa história se relaciona a questão, muito discu­tida mas até hoje não resolvida, da origem do sábado. Pelo fato de o sábado não ter um paralelo real, a sua origem permanece obscura. O resultado dessa discussão, no entanto, não é decisi­vo para a valoração teológica do sábado.

Pode-se perceber uma história da compreensão e da valoração do sábado no AT. A princípio, ele não parecia ter nenhuma importância cultuai. Na época mais remota, ainda não pertencia às “festas”. Só em Lv 23 - um texto relativamente tardio - o sábado é incluído entre as “festas”. A formulação mais antiga do mandamento do sábado, provavelmente a de Ex 34.21, ainda conhece este aspecto: “Seis dias trabalharás, mas, ao sétimo dia, descansarás, quer na aradura, quer na sega”. Nesse caso, do sábado apenas se diz que não se deve fazer ne­nhum trabalho nesse dia. A determinação do v. 21b, “quer na aradura, quer na sega”, parece que foi acrescentada. Se isto for verdade, a visão mais antiga do mandamento apoiaria a tese de que o sábado já era conhecido na época nômade de Israel, pois o acréscimo configuraria uma adaptação do mandamento às cir­cunstâncias de vida dos agricultores na terra cultivada. Em todo caso, do conteúdo desse dia não se depreende nada mais do que o fato de ele ser um dia de descanso do trabalho.

Chama a atenção que no mandamento do sábado conti­do no Decálogo não se cita a mulher na lista daquelas pessoas que não devem trabalhar nesse dia. Será que o mandamento

Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.

não vale para ela? Isso é muito improvável! O problema decerto pode ser solucionado com a suposição de que a forma de se dirigir a alguém dizendo “não trabalharás” tenha em vista tanto o homem quanto a mulher, mesmo que o hebraico utilize o ver­bo no masculino.

Em Ex 34.21, o mandamento não é seguido por nenhuma fundamentação. Isso é diferente em outras passagens, também no Decálogo. São exatamente as diversas justificativas que o mandamento recebeu com o passar do tempo que têm impor­tância teológica. Já se aludiu acima à justificativa social do man­damento do sábado em Ex 23.12, na qual se acentua a necessi­dade de descanso dos animais domésticos utilizados para o tra­balho (cf. supra, p. 62 e 63). Também a justificativa de Dt 5.15 para o descanso do sábado é de natureza social. Mas a dimensão social foi ampliada, nesse caso, para uma afirmativa de cunho histórico-teológico. A libertação da escravidão no Egito experi­mentada pelo povo é o referencial para o mandamento do sába­do. Assim, a libertação do jugo do trabalho semanal representa simbolicamente a libertação da escravidão no Egito: “Porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que o S enhor , teu Deus, te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que o S en h o r , teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de sábado”. A fundamentação do mandamento do sábado é bem diferente na versão do Decálogo que se encontra em Ex 20 (cf. também Ex 31.17). Ela se baseia no primeiro relato da criação, de origem sacerdotal, em cujo final se fala sobre o descanso de Deus no sétimo dia como consumação da criação e de que Deus abençoou este dia e o santificou (cf. Gn 2.2-3): “E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito. E abençoou Deus o sétimo

dia e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera”. Nessa passagem, ainda não se impõe ao ser humano a observância do sábado - a palavra “sábado” nem é utilizada - mas é inegável que aqui se tem em vista o sábado. O sétimo dia é diferenciado dos outros dias da semana por Deus (ele o santificou) e atribuem-se a ele forças de bênção (ele aben­çoou o sétimo dia) que irradiam sobre o tempo restante.

No Decálogo, o sábado é denominado de “sábado do S e­

n ho r” (v. 10; Dt 5.14); também se pode traduzir como “sábado para o S enh o r” . Com isso vem à tona o sentido teológico decisi­vo que o AT atribui a este dia. O sábado não é somente relacio­nado a Deus; ele pertence a Deus, e junto com o sábado todo o tempo do ser humano pertence a Deus. O mandamento do sá­bado - localizado no centro dos Dez Mandamentos e tratado com mais detalhes que todos os outros - ilumina decisivamente o sentido de todos os mandamentos. Ele evidencia que, no to­cante à relação das pessoas com Deus, nada depende das reali­zações humanas. O que o ser humano realiza no sábado é justa­mente nada. O mandamento do sábado mostra que os manda­mentos são bênçãos, e não penosas exigências.

O mandamento do sábado recebe uma nova importância na época do exílio. Tal como a circuncisão, o sábado se torna um sinal distintivo da fé de Israel. Começa aí o trajeto que transforma a bênção em regra rígida. Dessa época provêm as determinações veterotestamentárias que atribuem castigos aos que violarem o sábado; são castigos extremamente duros. Um exemplo encontra-se em Ex 31.14-15: “Portanto, guardareis o sábado, porque é santo para vós outros; aquele que o profanar morrerá; pois qualquer que nele fizer alguma obra será eliminado do meio do seu povo. Seis dias se trabalhará, porém o sétimo dia é

o sábado do repouso solene, santo ao S enhor ; qualquer que no dia do sábado fizer alguma obra morrerá”. Na seqüência, o juda­ísmo chega a transformar o mandamento do sábado no manda­mento central da lei. As batalhas dos macabeus revelam que os soldados judaicos piedosos preferiam deixar-se assassinar pelos inimigos a defender-se e, assim, violar o sábado (IMac 2.31-38). O que era dádiva salvífica para o ser humano tornou-se obriga­ção imprescindível. Segundo o testemunho do Novo Testamento, o conflito entre Jesus e seus adversários foi deflagrado justamente por causa do entendimento do sábado. Contra a interpretação casuística do sábado, que agrilhoa as pessoas, ele afirma aos fariseus: “O sábado foi feito por causa do ser humano, e não o ser humano por causa do sábado” (Mc 2.27).

V Honra teu paí e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o S e n h o r , teu Deus, te dá. (Êx20 .12)

O mandamento acerca dos pais recebe destaque especial no Decálogo por causa de sua posição. Os mandamentos sociais iniciam com o mandamento acerca dos pais, e não com a proibi­ção de matar, o que talvez fosse de se esperar. Este mandamento adquire um peso especial também por causa de sua formulação positiva e da motivação, que é acrescentada. E o único manda­mento ao qual se adicionou, como motivação, uma promessa. Essa promessa produz objetivamente uma ligação com o preâm­bulo do Decálogo. E importante perceber que se fala expressa­mente em “pai e mãe”, o que não é óbvio dentro de uma estru­tura social patriarcal. Numa outra formulação do mandamento, a mãe é citada até mesmo antes do pai (Lv 19.3).

O mandamento sobre os pais foi interpretado de maneiras bastante diversas no decorrer da história da interpretação. As vezes aconteceram equívocos óbvios. Um desses equívocos é a suposição de que o mandamento se dirija às crianças, que são por ele obrigadas à obediência aos pais. Mas não há dúvida de que esse mandamento, tal como os outros mandamentos do Decálogo, se destina a pessoas adultas. Pensa-se nos filhos adul­tos cujos pais ainda vivem. O mandamento acerca dos pais não pretende forçar a obediência infantil.

Segundo outra interpretação, o mandamento tem em mente os pais em sua função de transmissores da tradição reli­giosa de Israel para os seus filhos. Os pais são considerados qua­se que representantes de Deus e devem, portanto, ser honrados de acordo. Essa interpretação não raro transfere funções pater­nas para chefes ou para a autoridade em geral, aos quais cabe, então, a mesma honra dos pais. Assim se dá, p. ex., no Catecis­mo Maior de M. Lutero e na questão 104 do Catecismo de Heidelberg. Essa compreensão isola o mandamento sobre os pais dos mandamentos que o seguem, os quais devem ser todos en­tendidos como mandamentos que visam a proteção.

Também o mandamento acerca dos pais pretende ser um mandamento que visa a proteção em sentido amplo. Não se tra­ta de reforçar a autoridade, mas de garantir aos pais idosos um tratamento respeitoso, o que inclui alimentação, vestuário e moradia adequados. Também um sepultamento digno faz parte dessa lista. A partir dessa compreensão, o mandamento dos pais adquire grande importância para a nossa época, em que as pes­soas vivem mais tempo do que antigamente.

VI Não matarás. (Êx 20.13)

Com a proibição de matar inicia a série de mandamentos sem complemento verbal. Dessa forma, os mandamentos rece­bem uma formulação extremamente apodíctica e fundamental. A pergunta se a forma sem complemento verbal, em que se en­contram atualmente os três mandamentos breves do Decálogo, é a sua forma original, ou se ela é o resultado de uma evolução, é respondida de diversas maneiras. A maioria dos exegetas vê na forma breve atual a condensação de uma proibição original­mente mais longa com o intuito de alcançar validade geral. É possível exemplificar isso colocando Ex 21.12 ao lado da proibi­ção de matar do Decálogo: “Quem ferir a outro, de modo que este morra, também será morto”. Note-se ainda que o texto hebraico fala, nesse caso, de “um homem”. A tradução “quem” em vez de “um homem” em quase todas as versões atualmente conhecidas da Bíblia já representa uma generalização, que foi ainda mais ampliada no Decálogo: “Não matarás”.

O sexto mandamento, embora pareça tão fácil, não é tão fácil assim. Não se pode deixar de notar que ele aparece num contexto em que existia a pena de morte - mesmo que não se saiba muito sobre a sua aplicação - e num âmbito em que se faziam guerras, em parte por ordem divina expressa, e no qual matar animais não era considerado nenhum problema. Disso se deduz que o mandamento “Não matarás” não visa todas as pos­síveis formas de matar. Nem um pacifismo geral, nem a execração da pena de morte, tampouco uma dieta vegetariana radical po­dem amparar-se diretamente no sexto mandamento. Com isso ainda não se emite um juízo sobre a adequação e as bases bíbli­cas desse tipo de exigência. Tampouco o suicídio é alvo da proi­

bição de matar. Nos cinco relatos de suicídio existentes no AT (Abimeleque, em jz 9.54; Sansão, em Jz 16.23-30; Saul, em ISm 31.4; Aitofel, em 2Sm 17.23, e Zinri, em lRs 16.18; cf. também 2Mac 14-37-46, o suicídio de Razias) fala-se do acontecido sem um juízo de valor. A descrição detalhada do suicídio de Razias deixa entrever até mesmo uma certa admiração por esse tipo de atitude. São, sem exceção, situações extremas que levaram a esse ato. Entretanto, é fundamento bíblico básico que o ser hu­mano não pode nem deve dispor livremente da vida que Deus lhe deu de presente.

Para entender o mandamento é importante atentar para o termo hebraico utilizado. Trata-se de um termo que, dentro do campo semântico “matar” ou “assassinar”, raramente se usa; ele parece ter sido escolhido propositadamente para o Decálogo. Assim, é importante constatar que esse verbo não é utilizado para os casos mencionados acima e que não estão na mira da proibição de matar. “Matar” significa, no contexto do Decálogo, o mesmo que “matar uma pessoa sem motivo”. Certamente há que se considerar que o assassinato já começa quando se priva uma pessoa das possibilidades de viver. A proteção da vida é uma idéia fundamental na ética veterotestamentária.

VII Não adulterarás. (Êx 20.14)

A proibição do adultério não se restringe, na formulação genérica do mandamento no Decálogo, a uma determinada com­preensão de matrimônio, podendo, por isso adquirir validade permanente para além de seu contexto histórico. No AT o man­damento tem um significado diferente do que lhe é atribuído na sociedade moderna. Em todo o contexto do Antigo Oriente,

e aqui se inclui o AT, o adultério é definido de modo diferente do que acontece hoje. Isso se percebe principalmente no fato de o delito configurar-se de forma bem diferente para o homem e a mulher. O adultério do homem acontece quando ele mantém relações sexuais com a esposa ou a noiva de outro homem; o adultério da mulher, por outro lado, acontece quando a mulher, enquanto noiva ou esposa, tiver relações sexuais com outro ho­mem. Isso quer dizer que o homem comete adultério quando viola um matrimônio alheio, e a mulher quando viola o próprio matrimônio. Em Lv 20.10, ambos os casos vêm expressos em for­mulação jurídica: “Se um homem adulterar com a mulher do seu próximo, ambos serão mortos, o adúltero e a adúltera”.

Coloca-se a pergunta como se chegou a essa desigualdade entre homem e mulher, como se pode explicá-la. Muitas vezes se afirma que a noção hebraica de matrimônio foi concebida pelos homens, que o entendem como um direito de posse do homem em relação à mulher. Quando a mulher viola o seu matrimônio, ela fere o direito de posse do seu homem; e o homem fere o direito de outro quando viola o matrimônio alheio. Se esta compreensão estiver correta, teríamos diante de nós um claro exemplo de des­valorização da mulher na Antigüidade. Mas essa interpretação não é correta; ela no máximo ilumina um aspecto da questão. Muito mais importante e fundamental é outra coisa. O matrimô­nio veterotestamentário, diferentemente do matrimônio moder­no, não é tanto uma união entre dois indivíduos, mas um fenô­meno essencialmente vinculado ao clã e, no final das contas, à comunidade maior do povo. Sentido e objetivo do matrimônio é garantir a descendência legítima para a família e o clã.

A preocupação com a legitimidade da prole é, portanto, a causa de o delito do adultério ser definido de forma diferente

para o homem e a mulher. Tanto o comportamento adúltero do homem como o comportamento da mulher, assim como descritos acima, mesmo que diferentes, constituem uma ameaça à suces­são legítima da família. O matrimônio moderno tem outros mo­tivos. A descendência legítima não é, de forma alguma, o obje­tivo decisivo, e muito menos único, do matrimônio. Atualmente já não se pode diferenciar entre homem e mulher quando se trata da proibição do adultério. Ela vale de igual maneira para ambos os parceiros.

VIII Não furtar ás. (Êx 20.15)

Nesse último dos três mandamentos breves, tende-se ainda mais para a generalização e ampliação de sentido do que nos anteriores. Várias observações indicam que o mandamento se referia originalmente ao roubo, ou seqüestro, de uma pessoa, mais exatamente de um homem livre. Já no judaísmo primitivo o mandamento foi entendido assim, como se pode depreender do Talmud. O caso jurídico do seqüestro também está na mira de um preceito do Código da Aliança, onde se lê: “O que raptar [literalmente: ‘furtar’; usa-se o mesmo termo que no manda­mento do Decálogo] alguém [literalmente: ‘um homem’] e o vender, ou for achado na sua mão, será morto” (Ex 21.16). O mesmo delito é tratado em Dt 24.7. No AT, a história de José oferece o exemplo mais conhecido para este crime (Gn 37.25- 36; 40.15). Em sua compreensão original, o mandamento prote­ge a liberdade, tal como o sexto mandamento protege a vida. Através da atual formulação, sem complemento verbal, o man­damento se volta contra o furto em geral, embora obviamente não anule a intenção primária. Apesar disso, é importante con­

siderar o significado original do mandamento, não por último porque, de outra forma, poderia acontecer uma certa duplica­ção com a afirmação do último mandamento.

IX Não dírás falso testemunho contra o teu próximo. (Bx

20.16)

O nono mandamento não proíbe genericamente toda mentira ou calúnia, tal como dá a entender a interpretação de Martim Lutero no Catecismo Menor (“de maneira que não min­tamos com falsidade ao nosso próximo, não o traiamos, calunie­mos ou difamemos”1) . Este mandamento, que pode ser reprodu­zido literalmente como “Não deporás contra o teu próximo como testemunha mentirosa”, volta-se contra o falso testemunho dian­te do tribunal. Portanto, ele tem em vista o âmbito no qual uma palavra mentirosa provoca o maior dano, em função do qual o próximo pode perder sua propriedade e até mesmo sua vida, por causa de um falso testemunho. Também este mandamento não se refere a algum assunto secundário qualquer; pelo contrário, trata-se da existência de um ser humano.

Até que ponto o falso testemunho pode prejudicar a víti­ma se mostra claramente na história de Nabote, em lRs 21. O direito veterotestamentário procura evitar o falso testemunho exigindo, em todo caso para delitos gravíssimos, pelo menos duas testemunhas: “Por depoimento de duas ou três testemunhas, será morto o que houver de morrer; por depoimento de uma só

1 Esta e outras citações do Catecismo Menor de Lutero em língua portuguesa foram extraídas de: SC H Ü LER, Arnaldo (org.). Livro de Concórdia: A s confissões da

Igreja Evangélica Luterana. 3. ed. 1983. p. 361-185.

testemunha, não morrerá” (Dt 17.6, cf. também Dt 19.15 e Nm 35.30). Pode-se depreender da história de Nabote que também esta determinação não dava garantias contra um abuso. O di­reito veterotestamentário também dificultava o falso testemu­nho ao exigir da testemunha que fosse a primeira a participar da execução da pessoa condenada por seu depoimento, ou seja, que ela atirasse a primeira pedra no apedrejamento, a pena de morte costumeira: “A mão das testemunhas será a primeira con­tra ele, para matá-lo; e, depois, a mão de todo o povo” (Dt 17.7). A adoção da proibição do falso testemunho no cânone do Decálogo mostra a grande importância que se atribuía ao pro­cesso jurídico justo. Isso não vale apenas para a época vetero­testamentária.

X Não cobíçarás a casa do teu próximo. Não cobíçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo. (Êx 20.17)

A compreensão do décimo mandamento depende decisi­vamente do significado da palavra - utilizada duas vezes - que as Bíblias geralmente traduzem por “cobiçar”. Coloca-se a per­gunta se com esse mandamento, ao contrário de todos os outros mandamentos do Decálogo, se quer fazer referência apenas a um pensamento condenável. Tem-se afirmado que o Decálogo adquire uma estrutura convincente a partir dessa compreensão, já que se coloca bem no fim a cobiça por ser a origem de todas as más ações citadas anteriormente. Mas essa interpretação de cunho ideal-intelectual da proibição da cobiça não pode ser

Não cobiçarás a casa do teu próximo ... nem coisa alguma que pertença ao teu próximo.

defendida. A “cobiça” proibida pelo décimo mandamento não é um simples delito cometido em pensamentos, que se restringe, por assim dizer, ao plano das idéias, mas tampouco se trata de um delito exclusivamente prático, p. ex. o processo de “apro­priação indébita”. O caráter singular do termo hebraico reside no fato de ele abarcar a emoção e a ação. Trata-se de um desejo que já carrega dentro de si o ato da apropriação, que está total­mente orientado para ele. Esse mandamento já foi interpretado assim por Martim Lutero em seu Catecismo Menor. Ele escreve acerca da primeira oração do mandamento (segundo sua conta­gem, o nono mandamento): “ [...] de maneira que não procure­mos adquirir, com astúcia, a herança ou casa do próximo, nem nos apoderemos dela sob aparência de direito E o décimo mandamento ele explica com as palavras: “ [...] de maneira que não desviemos astutamente, arrebatemos ou alienemos a mu­lher do próximo, os seus empregados ou o seu gado [...]”.

Como objetos da “cobiça” enumera-se uma série de bens do homem, sendo que logo no início se destaca a casa. Também se tem em vista a propriedade na qual a casa se localiza. Na enumeração que se segue faltam os filhos, um fato que chama a atenção e é difícil de explicar. Já foi observado e avaliado acima (p. 83) que há uma seqüência diferente de objetos na versão do Decálogo que está no Deuteronômio.

3. “Olho por oihüj dente por dente - a tet de talião veterotestamentária

O princípio denominado de ius talionis no direito romano, que prevê uma retribuição ou compensação exatamente igual ao dano, define, segundo a opinião corrente, a essência do di­reito veterotestamentário. Mais do que isso, o fundamento jurí­dico expresso no tão citado “olho por olho, dente por dente” é tido por muitos como o princípio decisivo não somente do direi­to veterotestamentário, como também da religião veterotesta­mentária, de maneira que esta é entendida como uma religião de retribuição. Isso absolutamente não está correto.

Primeiramente, é preciso constatar que o princípio do talião não é, de maneira alguma, especificamente veterotesta­mentário. Veja-se o Código de Hamurábi! Aparece aí, pela primeira vez no contexto do direito babilônico, o princípio do talião, e isso em tal variedade e intensidade que é possível afirmar que o princípio do talião era, nesse âmbito, um princí­pio normativo importante, que abrangia não só o campo da agressão física. Serão citados três dentre os muitos preceitos jurídicos desse tipo:

(§ 196) St um cidadão destruir o olho de (outro) cidadão, um de seus olhos será destruído. (§ 197) Se ele quebrar um dos ossos de um cidadão, ser-lhe-á quebrado um dos seus

ossos. (§ 200) Se um cidadão quebrar o dente de outro cida­dão de igual nível, ser-lke-á quebrado um de seus dentes.

Mas o princípio do talião também pode ser encontrado no direito romano das Doze Tábuas. Ali pode-se Ier o seguinte: “Se ele lhe quebrou um membro e não entrou em acordo com ele [acerca de uma multa], deve-se aplicar o talião”. Portanto, ainda que o princípio de talião não seja especificamente veterotesta­mentário, ele poderia possuir, mesmo assim, a qualidade de um princípio básico para o direito veterotestamentário. Mas isso tampouco está correto. A chamada fórmula do talião aparece apenas três vezes dentro da extensa literatura jurídica veterotes- tamentária: Êx 21.23-25; Lv 24-18-20; Dt 19.21. Mas também além da fórmula em si o princípio do talião não é determinante para o direito veterotestamentário em todos os seus aspectos.

Voltemo-nos agora para a fórmula em si, começando com Ex 21.23-25. Ela se encontra aí num contexto literário que ini­cia com o v. 22, em estilo claramente casuístico, mas que, a partir do v. 23, passa para um estilo totalmente diferente, que é o da formulação de talião:

(22) Se homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e fo­rem causa de que aborte, porém sem maior dano, aquele que feriu será obrigado a indenizar segundo o que lhe exi­gir o marido da mulher; e pagará como os juizes lhe deter-

minarem.(23) Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida,

(24) olho por olho,

ciente por ciente, mão por mão, pé por pé,(25) queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe.

Não é necessário falar muito sobre a quebra de estilo no v. 23b. A quebra formal de estilo com certeza também denota uma mudança de assunto. De fato: nesse caso se introduz algo diferente na formulação casuística. O primeiro elemento da lei do talião pode ter sido o motivo para que a série toda fosse inserida nesse momento no direito casuístico. Se o “dano” do qual fala o v. 23a se referir à morte da mulher grávida em fun­ção do acontecimento narrado, então o primeiro elemento da série do talião, “vida por vida”, faz sentido. Porém, para os ele­mentos seguintes, como já foi dito, isso não faz sentido. O reco­nhecimento de que a fórmula em seu todo não combina nem formal nem objetivamente com o contexto exige que se pergun­te em separado por sua origem e seu significado.

Mas primeiro analisaremos bem brevemente as duas ou­tras passagens veterotestamentárias que citam a fórmula do talião, começando por Lv 24.18-20. É necessário ver estes versículos em seu contexto (cf. os vv. 17-20):

(17) Quem matar alguém, será morto. (18) Mas quem matar um animal o restítuírá: vida por vida. (19) Se alguém causar lesão em seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: (20)

fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; de acor­do com a lesão que tiver feito a alguém, assim se lhe fará.

No v. 17 fixa-se a pena de morte pelo assassinato de uma pessoa. Talvez chame a atenção que, nessa passagem, não se encontra a correspondente fórmula do talião “vida por vida”. Ela aparece só no próximo versículo, onde se trata da morte de um animal que pertence a outrem. O fato de se aplicar nesse caso o princípio do talião significa que o castigo é relativamente brando. Pois, numa outra passagem do direito veterotestamen­tário, um delito semelhante é punido com um castigo bem mais severo (cf. Êx 21.37 = Almeida Êx 22.1):

Se alguém furtar boi ou ovelha e o abater ou vender, por um boi pagará cinco bois, e quatro ovelhas por uma ovelha.

Em comparação com esta determinação legal, a aplica­ção do princípio do talião significa um claro abrandamento da pena. Apenas depois desta disposição legal é que segue o caso da lesão física. O princípio do talião exige para a lesão física (consciente e pretendida) de outrem a penalização do agressor em igual medida.

Finalmente, cite-se ainda Dt 19.21. Trata-se do erro ju­diciário provocado por falso testemunho. A falsa testemunha deverá ser tratada de acordo com os efeitos esperados de seu depoimento: “far-lhe-eis como pretendeu fazer a seu irmão” (Dt 19.19), o que culmina, finalmente, no v. 21 com a citação da fórmula do talião, que foi adotada claramente de Ex 21.23s.:

Não o olhar ás com piedade: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé.

No que se refere à seqüência das partes do corpo humano citadas após a afirmação geral, formulada à guisa de título como “vida por vida”, não se trata de valorizar algumas partes do cor­po mais do que outras; trata-se, isto sim, de uma seqüência de acordo com a anatomia humana: a enumeração segue de cima para baixo ao longo do corpo humano, começando pelo olho e terminando pelo pé.

Voltemos agora à pergunta anterior pela origem e pelo significado original da fórmula do talião veterotestamentária! Nas passagens mencionadas, a fórmula é citada em contextos que tratam de lesão corporal. Só Lv 24.18 representa uma exce­ção. Aqui, o primeiro elemento da série está separado da série em si e foi inserido em outro contexto. Tudo depõe a favor de que a fórmula do talião se originou no contexto jurídico das lesões corporais.

Mas como se pode descrever o fundamento jurídico que se expressa na lei do talião? Esse direito pretende - e essa é uma das intenções decisivas do direito em si - preservar o equilíbrio das relações entre grupos humanos. Com bons motivos pode-se partir do pressuposto de que a fórmula do talião, tal como a vingança de sangue, tem sua origem na época nômade. Nesse contexto, em que as leis não existiam tanto em função do indi­

víduo, mas muito mais em função do grupo, o princípio jurídico do talião tem um papel importante. Se algum membro do grupo foi prejudicado, a força de todo o grupo foi fragilizada. Só se pode encontrar um equilíbrio prejudicando o outro grupo na mesma medida. A intenção da lei de talião, no entanto, não é a de causar um dano qualquer — assim soa aos nossos ouvidos —, mas ela pretende limitar o tamanho do dano. Pretende-se man­ter sob controle o mecanismo de vingança deflagrado pela lesão de uma pessoa de modo que os grupos atingidos possam sobrevi­ver. Para ilustrar o que pode significar uma vingança desenfrea­da citamos o chamado cântico de Lameque (Gn 4.23-24):

(23) E disse Lameque ás suas esposas: Ada e Zílà, ouvi-me; vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem por uma ferida; e um rapaz por uma con­tusão. (24) Caím será vingado sete vezes; Lameque, porém, setenta vezes sete.

Uma escalada da vingança, tal como ela é descrita tão vividamente no cântico de Lameque, quer ser evitada pela apli­cação da lei do talião. Por isso, pode-se reproduzir a fórmula do talião parafraseando-a da seguinte maneira: só uma vida por uma vida, só um olho por um olho, só um dente por um dente etc.

A fórmula do talião continuou sendo transmitida mesmo depois de a tradição nômade ter desaparecido. Mas ela dizia respeito apenas ao caso jurídico da lesão corporal, e não evoluiu de form a alguma para tornar-se o princípio de todo o ordenamento jurídico veterotestamentário. A lei do talião tor­nou-se um princípio - note-se bem: somente nos casos de lesão

corporal - pelo qual o juiz deveria orientar sua decisão, sendo que sua aplicação de fato permanece sendo uma questão aber­ta. Já que o talião foi tantas vezes mal interpretado, diga-se ainda o seguinte: o princípio do talião não se destina a regular a convivência entre pessoas, e por isso ele não corresponde ao nosso “tal como me fizeste, tal te farei”; ele vale para a prática da justiça na comunidade jurídica.

A lei do talião foi superada no direito moderno. Isso, no entanto, não inclui o direito islâmico, no qual o princípio do talião continua sendo um importante princípio jurídico, que também é aplicado na prática. Fora isso, porém, o princípio do talião foi substituído por outros princípios penais, como o da expiação, da reparação ou da reabilitação.

ANEXO

Sobre as ilustrações

Página 9: o primeiro mandamento levanta a questão sobre que outros deuses as pessoas têm hoje em dia. Na minha opi­nião, estes “deuses” aparecem principalmente como salvadores poderosos, exemplos de vida. Muitas vezes, esses atributos são transferidos para uma pessoa que é idealizada como líder e em torno da qual se constrói um culto semi-religioso. Em função disso, essas pessoas são consideradas infalíveis, oniscientes e intocáveis. Nesses casos, não tem importância alguma se se tra­ta de personagens da política, de astros da mídia ou até mesmo de pesquisadores ou cientistas.

Página 2 1: será que é possível fazer aquilo que o segundo mandamento proíbe, ou seja, formar uma imagem de Deus, ou será que qualquer tentativa não está de antemão condenada ao fracasso, uma vez que nenhuma imagem de Deus corresponderia à verdade? O escultor da ilustração faz várias tentativas de pro­duzir uma escultura (divina), mas no final das contas ele sem­pre cria apenas novos retratos de si mesmo. A impossibilidade de adquirir certeza e percepção para além de um determinado limite se evidencia pelo muro em forma de anel que o rodeia. Aquilo que ele está querendo reproduzir sempre estará oculto para ele, do outro lado desse limite.

Página 36: o terceiro mandamento volta-se contra toda e qualquer instrumentalização de Deus. Na história acontece amiúde que pessoas afirmam agir “em nome de Deus”, mas, no final das contas, só cometem crimes ou, pelo menos, provocam muito sofrimento e desgraça. Pensemos na execução dos here- ges ou nas perseguições aos judeus, em função das quais as pes­soas que defendiam uma fé diferente daquela da maioria foram assassinadas brutalmente, ou nas chamadas guerras “santas”, tal como estão representadas na ilustração. E verdade que o soldado ergue sua arma como uma cruz sobre sua cabeça, mas a verdadeira finalidade da arma é clara: ferir outras pessoas na batalha, quando não matá-las. Por trás dos atos aparentemente motivados pela religião encontram-se, no fundo, apenas ambi­ção, sede de vingança e inveja, encobertas por um manto de piedade.

Página 48: os vários relógios diferentes na parte superior da ilustração representam a pressão diária e o estresse dela resultan­te, sob o qual as pessoas sofrem atualmente. Alguns desses relógi­os dividem o tempo até em segundos, de maneira que não se desperdice um minuto sequer de tempo. Em contraste com isso aparece a ampulheta na parte inferior da ilustração, simbolizando o sábado que é protegido pelo quarto mandamento; já em função de seu mecanismo ela não indica um tempo exato. Se os outros relógios indicam o ritmo de forma audível e implacável e cons­tantemente apressam o ser humano, o ruído suave e constante da areia escorrendo tem, antes, um efeito calmante. Em contraposição ao acúmulo de relógios acima, há muito espaço livre em torno da ampulheta, o que pretende evidenciar o descanso do sétimo dia, o qual as pessoas também deveriam se conceder.

Página 58: a ilustração mostra a mão de uma pessoa idosa, com uma sonda no antebraço, e a mão de outra pessoa, bem mais jovem, a segura, transmitindo calma ou consolo. Essa cena pode acontecer no hospital ou no posto de saúde. Interpretei o quinto mandamento no sentido de que a geração mais nova apóia os seus pais idosos com compreensão, auxílio e amizade, tal qual os pais o fizeram em tempos idos com os seus filhos. Também as reflexões de Hans Jochen Boecker se refletem na ilustração; ele diz que este mandamento tem a função de proteger e lembra que até um sepultamento digno está no âmbito deste manda­mento.

Página 70: a ilustração mostra o visor de alvo de um míssil comandado por raio laser, tal como era mostrado constantemen­te na televisão durante a Guerra do Golfo ou na guerra contra a Iugoslávia. As filmagens, que cessam no momento exato em que o foguete atinge o seu alvo, ou seja, o momento da destruição, tinham a intenção de transmitir a imagem de uma guerra limpa, “cirúrgica”. Embaixo se vê um joystick, utilizado tanto para con­trolar videogames quanto modernos aviões de combate. As víti­mas permanecem “virtuais” para o telespectador, tanto quanto os personagens assassinados aos milhares no videogame. Matar se torna - contra o sexto mandamento - inofensivo, como se fosse uma brincadeira.

Página 76: o que está representado se revela diretamente a partir da temática do sétimo mandamento. O porta-retratos em primeiro plano foi derrubado, seja de propósito ou por descuido, as peças de roupa no fundo insinuam a cena invisível. Impor­tante é o que não se vê, ou seja, a pessoa da foto que foi derru­bada e que nesse contexto só pode representar o companheiro de uma das pessoas envolvidas. Derrubando-se a foto, essa pes­

soa é eliminada (pelo menos temporariamente), como se não mais existisse.

Página 88: à primeira vista, essa ilustração parece não com­binar com o oitavo mandamento. Mas eu parti da interpretação de Hans Jochen Boecker, segundo a qual este mandamento se refere ao seqüestro de pessoas. Trabalhadores forçados são roubados em vários aspectos. Em primeiro lugar como pessoas - eles são leva­dos contra sua vontade para um país estranho. Igualmente, du­rante o tempo de vida em que poderiam, em outras circunstânci­as, criar uma família ou formar-se em alguma profissão, eles são privados freqüentemente de sua saúde ou mesmo de sua vida e, não por último, do salário de seu trabalho.

Página 98: na verdade, o nono mandamento trata, segundo as explicações de Hans Jochen Boecker, do falso testemunho diante do tribunal, mas eu o interpretei de forma geral como proibição da calúnia, da informação propositalmente falsa acer­ca de uma pessoa com o objetivo de prejudicá-la. Esboçam-se duas pessoas, uma das quais sussurra algo no ouvido da outra. Ê importante notar que ela se aproxima da outra por trás e, assim, não pode ser reconhecida, motivo pelo qual não se podem ver seus olhos. Mas suas palavras não perdem seu efeito por causa disso - a outra está totalmente atenta. A primeira pessoa está obviamente espalhando algo ruim acerca de uma terceira pes­soa que não está presente. Dessa maneira, a pessoa que está ouvindo é influenciada - consciente ou inconscientemente - em sua opinião sobre a terceira. Em função desse acontecimen­to quase que corriqueiro, pode-se prejudicar seriamente o ca­luniado (também no aspecto não-material). O lado pérfido da coisa é que o caluniado tem de provar sua inocência, enquanto que a calúnia é aceita de bom grado.

Página 109: nesta ilustração vêem-se muitas mãos que agar­ram. O que elas querem segurar não se vê; mas, nesse caso, isso não tem importância, porque eu queria mostrar principalmente o interior das pessoas: cobiça e avareza, insatisfação com o que se tem e vontade de possuir também os bens dos outros. Essas mãos se agridem como se fossem cobras, agarram umas as outras e tentam arrancar àquelas que já conseguiram algo o seu butim. O décimo mandamento se volta contra essa cobiça.

Joachím Krause

índice de passagens bíblicas

Gênesis2.2-3 984.23-24 11616.1-6 11-1319.1 1531.26-54 1334.12 13-1437.25-36 10638 10-11; 73-7438.2 5040.15 106

Êxodo3.14 9518.13 1719.1-20.21 2720.2 8420.2-17 81-11020.3,5-6 85-86; 90-9220.4 84; 92-9420.7 94-9620.10 8420.8-11 82; 96-10020.12 101-10220.13 103-10420.13-15 26; 8720.14 104-10620.15 106-107

20.16 107-10820.17 83;108-11020.22-23,33 2721.12 10321.16 46;10621.18-19 32-3421.23-25 112-11321.28-32,35-36 35-3921.33-34 4021.37 44-46;11422.2 4622.3 44-4622.4-5 47-4922.6-7,9-12 40-4322.6,8 4422.7,10 2422.13-14 43-4422.15-16 14; 49-5022.20 6722.20-23 50-5222.24 52-5522.25-26 55-5723.1-3,6-9 65-6823.4-5 57-5923.9 5123.12 45; 60-6323.19b 63-6524.1-11 27

24.7 2724.12 8731.14-15 9931.17 9831.18 8733.20 9434.1-4 8734.20 4534.21 62; 97ss34.26b 63-6534.28 84

Levítico5.1 1817-26 2819.2 2919.3 10119.12 9519.17-18 75-8019.33-34 79-8019.34 5120.10 10520.26 2922.24 6123 9724.14 3824.17-20 112-11425.35-38 53-55

Números15.35-36 38

35.19 1435.30 108

Deuteronômio4.135.65.6-21 5.85.12-155.145.155.165.2110.1-510.410.19 12-2614.4 14.21b 16.18-18.2217.617.7 17.14-2017.18 19.12 19.1519.2121.1922.1-422.6-7 23.20-21

848481-1108482; 87 84; 99 98 8383 8784 51 27 4563-65 69 108 108 28;68-72 2714 108 1141559-6061-6353-55

24.6,1043,17 55-5724.7 46;10624.16 1424.17 1625.1 1825.4 45; 60-6325.540 72-7525.7 15

Juizes9.54 10414 5016.23-30 104

Rute4 734.1-2 16-17

1 Samuel8-12 6918.25 1430.24-25 2031.4 104

2 Samuel5.6-10 2012.6 4517.23 104

1 Reis3.16 17

3.16-27 2216.18 10416.24 2218.21 9121 10721.9-13 6621.13 38

2 Reis7.1 1522.23 27

Jó24.3 5631.35 17

Salmos121.8 16127.5 15

Provérbios17.23 6720.8 1722.22 1524.24 1929.24 18

Isaías1.13 9629.21 15

Jeremias Lucas26.149 22-23 10.25-28

Daniel7 .940 17

10.34-35

Romanos

Oséias2.13 96

13.8-10

1 Coríntios13.4 91 9.9-10

Amós Gálatas3.12 43 5.145.10,12,15 158.5 96 Timóteo

Zacarias3.1 17

5.18

Tiago

IM acabeus2.31-38 101

2.8

2M acabeus14.37-46 104

M ateus22.34-40 77

M arcos2.27 10012.18-27 7312.28-31 77