há um limite entre a ciência e a pseudociência?

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Vol. 3, nº 1, 2010. www.marilia.unesp.br/filogenese 34 Há um limite entre a ciência e a pseudociência? Rafael Alberto Silvério d'Aversa 1 Resumo: O presente artigo tem dois objetivos principais. O primeiro é oferecer uma introdução aos aspectos centrais das filosofias da ciência de Karl Popper e Rudolf Carnap. O segundo é esclarecer a natureza do desacordo entre eles, tendo como foco suas tentativas de resolução de um dos problemas principais da filosofia da ciência: o problema da demarcação científica. Tal problema consiste em saber se é possível discernir a ciência de outras atividades que também sustentam a pretensão de fazer afirmações verdadeiras acerca do mundo. Para solucioná-lo é preciso apresentar um critério que permita delimitar e distinguir a ciência empírica da pseudociência. Será realmente possível fazer tal distinção? Tanto Popper como Carnap responderam afirmativamente a esta questão. Contudo, para compreender os critérios apresentados pelos filósofos mencionados temos de ter em mente que eles abordaram o problema de maneiras distintas. Após apresentar de forma sucinta as duas teorias, ressaltando as diferenças existentes entre suas respectivas formulações do problema, procuraremos mostrar que, embora ambas dêem a ele enfoques realmente distintos, a solução proposta por Carnap acarreta conseqüências indesejáveis, que serão criticadas por Popper. Palavras-chave: Filosofia da ciência. Falseabilidade. Problema da demarcação. Karl Popper. Rudolf Carnap. Abstract: This article has two main objectives. The first is to offer an introduction to the main features of Karl Popper's and Rudolf Carnap's philosophy of science. The second is to enlighten the nature of the disagreement between them, regarding their attempts to solve one of the most important problems of philosophy of science: the demarcation problem. This problem consists in knowing if it is possible to distinguish science from other activities that also claim to make true statements about the world. In order to solve it, some criterion allowing to delimitate empiric science's field from pseudoscience is demanded. It is really possible to make such distinction? Both Popper and Carnap answer affirmatively to the question. However, to understand the criteria presented by them, we have to bear in mind that their approach to the problem at stake is conceived in different ways. After presenting a brief version of the two theories, we will search to show that, notwithstanding that each one of them represents a distinct view, the solution proposed by Carnap implies undesirable consequences, that will be criticized by Popper. Keywords: Philosophy of Science. Falsifiability. Problem of demarcation, Karl Popper, Rudolf Carnap. * * * 1 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto. Orientador: Prof. Dr. Olímpio José Pimenta Neto. Email: [email protected]

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Há um limite entre a ciência e a pseudociência? Rafael Adversa. USP

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Page 1: Há um limite entre a ciência e a pseudociência?

Vol. 3, nº 1, 2010.

www.marilia.unesp.br/filogenese 34

Há um limite entre a ciência e a pseudociência?

Rafael Alberto Silvério d'Aversa1

Resumo: O presente artigo tem dois objetivos principais. O primeiro é oferecer uma introdução aos aspectos centrais das filosofias da ciência de Karl Popper e Rudolf Carnap. O segundo é esclarecer a natureza do desacordo entre eles, tendo como foco suas tentativas de resolução de um dos problemas principais da filosofia da ciência: o problema da demarcação científica. Tal problema consiste em saber se é possível discernir a ciência de outras atividades que também sustentam a pretensão de fazer afirmações verdadeiras acerca do mundo. Para solucioná-lo é preciso apresentar um critério que permita delimitar e distinguir a ciência empírica da pseudociência. Será realmente possível fazer tal distinção? Tanto Popper como Carnap responderam afirmativamente a esta questão. Contudo, para compreender os critérios apresentados pelos filósofos mencionados temos de ter em mente que eles abordaram o problema de maneiras distintas. Após apresentar de forma sucinta as duas teorias, ressaltando as diferenças existentes entre suas respectivas formulações do problema, procuraremos mostrar que, embora ambas dêem a ele enfoques realmente distintos, a solução proposta por Carnap acarreta conseqüências indesejáveis, que serão criticadas por Popper.

Palavras-chave: Filosofia da ciência. Falseabilidade. Problema da demarcação. Karl Popper. Rudolf Carnap.

Abstract: This article has two main objectives. The first is to offer an introduction to the main features of Karl Popper's and Rudolf Carnap's philosophy of science. The second is to enlighten the nature of the disagreement between them, regarding their attempts to solve one of the most important problems of philosophy of science: the demarcation problem. This problem consists in knowing if it is possible to distinguish science from other activities that also claim to make true statements about the world. In order to solve it, some criterion allowing to delimitate empiric science's field from pseudoscience is demanded. It is really possible to make such distinction? Both Popper and Carnap answer affirmatively to the question. However, to understand the criteria presented by them, we have to bear in mind that their approach to the problem at stake is conceived in different ways. After presenting a brief version of the two theories, we will search to show that, notwithstanding that each one of them represents a distinct view, the solution proposed by Carnap implies undesirable consequences, that will be criticized by Popper. Keywords: Philosophy of Science. Falsifiability. Problem of demarcation, Karl Popper, Rudolf Carnap.

* * *

1 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto. Orientador: Prof. Dr. Olímpio José Pimenta Neto. Email: [email protected]

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1. Introdução

Imagine que o João vive em uma grande metrópole e está planejando viajar

durante quinze dias, pois, finalmente, conseguirá férias de seu trabalho extenuante.

Enquanto pensa nas possibilidades de viagem, juntamente com sua esposa Maria,

muitos lugares lhes vêm à mente: praias, cachoeiras, casas de campo, etc. Ambos

concordam que qualquer um destes lugares lhes proverá o conforto e o descanso

necessários para retornar com os ânimos renovados à velha e fatigante rotina da cidade.

Depois de muito refletir, os dois acabam por decidir ir à praia. Como João é um sujeito

cauteloso, que gosta de planejar cuidadosamente tudo o que faz, decide consultar a

previsão do tempo para saber se haverá sol no período em que eles permanecerão no

litoral.

Ao fazer a consulta alegra-se em saber que a previsão para os próximos dias é

totalmente favorável às suas pretensões. Todavia, ao começar os preparativos para a

viagem surge um pequeno empecilho: enquanto João consultava o site de meteorologia,

uma amiga cartomante de Maria ligara dizendo que havia visto em suas cartas que um

mau tempo estava se aproximando da vida do casal. Após receber esta informação eles

começam a pensar na possibilidade de cancelar o passeio.

Seria injustificada a atitude de abandonar a viagem por conta da previsão da

cartomante? Talvez sim, se fosse o único motivo. Mas há outro indício de que eles não

devem viajar. Depois de falar com sua amiga ao telefone, Maria lembra-se de que, na

semana anterior, havia feito uma visita ao consultório de um astrólogo, o qual dissera

que a posição dos astros não lhe estava favorável este ano, recomendando-lhe que

tomasse cuidado com suas tomadas de decisões. Dados estes indícios eles decidem por

cancelar a viagem. Terá sido apropriada tal atitude? Embora se trate de uma questão

epistemológica importante não discutiremos neste trabalho se esta ação foi ou não

racional. Nossa preocupação primária aqui é discutir o problema de saber se existe um

limite entre a ciência e a pseudociência, e não discutir a racionalidade ou irracionalidade

de certas ações. Deste modo, somos levados a formular questões um pouco mais

profundas.

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Existe alguma diferença substancial entre a previsão do tempo que o João

consultou e as previsões feitas pela cartomante e pelo astrólogo? Há algum critério que

distinga a meteorologia da prática dos cartomantes? Podemos ir ainda mais longe

perguntando: haverá alguma diferença entre a astronomia e a astrologia, entre a química

e a alquimia, entre a matemática e a numerologia ou todas estas atividades diferem

apenas em grau, mas não em gênero? Perguntar isto é perguntar se é possível

estabelecer limites disciplinares entre os diversos tipos de práticas cujos proponentes

pretendem fazer asserções verdadeiras sobre o mundo. Por essa razão, todas estas

perguntas remetem ao problema da demarcação, cuja solução consiste em apresentar um

critério que nos permita distinguir a ciência da pseudociência.

Uma boa razão para crermos nesta possibilidade de distinção é que, pelo menos

no que concerne ao público culto, o termo “ciência” é empregado para referir-se a um

gênero de atividade que é intuitivamente diferente do que fazem os astrólogos,

numerólogos ou cartomantes. Entretanto, filósofos como Karl Popper e Rudolf Carnap

não se detiveram apenas em suas intuições e procuraram explicar cuidadosamente

porque é correto pensar que há tal diferença. De modo geral, tanto estes como outros

filósofos da ciência, como Ayer e Kuhn, sugeriram critérios de demarcação embasados

principalmente na idéia de que a ciência - ao contrário da não-ciência - possui caráter

empírico, refere-se a coisas observáveis, acumula resultados de modo progressivo e

utiliza um método específico. Todas estas suposições admitem razões favoráveis e

desfavoráveis, porém não lhes daremos um tratamento exaustivo neste trabalho. Apenas

nos referiremos a elas na medida em que se relacionam com as teorias de Popper e

Carnap. Procuramos ressaltar que, embora tratem do mesmo problema, os dois filósofos

divergem tanto no modo de sua formulação quanto na sua tentativa de solução.

2. O critério de Popper

Para compreendermos as tentativas de solução do problema da demarcação

precisamos primeiramente compreender os tipos diferentes de formulação que ele

recebeu. O filósofo Karl Popper formulou-o como um problema de caráter

metodológico. Sua solução consiste em indicar as características lógicas de um

determinado sistema de enunciados para que se possa aferir se ele é científico, ou seja,

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se ele é suscetível de conformar-se segundo um método que, por sua aplicação,

estabelece cientificidade.

O método proposto por Popper chama-se hipotético dedutivo. Para aplicar-se

este método procede-se da seguinte maneira: dada uma teoria ainda não justificada (uma

conjectura), aspira-se a que ela possa ter suas conclusões deduzidas e confrontadas com

a experiência empírica. Se o teste for mal sucedido, então não há razões para rejeitar a

teoria. Se for bem sucedido, então a teoria deve ser revisada, pois já temos uma razão

para considerá-la falsa, uma vez que todo teste realizado é uma tentativa de refutar a

teoria. Por essa razão, o critério de demarcação popperiano é chamado de

falsificacionismo, pois, segundo ele, um sistema de teorias é genuinamente cientifico se,

e somente se, for empiricamente falsificável através da experiência.

Será preciso falsear efetivamente um sistema de enunciados para que se possa

considerá-lo científico? A resposta de Popper é que não. Por essa razão, é importante

ressaltar a diferença entre um enunciado falsificável e um enunciado falso, pois o

critério de Popper exige o primeiro aspecto e não o segundo. Será razoável esta idéia?

Vejamos mais detalhadamente em que consiste a falseabilidade de um sistema de

enunciados.

Um sistema falsificável é de forma tal que é possível dele deduzir conseqüências

empiricamente testáveis que entram em conflito com enunciados básicos aceitos por

convenção - e não obtidos diretamente através da experiência, tal como defendiam os

positivistas. Portanto, para que um determinado sistema empírico possa ser classificado

como científico é preciso poder conceber que tipos de estados de coisas teriam de

ocorrer no mundo para que pelo menos um de seus enunciados fosse falsificado e,

conseqüentemente, ele próprio. Os sistemas de enunciados pseudocientíficos não

apresentam esta característica. Sua configuração é tal que não é possível conceber

estados de coisas possíveis que os tornem empiricamente falsos. Pelo contrário,

qualquer acontecimento ou observação é interpretado como evidência confirmadora.

Destarte podemos perceber o contraste que há entre um enunciado científico e

um enunciado pseudocientífico. Um enunciado do primeiro tipo tal como “haverá sol no

litoral nos próximos quinze dias” é formulado com precisão e clareza quanto às

experiências que o tornariam falso. Basta que não haja sol no litoral em pelo menos um

dia para que ele seja falsificado. Por outro lado, um enunciado pseudocientífico, tal

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como o que foi feito pela cartomante no exemplo mencionado na introdução, não pode

ser considerado científico por duas razões que estão interligadas: 1) é vago, uma vez

que a expressão “mau tempo” pode significar não somente chuva ou tempestade, mas

também uma possível discussão entre o casal, uma doença na família ou entre os

amigos, perda de emprego, etc. e 2) precisamente por causa de sua vagueza não é

possível determinar as situações que deveriam ocorrer para torná-lo falso. O ponto

central a ser ressaltado é que o seu âmbito de significação é tão vasto que dificilmente

não ocorreria algo no mundo para confirmá-lo. Assim, de acordo com o critério de

Popper, o enunciado da cartomante não é falsificável e, portanto, é pseudocientífico.

Tal espécie de enunciado não é aceitável no campo da ciência porque faz parte

de um sistema que seria extremamente improfícuo para ela, uma vez que não leva em

conta um aspecto básico da natureza humana: a falibilidade. A ideia de Popper é que a

ciência progride através de conjeturas e refutações. Segundo ele, se alguém não está

disposto a admitir que possa estar errado mesmo em suas crenças mais fundamentais e,

desse modo, não considera que também suas teorias estejam sujeitas à refutação, este

alguém certamente pressupõe ser infalível. Pelo fato de não sermos oniscientes, nosso

conhecimento é todo conjetural. Devemos sempre testar as teorias que achamos que são

verdadeiras para que possamos sempre substituí-las por outras, caso elas se mostrem

falsas depois de nossos testes.

Os enunciados encontrados nas previsões da meteorologia podem ser

considerados científicos, pois satisfazem os critérios estabelecidos por Popper. Se, tal

como fez João, consultarmos as previsões dos meteorólogos e nos depararmos com o

enunciado “Haverá Sol no litoral nos próximos quinze dias”, poderemos facilmente

determinar de antemão as circunstâncias que tornariam falsa esta previsão. Assim

sendo, segundo o critério de demarcação popperiano, a cientificidade do sistema de

enunciados do qual decorreu este enunciado está garantida. Por outro lado, se tentarmos

proceder da mesma forma com o enunciado que diz que “um mau tempo se aproximará

da vida do casal” seremos mal sucedidos uma vez que, desde o início, não temos clareza

a respeito do que quer isto dizer.

Com base no que foi mencionado pode-se perceber que, para Popper, a

comunidade científica estabelece previamente que tipos de descobertas precisam ocorrer

para que ela mude de idéia e desista de suas teorias se tais descobertas se efetivarem.

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Não obstante, os proponentes da astrologia, da numerologia, etc., não estão dispostos a

fazer tal coisa uma vez que parece não ser possível conceber nenhum acontecimento

que os faça modificar suas convicções. Com isto fica claro o caráter de irrefutabilidade

das comunidades pseudocientíficas, o que nos leva a recusá-las como praticantes de

atividade sujeita aos parâmetros da racionalidade científica, tal como esta foi estipulada

até aqui.

3. O critério de Carnap

A maneira como o filósofo Rudolf Carnap abordou o problema da demarcação

entre a ciência e a não-ciência pode ser chamada de lingüística. Tal abordagem foi

influenciada pelo Tractatus Logico-Philosophicus (1922) de Wittgenstein, o qual tinha

como uma das teses principais a ideia de que a impossibilidade da metafísica não dizia

respeito a uma limitação do que se pode conhecer, mas a respeito do que se pode ou não

dizer. Desse modo, a motivação inicial de Carnap não era procurar um critério para

distinguir a ciência da pseudociência. Seu intuito era eliminar a metafísica do campo do

sentido cognitivo através da análise lógica da linguagem.

Por essa razão podemos dizer que, no caso de Carnap, o problema da

demarcação é o problema de estabelecer o limite do que pode ser dito como possuindo

sentido cognitivo. Para tanto, ele apresenta um critério de significado chamado

verificacionismo o qual pretende possibilitar uma forma de distinguir com clareza os

enunciados com sentido cognitivo (os da ciência empírica, da lógica e da matemática)

dos enunciados sem sentido cognitivo (os metafísicos, poéticos, etc).

O verificacionismo pode ser condensado na tese segundo a qual um enunciado

possui sentido cognitivo se, e somente se, pode ser verificado empiricamente tendo

como base a lógica indutiva. Com exceção dos enunciados da lógica e da matemática,

Carnap considerava todas as disciplinas que expressam enunciados de natureza não

verificável como inúteis no que concerne à aquisição de conhecimento sobre o mundo.

Não obstante, ainda que não possuam sentido cognitivo, as afirmações provenientes de

áreas como a literatura ou a metafísica, a ética ou estética tradicionais, podem possuir,

segundo ele, sentido poético, emocional ou expressar a atitude de alguém diante da vida.

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Um aspecto interessante da teoria de Carnap é a distinção entre a determinação

da significatividade de um enunciado e o conhecimento do seu valor de verdade. Um

enunciado é dito significativo se ele expressa um estado de coisas concebível (e não

necessariamente efetivo). Não precisamos verificar de imediato o enunciado para saber

se este tem ou não sentido, temos tão somente de ter condições de conceber as situações

que teriam de ocorrer para que ele fosse verificado. Portanto, é possível determinar a

significatividade de um enunciado antes mesmo de determinar o seu valor de verdade, o

que só é possível fazer recorrendo à experiência.

Os enunciados que não pertencem ao campo da ciência não são passíveis de

valor de verdade, uma vez que não podemos conceber as circunstâncias nas quais eles

seriam verificados. Por exemplo: quando uma cartomante afirma que “um mau tempo se

aproxima” ou quando um metafísico afirma que “a onisciência é uma propriedade

essencial de Deus” eles não estão dizendo nada que possua sentido cognitivo, uma vez

que não é o gênero de afirmação que podemos aspirar a verificar através da experiência

empírica. Contudo, tais afirmações podem afetar emocionalmente as pessoas chegando

a produzir certos estados psicológicos que as levam a formar a crença de que elas são

verdadeiras. No entanto, isto tem a ver somente com a espécie de motivação que leva

algumas pessoas a dar adesão a determinadas afirmações, e não com a questão de elas

possuírem ou não sentido para podermos determinar se são passíveis de valor de

verdade.

Em A construção lógica do mundo (1928) Carnap argumenta que, para um

enunciado ser significativo ele deve satisfazer, sobretudo, a duas condições: 1) as

palavras que o constituem devem possuir significado isoladamente, o que implica que

ou elas dizem respeito à experiência ou a outros conceitos que concernem diretamente à

experiência e 2) elas precisam estar dispostas de modo a obedecerem às regras da

sintaxe lógica.

Isto conduz à tese de que as proposições científicas são obtidas através de

proposições mais elementares que dizem respeito diretamente à experiência e,

consequentemente, são verificáveis através dela. Ele considera que se os conceitos

utilizados na ciência forem genuinamente obtidos através da experiência, então eles

podem ser definidos com base nela. A este tipo de definição de um conceito Carnap

chama constituição e o conjunto de conceitos provenientes desse processo de sistema de

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constituição. Os enunciados metafísicos não podem ser constituídos pelo fato de não ser

possível definir os conceitos que neles ocorrem deste modo. Assim, há um impedimento

no que concerne ao estabelecimento de sua cientificidade uma vez que eles não podem

ser constituídos.

4. As críticas de Popper

Pelo que foi até agora exposto nota-se que os dois filósofos abordam o problema

da demarcação de maneira diferente. Não obstante, temos razões para pensar que,

mesmo com esta diferença, os problemas se relacionam de algum modo, na medida em

que Popper argumenta contra Carnap alegando que seu critério de demarcação, embora

seja lingüístico, possui implicações metodológicas indesejáveis para a ciência. Foram

tais conseqüências, inclusive, o que motivou suas críticas, tendo suscitado uma intensa

discussão entre os dois filósofos. Não pretendemos apresentar tal debate em pormenor,

mas apenas os três principais argumentos de Popper.

O primeiro argumento de Popper contra Carnap é uma reductio ad absurdum.

Popper convida-nos a aceitar por um instante o critério verificacionista de significado de

Carnap. Em seguida procura mostrar que, se o aceitássemos realmente, seríamos

levados a uma conclusão absurda, pois estaríamos obrigados a excluir do campo da

ciência as leis e teorias físicas já que estas são expressas através de enunciados

universais e estes não podem ser verificados porque pressupõem um número infinito de

observações. Como é óbvio, só podemos fazer um número finito de observações. O

critério verificacionista de Carnap implica que tais leis e teorias não são científicas. Esta

é justamente a conseqüência metodológica negativa que Popper identifica na teoria de

Carnap.

O segundo argumento pretende atacar a concepção de Carnap segundo a qual o

valor cognitivo de um enunciado reside na possibilidade de verificar o seu conteúdo

factual. A idéia de Popper é aplicar este raciocínio ao próprio critério de Carnap. Será

possível verificar empiricamente a tese segundo a qual um enunciado só possui sentido

cognitivo se puder ser verificado empiricamente? Intuitivamente parece que não, pois

caberia a quem defende que tal verificação é possível explicar cuidadosamente como ela

se daria. Uma vez que ainda não possuímos tal explicação conclui-se que o critério

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verificacionista é paradoxal e auto-refutante, uma vez que a sua verdade implicaria a

sua falsidade.

O terceiro argumento segue a mesma estrutura do anterior. Nele, Popper

pretende mostrar, com base na própria motivação de Carnap, que a tese segundo a qual

as afirmações metafísicas não possuem sentido é falsa. A motivação de Carnap é a

concepção de que somente as afirmações formuladas em uma linguagem adequada às

demandas da ciência tem sentido. Uma linguagem deste tipo seria construída a partir de

conceitos que se referem diretamente à experiência imediata dos nossos cinco sentidos.

Assim sendo, os enunciados metafísicos estariam excluídos do campo do sentido uma

vez que não podem ser formulados em tal linguagem. Mas e quanto às afirmações que

pretendem mostrar a irrelevância cognitiva da metafísica? Será que elas podem ser

formuladas nesta linguagem? As afirmações feitas com o intuito de criticar a metafísica

também não podem ser formuladas em uma linguagem cientifica adequada às

pretensões de Carnap. Deste modo, podemos concluir que elas também não possuem

sentido e que, portanto, não estamos racionalmente obrigados a aceitá-las.

5. Conclusão

Como Popper argumentou veementemente contra Carnap e outros positivistas

lógicos que propuseram um critério de demarcação científica com base em um critério

de significado que excluía do campo da ciência as leis e teorias, pensou-se que ele

estava a oferecer outro critério de significado que não tivesse essa consequência

metodológica negativa. Porém, tal interpretação de Popper como positivista é errônea

uma vez que ele diverge fundamentalmente das teorias e princípios esposados pelos

positivistas, como por exemplo: a concepção de filosofia, o papel da experiência na

ciência, concepção de lógica, a negativa da irrefutabilidade etc.

Ao contrário de seus adversários positivistas, ele buscava um conceito para a

ciência que não a reduzisse a suas dimensões experimentais e lingüísticas, mas que

fosse capaz de incorporar em seu interior os ideais de uma sociedade aberta, plural e

permeada pela crítica. Entretanto, vimos que embora haja divergência entre suas formas

de trabalhar o problema da demarcação, as tentativas positivistas de resposta suscitaram

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diversas questões problemáticas que ultrapassaram o âmbito de suas pretensões iniciais,

tal como expusemos nos argumentos mencionados.

O debate entre Popper e Carnap é muito mais extenso do que apresentamos neste

trabalho e figura entre os mais importantes no campo da filosofia da ciência do século

passado. Não pretendemos ter abarcado a totalidade de nuances e pormenores

envolvidos em suas teorias. Nosso intuito foi tão somente fazer uma introdução às suas

respectivas filosofias da ciência, indicar a natureza do desacordo entre eles, e

possibilitar uma melhor compreensão acerca do modo como estes dois grandes

pensadores formularam e tentaram solucionar o problema de saber se é possível

estabelecer um limite entre ciência e pseudociência (ou não-ciência).

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