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Seção: Artigos Título: Alemães sob chamas: imagens apagadas durante a Guerra Fria Autor: Dra. Sylvia Ewel Lenz, professora associada da Universidade Estadual de Londrina Endereço: Rua Benjamim Eduardo Hosken, 82020440 – Londrina, PR Cel: (43) 99136643 Email: [email protected] Figura 1- Hamburgo após os bombardeios incendiários sobre a cidade portuária em 1943 CBA (Commons: Bundesarchiv) Bild 183-10012-0002 (acesso pela Wikimedia) III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 2713

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Page 1: Hamburgo após os bombardeios incendiários sobre a cidade ... Ewel... · Saliento que a primeira formação estatal deu-se sob iniciativa da Prússia em 1871, e que a terceira deu-se,

Seção: Artigos

Título:

Alemães sob chamas: imagens apagadas durante a Guerra Fria

Autor:

Dra. Sylvia Ewel Lenz, professora associada da Universidade Estadual de Londrina

Endereço:

Rua Benjamim Eduardo Hosken, 82020440 – Londrina, PR

Cel: (43) 99136643

Email: [email protected]

Figura 1- Hamburgo após os bombardeios incendiários sobre a cidade portuária em 1943 CBA (Commons: Bundesarchiv) Bild 183-10012-0002 (acesso pela Wikimedia)

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Resumo

Aos vencedores cabe ter voz na história, aos vencidos resta acatar a versão oficial. Este é o

caso da nação alemã, desde as derrotas nas Guerras Mundiais e durante a divisão em dois

Estados até a “Queda do Muro” (1949-1990). Durante a Guerra Fria a República

Democrática da Alemanha fez parte dos países satélites do leste europeu, sujeitos ao

governo soviético de Moscou. A República Federal Alemã fora fundada pelos aliados

ocidentais como Estado tampão contra a expansão do bolchevismo. Mas finalmente há

pesquisas, na Alemanha e na América do Norte, sobre os bombardeios incendiários, a

ocupação brutal dos aliados no país com saques, estupro, roubos além da desapropriação e

expulsão de 14 milhões de alemães do leste. Atualmente, a digitalização das imagens

dos arquivos estatais qualquer pessoa pode acessá-las pela internet.

Palavras-chaves: Bombardeios – população civil - deslocados

Abstract

The winners have voice in History, the defeated have to agree to the official histories. This

was the case of the German nation since it lost was both World Wars (1919-1945) mainly

during the division in two states until the Fall of the Wall (1949-1990). During the Cold

War, the Democratic Republic of Germany belonged to East Europe, under the Soviet

government of Moscow whilst the German Federal Republic founded by the Western allies

got to the capitalistic block in a way to block the communist expansion. But finally there

are new researches in Germany and North America about the firing bombs, the brutal

allied occupation of the country with rapes, plunder, expropriation and expulsion of 14

million Germans from the east. Nowadays with digitalization of the state archive images,

anyone may access them on-line

Key-words: bombardment - civilians - banished

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Apresentação

Até o final da 2ª. Guerra Mundial, principalmente de 1943 a 1945, todas cidades

alemães de grande e médio e grande foram destruídas sob bombardeios realizados de

forma sistemática e coordenada pela Royal Air Force, apoiada pela USA Army. Apesar de

Hitler ordenar que as famílias citadinas enviassem as crianças para o campo, sob cuidados

de parentes ou da Juventude Hitlerista, cerca de 80 mil morreram dentre uma estimativa de

600 mil mortos durante os bombardeios, fora milhões de feridos e mutilados; Além de seis

milhões de desabrigados a rumar sem eira nem beira pelo país, à procura de comida nas

aldeias ou de ervas daninhas, raízes, cogumelos, frutos silvestres no campo. Não obstante,

estas imagens de morte e destruição da Alemanha só recentemente tem sido estudadas e l

recebido espaço na mídia, inclusive via YouTube. A impressa alemã, jornais e revistas

como Die Zeit ou Der Spiegel, tratam de outras histórias, até então silenciadas.

No cinema, a exibição de filmes como Katyn de Andrezei Wajda (2009) mostram

quem de fato assassinou 12 mil oficiais poloneses (os russos e não os alemães acusados

desde o fim da guerra pelo crime. No entanto este filme perdeu o Oscar de Melhor Filme

Estrangeiro para Os Falsários (Die Fälscher) de Stefan Ruzowitzky (2007) sobre a

falsificação de libras esterlinas produzidas por prisioneiros judeus para o governo nazista...

Os filmes Operação Valquíria (Valkyrie ) de Bryan Singer (2008) e Uma Mulher contra

Hitler (Die letzten Tage) de Marc Rothemund (2005) tratam da resistência contra o regime

tanto por militares como por estudantes. Também documentários sobre os bombardeios

dos aliados, os exilados do leste, refugiados, prisioneiros civis e de guerra.

Além disto, os arquivos ou pessoas digitalizam fotos e a Wikimidia disponibiliza as

de domínio público (a abreviação WC:BA significa Wikimidia Commons: Bundesarchiv) .

Filmagens curtas filmadas na época também tem sido digitalizadas para acesso na

internet via Youtube. Só para indicar, outra história da Alemanha tem sido escrita por

alemães como Jörg Friedrich –O Incêndio sobre os bombardeios incendiários Andreas

Kossert – Kalte Heimat difícil migração dos alemães do leste para sua nova “pátria”. Mas

também por ingleses como Tony Judt em Pós-guerra e Richard Bessel, Alemanha pós-45 e

Giles Macdonog em After the Reich – The brutal history of the allied occupation. Portais

de Centros de Memória e de Pesquisa abrem espaço para depoimentos pessoais de

refugiados, de filhos da guerra e seus traumas vividos em família.

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Figura 2: Da estação ferroviária ao Rio Elba, o centro foi totalmente destruído em fevereiro de 1945 quando a cidade recebia milhares de deslocados expulsos pelas tropas soviéticas. Fonte: Deutsche Fotothek, domínio público.

Apesar de ser historiadora e filha de alemães, mas diante da história unilateral

publicada sobre a Alemanha com destaque para os 12 anos de nazismo, há décadas sinto-

me culpada por crimes que não cometi, uma vez que desde o ambiente escolar escutei

“alemão nazista” e filmes sobre Holocausto, na TV e no cinema, marcaram minha vida

como criminosa que não sou. Mas a História pertence aos vencedores, por mais que se

inventem “novas” abordagens, modismos substituídos por outros assim que perdem o

glamour. Assim, a Alemanha Oriental seguia os ditames de Moscou e não ousava

reclamar o território confiscado por soviéticos, tchecos e poloneses, ou opor-se à a extinção

da Prússia. A Ocidental, formada a partir da antiga zona ocupada pelas forças americana,

britânica e francesa, voltou as costas para a nação irmã enquanto se aliava a Washington...

Guerra Fria, era da bipolaridade, da disputa entre superpotências em prol de ideologias

díspares: uma dita igualitária, de partido único, a outra, democrata liberal, pluripartidária.

Primeiro escrevi o texto para então buscar as imagens que correspondessem ao

assunto e foi então que, já exaurida mental, física e emocionalmente, adquiri um outro olhar

sobre a história alemã. Ela tem sido complexa desde a Guerra dos 30 Anos, quando um

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terço dos alemães foram dizimados pelos exércitos dos potentados como França, Suécia,

Áustria, Espanha. Como domino línguas, leio e pesquiso em alemão e inglês,

fundamental para tratar do período. Além do mais, a internet liberta pois democratiza o

acesso ao conhecimento, quebra fronteiras reais e mentais mediante pesquisas em arquivos

estrangeiros. O critério de seleção baseia-se no impacto que certas imagens causaram na

autora, apesar de certo domínio sobre a história alemã. Algumas são cruamente realistas,

outras singelas, domésticas, provocando emoções contidas. Pelo método hermenêutico o

texto é apreendido e sentido à medida que o leitor é capaz de percebê-lo em sua dimensão

existencial. As imagens pesquisadas neste foram fotografadas por amadores e profissionais,

feitas às pressas em meio à tensão dos bombardeios.

Portanto provoco uma reflexão sobre a historiografia unilateral não só sobre a história

da Alemanha como do Tempo Presente pois viso apresentar parte da história alemã

desconhecida mesmo entre os estudiosos de história contemporânea no Brasil e quiçá, até

entre os alemães em seu país. Somente 18 anos após a reunificação alemã, por exemplo o

governo federal alemão reconheceu a tragédia quatorze milhões de refugiados fomentando

a Fundação para Pesquisa de expatriados e expulsos do leste alemão. Eles vieram debaixo

de sol e neve da Prússia Oriental ( Kalingrado onde fica a Universidade Russa de Kant),

Ocidental, Pomerânia, Silésia (Polônia) e Sudetos (República Tcheca).

O alvo das bombas: civis alemães, estrangeiros e refugiados

Um Jovem Estado, fundado há 140 anos, foi protagonista de duas guerras mundiais e

refém da Guerra Fria. A nação, por sua vez, viveu sob seis regimes (monarquia, república

parlamentar, fascismo, democracia social na RFA, comunismo na RDA e agora, democracia

liberal). Afora o trabalho forçado prestado pelos prisioneiros de guerras alemães aos aliados,

o pagamento de reparações de guerra (os juros da 1ª. Guerra Mundial foram quitados em

3.10.2010), de indenizações aos sobreviventes do Holocausto e a Israel e da reconstrução da

Alemanha Oriental após a reunificação.

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Figura 3: O centro de Frankfurt no Meno, antiga cidade comercial devastada pelos constantes bombardeios. Mas como em Colônia, a antiga catedral manteve-se entre os escombros, ainda que bem danificada. (Domínio público - direitos autorais vencidos)

Em, 1942, a reconquista da Stalingrado pelo Exército Vermelho marca o início da

derrota nazista, uma batalha mais sangrenta, com centenas de milhares de mortos de ambos

os lados, cujo vencedor foi o clima gélido da região, próxima do Mar Cáspio. Neste ano os

aliados anglo-americanos intensificaram os bombardeios incendiários para aniquilar

cidades, indústrias bélicas, civis e mesmo trabalhadores estrangeiros, até 1949 quando foram

fundados dois Estados alemães... Assim, Berlim foi o centro enquanto a nação alemã palco

da Guerra Fria na Europa. Saliento que a primeira formação estatal deu-se sob iniciativa da

Prússia em 1871, e que a terceira deu-se, sob aval e após negociações com os aliados – EUA,

URSS, França e Reino Unido, em 1990.

Americanos, junto com britânicos, conquistaram arduamente as regiões ocupadas no

flanco ocidental, inclusive bombardeando milhares de prisioneiros franceses, belgas,

poloneses e judeus. Eficazes e sistemáticos, os bombardeios foram aperfeiçoados para

aniquilar as cidades alemãs de médio e grande porte, visando intimidar a população civil

contra Hitler. Primeiro, o lançamento de bombas incendiárias provocavam focos de incêndio

em vários lugares das cidades; a seguir, o fogaréu se alastrava. Dependendo das condições

climáticas, formava um rodamoinho que arrastava pessoas, retirava-lhes o oxigênio,

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asfixiando-as, queimava-as a 800 graus ou mais além destruir, em minutos, construções

centenárias:

O turbilhão produz outro ambiente, uma tripla ameaça à vida. A primeira decorre do calor, que nas proximidades dos prédios em chamas atinge a temperatura de oitocentos graus centígrados. A segunda é causada pela coluna de ar quente formada pelos ventos de 15 metros por segundo, em um raio de quatro quilômetros; a violência dessa corrente de ar não permite que se caminhe; o transeunte tenta equilibrar-se, é derrubado e, na pior hipótese sugado na direção do fogo. A terceira vem da falta de oxigênio.i

A seguir, bombas de destruição eram lançadas nas principais vias para impedir o

trânsito dos bombeiros, além de quebrar tubulações de água para impedir o uso dos

hidrantes, e finalmente, bombas de efeito retardado eram programadas para explodirem

horas depois para exaurir de vez a população sofrida e desnorteada. O objetivo era

destruir não só a produção bélica alemã como também as fábricas e os bairros industriais de

operários, matando inclusive prisioneiros estrangeiros. A Batalha do Ruhr visou quebrar o

front ocidental e, de fato, destruiu um quarto da maior região industrial alemã. Fotos aéreas

dos bombardeios eram enviadas para Churchill e aos círculos decisórios e todos estavam

cientes da destruição em massa: “... o que também se podia depreender do sarcasmo de

Churchill, ao comentar que os alemães não precisavam mais viver em suas cidades,

devendo ir para o campo e assistir, do alto das colinas, à queima de suas casas.”ii

Figura 4: Antiga mina no Vale do Ruhr servia como um precário abrigo antiaéreo. Ao soar das sirenes, as pessoas se abrigavam em porões, espaços antiaéreos ou bunkers, onde entravam caladas e saiam mudas para avaliar os estragos dos bombardeios. WC:BA Bild 183-R71060, 1943.

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O centro e o porto de Hamburgo foram os maiores alvos da Operação Gomorra para

matar trabalhadores portuários e destruir submarinos. Os bombardeios arrasaram boa parte

prédios dos bairros e do centro histórico, matando entre 35 50 mil pessoas, com 900 mil

sem teto, obrigadas a migrar para o campo. Além dos bombardeios de destruição Royal

Air Force lançara 96.430 bastões incendiários e 2.733 bombas líquidas sobre um quilômetro

quadrado, formando um tornado incendiário:

Os estreitos pátios internos se transformaram em calabouços ardentes, onde os prisioneiros, sem saída, esperavam pela morte. No zênite do turbilhão a simples irradiação de calor queimava as casas de uma só vez, de cima a baixo, reduzindo-as a uma língua de fogo. Como uma gigantesca bomba, as rajadas de vento sugavam todo o oxigênio dos porões das casas. Em seis horas de turbilhão, dois bilhões de toneladas de ar puro devem ter sido consumidas na chaminé de sete quilômetros de altura, ao redor da qual a velocidade horizontal do vendo chegou a 75 metros por segundo. Sob tais condições, as pessoas perdiam o equilíbrio. Árvores de raízes profundas foram arrancadas, ficando apoiadas sobre a copa. Álamos foram vistos vergados até a horizontal. As equipes de resgate que recolheram os restos dos mortos por asfixia ou carbonização tiveram de esperar dez dias para que os escombros esfriassem.iii

O sucesso pirotécnico levou os ingleses a criaram os termos hamburgization e to

hamburgize o novo método de bombardeio incendiário para arrasar as cidades alemãs e a

aniquilar a população civil. Afinal, o Primeiro Ministro da Grã-Bretanha, Mr. Churchill,

ordenara a guerra total sobre a Alemanha e o lançamento incessante de bombas incendiárias

no intuito causar “Complete fire on the German cities”. No desespero, as pessoas corriam

para os porões das moradias, bunkers ou abrigos antiaéreos viravam criptas nas quais os

civis morriam sufocados pelo gás carbônico, fervidos pela água que jorrava dos canos de

aquecimento estourados, ou incineradas pelo fogo ou pelo calor acima de 800 graus.

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Figura 5: 234 corpos encontrados em um abrigo antiaéreo 14 meses depois do ataque. Foto de Richard Peter, abril de 1936, Fonte: Fotothek Alemã,de domínio público.

No lado oriental, exércitos soviéticos, junto com os aliados ocidentais, combatiam o

nazismo na Grande Guerra Patriótica em defesa de seu povo, contra o capitalismo,

reconquistando Ucrânia, Bielorússia, países Bálticos até chegarem às fronteiras polonesas e

tchecas, aprisionando militares e massacrando civis alemães. Enquanto nos anos anteriores,

os nazistas haviam explorado e assassinado não só judeus como também eslavos, agora era

a vez de seus exércitos sofrerem gravíssimas perdas ou servirem em campos de trabalho

forçado. Milhares de oficiais e soldados que haviam sido enviados para batalhas suicidas,

foram mortos pelos exércitos inimigos ou faleceram por fome e exaustão com centenas

deles aprisionados e mutilados dos quais poucos retornaram. A nação agora vivia a

devastação dos povos do leste de modo que a:

Alemanha tornara-se o país da morte. Durante o último ano da 2ª. Guerra Mundial, morreram mais alemães do que em qualquer outro ano da guerra. Quando a Wehrmacht se rendeu em maio de 1945, metade da população perdera pelo menos uma pessoa da família. Os bombardeios e os combates no solo em 1945, a maior parte dentro da Alemanha, deixaram atrás de si uma paisagem atulhada de cadáveres. A “onipresença da morte” na Alemanha do fim da guerra causara impressão profunda e perturbadora. As cenas que as pessoas testemunharam iriam acompanhá-las pelo resto da vidaiv.

Militares britânicos e americanos avançavam na Alemanha, libertando os

prisioneiros civis, militares e judeus dos campos de confinamento. Durante os contínuos

bombardeios aéreos sobre as principais cidades alemãs, autoridades nazistas ordenaram a

remoção de crianças para regiões rurais, alojando-os em escolas, igrejas, ou hospedando-os

com estranhos. Depois, ordenava a migração para o campo pois Hitler não gostava das

cidades por ser um espaço aglutinador propício a rebeliões. Assim, ao separar os citadinos

pelo país, quebrava laços, enfraquecia a resistência civil e evitava as rebeliões .

Em agosto de 1944, parte da cúpula nazista considerava a guerra perdida, mas Hitler

insistia em atirar alemães e prussianos para a morte. Até o final da guerra, 158 cidades

sofreram intensos bombardeios, como Dresden em fevereiro de 1945, com dois milhões de

refugiados silesianos expulsos do leste. No final, a população civil, exaurida em se defender

dos constantes ataques aéreos, subnutrida e doente, tinha de sobreviver e enterrar seus

mortos, enquanto a cúpula nazista se entrincheirava no Bunker.

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Figura 6: Wesel arrasada em 1.1.1945. Foto HDSN9902995 DP (domínio público) da USAAF.

O Exército Vermelho ocupava o leste e rumava para Berlim, a cidade, conquistando

casa a casa até chegar ao antigo parlamento, onde um soldado fincou a bandeira russa no

alto de um prédio em ruínas, marcando a vitória da URSS sobre a Alemanha e o Leste

europeu. Os soviéticos, anos a fio em frentes de batalha, avançaram sobre a população civil

devastando, saqueando e como cães no cio, estupravam crianças, jovens, mulheres e idosas.

Antes que os aliados ocidentais chegassem, os soviéticos ocuparam Berlim destruindo o

que vissem pela frente, até fincar a bandeira sobre as ruínas do parlamento alemão. Desde

1943, o Reich de mil anos durara dez, e cada vez mais o destino da Alemanha estava selado:

Àquela altura, todavia, o conflito militar fechava o cerco em torno da mencionada população civil; primeiramente pela ação dos bombardeios e em seguida, pelo avanço simultâneo dos exércitos Aliados, a partir do leste e do oeste. E foi naquele último ano do conflito, durante o período relativamente breve da campanha realizada a oeste da União Soviética, que o pior da destruição física aconteceu.v

Os soviéticos venceram a guerra ao ocupar Berlim, a capital do Deutsches Reich e

cuja foto do soldado com bandeira da URSS no alto do Parlamento em ruínas, tornou-se

símbolo da nova potência mundial. Os soldados pilhavam os habitantes e o alto escalão

saqueava obras de artes e antiguidades. Após duas semanas da rendição incondicional em 8

de maio, os soviéticos retiraram com tratores os entulhos das ruas principais da cidade.

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Afinal, restaram poucas linhas de bondes e ônibus, trens também eram raros e vinham

lotados com os alemães expulsos do leste. Além da fome, das perdas materiais e de

familiares os alemães tropeçavam diariamente com cadáveres:

Os alemães se defrontaram com mortos também no leste. Não só os comandantes aliados fizeram civis desfilarem diante dos mortos nos campos de concentração libertados; às vezes deixavam cadáveres expostos em público para servir de alerta a qualquer um que se sentisse tentado a resistir à ocupação. No primeiro semestre de 1945, realizar as tarefas diárias significava encontrar mortos nas ruas – cadáveres de soldados e civis, de estranhos e conhecidos, de pessoas que não podiam ser reconhecidas. A morte se tornou, com nunca, parte da vida diáriavi.

Da derrota quando o Estado alemão foi extinto e passou a ser ocupado de vez pelos

americanos, britânicos, soviéticos e franceses, até a Conferência de Postam, em julho de

1945, os alemães não sabiam o que iria ser feito deles. A cúpula vencedora (embora mais

de vinte nações lutassem contra o Eixo) reuniu-se em Potsdam, perto de Berlim, com o

presidente americano Truman, o 1º. Ministro britânico Churchil e o ditador soviético,

Stálin. Como metade da França se aliara aos nazistas não foi convidada nem os delegados

poloneses consultados apesar de terem lutado ao lado dos britânicos. O trio decidiu

alterar as fronteiras da Polônia, expulsar milhões de alemães do leste ao novamente

reduzir as fronteiras alemãs, além de cindir o país e entregar a parte oriental e os países do

leste à URSS. Mais um crime aos vencedores ! Afinal, Stálin mandou matar de fome sete

milhões de camponeses na Ucrânia, Churchill mandou jogar 1,5 milhão de toneladas de

bombas sobre os civis alemães e Truman lançaria bombas atômicas sobre os japoneses.

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Figura 10: Chaminé de um porão sob escombros em Dresden, após o bombardeio em 1945. Fonte: Deutsche Fotothek, domínio público. Muitas famílias moraram durante anos em porões.

Em 1949, a divisão da Alemanha foi a declaração não falada do conflito

americano-soviético na Europa e fora dela, sob ameaça do terror nuclear. Dependendo da

ideologia e dos interesses econômicos, há várias explicações para o resultado desta

conferência: belicosidade soviética, imperialismo americano, disputa por mercados, vazio

de poder na Europa Central, ou propagação da democracia liberal. Mas a conferência

demonstra miopia e alienação dos chefes de governo com: “...três homens preocupados em

aumentar o poderio de seu país e o seu próprio poder, e que perceberam que poderiam

impor seu poder com maior certeza num mundo de discórdia do que de tranqüilidade.”vii

Figura 7: Mapa das zonas de ocupação dos aliados ocidentais e soviéticos lembrando que Berlim também foi dividida pelos quatro. A leste, as regiões listadas formavam a fronteira alemã pós-1919, já com perda territorial da Prússia Ocidental (o corredor polonês). Desde o inverno 1044/45 alemães fugiam do Exército Vermelho. Os vencedores delimitaram a nova fronteira alemã até os rios Oder-Neisse. Poloneses (setas azuis) foram realocados (a URSS apropriou-se da parte norte da Prússia Oriental e da região leste da Polônia) e alemães (setas vermelhas) foram desapropriados e expulsos para a Alemanha ocupada. Minorais alemãs dos demais países da Europa Central também emigraram ou foram presos em campos de trabalho forçado. Fonte: Spiegel, 1948.

Segundo especialistas, após inúmeros bombardeios e milhares de toneladas de

bombas lançadas durante dois anos sobre as cidades alemãs, levaria trinta anos para retirar

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os entulhos das cidades em ruínas. Homens mortos durante a guerra ou feito prisioneiros,

restou às mulheres, convocadas pelos vencedores, retirar milhões de metros cúbicos de

entulhos que cobriam as regiões centrais e industriais. Os tijolos maciços eram limpos e

reaproveitados assim como demais materiais: vigas de ferro, telhas e madeiras para

construção ou mesmo como lenha, uma vez que não havia mais abastecimento de carvão ou

gás ao final da guerra para nos lares alemães.

No final das contas, homens do alto escalão, seja de regimes nazistas ou dito

liberais passam, como os seus tanques, por cima das pessoas comuns, jogam toneladas de

bombas para então, deixar às mulheres, a limpeza dos entulhos... A situação da população

era tão ruim que soldados que voltavam para as suas cidades nas férias, preferiam retornar

ao front que viver sob a estridência dos alarmes e dos ataques aéreos sistemáticos.

Figura 8: Pés desnudos e calçados remendados usados pelas “Mulheres dos escombros na retirada dos entulhos das cidades bombardeadas, uma maneira de garantir o mínimo de comida. Fonte: Arquivo Federal Alemão / Wikimidia Commons, Foto de Kolbe em 1947. Afinal, em um país sem homens, mortos em campos de batalha ou feitos

prisioneiros, os aliados ordenaram que mulheres acima de 15 anos retirassem milhões de

metros cúbicos de escombros – tijolos, telhas, madeiras, vigas etc. Em troca, o cartão de

racionamento que mal dava para alimentar a família, as “Trümmerfrauen” lograram em

limpar as cidades prontas para a reconstrução. Durante anos, sob sol, chuva ou neve, elas

repararam tanto as conseqüências da insanidade dos dirigentes nazistas como a truculência

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dos aliados na conquista da Alemanha. Além de sós, responsáveis em alimentar suas

crianças e cuidar de idosos e doentes, elas ainda sofreram abusos dos novos donos, como

saques, estupros, escondiam, durante dias ou semanas, as filhas em porões ou celeiros.

O caos dos civis, entre escombros e refugiados

O deslocamento populacional para aldeias e fazendas, deixou as cidades

bombardeadas com a população reduzida em até 10%, pois não havia mais casas para

morar, nem escritórios, oficinas, fábricas, lojas ou consultórios para trabalhar. No final da

guerra, a falta de conexões viárias com pontes e estradas de ferro destruídas e poucos

ônibus e caminhões para transportar tantos deslocados, também impedia a circulação dos

citadinos. Sem correios, comunicações telefônicas e telegráficas, as famílias não tinham

como saber sobre os seus entes queridos receando até mesmo nunca mais encontrá-los.

Figura 9: Alemães dos Sudetos expulsos pelos tchecos desembarcam no lado ocidental.

Domíno Público, Wikimedia da Hungria.

Caos social, indústrias destruídas, cidades em ruínas, inflação: os alemães viviam

uma situação bem pior que após a 1ª. Guerra Mundial – com as batalhas nas fronteiras e

não dentro do país. Andarilhos perambulavam à beira das estradas, vasculhavam o lixo à

procura de alimentos e roupas; ou colhiam, à noite, sobras de frutas, legumes, tubérculos.

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Page 15: Hamburgo após os bombardeios incendiários sobre a cidade ... Ewel... · Saliento que a primeira formação estatal deu-se sob iniciativa da Prússia em 1871, e que a terceira deu-se,

Por fim, mesmo o campo foi alvo de ataque americano – dos aviões rasantes, os soldados

atiravam sobre lavradores e transeuntes...Assim, os alemães ansiavam pelo término da

guerra, que os libertaria dos contínuos bombardeios britânicos e americanos, pondo fim ao

recrutamento militar que os enviava a campos de batalha suicidas. Muitos previam que os

alemães jamais conseguiriam refazer suas vidas, que a economia e a ordem social demoraria

décadas para se recompor. Mas o pior ainda estava por vir, a redução do território em um

terço e a expulsão de milhões de alemães do leste, autorizados a só trazer seus pertences

pessoais, após terem sido desapropriados, pilhados, saqueados.

No leste, aldeias devastadas, cidades incendiadas e populações massacradas pelos

soviéticos e seus aliados, revelavam um quadro desolador. Na Alemanha ocupada pelos

aliados ocidentais, os centros das cidades de médio e grande porte eram inabitáveis. No

final da guerra, adultos civis e militares assassinados por tropas as inimigas estendiam-se

pelas estradas, ao lado de cadáveres de crianças e de idosos. Centenas de famílias de

alemães do leste, diante da dizimação, da perda total, preferiam a morte, o suicídio coletivo

– seus corpos apodreciam no interior das moradias. Aos que não conseguiram ou não

quiseram fugir, restava a sobreviver, reconstruir, remover e enterrar os entes queridos.

Assim, diariamente, os alemães esbarravam em centenas de cadáveres expostos,

queimados, mutilados, que precisavam ser enterrados em valas coletivas. Eles se sentiam

vítimas de um regime que lhes infringira normas absurdas com intervenções na vida

pessoal, perseguições, violências e uma guerra brutal, a ponto de condenar com pena capital

qualquer saque a moradias bombardeadas. Tão logo podiam, os civis denunciavam

membros do partido aos aliados como forma de se vingarem dos sofrimentos que passavam.

Também desconfiavam dos refugiados, daqueles que escaparam dos soviéticos e que

chegavam empobrecidos, traumatizados e deprimidos, com ranços e desconfiança.

Na falta de moradia para os milhares de sem teto estes tinham de partilhar espaços

exíguos com outras famílias. Ou morar nos bunkers e barracas dos campos de

confinamentos, celeiros, galpões, enfim, moradias provisórias com uma cozinha e poucos

banheiros, lotados e claustrofóbicos. Ou construir abrigos como barracões ou Nissenhütten,

com a frente e o fundo construídos em alvenaria e cobertura arredondada. De início

moravam ao menos duas famílias, havia uma saída de chaminé para o fogão à lenha com a

“casinha” do lado de fora; serviram como moradia até a década de 70.

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Figura 11: Barracões provisórios (Nissenhütten) como moradia permanente, e:m geral

construídos em cidades industriais, como este bairro de trabalhadores da Região do Ruhr. WC: BA 183 19000 0733, 1947.

Apesar de saqueados e despojados das indústrias, desmontadas e transferidas para a

URSS, os alemães da Zona Soviética dispunham de áreas rurais que não foram tão

destruídas, onde continuaram a cultivar a terra e de onde retiravam parte dos alimentos. Na

região ocupada pelos aliados ocidentais e mais populosa, alemães famintos, maltrapilhos,

desesperados vagavam à procura de comida. O Reichsmark desvalorizado, os saques e a

bandidagem fomentaram o escambo e o mercado negro enquanto a falta de água e sabonete

fomentava a sarna, a desnutrição o tifo, tuberculoso, sarna (por falta de sabão e pouca água

potável) e outras epidemias.

Bilhetes escritos à mão e afixados em locais públicos propunham diversas trocas;

móveis por batatas, cigarros por pão, berços por camas, roupas por sapatos. Café e cigarros

eram os bens mais valiosos. A pausa para tomar esta bebida quente amainava a luta diária

pela sobrevivência e as baforadas extravasavam as angústias de um povo sem futuro.

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Fotos e anúncios também pediam informações sobre familiares perdidos durante a guerra e

durante a fuga e expulsão de alemães da região ocupada pelos soviéticos.

Figura 12:

Família expulsa do leste vagueia pela cidade na Zona Ocidental com seus pertences enquanto o pai toca sanfona por alguns trocados. WC:BA Bild 183-W0911-501, 1948.

Em meio aos escombros só havia uma coisa a fazer: trabalhar, sobreviver e

reconstruir a partir do que restara. Como seu potencial industrial sofrera menos destruição

dos bombardeios, gradualmente, a produção foi sendo posta em andamento. Em menos de

um ano, estradas, pontes, ferrovias foram recuperadas em quase sua totalidade, de modo a

transportarem bens e pessoas, promovendo a economia de trocas. No entanto, o inverno

rigoroso de 1947, seguido de inundações na primavera e de seca no verão, piorou

drasticamente o abastecimento alimentar. Diante dessa miséria, George Marshall, Secretário

dos EUA propôs o financiamento para a Europa aprovado pelo Congresso Americano,

controlado pelos aliados para fomentar a cooperação econômica entre as suas nações.

Os refugiados do leste não paravam de chegar, aos milhares, dobrando o número da

população e, em geral se assentavam em aldeias e regiões rurais, na esperança de um dia

retornarem. Os aldeões vinham em comboio de carroças, sob comando de uma autoridade

local que zelava pela ordem e distribuição de comida de sua aldeia itinerante. Muitos,

enraizados há séculos naquelas terras, esperavam voltar um dia sem se darem conta da

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tragédia que se abatera sobre eles. A repentina perda da Heimat equivalia ao fim de vínculos

locais, relacionamentos, valores enfim, de referências sociais que dão respaldo na vida

diária:

Numa cultura em que a identidade geográfica, da Heimat, fora tão importante, isso foi um profundo choque. Na Alemanha, pessoas passaram a buscar desesperadamente um senso de permanência, raiz, lugar. “Sociedade” e “comunidade” sempre estiveram intimamente ligadas a um senso de permanência e de lugar; agora as descrições contemporâneas com freqüência se referiam ao “vazio”, à terra de ninguém, que era a Alemanha logo depois da guerra. Sociedades e comunidades estabelecidas pareciam ter sido obliteradas deixando pessoas desenraizadas cujos desejos, (...) soa um só e o mesmo: “voltar para casa – apesar de, para milhões, a “casa” ter desaparecido.viii

Aqueles, porém, que haviam recebido terras e propriedades, confiscadas de judeus e

de poloneses, eram menos apegados e foram os primeiros a fugir de trem, carro ou bicicleta.

Em geral, refugiados urbanos viajavam sozinhos ou com poucas pessoas, vulneráveis a

ataques de bandidos e soldados, perigos dos quais poucos saíam ilesos. Os milhares de

refugiados viviam somente com seus pertences pessoais, aumentando o contingente de

desalojados, muitos dormindo ao relento apesar das noites frias da primavera. Afinal, se mal

havia moradias suficientes para os alemães, o que fazer com seus irmãos expulsos pelos

vizinhos eslavos? Poucos tinham conhecidos ou parentes que os abrigassem, dividindo os

cômodos já abarrotados; a maioria ficava alojada em barracas de campanha até 1954,

quando foram construídos abrigos de tijolos:

O problema de alimentar, abrigar, vestir e cuidar dos sofridos civis europeus (e de milhões de prisioneiros de guerra das ex-potências do Eixo) foi agravado e aumentado pela escalada sem precedentes da crise dos refugiados. Esse era um componente inaudito na experiência européia. Todas as guerras afetam as vidas das populações civis: destruindo-lhe terras e lares, interferindo no sistema de comunicação, recrutando e matando maridos pais, filhos. Mas na Segunda Guerra Mundial, foi a política do Estado, e não o conflito armado, que causou os maiores danosix.

Os alemães derrotados, com milhares de desabrigados por conta dos bombardeios

aéreos massivos, ainda tiveram de lidar com mais de treze milhões de refugiados. Muitos

haviam se perdido dos parentes. Durante anos, essa gente morou em barracas de campanha

até conseguir um quarto e, mais tarde uma moradia. Outros, assim que puderam, emigraram

para o exterior iniciando sua hora zero pessoal, apagando um passado doloroso, cruel e

triste. No exterior, alguns até renegaram a cidadania alemã, optando pela naturalização, ou

no caso de matrimônio, as mulheres assumiram a identidade dos maridos.

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Tragédias herdadas

Figura 13: Avó, neto e órfã reunidos em uma manhã de domingo. CBA Bild 183-2005-0814-5-7, Berlim, zona soviética, 1948

Após quase um ano de pesquisa, elaboração do texto e da busca de imagens de uso

comum, desabei com esta imagem, tão singela e reveladora. Em 1948, na zona soviética

de Berlim, em um domingo de manhã, a família reunida em torno da mesa. A avó a cerzir

meias, o neto de 21 anos repara botas de parentes e a menina, uma órfã de refugiados que

foi adotada pela senhora, escreve as primeiras letras na ardósia. Onde estariam os filhos da

avó? Mortos, desaparecidos ou prisioneiros de guerra? E a mãe do rapaz, teria sucumbido

em meio às bombas, a fome ou aos estupros dos soviéticos?

A elite dirigente decide pela vida e o destino das pessoas comuns, mas o fato é que

os homens enviam os filhos para o front, enquanto as mulheres lutam pela sobrevivência em

prol das crianças e dos mais velhos. É claro que só a história do vencedor é contada,

enquanto aos vencidos resta reconstruir – como civis ou prisioneiros de guerra, passar por

dificuldades tremendas, em meio a fome, frio e doenças, ainda acometidos pela culpa de

pertencerem à nação que desencadeou o conflito. Aos descendentes de alemães no Brasil

a culpa, a vergonha, a negação da identidade ancestral, uma sensação de não pertencer a

lugar nenhum, a sequer ter o direito de ser feliz. Afinal, mesmo inconscientemente,

herdamos fobias, inseguranças pessoais, complexos de inferioridade, de culpa, enfim,

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traumas inexplicáveis em meio ao feliz povo brasileiro, cujo passado escravocrata e caça

aos índios não abalam a sua história. Afinal, é fácil tocar na ferida aberta do outro até para

mascarar a própria...

A história sobre a Alemanha aqui ainda se restringe às guerras, no máximo na

reunificação e a potência econômica que se tornou. Mas o estigma persiste junto com

estereótipos e desconsideração com a culpa incessante que a mídia continua a jogar sobre os

descendentes. Na Alemanha o portal www.forumkriegsenkel.com é um espaço para

discutir traumas das gerações pós-guerra com depoimentos de filhos cujos pais sofreram na

guerra e cujas famílias foram expulsas dos pelos soviéticos e poloneses. Mesmo nascida no

Brasil, mas como filha de exilado da guerra (meu avô era da Prússia Ocidental) enviei meu

depoimento que foi bem recebido, pois traumas não tem fronteiras nem local de nascimento.

Desta forma, também abri o portal www.geracoesposguerras.wordpress.com como fórum

para descendentes de alemães e de exilados pós-guerras mundiais relatarem sua sensação de

mal-estar, de não pertencimento. Afinal, neste país do povo cordial, do samba e carnaval,

parece não haver pecado ao sul do Equador. Após 400 anos de tráfico e escravização de

africanos sequer há museus da tortura escrava, memoriais para a escravidão, ou para os

indígenas e os posseiros expulsos de suas terras. Agora, tudo que se refere a alemão tem uma

conotação negativa pois associada a nazismo e portanto a criminosos como, por exemplo, o

“Complexo do Alemão”, importante área do tráfico de drogas no Rio de Janeiro.

                                                            i Jörg Friedrich, Incêndio, 1940‐1945, Rio de Janeiro, Record, 2006, p. 94. ii  Idem, ibidem, p. 94. iii Idem, ibidem, p. 109‐110. iv Richard Bessel, Alemanha, 1945, São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 366. v Idem, ibidem, p. 28 e 30.  vi  Idem, ibidem, p.367. vii Charles L. Mee Jr., O Encontro de Potsdam, São Paulo, Círculo do Livro, s/d, p. 9‐10. viii Idem, Ibidem, p. 241. ix Tony Judt, Pós‐1945, São Paulo, Ed. Objetiva, 2010, p. 36. 

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