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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – CFCH ESCOLA DE COMUNICAÇÃO – ECO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA GUSTAVO BARRETO DE CAMPOS DOIS SÉCULOS DE IMIGRAÇÃO NO BRASIL A construção da imagem e papel social dos estrangeiros pela imprensa entre 1808 e 2015 RIO DE JANEIRO 2015

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO UFRJ CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS CFCH

    ESCOLA DE COMUNICAO ECO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO E CULTURA

    GUSTAVO BARRETO DE CAMPOS

    DOIS SCULOS DE IMIGRAO NO BRASIL

    A construo da imagem e papel social dos estrangeiros pela imprensa entre 1808 e 2015

    RIO DE JANEIRO2015

  • Gustavo Barreto de Campos

    DOIS SCULOS DE IMIGRAO NO BRASIL

    A construo da imagem e papel social dos estrangeiros pela imprensa entre 1808 e 2015

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura da Escola deComunicao da Universidade Federal do Rio deJaneiro, como parte dos requisitos necessrios obtenodo ttulo de Doutor em Comunicao e Cultura.

    Orientador: Prof. Dr. Mohammed ElHajji

    RIO DE JANEIRO 2015

  • Campos, Gustavo Barreto de. Dois sculos de imigrao no Brasil: A construo da imageme papel social dos estrangeiros pela imprensa entre 1808 e 2015/ Gustavo Barreto de Campos. Rio de Janeiro, 2015. 545 f.

    Tese (Doutorado em Comunicao e Cultura) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicao, Rio de Janeiro, 2015.

    Orientador: Mohammed ElHajji

    1. Estudos Migratrios. 2. Jornalismo. 3. Imprensa. 4. Imigrao. 5. Comunicao e Cidadania. I. ElHajji, Mohammed(Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicao. III. Ttulo.

  • Gustavo Barreto de Campos

    DOIS SCULOS DE IMIGRAO NO BRASILA construo da imagem e papel social dos estrangeiros pela imprensa entre 1808 e 2015

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura da Escola deComunicao da Universidade Federal do Rio deJaneiro, como parte dos requisitos necessrios obtenodo ttulo de Doutor em Comunicao e Cultura.

    Aprovada em 4 de maio de 2015.

    _________________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Mohammed ElHajji

    Professor Associado PPGCOMUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    ___________________________________________________ Prof. Dr. Fbio Koifman

    Professor AdjuntoUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro

    ___________________________________________________ Profa. Dra. Liv Rebecca Sovik

    Professora Associada PPGCOMUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    ____________________________________________________ Prof. Dr. Mrcio Souza Gonalves

    Professor AdjuntoUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

    ____________________________________________________ Profa. Dra. Mnica Lima e Souza

    Professora Adjunta PPGHIS e PPGEHUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    ____________________________________________________ Profa. Dra. Suzy dos Santos

    Professora Adjunta PPGCOMUniversidade Federal do Rio de Janeiro

  • RESUMO

    CAMPOS, Gustavo Barreto de. Dois sculos de imigrao no Brasil: A construo daimagem e papel social dos estrangeiros pela imprensa entre 1808 e 2015. Rio de Janeiro,2015. Tese (Doutorado em Comunicao e Cultura) Escola de Comunicao, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

    A entrada e estabelecimento de imigrantes no Brasil desde 1808, data da abertura dos

    portos ao comrcio com as naes amigas, foi um dos grandes acontecimentos da Histria do

    pas. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), somente entre 1901 e

    2000 a populao brasileira saltou de 17,4 milhes para 169,6 milhes de pessoas, com 10%

    desse crescimento se devendo aos imigrantes. Esse intenso fluxo migratrio foi acompanhado

    de um ainda maior fluxo de informaes sobre estes novos residentes. Durante todo o perodo

    analisado neste trabalho de 1808 a 2015 , a imprensa se ocupou do assunto a partir de

    referncias conceituais como assimilao, nacionalismo, embranquecimento, eugenia,

    racismo, xenofobia, tolerncia e hospitalidade. A partir da consulta de 11 mil edies de

    peridicos jornalsticos impressos presentes no pas ou em portugus e sobre o Brasil em que

    o tema da imigrao foi citado direta ou indiretamente, selecionamos aproximadamente 200

    matrias jornalsticas que compe este trabalho. O objetivo, tomando como base referencial

    os estudos migratrios, abordar as seguintes questes: o que significa ser imigrante ou

    estrangeiro para a imprensa brasileira ao longo da nossa Histria? Qual foi o papel atribudo a

    estes indivduos e grupos, no Brasil, pelos meios de comunicao impressos?

    Palavras-chave: Estudos Migratrios, Jornalismo, Imprensa, Imigrao, Comunicao e

    Cidadania.

  • ABSTRACT

    CAMPOS, Gustavo Barreto de. Two centuries of immigration in Brazil: The construction ofthe image and social role of foreigners in the press between 1808 and 2015. Rio de Janeiro,2015. Thesis (Ph.D. in Communication and Culture) Communication College, FederalUniversity of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

    The ingress and establishment of immigrants in Brazil since 1808, date of the opening

    of the ports to trade with friendly nations, was one of the major events in the history of the

    country. According to the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE), just between

    1901 and 2000 the Brazilian population increased from 17.4 million to 169.6 million people,

    with 10% of this growth being due to immigrants. This intense migration was accompanied by

    an even greater flow of information on these new residents. Throughout the period analyzed

    in this study 1808 to 2015 the press dealt with the subject with conceptual references as

    assimilation, nationalism, whitening, eugenics, racism, xenophobia, tolerance and hospitality.

    Consulting 11,000 printed journalistic periodicals in Brazil or in Portuguese about Brazil, in

    which the issue of immigration was quoted directly or indirectly, we selected about 200 news

    articles that compose this work. The aim, taking as reference the migration studies, is to

    address the following questions: What does it mean to be an immigrant or a foreign to the

    Brazilian press throughout our history? What was the role assigned to these individuals and

    groups, in Brazil, by the print media?

    Keywords: Migration Studies, Journalism, Media, Immigration, Communication and

    Citizenship.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO 08

    2 A TEORIA IMIGRANTE 18

    2.1 Civiliza-se o Brasil 18

    2.2 Minoria tnica, uma metfora da traio ao projeto nacional clssico 21

    2.3 Raa, etnia e nao: refgios provisrios do povo 24

    2.4 A identidade hifenizada 32

    2.5 Ainda o mito da democracia racial 34

    2.6 A brasilidade sob o manto sagrado da igualdade liberal: agenciamento

    da cultura coisa de branco 37

    2.7 As trs ingenuidades dos estudos migratrios 43

    2.8 Imigrante: o provisrio negocivel 47

    2.9 Um estranho socialmente circunscrito 53

    2.10 O exrcito industrial tnico? As teses marxistas 55

    2.11 Neoculturalistas: rompimento com as grandes narrativas 59

    2.12 O poder de atribuio do Outro 62

    2.13 A disputa do territrio conceitual: (re)escrevendo a nao 65

    3 A GNESE IMIGRANTE 1808-1870 69

    3.1 Chegam os primeiros colonos, todos amarellos 74

    3.2 A Corte se torna um pouco mais cosmopolita 84

    3.3 Chegam os suos de D. Joo VI 86

    3.4 Chegam os alemes (e os irlandeses) 91

    3.5 Viajantes estrangeiros: um olhar sobre a nascente ptria 94

    3.6 Surge a imprensa (mais ou menos) livre e o sentimento (mais ou menos) nacional 98

    3.7 Um homem livre vale por dois escravos: aumenta o apoio imigrao livre e

    industriosa 103

    3.8 Foras armadas no final da dcada de 1830: um debate imigrante 109

    3.9 Avana o lobby pr-trabalhadores europeus e morigerados 111

    3.10 Um projeto patritico: assimilar o europeu em uma raa nacional 116

  • 3.11 Fim da guerra civil nos EUA: oportunidade de atrair imigrantes ativos,

    inteligentes e industriosos 128

    3.12 Chegam, por fim, os italianos 130

    4 O ENSAIO IMIGRANTE 1870-1889 132

    4.1 Italianos e alemes chegam ao Brasil 134

    4.2 Sobram imigrantes, falta planejamento 137

    4.3 Um portugus pra l de liberal: a experincia de Nova Lous 145

    4.4 Os 46 ingleses no Paran e o crime de vagabundagem 148

    4.5 O colono a melhor propaganda exceto loucos, cegos, estropiados,

    mendigos ou criminosos 156

    4.6 Sociedades imigrantistas: pelo embranquecimento e regenerao da

    incipiente nacionalidade brasileira 162

    4.7 Imigrao espontnea ou subvencionada? Um debate para resolver

    os problemas sociaes que se ligam a interesses to momentosos 169

    4.8 As mais genunas aspiraes nacionaes: o imigrante ideal tem tenra edade 174

    4.9 O Estado que no ama os catlicos que no amam os protestantes 177

    4.10 Agoniza o sistema escravista no leito de morte: renova-se o capitalismo 179

    5 A AFIRMAO IMIGRANTE 1889-1930 186

    5.1 Decreto 528 de 1890: Indgenas da sia ou da frica, s com autorizao

    do Congresso Nacional 187

    5.2 A praga amarella: continuam os ataques aos chineses no incio da

    Repblica Velha 192

    5.3 Paulistas traam plano ambicioso em 1892: um milho de imigrantes

    europeus em 10 anos 193

    5.4 Italianos: entre a classe e a etnia 197

    5.5 Brancos, pretos ou orientais? Nenhum dos trs: so rabes 208

    5.6 Europeu, agricultor, novo, sadio, calmo e de famlia: sejam bem-vindos! 214

    5.7 Como enfrentar a crise da cafeicultura? Introdusir o maior nmero de braos

    que for possvel para se alcanar a baixa do salrio 216

    5.8 SP reformula sua legislao migratria: todos so bem-vindos, exceto doentes,

  • deficientes, viciados, invlidos, dementes, mendigos, vagabundos e criminosos 220

    5.9 Minas Gerais em busca de um elemento assimilvel de melhoria econmica

    e branco, se possvel 228

    5.10 Ucranianos morigerados no sul e a algazarra hngara 235

    5.11 Boa parte dos imigrantes do incio do sculo XX foi embora do Brasil 239

    5.12 Progredimos: agora hora de fechar as fronteiras 241

    5.13 Ateno fazendeiros: lucrem mais com os japoneses, uma raa afvel,

    obediente e que trabalhar 10 horas por dia 245

    5.14 O trabalho rude dos brasileiros e as melhores raas 255

    5.15 Conferncia internacional do Rio, em 1927, expe divergncias entre

    sul-americanos e europeus 258

    5.16 O alerta vem da Argentina: perturbaes communistas tm forte

    influncia de agitadores italianos 267

    5.17 As estatsticas contam o progresso 268

    6 A HIFENIZAO IMIGRANTE 1930-1945 276

    6.1 Devemos, pois, estarmos alertas. O Brasil deve e tem que ser, primeiramente,

    dos brasileiros 280

    6.2 Lindolfo Collor: Sair do empirismo da liberdade desordenada para a

    organisao racional da immigrao 284

    6.3 Assrios: de imigrantes cristos a refugiados iraquianos muulmanos 286

    6.4 Mdico alerta para falta de seleco mental dos aliengenas immigrantes 291

    6.5 Os pomeranos: um povo sem Estado finca suas razes no Brasil 294

    6.6 Judeus: de perseguidos pelos nazistas a perigosos comunistas e

    pssimos elementos no Brasil 300

    6.7 Nazifascismo, integralismo e franquismo na Era Vargas 306

    6.8 Japoneses: factor de progresso econmico ou ameaa segurana nacional 313

    6.9 A immigrao japoneza na Amaznia: em meio aos interesses nacionais,

    uma histria de superao imigrante no Par 317

    6.10 Seringueiros da Amaznia e regates estrangeiros: unio contra a explorao 327

    6.11 Novas Diretrizes: Estado Novo no pode permitir elementos raciais

    indesejveis e pregadores do credo marxista 329

  • 6.12 Aprovada tese em 1943: preferncia aos povos de raa branca da Europa,

    evitando-se, sempre, as raas amarela e negra 339

    7 O DILEMA IMIGRANTE 1946-1980 346

    7.1 Brasil, uma banheira muito grande com um pingo d'gua, diz deputado

    constituinte em 1946 347

    7.2 Chegam ao Brasil deslocados europeus: Uns desconfiados, outros indiferentes,

    mas todos parecendo satisfeitos 353

    7.3 Carlos Lacerda: Itamaraty racista e Governo Dutra no sabe nem mesmo

    o que poltica de imigrao 356

    7.4 Chefe da Comisso de Seleo de Imigrantes na Europa deixa seu posto:

    crticas aos rumos da imigrao 361

    7.5 Organizao internacional de refugiados rigorosa: nada de nazistas,

    comunistas ou incapazes para o trabalho 366

    7.6 Articulista ataca poltica imigratria: Asnos racistas, totalitrios; Jornal

    governista rebate: As sobras demogrficas da Itlia bastariam 373

    7.7 Idealizaes acerca do novo imigrante brasileiro: entre o anticomunismo,

    o eurocentrismo e o nacionalismo seletivo 378

    7.8 Voz Operria: Imigrantes italianos revoltam-se contra o latifndio 383

    7.9 Estrangeiro que entra como turista no Brasil e permanece certamente no

    um imigrante ideal, diz jornal 386

    7.10 Em Genebra, recomendam-se medidas para o bem estar material, intelectual

    e moral dos trabalhadores migrantes 389

    7.11 A Ilha das Flres praticamente deserta: uma reportagem de 1956 sobre

    a famosa hospedaria carioca de imigrantes 391

    7.12 O problema da imigrao: Ora, no somos racistas. Mas no queremos quistos 395

    7.13 O cinquentenrio da imigrao japonesa: O Japo manda para o Brasil os

    seus melhores imigrantes 398

    7.14 Os judeus comemorados na imprensa: fim do estigma 403

    7.15 A poltica internacional de perseguio aos subversivos 405

    7.16 Agricultores qualificados no chega a 10%: estatsticas insatisfatrias

    para um jornal carioca 416

  • 7.17 Bons imigrantes e tcnicos, mas tambm marginais, criminosos e

    exploradores de todo o tipo procuram fugir de reas convulsionadas: o

    assassinato de Bob Kennedy 419

    7.18 Em meio ditadura militar, a saga (romantizada) no centenrio da imigrao

    italiana no Brasil 422

    7.19 Qual imigrante angolano? Branco ou preto? 426

    7.20 Os portugueses continuam chegando, relata o Opinio 430

    7.21 Latino-americanos em busca do milagre brasileiro da ditadura: temidos

    como um elemento indesejvel e suspeito 436

    8 A GERAO IMIGRANTE 1980-2015 442

    8.1 Projeto de lei sobre estrangeiros afeta tradio de hospitalidade do Pas,

    afirmam membros da Igreja Catlica 443

    8.2 Lei dos estrangeiros afeta at famlias de parlamentares; At seu pai danava,

    disse um deles a ministro da Justia 447

    8.3 Papa polons visita Brasil em pleno debate sobre nova lei dos estrangeiros

    e destaca contribuio dos imigrantes 450

    8.4 Uruguaios voltam ao seu pas para votar; antes, atos na Cinelndia e no

    Sindicato dos Bancrios do Rio 453

    8.5 Crise de imigrantes cubanos: posio do Itamaraty e a tradio

    diplomtica brasileira 454

    8.6 Entre o crime, a fama e a fortuna: como o imigrante vira notcia 456

    8.7 Uma nipo-brasileira no cinema: um olhar sobre a imigrao japonesa no Brasil 460

    8.8 As razes s podem sobreviver nas misturas, afirmam msicos

    germano-magrebinos em 1989 463

    8.9 Imigrao fantasma que ameaa a Europa e os EUA, com enchentes e

    enxurradas de imigrantes clandestinos 464

    8.10 Restries entrada de imigrantes nos EUA: empresrios temem perder

    crebros e profissionais 469

    8.11 A ideia que essa uma nova luta de direitos civis, como foi a dos negros,

    diz liderana brasileira nos EUA 471

    8.12 Rio, destino preferencial de refugiados no final dos anos 1990 476

  • 8.13 Chegam, em meio a polmicas diplomticas, alguns poucos palestinos 478

    8.14 A linha-dura contra os imigrantes ontem e hoje: Se um filho de imigrantes

    hngaros no se sensibiliza, quem vai se importar? 480

    8.15 Dois cubanos refugiados que no pediram refgio: a persistncia do

    anticomunismo na imprensa brasileira 483

    8.16 Quase dois sculos depois, o governo ainda bate cabea na poltica imigratria 488

    8.17 Qual a nova realidade? O Brasil destino de imigrantes. No era 494

    8.18 Chegam novos imigrantes indesejveis: a hospitalidade brasileira 500

    8.19 Novo ciclo de migrao internacional: Muitos dos brasileiros esto voltando

    para casa 505

    8.20 Haitiano custa menos do que chins; Em So Paulo, seleo de emprego

    lembra mercado de escravos 508

    8.21 Um vrus que nos consome h muito mais tempo, o da xenofobia 512

    8.22 Novas narrativas: os imigrantes por eles mesmos 519

    8.23 Entre uma terra sem lei (para estrangeiros) e uma imprensa indiferente 522

    9 CONCLUSO 528

    10 REFERNCIAS 534

  • 8

    1 INTRODUO

    Tomara que no acontea o que acontece com voc,n? Porque com certeza voc deve ter algum parente

    imigrante. Pai, av, algum deve ter imigrado. Mas osfilhos esqueceram que os pais eram imigrantes. E ns

    somos tratados como se fssemos bichos de outroplaneta. Como se a imigrao fosse uma coisa rara. Eu

    no conheo at agora no Brasil um brasileirodescendente de indgenas. Tomara que os filhos dos

    nossos filhos que vo ficar aqui no tratem os futurosimigrantes como os brasileiros nos trataram agora.

    Luis Vsquez, presidente da Associao dosEmpreendedores Bolivianos da Rua Coimbra, reprter do jornal Folha de S. Paulo, janeiro de

    2015.1

    Quando, em 1867, chegam em Minas Gerais alguns cidados dos Estados Unidos,

    ampla ateno dada pela imprensa local. Segundo o Dirio de Minas, os imigrantes haviam

    fugido da sangrenta guerra civil de seu pas, encerrada dois anos antes, vtimas do partido

    vencedor, e caberia portanto ao hospitaleiro Brazil acolher em seo seio grande parte dessas

    infelizes vctimas. Alguns anos depois, em 1874, o jornal A Nao noticia que 46 imigrantes

    britnicos teriam abandonado um ncleo colonial no Paran. O peridico pede que suas

    queixas fundadas ou no sejam ouvidas e levadas ao governo imperial, persuadindo os

    seus infelizes compatriotas a no abandonarem um paiz que to hospitaleiramente os

    recebeu. Em 1884, a Gazeta Paranaense defende as despesas realizadas com a colonizao

    em meio a uma polmica envolvendo imigrantes russos que voltaram para sua terra natal. O

    autor do artigo argumenta que o povo paranaense hospitaleiro por ndole e tem sempre os

    braos abertos para os immigrantes, qualquer que seja a sua procedncia.

    J no sculo XX, mais especificamente em 1926 quando o principal ciclo imigratrio

    no Brasil j se aproximava de seu fim , o jornal Folha da Manh cita nosso

    sentimentalismo para o tema: No raro passarem, illudindo a vigilncia dos portos,

    indivduos aleijados ou incapacitados para o trabalho e que aqui vm exercer a rendosa

    profisso de mendigo. (...) O sentimentalismo nosso tolera essas e outras coisas. No entanto,

    1 PERRIN, Fernanda. Nova onda de imigrao atrai para So Paulo latino-americanos e africanos. Folha de S. Paulo, 23 jan. 2015. Disponvel em http://bit.ly/19bMJgO. Acesso em 30 jan. 2015.

  • 9

    no devia ser assim. H necessidade de uma permanente e rigorosa prophylaxia social. O

    ttulo do editorial pouco sutil: Fechem-se as fronteiras!. J com Getlio Vargas no poder,

    uma edio d'O Globo de 1931 repercute uma mudana na legislao que criava uma reserva

    trabalhista para a mo de obra nacional: Paz tradicionalmente hospitaleiro, o Brasil h de

    sempre acolher com enthusiasmo todos os filhos de outras terras que desejarem collaborar no

    seu progresso!

    Pouco tempo depois, quando o governo tentou receber refugiados assrios no pas, e

    em meio a uma forte reao negativa, um dos poucos jornais que inicialmente apoiou o plano

    foi o A Nao, que afirmara que apenas agricultores fortes e sadios seriam includos.

    Apenas um ms depois, o mesmo jornal muda sua posio afirmando que o plano seria uma

    tentativa de explorar os sentimentos humanitrios do povo brasileiro. Sobre um outro grupo

    de refugiados, os judeus neste momento sendo perseguidos e assassinados aos milhes na

    Europa , um importante idelogo do Estado Novo, Azevedo Amaral, publica em seu Novas

    Diretrizes em 1941: (...) o Brasil, com o sentimentalismo que nos veiu com as tradies

    liberais e com as influncias africanas que desvirilizaram entre ns o esprito cristo, dando-

    lhe a fisionomia de uma doutrina de fraqueza e de tolerncia em relao a todas as formas de

    atividade malfica, extendeu insensatamente a sua hospitalidade aos refugiados, que os outros

    povos se dispunham a repelir bala, se tanto fosse necessrio. Em 1947, j passada a guerra,

    o jornal A Noite d destaque primeira leva de imigrantes dirigidos que fazem parte dos 5

    mil j selecionados na Europa por uma misso brasileira. Quase todos deixaram a Itlia

    pela dificuldade de vida que h ali atualmente, onde a falta de trabalho imensa. Alguns,

    entretanto, vm simplesmente pelo esprito de aventura, confiantes na nossa hospitalidade,

    diz um trecho do texto.

    Muitos anos depois, em 1980, uma legislao proposta pelo governo para

    regulamentar a permanncia e entrada de estrangeiros no Brasil destaque dos principais

    jornais brasileiros. O Globo repercute nota da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil

    (CNBB), que classifica o projeto como inaceitvel pelo seu carter xenfobo, ferindo

    uma longa tradio de hospitalidade brasileira e o reconhecimento aos direitos que toda a

    pessoa humana possui de encontrar sua digna sustentao, mesmo fora do seu pas. Poucos

    dias depois, o prprio O Globo afirma em editorial que o pas sempre cultivou a vocao da

    hospitalidade e da tolerncia em relao ao imigrante, sem distinguir sequer entre as diversas

    etnias envolvidas. O relator do projeto no Congresso Federal negou ao dirio carioca que o

  • 10

    projeto fira a tradio de hospitalidade brasileira, argumentando que estamos querendo

    arrumar a situao dos estrangeiros que residem no Brasil, muitos inclusive em situao

    irregular. Por coincidncia, estava em visita ao Brasil o Sumo Pontfice da Igreja Catlica, o

    papa Joo Paulo II, que no ficou alheio ao debate: para cerca de 60 mil pessoas, segundo O

    Globo em sua maioria poloneses ou descendentes de poloneses, o lder religioso disse todos

    ali presentes representavam a ecumenicidade, hospitalidade e cordialidade do Brasil,

    acrescentando que aqui pessoas de todas as partes formam juntas s um povo.

    A hospitalidade brasileira seria, afinal, um mito? Um editorial da Folha de S. Paulo

    em 2012 diz que sim, muito embora fato que na sociedade brasileira a convivncia entre

    etnias e religies diferentes mostra-se menos conflituosa do que em outras naes. Em 2014,

    o mesmo jornal repete: Se a hospitalidade do Brasil exagerada no imaginrio nacional, no

    deixa de ser verdade que a convivncia entre as etnias tende a ser menos conflituosa por aqui

    do que em outras naes. Um outro colunista do mesmo jornal sustenta que, entre outros

    servios, pessoas que facilitam ilegalmente a travessia de imigrantes, os chamados coiotes,

    vendem hospitalidade brasileira para os haitianos.

    No mesmo ano, 2014, outro editorial da Folha sustenta: No se trata apenas de

    questo de generosidade ou de direitos humanos. Dentro de poucas dcadas a fora de

    trabalho brasileira comear a encolher. Se estiver preparado para administrar inevitveis

    tenses sociais e econmicas, o pas poder aproveitar as ondas migratrias para impulsionar

    seu prprio desenvolvimento. J o concorrente O Estado de S. Paulo reclama das condies

    dos imigrantes em So Paulo da seguinte forma: Se era para tratar esses seres humanos como

    animais, seria melhor t-los impedido de entrar no Brasil como, alis, faz todo pas cujo

    governo prudente o bastante para medir as consequncias de um fluxo migratrio. () Sem

    esse visto, eles [haitianos] teriam de ser repatriados. Mas o governo federal petista, com o

    propsito de mostrar seu lado "humanitrio", criou um instrumento para regularizar a

    situao, estimulando a entrada em massa de novos imigrantes ilegais.

    Estes so apenas alguns trechos de jornais que expem como os mitos acerca dos

    imigrantes e da imigrao no pas foram constitudos. A hospitalidade brasileira , ao longo

    de dois sculos, um recurso discursivo frequentemente utilizado pelos redatores, jornalistas e

    demais realizadores da imprensa brasileira, sem que essa informao oferea qualquer

    concluso sobre a nossa brasilidade ou, ainda, sobre a relao dos brasileiros com os

    estrangeiros que chegam ao pas, como viajantes momentneos ou imigrantes cuja inteno

  • 11

    se estabelecer no territrio nacional. Afinal, o que significa ser imigrante ou estrangeiro para a

    imprensa brasileira? Qual foi o papel atribudo a estes indivduos e grupos, no Brasil, pelos

    meios de comunicao impressos?

    A tradio dos colonizadores portugueses, pode-se dizer, era pouco hospitaleira:

    entre 1550 e 1850 cerca de 4 milhes de africanos foram escravizados no Brasil, ao passo que

    calcula-se existirem na poca da chegada dos portugueses cerca de 4 milhes de indgenas,

    restando em 1823 menos de um milho deles.2 Em 1850, quando as autoridades nacionais

    proibiram o trfico transatlntico de escravos, intensifica-se o ingresso de estrangeiros no

    pas: 5 milhes de europeus, levantinos e asiticos entrariam no territrio brasileiro entre 1850

    e 1950 uma grande parte recebendo algum tipo de subveno do Estado, incentivos

    agrcolas, moradia e servios sanitrios, educacionais e at mesmo religiosos.3 Muito antes, no

    entanto j a partir da abertura dos portos ao comrcio com as naes amigas, em 18084 ,

    comeam a chegar os primeiros estrangeiros que buscavam isoladamente se estabelecer no

    ento territrio portugus.

    A contribuio destes novos moradores para a sociedade ento em formao, apesar de

    significativamente menor se comparada a pases como Argentina e Estados Unidos,

    considervel: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), entre 1901 e

    2000 a populao brasileira saltou de 17,4 milhes para 169,6 milhes de pessoas, com 10%

    desse crescimento se devendo aos imigrantes. Ao mesmo tempo, o Produto Interno Bruto

    (PIB) do pas multiplicou-se por cem, e o PIB per capita, por 12.5

    Durante as quatro primeiras dcadas do sculo XX, o crescimento natural da

    populao brasileira ou seja, o saldo entre nascimentos e mortes era de 19 por mil,

    enquanto a contribuio da imigrao no mesmo perodo pode ser estimada em 2 por mil. Em

    outras palavras, sustenta o IBGE, 10% do crescimento populacional do perodo se deve

    migrao de estrangeiros. Na dcada de 1930, conforme destacaremos em um dos captulos

    deste trabalho, o governo aprovou uma srie de medidas restritivas relacionadas entrada de

    imigrantes. Mesmo com a diminuio significativa do nmero de entradas de imigrantes em

    meados da dcada de 1930, fruto das restries impostas por polticas pblicas, a imigrao

    2 CARVALHO, 2010:20.3 ALENCASTRO; RENAUX, 1997:314.4 CMARA DOS DEPUTADOS. Carta Rgia de 28 de janeiro de 1808. Disponvel em http://bit.ly/1BTO4on.

    Acesso em 20 dez. 2014.5 IBGE lana Estatsticas do sculo XX. IBGE, 29 set. 2003. Disponvel em http://bit.ly/1vUThGZ. Acesso em

    22 ago. 2015.

  • 12

    contribuiu de forma direta (com os prprios imigrantes) e de forma indireta (com seus

    descendentes) com 19% do aumento populacional brasileiro entre 1840 e 1940, diz o IBGE

    menos do que a Argentina (58%), os Estados Unidos (44%) e o Canad (22%).6

    Esse enorme fluxo de pessoas gerou um outro fluxo igualmente importante: o de

    informaes. A chegada de D. Joo VI ao Brasil inaugura uma fase de intensas

    transformaes, incluindo a instalao na capital, por meio de um decreto de 13 de maio de

    18087, da primeira tipografia brasileira, Impresso Rgia, administrada por uma junta a quem

    competia, entre outras funes, examinar os papis e livros que se mandassem publicar e

    fiscalizar que nada se imprimisse contra a religio, o governo e os bons costumes (aviso de

    24 de junho de 1808). Nascia assim, a 10 de setembro de 1808, o primeiro nmero da Gazeta

    do Rio de Janeiro. Com quatro pginas, o primeiro jornal da Corte anuncia que est venda

    no fim da rua da Quitanda, saindo todos os sbados pela manh.8 Muitos outros peridicos,

    conforme detalharemos no curso deste trabalho, viro em seguida.

    Desde 1808 a imprensa acompanha com ateno estes estrangeiros. E aqui nos

    propomos, desde esse ano at a publicao deste tese, a verificar detalhadamente o que disse a

    imprensa. Assim, com o objetivo de sistematizar a apresentao desta temtica na mdia

    jornalstica impressa presente no pas ou em portugus e sobre o Brasil, este trabalho buscou

    investigar o desenvolvimento do discurso sobre o imigrante e sobre a imigrao em pouco

    mais de dois sculos da Histria do pas (1808-2015). Para isso, consultamos cerca de 11 mil

    edies de peridicos entre as mais de sete milhes de pginas digitalizadas de peridicos9

    depositadas em acervos das empresas de comunicao, da Biblioteca Nacional10 ou de

    arquivos pblicos estaduais11. Entre estas 11 mil edies, em que o tema da imigrao foi

    citado direta ou indiretamente, selecionamos aproximadamente 200 matrias jornalsticas que,

    por fim, compe este trabalho. A enorme quantidade de informaes geradas no coube neste

    6 IBGE lana Estatsticas do sculo XX. IBGE, 29 set. 2003. Disponvel em http://bit.ly/1vUThGZ. Acesso em22 ago. 2015.

    7 BRASIL. Decreto de 13 de Maio de 1808. Disponvel em http://bit.ly/1ETSmKg. Acesso em 20 dez. 2014.8 Todas as edies da Gazeta do Rio de Janeiro encontram-se digitalizadas e disponveis no site da Biblioteca

    Nacional em http://bit.ly/1JExUA6. Acesso em 2 jan. 2015.9 Calculo aproximado, para baixo, entre as pginas digitalizadas pela Biblioteca Nacional, pelo Arquivo

    Pblico do Estado de So Paulo e pelos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo.10 A esmagadora maioria dos acervos dos jornais aqui analisados se encontram fisicamente na Biblioteca

    Nacional ou, ainda, em sua Hemeroteca Digital, em http://hemerotecadigital.bn.br, com cinco milhes de pginas digitalizadas.

    11 Principalmente do Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, disponvel em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/jornais_revistas e que durante esta pesquisa contava com umacoleo de mais de 235 mil exemplares de jornais, 30 mil exemplares de revistas e 16 mil exemplares de publicaes seriadas (relatrios, boletins, atas).

  • 13

    trabalho. Com o duplo objetivo de aproveitar todo o material, por um lado, e dialogar com um

    pblico mais amplo ainda durante a realizao do trabalho, por outro, cerca de 50% do

    contedo elaborado durante o projeto foi disponibilizado na Internet, em midiacidada.org, e

    compartilhado com um grupo online de pesquisadores.12

    A escolha pelo formato impresso se deu pelo fato de que este foi o nico que circulou

    durante todo o perodo da pesquisa, dando ao projeto uma homogeneidade que se tornaria

    excessivamente complexa caso outros meios fossem includos. Os meios so principalmente

    brasileiros, embora muitas das fontes histricas disponveis remetam a jornais estrangeiros

    que circulavam no Brasil ou, ainda, publicaes de determinados segmentos da sociedade. Os

    principais jornais e revistas utilizados so, na ordem em que aparecem no trabalho, os

    seguintes: Gazeta do Rio de Janeiro, Correio Braziliense (sculo XIX), Jornal do

    Commercio, Dirio do Rio de Janeiro, Revista Illustrada, O Paiz, Correio Paulistano, A

    Provncia de S. Paulo (depois O Estado de S. Paulo)13, A Nao, Gazeta de Notcias, Jornal

    do Brasil, Folha da Manh (depois Folha de S. Paulo)14, Opinio, O Globo (sculos XX e

    XXI)15, Correio da Manh, A Noite, Novas Diretrizes, Dirio de Notcias, Dirio da Noite

    (SP), A Manh, O Cruzeiro (revista) e ltima Hora.

    Entre os jornais locais incluem-se: A Voz do Brasil (PE), Dirio de Minas, A Provncia

    de Minas e Mariannense (MG), Dezenove de Dezembro, O Paranaense e Gazeta Paranaense

    (PR), O Despertador e Regenerao (SC), La Battaglia, Pgina Um, A Plebe e Municpio

    (SP), O Republicano (MT), Correio do Povo (RS), O Estado do Par (PA), os fluminenses O

    Lynce (Conceio de Macabu) e Gazeta de Petrpolis, alm de trs jornais do Esprito Santo:

    Jornal da Victoria (Vitria), O Povo (Santa Teresa) e O Espirito-Santense (Vitria).

    Trs jornais so do setor mais importante da economia brasileira no sculo XIX, a

    agricultura: A Immigrao, O Auxiliador da Industria Nacional e Jornal do Agricultor. Dois

    so confessionais: Imprensa Evanglica e O Apstolo. Outros tambm importantes para o

    debate aqui realizado incluem Almanak Laemmert, Aurora Fluminense, Mephistpheles, A

    Illustrao Luso-Brazileira, O Globo (sculo XIX), O Jacobino, O Cruzeiro (jornal), Revista

    Moderna, Dirio Carioca, O Imparcial, A Offensiva, Diretrizes, Imprensa Popular, O

    Radical, Voz Operria, Tribuna da Imprensa, Correio Braziliense (DF), Monitor Mercantil e

    12 O grupo, denominado Brasil Pas de Imigrao, pode ser acessado em www.facebook.com/groups/brasilpaisdeimigracao

    13 Disponvel atravs de acesso pago em http://acervo.estadao.com.br14 Disponvel gratuitamente em http://acervo.folha.com.br15 Disponvel atravs de acesso pago em http://acervo.oglobo.globo.com

  • 14

    Valor Econmico.

    Apesar de esta pesquisa se constituir principalmente de fontes primrias, conforme

    mencionado anteriormente, tambm foram utilizadas fontes secundrias, como publicaes

    sobre a histria da imprensa no Brasil16; artigos tcnicos e jornalsticos dos campos de

    comunicao, migraes humanas, histria, antropologia e sociologia; relatos de viajantes

    estrangeiros; documentos de instituies pblicas e privadas; relatos das memrias de

    imigrantes; e, por fim, a bibliografia registrada ao final deste trabalho. Alm disso, sempre

    que foi necessrio esclarecer algum fato ou contextualizar uma informao dos meios

    impressos analisados, tambm foram utilizadas fontes de outros meios TV, rdio e Internet

    , porm sempre com este propsito exclusivo de complementar a anlise.

    Entre as referncias encontram-se diversos registros histricos, utilizados amplamente

    para servir de contraponto ou mesmo contextualizao para os relatos dos peridicos que so

    objeto desta pesquisa, de modo a ampliar o entendimento sobre as notcias coletadas ou ainda

    guiar a pesquisa nos acervos. Tambm se optou por realizar buscas por palavras-chave, o que

    nos obrigou a realizar uma segunda pesquisa de modo a dar conta das sucessivas revises

    ortogrficas ao longo da histria da lngua portuguesa no Brasil. A partir de uma escolha

    metodolgica, buscou-se sempre que possvel manter a grafia original dos registros histricos.

    Os termos que tomamos como ponto de partida foram imigrao, imigrantes e

    estrangeiros, bem como seus demais variantes ortogrficos de cada perodo, com pesquisas

    posteriores eventualmente surgindo a partir da explorao inicial do tema, como no caso das

    buscas por determinadas nacionalidades com o objetivo de contextualizar determinado

    acontecimento ou, ainda, aprofund-lo.

    Em termos jornalsticos, a seleo de notcias levou em conta critrios usualmente

    utilizados neste campo de conhecimento: a relevncia, a periodicidade, o esprito crtico, a

    relao com o poder em cada perodo histrico e a frequncia com que um determinado tema

    voltava pauta.17

    Observamos que a imprensa brasileira , ao longo de todo o perodo, vinculada em sua

    maioria a estruturas de poder de cada poca perodo e, portanto, em muitas ocasies um brao

    de grupos ou segmentos polticos e econmicos. A informao seletivamente publicada pelos

    meios de comunicao nos ajuda, no entanto, a compreender o discurso de parte da elite

    16 As duas mais utilizadas so vinculadas Biblioteca Nacional: Revista de Histria da Biblioteca Nacional e Nossa Histria, esta ltima j extinta.

    17 KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo. So Paulo: Gerao Editorial, 2003.

  • 15

    brasileira acerca deste tema to central para o Brasil que a imigrao. As deformaes e a

    subjetividade presentes neste discurso so, antes de imprecises, um valioso conjunto de

    interpretaes desta elite sobre conceitos como nao, imigrantes, povo e brasilidade,

    entre outros, nos ajudando a entender como se desenvolveu, ao longo de dois sculos de

    imigrao no Brasil, o pensamento brasileiro acerca do tema. A manipulao, a omisso, a

    seletividade e a nfase do jornalismo aqui analisado, antes de elementos negativos, nos

    apresentam uma insuspeita narrativa dos usos polticos da imprensa brasileira que, por um

    lado, causa muitas vezes espanto entre as atuais geraes e, por outro, nos alerta para os riscos

    da estigmatizao, da discriminao e da xenofobia.18 Alm disso, um importante lembrete

    sobre a nossa condio imigrante que, conforme destacado nas primeiras linhas desta

    introduo, muitos parecem ter esquecido.

    Alm desta introduo, os demais captulos esto divididos da seguinte forma.

    No segundo captulo A teoria imigrante fazemos uma pequena introduo

    sociolgica do Brasil oitocentista e, em seguida, uma breve apresentao do debate terico que

    nos guiou ao longo de todo o trabalho, abordando conceitos como raa, etnia, povo,

    identidade nacional e cultura, entre outros. Elaboramos, assim, um roteiro metodolgico

    que nos ajudar a ler os jornais e demais peridicos do perodo analisado de 1808 a 2015.

    Ao mesmo tempo, buscamos problematizar neste captulo, luz do material coletado e

    analisado, estes mesmos modelos tericos.

    O terceiro captulo A gnese imigrante trata do perodo de 1808 a 1870, quando o

    nmero de entradas era considerado irrisrio (no excedia 3 mil pessoas ao ano), possuindo

    alm disso precria documentao estatstica. Este perodo marcado por experimentaes na

    rea de polticas imigratrias e a intensificao, sobretudo a partir de 1850, do debate acerca da

    necessidade de braos para a lavoura.

    O quarto captulo O ensaio imigrante cobre o perodo entre os anos de 1870,

    quando tem incio o ciclo de imigrao em massa no Brasil, at 1889, quando proclamada a

    Repblica. Foi a partir da dcada de 1870 que o ensaio imigrante abordado neste captulo

    ganha fora, surgindo desde ento e at o final do regime monrquico muitas das colnias que

    se tornariam cidades profundamente influenciadas pelos seus primeiros colonos. Ainda mais

    alm da mera ocupao geogrfica, os imigrantes passariam a influenciar mais decisivamente a

    18 Sobre esta linha metodolgica, ver FERREIRA, Marieta de Moraes. Fontes histricas para o estudo da imigrao. Rio de Janeiro: CPDOC, 2000. 9f. Disponvel em http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/936.pdf. Acesso em 30 jan. 2015.

  • 16

    sociedade brasileira em termos culturais, sociais, econmicos e polticos. neste perodo que

    se realiza o primeiro censo nacional (1872) e se consolida o projeto de poder republicano.

    O quinto captulo A afirmao imigrante trata do perodo que vai da chegada dos

    republicanos ao poder (1889) at o incio da Era Vargas (1930). finalmente vitoriosa a tese de

    que o futuro do Brasil depende do brao europeu na lavoura. Procuram-se agricultores brancos

    que, de uma vez s, traro a prosperidade econmica e o melhoramento racial.

    O sexto captulo A hifenizao imigrante marca a chamada Era Vargas (1930-1945),

    quando foi relativamente bem-sucedido um projeto autoritrio e nacionalista de poder. Tratou-

    se de um perodo de grande receio para muitos dos estrangeiros, em grande parte obrigados da

    noite para o dia a deixar seus quistos tnicos e se assimilar.

    O stimo captulo O dilema imigrante trata de dois perodos distintos. O primeiro

    vai de 1946 a 1964, com o Brasil vivendo uma frgil e instvel democracia, porm com

    relativa tranquilidade institucional. As perseguies polticas cessaram drasticamente, se

    comparadas com as dos perodos anteriores (Repblica Velha e Estado Novo) e posterior

    (ditadura civil-militar). Se as raas inferiores deixariam de ser o alvo principal das polticas

    restritivas do Estado brasileiro, outras alegadas ameaas segurana nacional se somariam

    neste momento aos antigos temores de parte das elites brasileiras. De 1964 a 1980, a doutrina

    da segurana nacional (DSN) ganha fora a partir da ascenso de um regime totalitrio no

    Brasil. O terrorismo de Estado praticado tanto no Brasil quanto em diversos outros pases

    latino-americanos marca no s o perodo que se segue como a prpria Histria do Brasil

    uma herana autoritria ainda presente no cotidiano dos brasileiros e estrangeiros residentes no

    pas.

    A partir da aprovao do Estatuto do Estrangeiro (1980), ainda sob forte influncia da

    doutrina da segurana nacional, o oitavo captulo A gerao imigrante aborda o perodo de

    redemocratizao do pas e o retorno legalidade (para os brasileiros). A nova lei dos

    estrangeiros manteve o legado nacional de discriminao e xenofobia: restringia os direitos

    polticos e a liberdade de expresso dos estrangeiros e permitia que o Estado brasileiro

    continuasse a adotar polticas discricionrias em relao aos imigrantes. O iderio da ameaa

    comunista que permeou o imaginrio das autoridades e da imprensa brasileira em alguns dos

    perodos anteriores no to evidente, embora tenha sido substitudo por novas ameaas

    frequentemente usadas como justificativa para restringir a entrada de imigrantes no pas ou,

    pelo menos, para argumentar pelo aumento das restries.

  • 17

    No perodo mais recente, o Brasil se torna um pas emigrante, invertendo o fluxo

    imigratrio que marcou a maior parte de sua Histria, sobretudo durante a Repblica Velha. As

    premissas da Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ganhariam uma

    visibilidade cada vez maior, com muitos de seus artigos se efetivando para grande parte da

    populao, mesmo que ainda haja um longo caminho a percorrer.

    No ltimo captulo, faremos uma breve reflexo sobre o nosso principal objeto de

    estudo a construo da identidade e do papel dos imigrantes pela imprensa entre 1808 e

    2015 bem como algumas observaes sobre as perspectivas e desafios que se colocam

    diante dos estudos migratrios, bem como dos rumos da imprensa no que diz respeito

    cobertura das temticas da imigrao e dos imigrantes em especial.

  • 18

    2 A TEORIA IMIGRANTE

    Faremos neste captulo uma pequena introduo sociolgica do Brasil oitocentista e,

    em seguida, uma breve apresentao do debate terico que nos guiou ao longo de todo o

    trabalho, abordando conceitos como raa, etnia, povo e cultura, entre outros.

    Elaboramos, assim, um roteiro metodolgico que nos ajudar a ler os jornais e demais

    peridicos do perodo analisado, de 1808 a 2015. Ao mesmo tempo, buscaremos

    problematizar, luz do material coletado e analisado, estes modelos tericos.

    2.1 Civiliza-se o Brasil

    Antes da chegada da famlia real portuguesa, em 1808, o Brasil era uma sociedade

    rural, escravocrata e sem instituies estatais essenciais como bancos, universidades,

    parlamento etc., h muito existentes nos pases colonizadores e em alguns outros pases

    colonizados , formada por uma elite poltico-clerical claramente apartada da maior parte da

    populao.

    A democracia no Brasil, escreveu Srgio Buarque de Holanda, sempre foi um

    lamentvel mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de

    acomod-la, onde for possvel, aos seus direitos e privilgios, os mesmos privilgios que

    tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim

    puderam incorporar situao tradicional, ao menos como fachada ou decorao externa,

    alguns lemas que pareciam os mais acertados para a poca e eram exaltados nos livros e

    discursos.19 A tentativa de implantao da cultura europeia em nosso extenso territrio,

    acrescenta Holanda, dotado de condies naturais, se no adversas, largamente estranhas

    sua tradio milenar nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em

    consequncias. Trazendo de pases distantes nossas formas de convvio, nossas instituies,

    nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes hostil.20

    Aps a chegada de D. Joo VI, o crescente cosmopolitismo de alguns centros urbanos

    no constituiu perigo iminente para a supremacia dos senhores agrrios, supremacia apoiada

    19 HOLANDA, 1995:160.20 HOLANDA, 1995:31.

  • 19

    na tradio e na opinio, mas abriu certamente novos horizontes e sugeriu ambies novas

    que tenderiam, com o tempo, a perturbar os antigos deleites e lazeres da vida rural, diz

    Holanda (grifos nossos).21

    Os grupos rurais dominantes, ademais, supervalorizavam a noo de talento,

    atividades intelectuais alegadamente inatas completamente desvinculadas do trabalho

    imaterial da a satisfao com o saber aparente, cujo fim est em si mesmo e, por isso,

    deixa de aplicar-se a um alvo concreto, sendo procurado sobretudo como fator de prestgio

    para quem sabe. J que a natureza dos objetivos secundria, os indivduos mudam de

    atividade com uma frequncia que desvenda essa busca de satisfao meramente pessoal. Da

    valorizarem-se as profisses liberais que, alm de permitirem as manifestaes de

    independncia individual, prestam-se ao saber de fachada.22 Holanda contrasta o Brasil com

    o Peru, por exemplo, citando a relativa prosperidade dos grmios de oficiais mecnicos j

    existentes no primeiro sculo de conquista de Lima, com alcaides jurados e vedores, taxa de

    jornais, exames de competncia, inscrio, descanso dominical obrigatrio e fundaes pias

    de assistncia mtua nas diversas confrarias de mesteirais. Oficiais mecnicos, por exemplo,

    estabeleceram j a partir do sculo XVI dotes e penses de velhice para as famlias dos

    agremiados. Esses grmios (...) foram durante longos, para o vice-reinado, uma garantia de

    prosperidade, riqueza e estabilidade, no obstante as vicissitudes do trabalho mineiro e a

    decadncia do imprio colonial espanhol.23

    No Brasil, por sua vez, a organizao dos ofcios a partir do modelo europeu teve seus

    efeitos perturbados pelas condies dominantes, sugere o autor: preponderncia absorvente

    do trabalho escravo, indstria caseira, capaz de garantir relativa independncia aos ricos,

    entravando, por outro lado, o comrcio, e, finalmente, escassez de artfices livres na maior

    parte das vilas e cidades.24 Segundo Holanda, toda a estrutura da sociedade brasileira

    colonial teve sua base fora dos meios urbanos, instalando-se portanto uma civilizao de

    razes rurais. Com pouco exagero pode dizer-se que tal situao no se modificou

    essencialmente at Abolio, acrescenta o autor, afirmando que 1888 representa o marco

    divisrio entre duas pocas, assumindo significado singular e incomparvel.

    O fim do trfico negreiro, em 1850, inaugura esse momento de intensas reformas

    21 HOLANDA, 1995:161.22 CANDIDO, Antonio. O significado de Razes do Brasil. In: HOLANDA, 1995:17.23 HOLANDA, 1995:57.24 HOLANDA, 1995:57-58.

  • 20

    liberais e foi, talvez, ainda mais importante. Fundam-se nesta dcada o segundo e renovado

    Banco do Brasil e, depois, o Banco Comercial e Agrcola e o Banco Rural e Hipotecrio;

    inaugura-se a primeira linha telegrfica no Rio de Janeiro; abre-se a primeira linha de estradas

    de ferro do pas. Pode-se mesmo dizer, sustenta Holanda, que o caminho aberto por

    semelhantes transformaes s poderia levar logicamente a uma liquidao mais ou menos

    rpida de nossa velha herana rural e colonial, ou seja, da riqueza que se funda no emprego do

    brao escravo e na explorao extensiva e perdulria das terras de lavoura. Holanda conclui

    que:

    No por simples coincidncia cronolgica que um perodo de excepcionalvitalidade nos negcios e que se desenvolve sob a direo e em proveito deespeculadores geralmente sem razes rurais tenha ocorrido nos anos que se seguemimediatamente ao primeiro passo dado para a abolio da escravido, ou seja, asupresso do trfico negreiro. Primeiro passo e, sem dvida, o mais decisivo everdadeiramente heroico, tendo-se em conta a trama complexa de interesses mercantispoderosos, e no s de interesses como de paixes nacionais e prejuzos fundamentearraigados, que a Lei Eusbio de Queirs iria golpear de face.25

    Alm disso, ainda dentro do contexto da substituio da mo de obra escrava,

    sancionada no dia 18 de setembro de 1850 a lei de nmero 601, conhecida como Lei de

    Terras, que dispunha sobre as terras devolutas no Imprio, e acerca das que so possudas por

    ttulo de sesmaria sem preenchimento das condies legais, bem como por simples ttulo de

    posse mansa e pacfica. A lei determina que, medidas e demarcadas as terras devolutas,

    sejam elas cedidas a ttulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o

    estabelecimento de colnias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover

    a colonisao extrangeira na forma que se declara.26

    O projeto cria, entre outras coisas, um imposto sobre a terra, com o qual o governo

    cobriria os custos da importao de mo de obra estrangeira. Apesar de autorizar o governo a

    vender lotes de terras devolutas aos colonos, destaca Gadelha, estes s poderiam se beneficiar

    desta concesso aps haverem trabalhado durante um mnimo de trs anos nas terras de

    fazendeiros. Alm disso, dificultava o acesso s terras aos ex-escravos e aos trabalhadores

    nativos em outras palavras, a todos os pequenos agricultores, estimulando dessa forma a

    25 HOLANDA, 1995:73-75.26 BRASIL. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Disponvel em http://bit.ly/1ATe806. Acesso em 10 jan.

    2015.

  • 21

    expanso dos latifndios no Brasil.27

    A campanha republicana, que percorreu um longo caminho at 1889, acreditou que

    introduziria um regime moderno, civilizado, um sistema que estaria mais de acordo com suas

    aspiraes nacionais. Na realidade, observa Holanda, foi ainda um incitamento negador o

    que animou os propagandistas: o Brasil devia entrar em novo rumo, porque 'se envergonhava'

    de si mesmo, de sua realidade biolgica (grifo do autor). Aqueles que lutaram por uma vida

    nova, conclui o autor, representavam, talvez, ainda mais do que seus antecessores, a ideia de

    que o pas no pode crescer pelas suas prprias foras naturais: deve formar-se de fora para

    dentro, deve merecer a aprovao dos outros (grifo do autor).28

    2.2 Minoria tnica, uma metfora da traio ao projeto nacional clssico

    Esta mistura de um certo nacionalismo patriarcal e uma ideologia racial pautou a

    imprensa durante praticamente todo o perodo estudado, muito embora a segunda metade do

    sculo XX merea algumas consideraes especiais, sobretudo pela forma como o racismo e a

    xenofobia se transformaram ao longo das dcadas. Neste perodo, o iderio dos direitos

    humanos comeava a discretamente surgir no pas, principalmente aps a popularizao dos

    horrores da Segunda Guerra Mundial, da abertura democrtica aps um longo perodo

    ditatorial e da aprovao, por todos os Estados-membros da ONU, da Declarao Universal

    dos Direitos Humanos (em dezembro de 1948). Esses iderios foram desenvolvidos em

    sociedades liberais, em geral democrticas e que operavam a partir do pressuposto de que o

    moderno Estado-nao seria o nico proprietrio das decises de grande escala, como travar

    guerras e tomar medidas duradouras para a paz. No mbito das Naes Unidas foi criado em

    1945, restringindo ainda mais a ao fora do Estado, um rgo que pautaria todas as questes

    de paz e segurana no mundo, com cinco naes tendo o direito ao veto sobre qualquer das

    resolues apresentadas e assento permanente no rgo.29

    27 GADELHA, Regina Maria d'Aquino Fonseca. A lei de terras (1850) e a abolio da escravido: capitalismo efora de trabalho no Brasil do sculo XIX. Revista de Histria, Brasil, n. 120, p. 153-162, jul. 1989. ISSN 2316-9141. Disponvel em http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/18599. Acesso em 08 fev. 2015.

    28 HOLANDA, 1995:166.29 O Conselho de Segurana da ONU realizou sua primeira reunio em janeiro de 1946 e possui dez membros

    alm dos cinco permanentes que, no por acaso, esto entre as seis naes com o maior poderio blico do planeta: Estados Unidos, Rssia, China, Reino Unido e Frana, estes dois ltimos atrs apenas da ndia em

  • 22

    O reforo estratgico do iderio nacionalista, a partir da reafirmao da soberania

    nacional aps os trgicos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, no solucionaram

    questes centrais relacionadas s chamadas minorias dentro dos Estados nacionais, como

    poderia se prever. No s novos episdios de genocdios voltaram a ocorrer com alguma

    frequncia, a exemplo do que aconteceu com os judeus e outros grupos na Alemanha nazista,

    como regimes de apartheid voltaram a ocorrer, como na frica do Sul e, de modo bastante

    paradoxal, em Israel, povo que sofreu diretamente com o iderio do apartheid, imposto agora

    aos palestinos.30

    Appadurai observa os debates contemporneos sobre a crise do Estado-nao, sobre o

    futuro da soberania e sobre a viabilidade dos Estados que no fazem parte de coalizes

    regionais fortes frequentemente assumem a forma de novos pnicos em relao a

    mercadorias estrangeiras ou investimentos do estrangeiro. O autor observa que muitos

    Estados se veem presos entre a necessidade de representar o drama de soberania nacional e,

    simultaneamente, dar demonstraes de estarem abertos, sob a beno do capital ocidental e

    dos acordos multilaterais. E conclui: A completa perda virtual at mesmo da fico de uma

    economia nacional, que tinha alguma prova de sua existncia ao tempo dos estados socialistas

    fortes e do planejamento central, agora deixa o campo cultural como o campo principal em

    que fantasias de pureza, autenticidade, fronteiras e segurana podem ser representadas.31

    A imprensa de grande circulao que se apresenta quase sempre como nacional,

    expondo seu lugar de pertena a priori tem cumprido um papel central, durante quase todo o

    perodo abordado neste trabalho, na repetio dessas fantasias etnocntricas, principalmente

    nos perodos de maior restrio da liberdade de expresso (que, no Brasil, no foram poucos).

    Uma frgil reao por parte dos imigrantes se daria sobretudo a partir da chamada imprensa

    imigrante que sempre teve um papel importante entre as prprias comunidades, porm

    limitado na comunicao para um pblico mais amplo , e a comunicao pela Internet, a

    termos de fora militar. Sobre o Conselho de Segurana, consultar http://www.un.org/en/sc/about/. Sobre o poderio blico dos pases, ver BENDER. The 11 Most Powerful Militaries In The World. Business Insider, 23abr. 2014. Disponvel em http://read.bi/1ATefJ9. Acesso em 10 jan. 2015.

    30 ainda mais paradoxal este caso diante da acusao, feita em um tribunal israelense, de que Israel teria vendido armas a Ruanda em meio ao genocdio de 1994, bem como Srvia durante o massacre na Bsnia. Alm disso, o governo de Israel foi acusado por outras naes, na prpria ONU, de colaborar at os ltimos momentos de vida do regime do apartheid na frica do Sul. Sobre o primeiro tpico ver reportagem do jornalisraelense Haaretz em MISGAV, Uri. The Israeli guns that took part in the Rwanda genocide. Haaretz, 3 jan. 2015. Disponvel em http://bit.ly/1ATetzV. Acesso em 10 jan. 2015; sobre o segundo, ver breve resumo deste histrico em BARRETO, Gustavo. O lado pouco lembrado do apartheid. Disponvel em http://bit.ly/1xojaAJ.Acesso em 10 jan. 2015.

    31 APPADURAI, 2009:27-28.

  • 23

    partir principalmente do final do sculo XX, com as comunidades diaspricas compartilhando

    informaes em tempo real por cima dos limites nacionais e representando vrios tipos de

    solidariedade, alguns culturais, outros profissionais, outros ainda situacionais ou

    oportunistas.32

    Apesar de tanto a imprensa imigrante quanto a comunicao pela Internet no serem

    objetos de anlise deste trabalho, destaca-se, sobre a segunda, que as formas violentas de

    extremismo relacionadas tanto ao nacionalismo xenfobo quanto ao fundamentalismo tnico

    e/ou confessional tambm encontram na rede mundial virtual um espao receptivo. Mais

    recentemente, a imprensa aqui analisada repercute suas matrias impressas neste meio, com

    uma intensa reao xenfoba ou solidria, a depender sobretudo da forma como a informao

    foi disponibilizada ou, ainda, dos contextos social e poltico contemporneos.

    Conforme observa Appadurai, as minorias no surgem pr-fabricadas ao contrrio,

    so produzidas nas circunstncias de cada nao e de cada nacionalismo e frequentemente

    carregam lembranas indesejveis dos atos de violncia que produziram os Estados

    existentes, da convocao militar forada ou da expulso violenta medida em que novos

    Estados se formavam. O autor sintetiza: So, portanto, os bodes expiatrios no sentido

    clssico.33 dessa forma que:

    Dado o compromisso sistmico da soberania econmica nacional que estinserido na lgica da globalizao, e dada a tenso crescente que isso exerce sobre osEstados para que se comportem como fiis depositrios dos interesses de um 'povo'confinado e definido territorialmente, as minorias so a esfera principal para ondedeslocar as angstias de muitos Estados sobre sua prpria minoria ou marginalidade(real ou imaginria) num mundo de poucos megaestados, de fluxos econmicosdesgovernados e soberanias comprometidas.34

    As minorias, resume Appadurai, so metforas e lembranas da traio ao projeto

    nacional clssico, traio esta que subscreve o impulso global de expulsar ou eliminar as

    minorias. Esse um dos motivos que leva foras militares do Estado (ou paramilitares

    nacionalistas) a frequentemente se envolver no etnocdio intraestado. O enredo, diz o autor,

    global em sua fora, produto do medo justificado de que o jogo mundial real escapou da rede

    de soberania nacional e diplomacia entre naes.

    As minorias tornam nebulosas as fronteiras entre ns e eles. O projeto nacional

    32 Ib., 28-29.33 Ib., p.39.34 Ib., p.40.

  • 24

    possui uma relao ambgua com a globalizao que, por sua vez, no tem rosto e que,

    portanto, no pode ser objeto do dio e muito menos do etnocdio. As minorias, contudo,

    podem. Appadurai conclui que em vez de dizer que as minorias produzem violncia, seria

    melhor dizer que a violncia, especialmente no mbito da nao, requer minorias.35 E

    acrescenta que todo majoritarianismo leva dentro de si as sementes do genocdio, uma vez

    que est invariavelmente ligado a ideias sobre a singularidade e a completude do ethnos

    nacional.36

    Dessa forma, essa violncia por exemplo, a xenofobia no se refere

    necessariamente a antigos dios e medos primitivos, se configurando como um esforo para

    exorcizar o novo, o emergente e o incerto. Em outras palavras, a globalizao.37 Essa

    incerteza inscrita, por sua vez, em processos mais amplos de mudana demogrfica, temor

    econmico e deslocamentos em massa de populaes, exacerbados pela mdia e pelas

    mquinas de propaganda estatais ou semiestatais. Esse processo se acelera no Brasil

    principalmente a partir da dcada de 1930, apesar de j ser observado ainda no sculo XIX,

    conforme veremos no curso deste trabalho.

    Wallerstein tambm destaca a interdependncia entre os conceitos de maioria e

    minoria, observando no entanto que a noo de minoria no necessariamente um conceito

    baseado na aritmtica, mas uma referncia ao grau de poder social: As maiorias numricas

    podem ser minorias sociais.38

    2.3 Raa, etnia e nao: refgios provisrios do povo

    As questes voltadas para a utilidade econmica dos imigrados ou, ainda, seus

    custos sociais foram constantemente pautadas pela discusso sobre uma identidade nacional

    brasileira. Da ameaa da vadiagem ao seu enorme custo financeiro, na forma de subsdios

    estatais, passando pelo estigma de portar um projeto coletivo que ameaava a brasilidade

    desejada, os imigrantes experimentaram no Brasil um tipo de etnicidade prpria, complexa,

    objeto deste estudo que pretende expor, por meio da imprensa, as negociaes identitrias

    35 Ib., p.41.36 Ib., p.50.37 Ib., p.42-43.38 WALLERSTEIN, 1991:129-130.

  • 25

    realizadas no Brasil ao longo dos dois sculos aqui pesquisados.

    A utilizao do termo tnico pede uma reflexo mais profunda, sem a qual poder

    haver certa confuso. tnico designa frequentemente outros povos, contrastivamente (e

    muitas vezes negativamente), e tem suas razes etimolgicas no termo etnicidade (ethnikos).

    No mundo grego, o termo ethnos fazia referncia aos povos brbaros ou aos povos gregos no

    organizados segundo o modelo da Cidade-Estado. J o termo latino ethnicus designava, na

    tradio eclesistica do sculo XIV, os pagos em oposio aos cristos. O termo, portanto,

    designa em sntese todos aqueles que so diferentes de ns mesmos e, na medida em que

    somos todos diferentes das outras pessoas, somos todos tnicos.39

    Apenas na segunda metade do sculo XX o debate sobre a etnicidade ganha fora, em

    meio a demandas dos diversos agrupamentos sociais que, por todo o mundo, experimentavam

    na prtica a insuficincia dos estigmas de pertencimento, por um lado, e o totalitarismo

    identitrio nacionalista, por outro. O chamado modelo americano contribui de forma

    decisiva para introduzir no debate a noo do comunitarismo tnico, indo na contramo da

    tradio nacional francesa, que fundamentava sua democracia na ligao direta, no

    mediatizada por grupos, entre o cidado e o Estado.40 A novidade postulada por uma crescente

    gama de socilogos e antroplogos faz referncia emergncia da pertena tnica como

    categoria pertinente para a ao social e a crescente tendncia de fazer derivar dela lealdades e

    direitos coletivos.

    Se num momento anterior argumentava-se que os vnculos tnicos eram fontes

    potenciais de lealdade, concorrendo com a nao, impe-se cada vez com mais clareza a

    ideia de que o grupo tnico (a unidade que engloba os indivduos definidos atravs de uma

    herana cultural comum) chegou a concorrer com a classe (a unidade que engloba os

    indivduos definidos por sua posio comum dentro do circuito da produo) como categoria

    fundamental da diferenciao social. A comunidade tnica , nessa perspectiva, uma forma

    alternativa de organizao social de classe, e a etnicidade uma forma de identificao

    alternativa da conscincia de classe.41

    A sociedade brasileira do sculo XIX, em sua particularidade de ser ao mesmo tempo

    independente e viver sombra da nobreza de origem portuguesa e europeia, foi apontada por

    distintos autores da poca como um laboratrio racial, na medida em que se negociava a

    39 POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:23.40 Ib., p.17.41 POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:26.

  • 26

    identidade nacional a partir de desejos de embranquecimento. Nesta negociao mesclavam-

    se questes apresentadas pela integrao nacional de uma sociedade ps-colonial e

    reivindicaes tnicas e/ou nacionalistas de distintas sociedades, principalmente dos

    diferentes agrupamentos europeus, africanos e indgenas.

    O sistema internacional de comunicao do mundo moderno acentua a universalizao

    dos sentimentos nacionais e tnicos, a partir, principalmente, do desenvolvimento dos meios e

    tecnologias de comunicao e a explorao da influncia desses meios e tecnologias sobre as

    crescentes prticas culturais e sociais midiatizadas. As novas geografias miditicas, o

    crescimento dos espaos virtuais, as redes sociais midiatizadas e os processos de

    autocomunicao em massa so parte do contexto em que a formao identitria diasprica

    ou no se desenvolve, sugere Thomas Tufte.42

    Em vez de promover a uniformizao e a assimilao, como sustentavam boa parte

    dos tericos brasileiros da rea de imigrao durante pelo menos 150 anos, a aproximao dos

    distintos grupos tnicos promoveu uma intensa negociao identitria, gerando resultados

    sensivelmente distintos. De um modo geral, em vez de promover um cenrio de assimilao

    ou uniformizao, o aumento dos contatos intergrupais teve como consequncia, em distintas

    sociedades, o aumento da percepo acerca da ameaa a tradies culturais locais,

    favorecendo uma ideologia de resistncia uniformizao ou dominao cultural e

    lingustica.43 Ao mesmo tempo, os grupos de imigrantes recm-chegados ao Brasil oitocentista

    mantinham, em grande parte, seus costumes intactos, a exemplo dos grupos de trabalhadores

    africanos escravizados pelo regime portugus e, depois, brasileiro. Essa dinmica no so

    contribuiu para a preservao destas identidades que por vezes se mantiveram to intactas

    que passaram a existir apenas no Brasil , como promoveu uma transformao identitria

    tanto dos brasileiros quanto dos imigrantes, local da cultura que Bhabha denominou entre-

    tempo (1998) e que Lesser classificou de hifenizao (2001).

    Esta frmula no pretende colocar, conforme sugeriu R. Cohen44, em uma nova

    garrafa o antigo vinho da cultura, mas antes repensar o conceito em termos menos

    essencialistas, substituindo as vises tradicionais de homogeneidade cultural por uma

    perspectiva construtivista e dinmica. Questiona-se, aqui, por exemplo, a ideia do pluralismo

    tnico, conceito que serviu para que o colonizador recortasse e identificasse ficticiamente

    42 COGO; ELHAJJI; HUERTAS (eds.), 2012:13.43 POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:28.44 COHEN, 1978 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:29.

  • 27

    sociedades locais que, no perodo pr-colonial, eram muito mais dinmicas e se

    transformavam com frequncia a partir de fatores como as migraes, o comrcio ou as

    conquistas de territrios ou povos. Poutignat e Streiff-Fenart observam que a retomada da

    dicotomia sociedades industriais/sociedades primitivas sustentada pela conscientizao dos

    pressupostos ideolgicos da etnologia clssica e das divises que ela estabelecera entre

    civilizados e no civilizados.45

    Uma das dicotomias formuladas no Brasil durante o sculo XIX, com profundas razes

    at a contemporaneidade, foi a dicotomia branco (europeu)/negro (africano)46, que tinha uma

    dupla funo. Ao mesmo tempo em que exclua do arcabouo cultural a figura do indgena,

    projetava uma sociedade europeizada que, ao suprimir a escravido de suas prticas cotidianas

    e jurdicas, excluiria tambm (idealmente) o prprio negro. Mas no s: o ideal do branco

    europeu autntico industrioso, morigerado etc. se ope ao que se comeou a chamar de

    escria da Europa, como por exemplo os portugueses de Aores e os espanhis das Ilhas

    Canrias. Alguns editais pblicos de incentivo imigrao europeia, analisados neste

    trabalho, chegaram a especificar que s seriam subsidiados europeus do norte e do centro do

    continente. Os do sul estavam excludos. A noo de etnia , assim, perpassada por relaes

    profundamente ambguas e intimamente vinculadas s noes de povo, raa e/ou nao.

    Dessa anlise surge outra questo central ao nosso objeto: o que nao? E, mais

    especificamente, o que era nao no Brasil oitocentista? Como ajustar, se questiona

    Hobsbawm, entidades historicamente novas, emergentes, mutveis e, ainda hoje, longe de

    serem universais em um quadro de referncia dotado de permanncia e universalidade? Alm

    disso, acrescenta o historiador, os critrios usados para esse objetivo lngua, etnicidade ou

    qualquer outro so em si mesmos ambguos, mutveis, opacos e to inteis para os fins de

    orientao do viajante quanto o so as formas das nuvens se comparadas com a sinalizao da

    terra. Essa dinmica torna estes conceitos excepcionalmente convenientes para propsitos

    propagandsticos e programticos e no para fins descritivos.47

    Hobsbawm observa que a maior parte da literatura sobre o tema das naes e dos

    nacionalismos centrou-se na questo o que uma (ou a) nao?. Ele conclui que a

    principal caracterstica desse modo de classificar grupos de seres humanos que apesar da

    alegao, daqueles que pertencem a uma nao, de que ela em alguns sentidos fundamental

    45 POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:31.46 LESSER, 2001.47 HOBSBAWM, 1990:15.

  • 28

    e bsica para a existncia social de seus membros e mesmo para a sua identificao individual

    nenhum critrio satisfatrio pode ser achado para decidir quais das muitas coletividades

    humanas deveriam ser rotuladas desse modo.48 Mesmo que, poltica ou administrativamente,

    a escolha por uma ou mais nacionalidades seja uma condio para que o Estado fornea um

    documento vlido para o acesso a servios, a limitao da identidade a um plebiscito nico e

    definitivo acerca desta nao ou nacionalidade suprime uma quantidade to grande de

    marcadores culturais, sociais, polticos e econmicos que chega a ser impensvel a

    possibilidade de exprimi-los de um modo razoavelmente organizado. Este historiador

    acrescenta que, na verdade, tambm no possvel reduzir nem mesmo a nacionalidade a

    uma dimenso nica, seja poltica, cultural ou qualquer outra (a menos, certo, que se seja

    obrigado a isso pela force majeure dos Estados.49

    J Poutignat e Streiff-Fenart concluem, sobre o mesmo tema, que as tentativas de

    definies subjetivas pelo critrio de conscincia de pertena so tautolgicas e a

    posteriori, dependentes dos discursos de afirmao nacional.50 Para Hobsbawm, as naes

    so fenmenos duais, construdos essencialmente pelo alto, mas que no podem ser

    compreendidas sem ser analisadas de baixo, ou seja, em termos das suposies, esperanas,

    necessidades, aspiraes e interesses das pessoas comuns, as quais no so necessariamente

    nacionais e menos ainda nacionalistas.51

    Antes de 1884, sustenta Hobsbawm, a palavra nacin significava simplesmente o

    agregado de habitantes de uma provncia, de um pas ou de um reino e tambm um

    estrangeiro, mostrando como at meados do sculo XX o conceito ainda no estava claro.

    Bhabha tambm mostra como o prprio conceito de territrio etimologicamente instvel,

    derivando tanto de terra como de terrere (amedrontar), relacionado ainda a territorium: um

    lugar do qual as pessoas so expulsas pelo medo52; j a palavra ptria, ou em seu uso mais

    popular tierra, a ptria, significava no dicionrio espanhol de 1726 o lugar, o municpio ou

    a terra onde se nascia, ou ainda qualquer regio, provncia ou distrito de qualquer domnio

    senhorial ou Estado. Hobsbawm lembra que, em seu sentido moderno e basicamente poltico,

    o conceito de nao historicamente muito recente53 e parte da ideologia liberal: Na

    48 Ib., p.14.49 Ib., p.17.50 POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:35.51 HOBSBAWM, 1990:20.52 BHABHA, 1998:147.53 HOBSBAWM, 1990:28-30.

  • 29

    medida em que a prpria nao era historicamente nova, opunha-se aos conservadores e

    tradicionalistas e, portanto, atraa seus oponentes.54

    A nao, sugere Walker Connor55, o grupo mais amplo ao qual as pessoas creem

    estar ligadas por uma filiao ancestral, uma crena subjetiva em um parentesco fictcio. A

    etnicidade, por sua vez, refere-se aos povos que so naes potenciais, situadas em um

    estgio preliminar da formao da conscincia nacional. Neste estgio, diz Connor, a

    solidariedade tnica deste grupo mais amplo manifesta-se no confronto com elementos

    estrangeiros e origina-se na xenofobia, sem por isso constituir-se uma pertena consciente de

    si prpria e dotada de uma significao positiva. Connor conclui que o engano comum a

    muitas pesquisas sobre a nao e o nacionalismo seria () acreditar que a nao seja uma

    realidade tangvel e de, assim, t-la associada ao Estado.

    Poutignat e Streiff-Fenart se questionam, da mesma forma, qual a fora que inspira

    nos indivduos esse desejo de viver em conjunto e essa vontade de permanecer unidos no

    quadro nacional? No , argumenta, pelo interesse individual em aderir, mas ao contrrio um

    sentimento (o amor ptria) no qual se incluem em grande parte o sacrifcio, o luto e o

    sofrimento compartilhado no passado, e cuja memria se transmite pelo culto aos

    ancestrais, pela lembrana dos grandes homens e suas aes heroicas.56

    Wallerstein argumenta que pouco importa definir a ideia de passado em termos gerais

    de grupos geneticamente constitudos (raas), grupos sociopolticos histricos (naes)

    ou grupos culturais (tnicos). Para este autor, todos so modos de construir a noo de

    povo, invenes da ideia de passado, fenmenos polticos contemporneos.57 Para

    Wallerstein, nao, raa, etnia e mesmo a classe seguem sendo refgios para os oprimidos

    na economia-mundo capitalista, o que d a eles sua popularidade como conceitos,

    explicando igualmente porque as classes trabalhadores do saltos to rpidos entre esses

    particularismos primeira vista incompatveis. Quando um refgio parece ineficaz de

    momento, conclui o autor, preciso buscar outro com rapidez.58

    Os ancestrais da sociedade brasileira no estavam, destaca-se, vinculados aos

    cidados da nao por algum tipo de filiao biolgica. O mesmo foi observado na maior

    parte das sociedades at hoje estudadas pelos antroplogos, socilogos e outros estudiosos.

    54 HOBSBAWM, 1990:51-52.55 1978, 1993 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:45.56 POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:35.57 WALLERSTEIN, 1991:123-124.58 WALLERSTEIN, 1991:356-357.

  • 30

    Poutignat e Streiff-Fenart acrescentam, em dilogo com o objeto de nossa pesquisa, que a

    relao que se estabelece entre os vivos e os mortos, entre o passado e o presente, de ordem

    espiritual, e portanto no probe de modo algum, mas ao contrrio funda a possibilidade de

    que estrangeiros naturalizados tornem seu o passado heroico, os grandes homens e a

    glria da nao qual optaram por aderir como parece ser o caso de alguns grupos de

    colonos no Brasil aqui pesquisados, incluindo as comunidades alems que reverenciavam a

    figura do prncipe regente de Portugal.59 No existem grupos racialmente puros, mas

    populaes que esqueceram o fato de serem originrias de uma fuso, e () tal esquecimento

    essencial para fundar o sentimento de pertena comum.60

    No Brasil, observa-se um interesse de parte da imprensa em construir a nao poltica

    no a partir do grupo racial ou tnico, mas contra ele. Os colonos aqui chegados deveriam

    contribuir com sua cultura, mas isso se daria sobretudo na forma de abdicao de sua

    etnicidade em prol da construo de uma brasilidade que assimilaria todos os contedos mais

    vantajosos de cada povo, se tornando portanto o povo brasileiro uma raa superior, fruto de

    um cuidadoso experimento levado a cabo pelos especialistas (os qumicos sociais) em

    melhoramentos raciais.

    A distino entre os termos raa e etnia no caso da tradio acadmica anglo-

    saxnica, sugerem Poutignat e Streiff-Fenart, indica apenas que os socilogos aceitam de

    modo acrtico a terminologia corrente, segundo a qual o termo racial possui conotaes

    emotivas mais poderosas do que o termo tnico, enquanto nas cincias sociais francesas o

    xito do termo etnia liga-se precisamente ao fato de permitir que se evite o mal-estar pela

    conotao biolgica da palavra raa, o que absolutamente no impede de acarretar

    implicitamente as mesmas significaes.61 Os autores observam, por exemplo, que na Frana

    o termo etnia chegou a possuir possui m fama precisamente por no poder mais ser

    pensado de outro modo a no ser como substituto da palavra raa.

    Em Economia e sociedade, Weber aborda os conceitos de raa, etnia e nao62,

    argumentando que o que distingue a pertena racial da pertena tnica que a primeira seria

    realmente fundada na comunidade de origem, ao passo que o que funda o grupo tnico a

    59 ALENCASTRO; RENAUX, 1997:330-331.60 POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:36.61 Ib., p.43.62 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva; traduo de Regis Barbosa

    e Karen Elsabe Barbosa; Reviso tcnica de Gabriel Cohn - Braslia, DF: Editora Universidade de Braslia: So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 1999. Disponvel em http://bit.ly/1xREhJ7. Acesso em 12 dez. 2014. Ver especialmente pginas 172 a 186.

  • 31

    crena subjetiva na comunidade de origem. A nao, assim como o grupo tnico, baseada na

    crena da vida em comum, mas se distingue deste ltimo pela paixo (pathos) ligada

    reivindicao de um poderio poltico. Para o autor, os grupos tnicos so esses grupos que

    alimentam uma crena subjetiva em uma comunidade de origem fundada nas semelhanas de

    aparncia externa ou dos costumes, ou dos dois, ou nas lembranas da colonizao ou da

    migrao, de modo que esta crena torna-se importante para a propagao da comunalizao,

    pouco importando que uma comunidade de sangue exista ou no objetivamente.63

    Poutignat e Streiff-Fenart observam que a raa s se torna importante

    sociologicamente quando entra na explicao do comportamento significativo das pessoas

    umas em relao s outras, ou seja, quando ela sentida subjetivamente como uma

    caracterstica comum e constitui por isso uma fonte de atividade comunitria. Weber, ao

    participar de um debate sobre o tema no incio do sculo XX, reagira s tentativas dos

    sociodarwinistas de reduzir os fatos sociolgicos a qualidades inatas ou hereditrias,

    demonstrando como o mtico cheiro de negro, que alimentava os sentimentos de repulsa

    dos brancos dos Estados Unidos em relao a este grupo, era na verdade uma inveno dos

    Estados do norte, destinada a explicar seu recente 'distanciamento' dos negros.64

    Esta a dinmica na qual se insere a imprensa e seu debate sobre qual o imigrante

    ideal o Brasil deveria estimular, apresentando os europeus do norte e do centro como

    industriosos e laboriosos e os asiticos, os rabes, os judeus e outros grupos como nocivos ao

    pas. Os imigrantes indesejados por parte da elite brasileira se uniram, muitas vezes, a outros

    grupos indesejados que j sofriam o estigma e a vinculao preconceituosa de uma cultura

    fictcia e uma identidade tnica, como foi o caso dos negros, dos distintos povos indgenas e,

    em muitos momentos, dos prprios brasileiros no europeus (ou no europeizados). Conforme

    destaca Weber e outros autores, o grupo tnico uma construo social cuja existncia

    sempre problemtica.

    Outro argumento de Weber que interessa para nosso objeto o de que a identidade

    tnica ou seja, a crena na vida comum tnica constri-se a partir da diferena: A atrao

    entre aqueles que se sentem como de uma mesma espcie indissocivel da repulsa diante

    daqueles que so percebidos como estrangeiros. Essa ideia implica que no o isolamento

    que cria a conscincia de pertena, mas, ao contrrio, a comunicao das diferenas das quais

    63 WEBER, [1921] 1971, p.416 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:37.64 POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011:38.

  • 32

    os indivduos se apropriam para estabelecer fronteiras tnicas.65

    Com o substancial aumento, a partir da segunda metade do sculo XX, desta

    comunicao das diferenas em todo o mundo principalmente a partir do advento da

    televiso e, j ao final do sculo, da Internet , de se supor, como verificamos neste trabalho,

    que a conscincia de pertena seria intensificada, e no homogeneizada (como muitos autores

    j sugeriram). A maior disseminao de mensagens dos distintos grupos tnicos, mais

    recentemente, promoveu um intercmbio massivo de distintos contedos culturais com o

    consequente aumento, ao nosso ver, da xenofobia, da intolerncia religiosa e do racismo no

    Brasil. Estas prticas aqui observadas permitem identificar uma trajetria comum nestes dois

    sculos de construo da sociedade brasileira, a partir das seguidas tentativas pblicas de

    menosprezar as diferentes etnias, assimilar os diversos grupos e at mesmo suprimir

    identidades. O conceito de minoria tnica, no Brasil, foi frequentemente tratado como um

    problema, a ser resolvido no futuro, na esperana de que este futuro nunca chegue.

    2.4 A identidade hifenizada

    Lesser, por sua vez, examina como os imigrantes no europeus e seus descendentes

    negociaram, em nossa sociedade, sua identidade como brasileiros. Seu pressuposto, tornado

    pblico no final dos anos 1990 e publicado no Brasil no incio dos 2000, o de que a

    etnicidade vem se tornando um tema popular pelo fato de ter sido de importncia crtica para

    a negociao da identidade nacional brasileira desde, principalmente, a segunda metade do

    sculo XIX. Essa barganha deu-se, diz o autor, em todos os nveis da sociedade, mas o foco

    do trabalho de Lesser descobrir como e por que os imigrantes e seus descendentes entraram

    em discusso pblica com as lideranas polticas e intelectuais do Brasil.66

    Os recm-chegados ao pas teriam entendido que o discurso das elites, aparentemente

    esttico, era na verdade ambguo. A partir desse entendimento, diz Lesser, esses imigrantes

    tanto manipularam quanto modificaram o sistema, tornando-se rapidamente parte integrante

    da nao brasileira moderna, medida que eles desafiavam as ideias de como essa nao

    deveria ser imaginada e construda.67 Os no europeus, sustenta o autor, tinham mais a

    65 Ib., p.40.66 LESSER, 2001:19.67 Id.

  • 33

    ganhar abraando tanto uma nacionalidade brasileira uniforme, tal como imaginada, quanto

    suas novas etnias ps-migratrias, com as elites imigrantes estudantes universitrios,

    diretores de colnias agrcolas, proprietrios de grandes ou pequenas empresas, jornalistas e

    intelectuais se engajando em um discurso pblico sobre o que significava ser brasileiro. A

    imprensa, tanto imigrante quanto nacional, foi uma das ferramentas mais utilizadas nesse

    processo.

    Alguns desses imigrantes no europeus reivindicavam ser brancos, de modo a se

    enquadrar na sociedade brasileira tradicionalmente construda em torno da bipolaridade

    branco/negro. Outros, no entanto, reivindicaram diz Lesser, em um de seus principais

    argumentos novas categorias hifenizadas. Ao nos aproximarmos da virada do milnio, o

    Brasil permanece sendo um pas onde a etnicidade hifenizada predominante, embora no

    reconhecida, argumenta.68 Esta negociao foi realizada a partir da alterao da ideia de

    nao, de acordo com as diversas propostas de imigrantes influentes e da resposta da

    sociedade brasileira nos distintos contextos histricos. Alm disso, ao evidenciar a

    insuficincia do que chama de continuum preto/branco verificada em boa parte do discurso

    das elites brasileiras, Lesser prope analisar, a partir da ruptura dessa bipolaridade, de que

    forma os encontros culturais geraram as novas etnicidades hifenizadas, que tinham em

    comum, todas elas, sua brasilidade.69

    As medidas discricionrias dos sucessivos governos em termos de poltica migratrias

    sugerem para este autor que os discursos da elite sobre raa e etnicidade eram

    surpreendentemente flexveis, sob condies especficas.70 Lesser observa que a ampliao

    da identidade nacional incluindo agora os srio-libaneses e os japoneses permitiu que a

    elite brasileira fosse enriquecida, ao modesto custo de deixar enfurecidos alguns idelogos

    abertamente racistas.71 Ele argumenta que tericos da alegada democracia racial, como

    Gilberto Freyre, reformularam velhas ideias, retrica esta que nunca levou ao

    desaparecimento do preconceito popular ou oficial, mesmo que grande parte das

    comunidades rabe e japonesa tenham alcanado sucesso nos mbitos econmico, social,

    artstico e poltico.72 Lesser sugere que o Brasil abriga uma sociedade multicultural porm

    68 Ib., p.19-20.69 LESSER, 2001:31.70 LESSER analisa, na referida obra (2001), o perodo entre 1850 e 1950.71 LESSER, 2001:294.72 Id.

  • 34

    no hifenizada, com as negociaes sobre a identidade nacional em andamento.73

    2.5 Ainda o mito da democracia racial

    As areias movedias da nacionalidade e da etnicidade relevaram-se frequentemente

    nas discusses sobre a convenincia de se receber determinados grupos de imigrantes,

    lembra Lesser.74 Diversos exemplos dessa dinmica so expostos neste trabalho, a partir dos

    relatos e posicionamentos publicados na imprensa brasileira em mais de dois sculos. Boa

    parte da linguagem utilizada, acrescenta Lesser, provinha da eugenia lamarckiana, que

    teorizava que as caractersticas e, portanto, a cultura eram adquiridas por intermdio dos

    ambientes humanos e climticos locais. A ideia central era de que uma nica raa nacional

    era possvel, se projetando em polticas imigratrias que dividiram os imigrantes ao longo do

    perodo pesquisado em desejveis e indesejveis, com as palavras sendo eventualmente

    trocadas laboriosos, industriosos, inteligentes, morigerados etc. mas buscando, no entanto,

    o mesmo objetivo.

    Lesser sustenta que a brancura continuou como um requisito importante para a

    integrao raa brasileira, mas o que significava ser branco mudou de forma marcante

    entre 1850 e 1950. Esta mudana sentida nos relatos da imprensa aqui expostos. A to

    alardeada assimilao do elemento aliengena, uma expresso snte