guia.p.i.da.historia.do.brasil

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  • GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DA HISTRIA DO BRASIL

    LEANDRO NARLOCH

    Editora: LEYASo Paulo, 2009

    Reviso textual realizada por Rosngela Viana

  • CONTRA-CAPA

    hora de jogar tomates na historiografia politicamente correta. Este guia rene histrias que vo diretamente contra ela. S erros das vtimas e dos heris da bondade, s virtudes dos considerados viles. Algum poder dizer que se trata do mesmo esforo dos historiadores militantes, s que na direo oposta. verdade. Quer dizer, mais ou menos.

    Este livro no quer ser um falso estudo acadmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocao. Uma pequena coletnea de pesquisas histricas srias, irritantes e desagradveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom nmero de cidados.

  • POR UMA NOVELA SEM MOCINHOS

    Existe um esquema to repetido para contar a histria de alguns pases que basta misturar chaves, mudar datas, nomes de naes colonizadas, potncias opressoras, e pronto. Voc j pode passar em qualquer prova de histria na escola e, na mesa do bar, dar uma de especialista em todas as naes da Amrica do Sul, frica e sia. As pessoas certamente concordaro com suas opinies, os professores vo adorar as respostas.

    O modelo simples e rpido, mas tambm chato e quase sempre errado. At mesmo as novelas de TV tm roteiros mais criativos. Os ricos s ganham o papel de viles se fazem alguma bondade, porque foram movidos por interesses. J os pobres so eternamente do bem, vtimas da elite e das grandes potncias, e s fazem besteira porque so obrigados a isso. Nessa estrutura simplista, o nico aspecto que importa o econmico: o passado vira um jogo de interesses e apenas isso. S se contam histrias que no ferem o pensamento politicamente correto e no correm o risco de serem mal interpretadas por pequenos incapacitados nas escolas. O gnero tambm tem tabus e personagens proibidos, como o rei bom, o fraco opressor ou os povos que largaram a misria por mrito prprio e hoje no se consideram vtimas.

    No sculo 20, quando esse esquema se tornou comum, acreditvamos num mundo dividido entre preto e branco, fortes e fracos, ganhadores e perdedores. Essa viso j estava pronta quando estudiosos se debruavam sobre a histria: o que eles faziam era encaixar, fora, os

  • eventos do passado em sua viso de mundo. Isso mudou. Uma nova historiografia ganha fora no Brasil. Se no comeo da dcada de 1990 o jornalista Paulo Francis falava de rinocerontes la Ionesco que passam por historiadores em nosso pas, na ltima dcada apareceram acadmicos alertas de que no so polticos a escrever manifestos. Eles tentam elaborar concluses cientficas baseadas em arquivos inexplorados de cartrios, igrejas ou tribunais, tm mais cuidado ao falar de conseqncias de uma lgica financeira e pesquisam sem se importar tanto com o uso ideolgico de suas concluses. As interpretaes que tiram do armrio so mais complexas e, numa boa parte das vezes, saborosamente desagradveis para os que adotam o papel de vtimas ou bons mocinhos.

    A histria fica assim muito mais interessante. No sculo 18, quem quisesse ir de Parati, no Rio de Janeiro, atual Ouro Preto, em Minas Gerais, tinha que cavalgar por dois meses no caminho, passava por casebres miserveis onde moravam tanto escravos quanto seus senhores, que trabalhavam juntos e comiam, sem talheres, na mesma mesa. Sabe-se hoje que, nas vilas do ouro de Minas, havia ex-escravas riqussimas, donas de casas, jias, porcelanas, escravos, e bem relacionadas com outros empresrios. Os primeiros sambistas, considerados hoje pioneiros da cultura popular, tinham formao em msica clssica, plagiavam canes estrangeiras e largaram o samba para montar bandas de jazz. Uma das conseqncias da chegada dos jesutas a So Paulo foi dar um alvio mata atlntica at ento, os ndios botavam fogo na floresta no s para abrir espao de cultivo, mas para cercar os animais com o fogo e depois abat-los.

    O problema que essa nova histria demora a chegar s pessoas em geral. Os livros didticos continuam dizendo que o verdadeiro nome de Zumbi era Francisco e que ele teve educao catlica - uma fico criada

  • pelo poltico e jornalista gacho Dcio Freitas. Ainda se aprende na escola que o Brasil praticou um genocdio no Paraguai durante uma guerra que teria sido criada pela Inglaterra. E tem muito descendente de europeu achando que culpado pelo trfico de escravos, apesar de a maioria de seus ancestrais ter imigrado quando a escravido se extinguia.

    No processo de fabricao de um esprito nacional, normal que se inventem tradies, heris, mitos fundadores e histrias de chorar, que se jogue um brilho a mais em episdios que criam um passado em comum para todos os habitantes e provocam uma sensao de pertencimento. Se este pas quer deixar de ser caf com leite, um bom jeito de amadurecer admitir que alguns dos heris da nao eram picaretas ou pelo menos pessoas do seu tempo. E que a histria nem sempre uma fbula: no tem uma moral edificante no final e nem causas, conseqncias, viles e vtimas facilmente reconhecveis.

    Por isso hora de jogar tomates na historiografia politicamente correta. Este guia rene histrias que vo diretamente contra ela. S erros das vtimas e dos heris dabondade, s virtudes dos considerados viles. Algum poder dizer que se trata do mesmo esforo dos historiadores militantes, s que na direo oposta. verdade. Quer dizer, mais ou menos. Este livro no quer ser um falso estudo acadmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocao. Uma pequena coletnea de pesquisas histricas srias, irritantes e desagradveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom nmero de cidados.

  • CINCO VERDADES QUE VOC NO DEVERIA CONHECER

    Em 1646,os jesutas que tentavam evangelizar os ndios no Rio de Janeiro tinham um problema. As aldeias onde moravam com os nativos ficavam perto de engenhos que produziam vinhos e aguardente. Bbados, os ndios tiravam o sono dos padres. Numa carta de 25 de julho daquele ano, Francisco Carneiro, o reitor do colgio jesuta, reclamou que o lcool provocava ofensas a Deus, adultrios, doenas, brigas, ferimentos, mortes e ainda fazia o pessoal faltar s missas. Para acabar com a indisciplina, os missionrios decidiram mudar trs aldeias para um lugar mais longe, de modo que no ficasse to fcil passar ali no engenho e tomar umas. No deu certo. Foi s os ndios e os colonos ficarem sabendo da deciso para se revoltarem juntos. Botaram fogo nas choupanas dos padres, que imediatamente desistiram da mudana.

    Os anos passaram e o problema continuou. Mais de um sculo depois, em 1755, o novo reitor se dizia contrariado com os ndios por causa do gosto que neles reina de viver entre os brancos. Era comum fugirem para as vilas e os engenhos, onde no precisavam obedecer a tantas regras. O reitor escreveu a um colega dizendo que eles se recolhem nas casas dos brancos a ttulo de os servir; mas verdadeiramente para viver a sua vontade e sem coao darem-se mais livremente aos seus costumados vcios. O contrrio tambm acontecia. Nas primeiras dcadas do Brasil, tantos portugueses iam fazer festa nas aldeias que os representantes do reino portugus ficaram preocupados. Enquanto tentavam fazer os ndios viver

  • como cristos, viam os cristos vestidos como ndios, com vrias mulheres e participando de festas no meio das tribos. Foi preciso editar leis para conter a convivncia nas aldeias. Em 1583, por exemplo, o conselho municipal de So Paulo proibiu os colonos de participar de festas dos ndios e beber e danar segundo seu costume.

    Os historiadores j fizeram retratos bem diversos dos ndios brasileiros. Nos primeiros relatos, os nativos eram seres incivilizados, quase animais que precisaram ser domesticados ou derrotados. Uma viso oposta se propagou no sculo 19, com o indianismo romntico, que retratou os nativos como bons selvagens donos de uma moral intangvel. Parte dessa viso continuou no sculo 20. Historiadores como Florestan Fernandes, que em 1952 escreveu A Funo Social da Guerra na Sociedade Tupinamb, montaram relatos onde a cultura indgena original e pura teria sido destruda pelos gananciosos e cruis conquistadores europeus. Os ndios que ficaram para essa histria foram os bravos e corajosos que lutaram contra os portugueses. Quando eram derrotados e entravam para a sociedade colonial, saam dos livros. Apesar de tentar dar mais valor cultura indgena, os textos continuaram encarando os ndios como coisas, seres passivos que no tiveram outra opo seno lutar contra os portugueses ou se submeter a eles. Surgiu assim o discurso tradicional que at hoje alimenta o conhecimento popular e aulas da escola. Esse discurso nos faz acreditar que os nativos da Amrica viviam em harmonia entre si e em equilbrio com a natureza at os portugueses chegarem, travarem guerras eternas e destrurem plantas, animais, pessoas e culturas.

    Na ltima dcada, a histria mudou outra vez. Uma nova leva de estudos, que ainda no se popularizou, toma a cultura indgena no como um valor cristalizado. Sem negar as caadas que os ndios sofreram, os

  • pesquisadores mostraram que eles no foram s vtimas indefesas. A colonizao foi marcada tambm por escolhas e preferncias dos ndios, que os portugueses, em nmero muito menor e precisando de segurana para instalar suas colnias, diversas vezes acataram. Muitos ndios foram amigos dos brancos, aliados em guerras, vizinhos que se misturaram at virar a populao brasileira de hoje. Os ndios transformaram-se mais do que foram transformados, afirma a historiadora Maria Regina Celestino de Almeida na tese Os ndios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial, de 2000. As festas e bebedeiras de ndios e brancos mostram que no houve s tragdias e conflitos durante aquele choque das civilizaes. Em pleno perodo colonial, muitos ndios deviam achar bem chato viver nas tribos ou nas aldeias dos padres. Queriam mesmo era ficar com os brancos, misturar-se a eles e desfrutar das novidades que traziam.

    O contato das duas culturas merece um retrato ainda mais distinto, at grandiloquente. Quando europeus e amerndios se reencontraram, em praias do Caribe e do Nordeste brasileiro, romperam um isolamento das migraes humanas que completava 50 mil anos. verdade que o impacto no foi leve tanto tempo de separao provocou epidemias e choques culturais. Mas eles aconteceram para os dois lados e no apagam uma verdade essencial: aquele encontro foi um dos episdios mais extraordinrios da histria do povoamento do ser humano sobre a Terra, com vantagens e descobertas sensacionais tanto para os europeus quanto para centenas de naes indgenas que viviam na Amrica. Um novo ponto de vista sobre esse episdio surge quando se analisa alguns fatos esquecidos da histria de ndios e portugueses.

  • QUEM MAIS MATOU NDIOS FORAM OS NDIOS

    Uma das concepes mais erradas sobre a colonizao do Brasil acreditar que os portugueses fizeram tudo sozinhos. Na verdade, eles precisavam de ndios amigos para arranjar comida, entrar no mato procura de ouro, defender-se de tribos hostis e at mesmo para estabelecer acampamentos na costa.

    Descer do navio era o primeiro problema. Os comandantes das naus europeias costumavam escolher bem o lugar onde desembarcar, para no correr o risco de serem atacados por ndios nervosos e nuvens de flechas venenosas. Tanto temor se baseava na experincia. Depois de meses de viagem nas caravelas, os navegadores ficavam mal nutridos, doentes, fracos, famintos e vulnerveis. Chegavam a lugares desconhecidos e frequentemente tinham azar: levavam uma surra e precisavam sair s pressas das terras que achavam ter conquistado. Acontecia at de terem que mendigar para arranjar comida, como na primeira viagem de Vasco da Gama ndia, em 1498.

    Vasco da Gama ofereceu a corte de Calcut chapus, bacias e azeite em troca de pimenta. Os nobres indianos consideraram os produtos ridiculamente primitivos, e s no executaram onavegador porque no viram ameaa no estranho esfarrapado. Sem dinheiro para alimentar a tripulao, Vasco da Gama mandou que seus homens sujos e famintos fossem para as ruas pedir por comida.

    O tratamento foi diferente no Brasil, mas nem tanto.Os portugueses no eram seres onipotentes que faziam o que quisessem nas praias brasileiras. Imagine s. Voc viaja para o lugar mais desconhecido do

  • mundo, que s algumas dzias de pessoas do seu pas visitaram. H sobre o lugar relatos tenebrosos de selvagens guerreiros que falam uma lngua estranha, andam nus e devoram seus inimigos ao chegar, voc percebe que isso verdade. Seu grupo est em vinte ou trinta pessoas; eles, em milhares. Mesmo com espadas e arcabuzes, sua munio limitada, o carregamento demorado e no contm os milhares de flechas que eles possuem. Numa condio dessas, provvel que voc sentisse medo ou pelo menos que preferisse evitar conflitos. Faria algumas concesses para que aquela multido de pessoas estranhas no se irritasse.

    Para deixar os ndios felizes, no bastava aos portugueses entregar-lhes espelhos, ferramentas ou roupas. Eles de fato ficaram impressionados com essas coisas (veja mais adiante), mas foi um pouco mais difcil conquistar o apoio indgena. Por mais revolucionrios que fossem as roupas e os objetos de ferro europeus, os ndios no viam sentido em acumular bens: logo se cansavam de facas, anzis e machados. Para permanecerem instalados, os recm-chegados tiveram que soprar a brasa dos caciques estabelecendo alianas militares com eles. Dando e recebendo presentes, os ndios acreditavam selar acordos de paz e de apoio quando houvesse alguma guerra. E o que sabiam fazer muito bem era se meter em guerras.

    O massacre comeou muito antes de os portugueses chegarem. As hipteses arqueolgicas mais consolidadas sugerem que os ndios da famlia lingustica tupi-guarani, originrios da Amaznia, se expandiam lentamente pelo Brasil. Depois de um crescimento populacional na floresta amaznica, teriam enfrentado alguma adversidade ambiental, como uma grande seca, que os empurrou para o Sul. medida que se expandiram, afugentaram tribos ento donas da casa. Por volta da virada do primeiro milnio, enquanto as legies romanas avanavam pelas plancies da Glia, os

  • tupis-guaranis conquistavam territrios ao sul da Amaznia, exterminando ou expulsando inimigos. ndios caingangues, cariris, caiaps e outros da famlia lingustica j tiveram que abandonar terras do litoral e migrar para planaltos acima da serra do Mar.

    Em 1500, quando os portugueses apareceram na praia, a nao tupi se espalhava de So Paulo ao Nordeste e Amaznia, dividida em diversas tribos, como os tupiniquins e os tupinambs, que disputavam espao travando guerras constantes entre si e com ndios de outras famlias lingusticas. No se sabe exatamente quantas pessoas viviam no atual territrio brasileiro - as estimativas variam muito, de l milho a 3,5 milhes de pessoas, divididas em mais de duzentas culturas. Ainda demoraria alguns sculos para essas tribos se reconhecerem na identidade nica de ndios, um conceito criado pelos europeus. Naquela poca, um tupinamb achava um botocudo to estrangeiro quanto um portugus. Guerreava contra um tupiniquim com o mesmo gosto com que devorava um jesuta. Entre todos esses povos, a guerra no era s comum - tambm fazia parte do calendrio das tribos, como um ritual que uma hora ou outra tinha de acontecer. Sobretudo os ndios tupis eram obcecados pela guerra. Os homens s ganhavam permisso para casar ou ter mais esposas quando capturassem um inimigo dos grandes. Outros grupos acreditavam assumir os poderes e a perspectiva do morto, passando a controlar seu espirito, como uma espcie de bicho de estimao. Entre canibais, como os tupinambs, prisioneiros eram devorados numa festa que reunia toda a tribo e convidados da vizinhana.

  • A palavra mingau vem da pasta feita com as vsceras cozidas do prisioneiro devorado pelos tupinambs.

    Com a vinda dos europeus, que tambm gostavam de uma guerra, esse potencial blico se multiplicou. Os ndios travaram entre si guerras durssimas na disputa pela aliana com os recm-chegados. Passaram a capturar muito mais inimigos para trocar por mercadorias. Se antes valia mais a qualidade, a posio social do inimigo capturado, a partir da conquista a quantidade de mortes e prises ganhou importncia. Por todo o sculo 16, quando uma caravela se aproximava da costa, ndios de todas as partes vinham correndo com prisioneiros - alguns at do interior, a dezenas de quilmetros. Os portugueses, interessados em escravos, compravam os presos com o pretexto de que, se no fizessem isso, eles seriam mortos ou devorados pelos ndios. Em 1605, o padre Jernimo Rodrigues, quando viajou ao litoral de Santa Catarina, ficou estarrecido com o interesse dos ndios em trocar gente, at da prpria famlia, por roupas e ferramentas:

    Tanto que chegam os correios ao serto, de haver navio na barra, logo mandam recado pelas aldeias para virem ao resgate. E para isso trazem a mais desobrigada gente que podem, scilicet, moos e moas rfs, algumas sobrinhas, e parentes, que no querem estar com eles ou que os no querem servir, no lhe tendo essa obrigao, a outros trazem enganados, dizendo que lhe faro e acontecero e que levaro muitas coisas [...]. Outro moo vindo aqui onde estvamos, vestido em uma camisa, perguntando-lhe quem lha dera, respondeu que vindo pelo navio dera por ela e por alguma ferramenta um seu irmo, outros venderam as prprias madrastas, que os criaram, e mais estando os pais vivos.

  • No livro Sete Mitos da Conquista Espanhola, o historiador Matthew Restall fala do guerreiro invisvel que matou os ndios do Mxico. Se os espanhis estavam em um punhado de aventureiros e os astecas, em milhes, como os primeiros podem ter conseguido conquistar o Mxico? claro que no foi ato de um guerreiro invisvel (embora epidemias tenham matado muita gente). Na verdade, os espanhis no estavam em poucos. O que com frequncia ignorado ou esquecido o fato de que os conquistadores tendiam a ser superados em nmero tambm por seus prprios aliados nativos, afirma Restall. Os espanhis ficaram de um lado da guerra entre faces astecas - ajudaram os ndios e ganharam a ajuda deles. razovel supor que, se houvesse algum senso de solidariedade tnica no Mxico, a conquista seria muito mais difcil ou talvez impossvel.

    Pode-se dizer o mesmo sobre o Brasil. O extermnioe a escravido dos ndios no seriam possveis sem o apoio dos prprios ndios, de tribos inimigas. Eles forneceram o suporte militar s bandeiras, os assaltos que os paulistas faziam ao interior para capturar escravos ou destruir nativos hostis. Tambm dependia deles a guarda das colnias portuguesas. As bandeiras so geralmente apontadas como a maior causa de morte da populao indgena depois das epidemias. Em cada uma, havia no mnimo duas vezes mais ndios - normalmente dez vezes mais. Sobre a mais mortfera delas, a que o bandeirante Raposo Tavares empreendeu at as aldeias jesuticas de Guara, no extremo oeste paranaense, os relatos apontam para uma bandeira formada por 900 paulistas e 2 mil ndios tupis. No entanto, nestas verses, o total de paulistas parece exagerado, uma vez que possvel identificar apenas 119 participantes em outras fontes. Alm disto, a razo de dois ndios por paulista seria muito baixa quando

  • comparada a outras expedies, escreveu o historiador John Manuel Monteiro no livro Negros da Terra.

    Cogita-se at que o modelo militar das bandeiras seja resultado mais da influncia indgena que europeia. difcil evitar a impresso, por exemplo, de que as bandeiras representavam uma predileo tupi por aventuras militares, afirma o historiador Warren Dean.

    Essa imerso em um conjunto nativo de valores era de se esperar, dado o quanto eram escassos nessas sociedades militarizadas os capites e tenentes brancos, o quanto eram tupis seus sargentos mestios e o quanto as normas de comportamento devem ter sido no europeias nas trilhas e nos campos de batalha das selvas.

    Mesmo a distino entre bandeirantes paulistas e ndios difusa. Muitos dos chamados bandeirantes paulistas eram mestios de primeira gerao: tinham me, tios e primos criados nas aldeias e pareciam mais ndios que europeus.

    O melhor exemplo Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que destruiu o Quilombo dos Palmares. Filho de um europeu com umandia, ele no falava portugus. Assim como quase todos naquela poca, expressava-se na lngua geral tupi-guarani.

    As tribos no apoiavam os colonos por alguma obedincia cega. Seus lderes, que tambm participavam das bandeiras e das batalhas, estavam interessados na parceria para derrotar outras tribos. O padre Jos de Anchieta percebeu isso em 1565. Os tupinambs, tradicionais adversrios dos colonos, de repente se mostraram dispostos a deixar de guerrear com os portugueses. O real motivo dessa aliana surpreendente era o desejo grande que tm de guerrear com seus inimigos tupis, que at agora foram nossos amigos, e h pouco se levantaram contra ns,

  • acreditava o padre. Uma frase escrita pela historiadora Maria Regina Celestino de Almeida resume muito bem as guerras indgenas: Se os europeus se aproveitaram das dissidncias indgenas para fazerem suas guerras de conquista por territrio, tambm os ndios lanaram mo desse expediente para conseguir seus prprios objetivos.

    Um bom exemplo da participao deliberada de ndios no extermnio de ndios a Guerra dos Tamoios, entre 1556 e 1567. Os tupiniquins e os temimins ajudaram os portugueses a expulsar os franceses do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, lutavam contra antigos inimigos: os tupinambs, tambm chamados de tamoios. Depois de vencerem, os nativos aliados dos portugueses ganharam terras e uma posio privilegiada de colaboradores do reino portugus. Ficaram responsveis pela segurana do Rio, na tentativa de evitar ataques cidade conquistada. Transformaram-se no ndio colonial, um personagem esquecido da histria brasileira que ser lembrado a seguir.

  • OS NDIOS PERGUNTAM: ONDE ESTO OS NDIOS?

    Durante os trs primeiros sculos da conquista portuguesa, nenhuma famlia teve mais poder na vila que deu origem a Niteri, no Rio de Janeiro, quanto os Souza. Em 1644, Brs de Souza reivindicou ao Conselho Ultramarino o cargo de capito-mor da aldeia de So Loureno, utilizando como principal argumento o nome de sua famlia. O pedido foi aceito. Segundo a carta que concedeu a colocao, era preciso lembrar que Brs era descendente dos Souza que sempre exercitaram o dito cargo, por isso tinha direito a todas as honras e proeminncias que tm e gozaram os mais Capites e seus antecessores dadas nesta cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro. Um sculo e meio depois, em 1796, Manoel Jesus e Souza era capito-mor. Em uma consulta do Conselho Ultramarino, consta que ele deveria continuar no cargo por causa de sua descendncia nobre. Tpicos membros da elite colonial esses Souza.

    O interessante que esses nobres senhores no eram descendentes de nenhum poderoso fidalgo portugus. O homem que criou a dinastia dos Souza de Niteri chamava-se Arariboia. Era o cacique dos ndios temimins, que ajudaram os portugueses a expulsar franceses e tupinambs do Rio de Janeiro. Com a guerra vencida, muitos temimins e tupiniquins foram batizados e adotaram um sobrenome portugus. Arariboia virou Martim Afonso de Souza (em homenagem ao primeiro colonizador do Brasil) e ganhou a sesmaria de Niteri, onde alojou sua tribo. Menos de cem anos depois, seus descendentes j no se viam como ndios: eram os Souza e faziam parte da sociedade brasileira. Talvez eles se identifiquem assim

  • at hoje.Muitos historiadores mostram nmeros desoladores sobre o

    genocdio que os ndios sofreram depois da conquista portuguesa. Dizem que a populao nativa diminuiu dez, vinte vezes. As tribos passaram mesmo por um esvaziamento, mas no s por causa de doenas e ataques. Costuma-se deixar de fora da conta o ndio colonial, aquele que largou a tribo, adotou um nome portugus e foi compor a conhecida miscigenao brasileira ao lado de brancos, negros e mestios - e cujos filhos, pouco tempo depois, j no se identificavam como ndios.

    No foram poucas vezes, nem s no Rio, que isso aconteceu. Por todo o Brasil, ndios foram para as cidades e passaram a trabalhar na construo de pontes, estradas, como marceneiros, carpinteiros, msicos, vendendo chapus, plantando hortalias e cortando rvores - e at caando negros fugitivos. Nas aldeias ao redor de So Paulo, no se sabe de cargos vitalcios como entre os Souza de Niteri, mas h sinais de que os ndios aldeados tambm se integraram. Em 2006, o historiador Mareio Marchioro achou documentos com nome, cargo, idade, profisso e nmero de filhos dos chefes indgenas na virada do sculo 18 para o sculo 19. So todos nomes portugueses, todos antecedidos da palavra ndio. Esses nativos da terra devem ter ajudado a tornar comuns alguns sobrenomes brasileiros.

    Dos ndios de Minas Gerais, descobriram-se documentos do exato momento em que deixavam as aldeias e entraram para a sociedade mineira. Vasculhando documentos mineiros no Arquivo Histrico Ultramarino, os historiadores Maria Lenia Chaves de Resende e Hal Langfur encontraram dezenas de registros da entrada dos ndios nas vilas aquecidas com a corrida do ouro do sculo 18. Perceberam que muitos nativos se mudaram para vilas por iniciativa prpria, provavelmente porque se sentiam ameaados por

  • conflitos com os brancos ou cansados da vida do Paleoltico das aldeias. Chegavam s dezenas, recebiam uma ajuda inicial do governo e iam trabalhar na propriedade de algum colono. Afirmam os dois historiadores:

    Para s citar um exemplo, o governador Lobo da Silva conta que, to logo tomou posse, apareceram vinte e tantos ndios silvestres chamados Corops, Gavelhos e Cros. Em virtude das ordens reais, mandou vestir e dar ferramentas. Passados alguns dias, vieram outros trinta no mesmo empenho [de serem batizados], informados do bom acolhimento que se fez aos primeiros.

    Se fossem escravizados pelos fazendeiros, os ndios poderiam entrar na justia e requerer a liberdade. Frequentemente ganhavam. A escravido indgena tinha sido proibida pelo rei dom Pedro segundo de Portugal em 1680, e vetada novamente, um sculo depois, pelo marqus de Pombal, primeiro-ministro do reino portugus. O governador de Minas Gerais entre 1763 e 1768, Luiz Diogo Lobo da Silva, acatava a lei e procurava coloc-la em prtica. Em 1764, a ndia carij Leonor, de Ouro Preto, pediu que fosse libertada da fazenda de Domingos de Oliveira. O colono mantinha a ndia, seus trs filhos e netos em cativeiro e os tratava a surras. Ela ganhou a causa - uma escolta foi fazenda garantir a liberdade de sua famlia. Fora do cativeiro, em plena efervescncia da corrida do ouro em Minas Gerais, Leonor no deve ter demorado para se arranjar e se misturar a populao da cidade. Casos como o dela so bem diferentes da crnica simplista da extino dos nativos Provam, como dizem os historiadores Maria de Resende e Hal Langfur, a presena inegvel dos ndios nos sertes e nas vilas durante todo o perodo colonial, demonstrando, portanto, que eles jamais foram extintos, como afirmou a historiografia tradicional.

  • Em muitos casos, os ndios nem precisaram sair de suas aldeias para entrar na sociedade. Os ocidentais foram at eles. Na dcada de 1750, quando os jesutas foram expulsos do Brasil, Portugal resolveu transformar as aldeias indgenas em vilas e freguesias. Com isso, acabou a proibio de brancos nas aldeias. Nasceram assim muitos bairros e cidades que existem At hoje. Eram aldeias as cidades de Carapicuba, Guarulhos, Embu, Perube, Barueri, Moji das Cruzes, na Grande So Paulo, alm do prprio centro de So Paulo e bairros como So Miguel Paulista e Pinheiros. Tambm e o caso das cidades de Niteri, So Pedro da Aldeia e Mangaratiba, no Rio de Janeiro, como muitas outras pelo Brasil. Nas aldeias do litoral, a populao se misturou pouco, seguindo com uma influncia indgena mais forte. o caso dos caiaras, os nativos da praia. Assim como em 1500, esto presentes em quase todo o litoral brasileiro. Plantam mandioca, usam cestas flexveis e alguns pescam em canoas de tronco escavado. No entanto, como no se consideram ndios, no entram na conta da populao indgena atual.

    Na Amaznia, esse fenmeno ainda acontece. Quem visita a regio se espanta ao conhecer pessoas com cara de ndio, quase vestidas de ndio e que ficam contrariadas ao serem chamadas de ndio. Como nos ltimos sculos, muitos indgenas preferem no ser chamados assim: 25 por cento da populao indgena da Amaznia j mora em cidades, e s metade desse contingente, segundo a Funai, se considera ndio, mesmo falando uma segunda lngua e praticando rituais.

    verdade que essa miscigenao no foi to intensa quanto entre africanos e portugueses ou entre ndios e espanhis de outras regies da Amrica. Pesquisas de ancestralidade genmica, que medem o quanto europeu, africano ou indgena um indivduo , sugerem que os brasileiros

  • so em mdia 8 por cento indgenas. Uma anlise de 2008 envolveu 594 voluntrios, a maioria estudantes da Universidade Catlica de Braslia que se consideravam brancos e pardos. A ancestralidade mdia do genoma dos universitrios era 68,65 por cento europeia, 17,81 por cento africana, 8,64 por cento amerndia e 4,87 por cento de outras origens. pouco sangue indgena, mas no tanto pensando numa populao de 190 milhes de habitantes. Se pudssemos organizar esses genes em indivduos cem por cento brancos, negros ou amerndios, 8por cento dos brasileiros daria 15,2 milhes de pessoas, ou mais de quatro vezes a populao indgena de 1500.

    O nmero fica ainda maior se considerarmos comodescendente de ndios toda pessoa que tem o menor toque de sangue nativo. Em 2000, um estudo do laboratrio Gene, da Universidade Federal de Minas Gerais, causou espanto ao mostrar que 33 por cento dos brasileiros que se consideram brancos tm DNA mitocondrial vindo de mes ndias. Em outras palavras, embora desde 1500 o nmero de nativos no Brasil tenha se reduzido a 10 por cento do original (de cerca de 3,5 milhes para 325 mil), o nmero de pessoas com DNA mitocondrial amerndio aumentou mais de dez vezes, escreveu o geneticista Srgio Danilo Pena no Retrato Molecular do Brasil. Esses nmeros sugerem que muitos ndios largaram as aldeias e passaram a se considerar brasileiros. Hoje, seus descendentes vo ao cinema, andam de avio, escrevem livros e, como seus antepassados, tomam banho todos os dias.

  • A NATUREZA EUROPEIA FASCINOU OS NDIOS

    A imagem mais divulgada do descobrimento do Brasil aquela dos portugueses na praia, com as caravelas ao fundo, sendo recebidos por ndios curiosos que brotam da floresta. Na verdade, houve um episdio que aconteceu antes: os ndios subiram nas caravelas. Pero Vaz de Caminha, o reprter daquela viagem, relata em sua carta que, antes de toda a tripulao desembarcar na praia, dois ndios foram recebidos com muitos agrados e festa no navio principal. Provaram bolos, figo e mel (mas cuspiram as comidas com nojo), e ficaram espantadssimos ao conhecer uma galinha. Quase tiveram medo dela no lhe queriam tocar, para logo depois tom-la, com grande espanto nos olhos, escreveu Caminha. Essa imagem sugere que, naquela tarde de abril de 1500, os ndios tambm fizeram sua descoberta. A chegada dos europeus revelou a eles um universo de tecnologias, plantas, animais e modos de pensar at ento desconhecidos.

    At a chegada de franceses, portugueses e holandeses ao Brasil, os ndios no conheciam a domesticao de animais, a escrita, a tecelagem, a arquitetura em pedra. Assentados sobre enormes jazidas, no tinham chegado Idade do Ferro e nem mesmo do Bronze. Armas e ferramentas eram feitas de galhos, madeira, barro ou pedra, e o fogo tinha um papel essencial em guerras e caadas. At conheciam a agricultura, mas em geral era uma agricultura rudimentar, pouco intensiva e restrita a roas de amendoim e mandioca. Dependendo da sorte na caa e na coleta, passavam por perodos de fome. No desenvolveram tecnologias de transporte. No conheciam a roda. A roda.

  • D muita vontade de afirmar que os ndios eram naturalmente incapacitados para no ter nem ideia dessas tecnologias bsicas, mas no h motivo para isso. Eles so na verdade heris do povoamento humano no fim do mundo, a Amrica, o ltimo continente da Terra a abrigar o homem. A chegada a um lugar to distante custou-lhes o isolamento cultural.

    Entre 50 e 60 mil anos atrs, os ancestrais de ndios e portugueses eram o mesmo grupo de caadores e coletores. Tinham a mesma aparncia, os mesmos costumes, a mesma lngua rudimentar. Caminhando juntos rumo ao norte da frica, contornaram o mar Mediterrneo e chegaram ao Oriente Mdio. Durante a caminhada de centenas de geraes, alguns deles perderam contato e se separaram. Uns debandaram esquerda, rumo pennsula Ibrica, enquanto outros continuaram subindo pela sia.

    O que hoje conhecemos como sia era ento um bloco de gelo sem fim. Perambulavam por ali mamutes e alces-gigantes cuja carne deveria ser deliciosa. Com o fim da Idade do Gelo, parte dessas geleiras derreteu e o nvel do mar subiu. Alguns caadores nmades no devem ter percebido, mas j estavam na Amrica, separados dos colegas asiticos por um oceano. At ento, nenhuma barreira to definitiva tinha separado o homem. Aos primeiros Americanos, norestava outra sada seno migrar para o Sul. Foi assim que chegaram ao Brasil, cerca de 15 mil anos atrs.

    O isolamento na Amrica deixou os nativos Americanos de fora da mistura cultural que marcou o convvio entre europeus, africanos e asiticos. Esses povos entraram em contato uns com os outros j na Antiguidade. O choque de civilizaes fez a tecnologia se espalhar. Por meio de guerras, conquistas ou mesmo pelo comrcio, tecnologias e novos costumes

  • passavam de cultura a cultura. J os Americanos viveram muito mais tempo sem novidades vindas de fora. Tiveram que se virar sozinhos em territrios despovoados, sem ter com quem trocar ou copiar novas tcnicas

    De repente, porm, aconteceu um fato extraordinrio. Apareceram no horizonte enormes ilhas de madeira, que eram na verdade canoas altas cheias de homens estranhos. Numa quarta-feira ensolarada do sul da Bahia, duas pontas da migrao do homem pela Terra, que estavam separadas havia 50 mil anos, ficaram frente a frente. Os milnios de isolamento dos ndios brasileiros tinham enfim acabado.

    Antroplogos e cientistas sociais no cansam de repetir que preciso valorizar a cultura indgena. Os ndios que encontraram os portugueses no sculo 16 no estavam nem a para isso. No sabiam nada de antropologia e migrao humana, mas logo perceberam quanto aquele encontro era sensacional. Fizeram de tudo para conquistar a amizade dos novos (ou antigos) amigos. Antes que os brancos desembarcassem, subiram nos navios para conhec-los. Na praia, deram presentes, estoques de mandioca e mulheres se ofereceram generosas. Devem ter achado urgente misturar-se com aquela cultura e se apoderar dos objetos diferentes que aqueles homens traziam.

    A histria tradicional diz que os portugueses deram quinquilharias aos ndios em troca de coisas muito mais valiosas, como pau-brasil e animais exticos. Isso e achar que os ndios eram completos idiotas. Aos seus olhos, nada poderia ser mais fascinante que a cultura e os objetos dos visitantes. No eram s quinquilharias que os portugueses ofereciam, mas riquezas e costumes selecionados durante milnios de contato com civilizaes da Europa, da sia e da frica, que os Americanos, isolados por uma faixa de oceano de 4 mil quilmetros, no puderam conhecer.

  • Comprar aqueles artefatos com papagaios ou pau-brasil era um timo negcio. Seria como trocar roupas velhas que ocupam espao no armrio por uma espada jedi de Guerra nas Estrelas.

    Imagine, por exemplo, a surpresa dos ndios ao conhecer um anzol. No dependiam mais da pontaria para conseguir peixes, e agora eram capazes de capturar os peixes que ficavam no fundo. Um machado tambm deve ter sido uma aquisio sem precedentes. As facas e machados de ao dos europeus eram ferramentas que reduziam em muito o seu trabalho, porque eliminavam a fama extenuante de lascar pedra e lavrar madeira, e encurtavam em cerca de oito vezes o tempo gasto para derrubar rvores e esculpir canoas, escreveu o historiador Americano Warren Dean. E difcil imaginar o quanto deve ter sido gratificante seu sbito ingresso na idade do ferro[...]. No comeo, os portugueses tentaram esconder dos ndios a tcnica de produzir metais, proibindo os ferreiros de ter ndios como ajudantes. Mas a metalurgia escapou do controle e se espalhou pela floresta. A tcnica foi transmitida entre os ndios a ponto de os europeus, quando entravam em contato com uma tribo isolada, j encontrarem flechas com pontas metlicas.

    Os ndios adotaram no s a tecnologia europeia. Assim como os portugueses ficaram encantados com as florestas brasileiras, eles se fascinaram com a natureza que veio da Europa. Novas plantas e animais domsticos, que ajudavam na caa e facilitavam o fardo de conseguir comida, foram logo incorporados pelas tribos. Poucos anos depois, seria difcil imaginar o Brasil sem essas espcies.

    O melhor exemplo a banana. Originria da regio da Indonsia, a banana selvagem tinha uma casca grossa e a polpa rala. A partir de 5 mil anos atrs, o homem selecionou as variaes mais saborosas, com casca mais

  • fina e sem sementes. Plantaes da fruta apareceram na ndia h 2.300 anos (Alexandre, o Grande provou uma quando passou por l) e logo depois a banana comeou a ser cultivada na China. Com os rabes, atravessou toda a frica (de onde vem seu nome atual) e chegou Europa por influncia moura. Ao todo, foram 6.500 anos de migrao e melhoramento gentico oferecidos aos ndios brasileiros. Assim como a banana, os ndios conheceram pelos portugueses frutas e plantas que hoje so smbolos nacionais e que no faltam em muitas tribos, como a jaca, a manga, a laranja, o limo, a carambola, a graviola, o inhame, a ma, o abacate, o caf, a tangerina, o arroz, a uva e at mesmo o coco (isso mesmo: at o descobrimento, no havia coqueiros no Brasil). Quando os jesutas implantaram a agricultura intensiva perto das aldeias, obter comida deixou de ser um estorvo. Para quem estava acostumado a plantar s mandioca e amendoim, tendo que suar em caadas demoradas para arranjar alguma protena fresca, a vida ficou muito mais fcil.

    verdade que no faltavam frutas e cereais nasmatas brasileiras, mas muitos eram espinhosos e difceis de abrir, como a castanha-do-par - e no porque os trpicos favorecem plantas esquisitas, mas porque essas espcies no passaram por um processo de domesticao e seleo artificial.

    Outra novidade foi o animal domstico. Com uma floresta farta, os nativos no precisaram desenvolver criaes para o abate nem bichos de estimao como os dos europeus. Galinhas, porcos, bois, cavalos e ces foram novidades revolucionrias que os ndios no demoraram a adotar. Novas palavras surgiram no vocabulrio nativo, a maioria associando os novos animais ao fato extraordinrio de serem mansos e amigveis. O porco, em tupi, virou taiau-guaia (porco manso), os ces ganharam o

  • nome de iagus-mimbabas (onas de criao). Poucos anos depois de conhecerem a galinha, os ndios j vendiam ovos para os portugueses.

    Em 1534, quando vieram nos pores das caravelas os primeiros cavalos, fazia pelo menos 10 mil anos que equinos no pisavam no Brasil. Houve primos nativos de cavalos na Amrica, mas eles tinham sido extintos durante mudanas climticas ou pela caa excessiva. Quando chegou Amrica, o cavalo europeu era outro animal que havia passado por milnios de domesticao. Quando essa ddiva do melhoramento de espcies chegou Amrica, os ndios ficaram estupefatos. Algumas tribos, como os guaicurus, do Pantanal, passaram a utilizar a novidade como instrumento de guerra. Nos terrenos pantaneiros, os guaicurus se apoderaram de manadas selvagens, descendentes provavelmente de cavalos perdidos por colonizadores espanhis no norte da Argentina. No sculo 18, montando os cavalos em pelo, sem selas, e com lanas na mo, tornaram-se guerreiros invencveis, impondo autoridade sobre outras tribos da regio e at sobre os brancos. Nunca foram vencidos por adversrios europeus e chegaram a ajudar o exrcito brasileiro durante a Guerra do Paraguai.

    Mas nenhum animal domstico provocou tanta surpresa e divertimento aos ndios quanto o bom e velho cachorro. O primo mais prximo dos ces que havia no Brasil at ento era o lobo-guar, animal arredio, que mete medo e feio de doer. Os portugueses trouxeram de presente para os ndios um lobo que tinha sido domesticado fazia 14 mil anos, no sul da China. Durante a convivncia com o homem, ganharam preferncia os ces que eram mansos, alertavam quanto a invasores e permaneciam com cara de filhotes mesmo depois de adultos. No sculo 16, j havia raas selecionadas para o pastoreio, a caa e a guarda. Nas caadas dos ndios, os cachorros farejavam presas e ajudavam a

  • desentoc-las. Os ces ampliaram de forma extraordinria a capacidade de caa dos indgenas (e dos povoadores europeus e africanos) sobre determinados povoamentos faunsticos, principalmente os dos mamferos, conta o bilogo Evaristo Eduardo de Miranda no livro O Descobrimento da Biodiversidade.

  • OS PORTUGUESES ENSINARAM OS NDIOS A PRESERVAR A FLORESTA

    O mito do ndio como um homem puro e em harmonia com a natureza j caiu faz muito tempo, mas incrvel como ele sempre volta. Todo mundo sabe que personagens como Peri, o heri do livro O Guarani, de Jos de Alencar, estavam mais para relato pico que para histria. Mesmo assim difcil pensar diferente. At os documentrios etnogrficos e os museus propagam a imagem do ndio em paz com rvores e animais. Em janeiro de 2009, um texto informativo da exposio Oreretama, do Museu Histrico Nacional, do Rio de Janeiro, dizia que a sociedade indgena era um tipo de organizao que tendia a manter o equilbrio entre as comunidades humanas e o meio ambiente. No e bem assim. Antes de os portugueses chegarem, os ndios j haviam extinguido muitas espcies e feito um belo estrago nas florestas brasileiras. Se no acabaram com elas completamente, e porque eram poucos para uma floresta to grande.

    As tribos que habitavam a regio da mata atlntica botavam o mato abaixo com facilidade, usando uma ferramenta muito eficaz: o fogo. No fim da estao seca, praticavam a coivara, o ato de queimar o mato seco para abrir espao para a plantao, empregado at hoje. No incio, a coivara eficiente, j que toda a biomassa da floresta vira cinzas que fertilizam o solo. Depois de alguns anos, o solo se empobrece. Pragas e ervas daninhas tomam conta. Como no havia enxadas e pesticidas e ningum sabia adubar o solo, procuravam-se outras matas virgens para queimar e transformar em roas. O historiador Americano Warren Dean estimou que a alimentao de cada habitante exigia a devastao de 2 mil metros quadrados de mata

  • por ano. Se os agricultores no abrissem seno floresta primria, teriam queimado cerca de 50 por cento dela pelo menos uma vez naquele milnio, escreveu Dean. A devastao foi maior nas reas mais povoadas. Nas florestas prximas ao litoral, os ndios devem ter queimado a mata pelo menos duas vezes por sculo.

    A conta de Warren Dean no considera incndios acidentais nem queimadas por guerras ou para a caa. O fogo usado para fins de caa foi igualmente destruidor, j que a agricultura no era o forte dos ndios brasileiros. verdade que havia pequenas lavouras, principalmente de mandioca, mas ningum imaginava fazer plantaes intensivas ou mtodos sistemticos de colheita, replantio e rotao de culturas. Havia outro empecilho: grandes reservas de comida atraiam invasores, provocando mais guerras e mais mudanas - no valia a pena investir numa rea que talvez tivesse de ser abandonada a qualquer momento. A grande vantagem ao fogo era facilitar a caa. Criando fogueiras coordenadas, um pequeno grupo de pessoas consegue controlar uma rea enorme da mata sem precisar de machados, serrotes ou alguma outra ferramenta de ferro. As chamas desentocam animais escondidos na terra, no meio de arbustos e nos galhos. Aves, macacos, veados, capivaras, onas, lagartos e muitos outros animais corriam em direo ao mesmo ponto, onde os ndios os esperavam para captura-los. No e toa que, assim como em todo o resto do mundo, nas florestas brasileiras s havia animais de grande porte, rpidos e agressivos os mais lentos foram logo extintos pelas populaes nativas. Para caar alguns poucos animais, eles destruam uma rea enorme da floresta.

    O poder do fogo e da devastao ambiental ficou gravado no vocabulrio tanto dos ndios quanto dos portugueses. Na lngua tupi, so muitas as palavras diferenciando as matas abertas, como capoeira (roa

  • abandonada), cajuru (entrada da mata), caiuruu (incndio), capixaba (terreno preparado para plantio) Os ndios caiaps usavam tanto o fogo que da veio o nome da tribo - caiap significa que traz o fogo mo. Quando os europeus chegaram por aqui, refugiaram-se em campos que j haviam sido abertos pelos tupis. Alguns bilogos perguntam se as queimadas indgenas no apressaram ou favoreceram o surgimento de cerrados e campos de gramneas em locais onde antes havia florestas.

    Vm das clareiras abertas pelos ndios nomes de lugares como Capo Redondo, Capo da Imbua, Campo Limpo, Campos Campinas, So Bernardo do Campo, Santo Andr da Borda do Campo. Alguns locais mostram at quais ndios abriram a mata, como a cidade fluminense de Campos dos Goytacazes.

    A floresta era o maior inimigo dos ndios, e fcil entender por qu. Para quem mora na cidade, possvel enxergar as rvores como um abrigo da paz e de boas energias. Mas quem vive no mato conhece bem o significado da expresso inferno verde. No tanto por cobras e grandes animais que podem atacar o homem, mas pelos pequenos. Mosquitos, aranhas, formigas e todo tipo de artrpodes infernizam quem se atreve a passar a noite na mata. Simples picadas transmitem vrus e protozorios causadores de febres que inutilizam uma pessoa por semanas, quando no deixam seu corpo repleto de feridas permanentes, como no caso da leishmaniose. Mesmo nas clareiras e nas ocas, ainda hoje os ndios precisam manter fogueiras constantemente acesas, para espantar mosquitos. Por isso, quando os portugueses se mostraram interessados em pau-brasil, os ndios derrubaram as rvores com gosto. As ferramentas de ao satisfizeram seu desejo de se livrar do mato sem se importar com o resultado da devastao.

  • Em cinco sculos, algumas tribos fizeram tanto mal mata quanto os no ndios. Conta o historiador Warren Dean:

    Um grupo caingangue residente no Paran, que havia recebido ferramentas de ao apenas no sculo 20, lembrava-se de que no mais tinha de escalar rvores, outrora uma atividade muito frequente, para apanhar larvas e mel. Muitos dos que caam das rvores morriam agora eles simplesmente derrubavam as rvores.

    Os jesutas se encantavam com o fato de os ndios no se preocuparem em acumular riquezas, no serem luxuriosos. Essa caracterstica tambm fazia os ndios no se preocupar em deixar riquezas naturais para o futuro. Apesar de muitos lderes indgenas de hoje afirmarem que o homem branco destruiu a floresta enquanto eles tentavam proteg-la, esse discurso politicamente correto no nasceu com eles. Nasceu com os europeus logo nas primeiras dcadas aps a conquista.

    Os portugueses criaram leis ambientais para o territrio brasileiro j no sculo 16. As ordenaes do rei Manuel primeiro (1469-1521) proibiam o corte de rvores frutferas em Portugal e em todas as colnias. No Brasil, essa lei protegeu centenas de espcies nativas. Em 1605, o Regimento do Pau-Brasil estabeleceu punies para os madeireiros que derrubassem mais rvores do que o previsto na licena. A pena variava conforme a quantidade de madeira cortada ilegalmente. Pequenos excedentes seriam apreendidos e renderiam ao concessionrio multa de cem cruzados. Quem cortasse mais de seis toneladas receberia um castigo maior: pena de morte. A nova lei tambm estipulava regras de aproveitamento da floresta. O rei proibiu o abandono de toras e galhos pela mata, de modo que se aproveite todo o que for de receber, e no se deixe pelos matos nenhum pau cortado. Os colonos tambm no podiam transformar matas de pau-brasil em roas.

  • Essa legislao garantiu a manuteno e a explorao sustentvel das florestas de pau-brasil at 1875, quando entrou no mercado a anilina, escreveu o bilogo Evaristo Eduardo de Miranda. Ao contrrio do que muitos pensam e propagam, a explorao racional do pau-brasil manteve boa parte da mata atlntica at o final do sculo 19 e no foi a causa do seu desmatamento, fato bem posterior.

  • O CONTATO TAMBM MATOU MILHES DE EUROPEUS

    Genocdio e extermnio, palavras sempre usadas para se falar do contato dos portugueses com os ndios, denotam aes com o propsito deliberado de matar um grupo de pessoas. Por mais cruis que os portugueses e seus aliados ndios tenham sido durante as bandeiras e caadas de escravos nos sertes, essas aes respondem por uma pequena parte da enorme mortalidade de ndios durante os primeiros sculos de Brasil. A grande maioria deles morreu por doenas que os portugueses trouxeram, sobretudo gripe, varola e sarampo. O simples contgio criou epidemias que devastaram naes indgenas inteiras.

    injusto responsabilizar os portugueses por essas mortes. Epidemias causadas pelo contato de etnias foram muito comuns na histria do homem: no aconteceram s com os nativos da Amrica. Talvez os antepassados deles prprios, durante milnios de dispora pelo mundo, tenham transmitido doenas a povos de regies onde pisaram. Alm disso, no sculo 16, ainda demoraria trezentos anos para se descobrir que as doenas contagiosas so causadas por micro-organismos e passam de uma pessoa a outra pela respirao e pela picada de mosquitos. Tinha-se apenas uma noo vaga da transmisso de doenas venreas.

    Acreditava-se ento que as doenas vinham de ares malignos, maus ares, expresso que deu o nome malria. Os colonos e navegadores morriam de medo de ser contaminados por esses ares no Brasil. Existe uma histria muito boa sobre esse temor. Em 1531, a expedio de Martim Afonso de Souza chegou ilha de Queimada Grande, no litoral de So

  • Paulo, que estava repleta de fragatas e mergulhes. Ao voltar para a caravela, os marinheiros de repente sentiram um vento quente vindo da ilha. Para eles, era o tpico vento demonaco causador de febre. Pensando em evitar que o suposto vento contaminado se espalhasse, voltaram e atearam fogo na ilha inteira.

    Diante da morte inexplicvel de tantos nativos, os colonos e os jesutas no ficavam contentes. Numa carta de 1558, o padre Antnio Blsquez parece triste ao relatar que justamente os ndios mais prximos e comprometidos com a Igreja eram os primeiros a morrer. Isso acontecia tanto que, entre os pajs, corria o boato de que a f crist matava.

    Segundo o padre, depois da morte do filho de um cacique, os feiticeiros diziam que o batismo o matara, e que por ser tanto nosso amigo, morrera.

    Na verdade, quando chegaram ao Brasil, os portugueses pensavam que eles que ficariam doentes. Era isso o que acontecia aos navegadores no resto do mundo. Os habitantes da frica e da sia eram muito mais resistentes a doenas que os portugueses. Nesses lugares, os europeus ficavam derrubados diante de vrus e parasitas estranhos, para os quais no tinham defesa biolgica. Para piorar, depois de meses de alimentao precria nas caravelas, o sistema imunolgico ia para o cho. Quando voltavam das viagens, novas doenas apareciam em Portugal. O tifo surgiu depois do contato com os turcos no leste do Mediterrneo; a febre amarela veio da frica; o clera, dos indianos. Essas doenas ento desconhecidas causaram crises de mortalidade na populao portuguesa. Com base em registros de bitos e nascimentos em Lisboa, a historiadora portuguesa Teresa Rodrigues descobriu que a cidade viveu grandes crises de

  • mortalidade a partir de 1550, provocadas sobretudo por epidemias importadas por via dos contatos martimos e terrestres.

    Apesar de pouca gente falar sobre isso, centenas de milhares de mortes devem ter sido causadas na Europa por males Americanos. Ao chegarem a Amrica, espanhis, franceses, portugueses e holandeses penaram com doenas novas e as transmitiram pelo mundo. O antroplogo Michael Crawford, diretor do Laboratrio de Antropologia Biolgica da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, cita alguns desses males: purupuru, bouba e sfilis venrea, doenas infecciosas causadas por treponemas, novas cepas de tuberculose (doena que foi uma das principais causas de morte at a popularizao dos antibiticos e ainda hoje mata quase 3 milhes de pessoas por ano), doenas autoimunes e parasitas, muitos parasitas da pele e do intestino.

    Por muito tempo no houve consenso de que a sfilis tenha sido transmitida aos europeus pelos ndios Americanos. Apesar de a primeira epidemia ter acontecido em Npoles no ano de 1495, logo depois das primeiras viagens a Amrica, havia descries mais antigas de sintomas similares. A certeza veio em 2008, com um estudo gentico da Universidade Emory, dos Estados Unidos. Os pesquisadores compararam o DNA de diferentes bactrias do gnero Treponema. Conseguiram montar uma rvore genealgica das bactrias, revelando que a causadora da sfilis e afiliada de bactrias americanas. Com a anlise, ficou provado que a doena saiu da Amrica a bordo das caravelas.

    A sfilis causou tragdias na Europa. Os historiadores Carmen Bernand e Serge Gruzmski, autores do livro Histria do Novo Mundo, estimam que ela atingiu mais de um tero dos navegadores. O homem apontado como o primeiro sifiltico da Europa justamente um navegador:

  • Martin Alonso Pinzn, comandante da caravela Pinta, que descobriu a Amrica junto com Cristvo Colombo, em 1492. Pinzn teria feito sexo com ndias na ilha de Hispaniola (hoje Haiti e Repblica Dominicana). Morreu em 31 de maro de 1493, logo depois de voltar da viagem do descobrimento, com o corpo cheio de feridas causadas pela sfilis. Nos estgios iniciais, a sfilis provoca feridas no pnis ou na vagina. medida que a infeco se desenvolve, feridas, manchas e cascas se espalham pelo corpo, caem tufos de cabelos e nascem verrugas no nus. No ltimo estgio, a bactria atinge artrias e crebro. Antes de morrer, o doente fica cego e, muitas vezes, louco. Espalhando-se pelos soldados, e nas cidades porturias, essa doena aterrorizante devastou populaes e adquiriu novos nomes por onde passou - mal das ndias, mal napolitano, mal glico ou mal francs. Cidades da Europa chegaram a fechar bordis, proibindo a mais antiga profisso do mundo, na tentativa de conter a epidemia.

    Os portugueses ainda sofriam com parasitas do intestino e da pele. Numa terra desconhecida, germes simples viram um problema danado. Um bom exemplo o bicho-de-p Americano. Os ndios tentavam lidar com o parasita mantendo os ps limpos e arejados. J entre as alpargatas quentes, sujas e midas dos portugueses, o bicho-de-p fazia a festa. Muitos europeus perderam o p antes de descobrir que deveriam tirar o danado com uma agulha. O bicho-de-p americano se espalhou para colnias europeias na frica, causando uma epidemia de dedos perdidos e infeces secundrias fatais de ttano, como afirma o historiador Alfred Crosby. Em 1605, o padre Jernimo Rodrigues (que era bom em escrever relatos resmunges) contou que at mesmo os ndios de Santa Catarina sofriam com o parasita:

  • H nesta terra grandssimo nmero de imundcies, scilicet, bichos de ps e muito mais pequenos que os de l, de que todos andam cheios. E alguns meninos trazem os dedinhos das mos, que uma piedade, sem haver quem lhos tire.

    Americanos e europeus tambm trocaram costumes que se revelariam mortais. muito comum atribuir aos brancos a responsabilidade pelo alcoolismo entre ndios. Em diversas tribos, os homens se tornam alcolatras com muita facilidade, o que desestrutura a sociedade indgena. Ningum, no entanto, culpa os ndios por um hbito to trgico quanto o lcool: fumar tabaco. At os navegadores descobrirem a Amrica, no havia cigarros na Europa nem o costume de tragar fumaa. J os ndios americanos fumavam, cheiravam e mascavam a folha de tabaco vontade. A planta significava uma ligao com os espritos e era usada em cerimnias religiosas. Entre os tupis, os carabas (um tipo de lderes espirituais) pregavam em transe, exaltados com o fumo muito intenso de tabaco. Em outras tribos, fumava-se antes de guerras, para aliviar dores e tambm por prazer.Nas colnias do Caribe e do Brasil, os poderes do tabaco logo conquistaram os brancos. Vasco Fernandes Coutinho, donatrio da capitania hereditria do Esprito Santo, chegou a ser condenado por beber fumo com os ndios.

    Os jesutas usavam a expresso "beber fumo" porque ainda no existia no portugus o verbo "fumar" - ele s entraria em nossovocabulrio em 1589, segundo o Dicionrio Houaiss.

  • Apesar de evitarem aderir aos costumes indgenas, os padres faziam vista grossa para o fumo - eles tambm deveriam dar umas tragadas, pois acreditavam que a erva santa fazia bem para curar feridas, eliminar o catarro e aliviar o estmago, rgo que, diante da alimentao brasileira, fazia os padres sofrer.

    O tabaco fez tanto sucesso no litoral de So Paulo que Lus de Gis, um dos fundadores da capitania de So Vicente, resolveu levar uma amostra de fumo ao rei de Portugal. Na corte, a planta chamou a ateno de Jean Nicot, embaixador francs em terras lusitanas. Entusiasmado com a descoberta, o diplomata mandou, em 1560, uma remessa de fumo para a sua rainha, Catarina de Mdici. A rainha francesa adorava novidades e achou o tabaco sensacional, fazendo a planta cair no gosto da corte francesa. O embaixador Nicot acabou emprestando seu sobrenome para o nome cientfico da erva (Nicotiana tabacum), assim como da substncia nicotina.

    Os primeiros carregamentos de tabaco consumidos entre os nobres europeus vieram do Brasil. provvel que a primeira plantao de tabaco para exportao do mundo tenha sido uma roa paulista de 1548. Por quase trs sculos, a planta foi o segundo maior produto de exportao do Brasil, atrs apenas da cana-de-acar. Sculos depois, com a industrializao do cigarro, o hbito de fumar tabaco resultaria numa catstrofe com milhes de mortes. A Organizao Mundial de Sade estima que o fumo vai matar l bilho de pessoas no sculo 21. Culpa dos ndios?

    Claro que no. Os ndios e seus descendentes no tm nenhuma responsabilidade sobre um hbito que copiamos deles. Na verdade, temos que agradecer a eles por terem nos iniciado nesse costume maravilhoso que

  • fumar tabaco e outras ervas deliciosas. Da mesma forma, quem hoje se considera ndio poderia deixar de culpar os outros por seus problemas.

  • AGRADEAM AOS INGLESES

    Por volta de 1830, o escravo Jos Francisco dos Santos conquistou a liberdade. Depois de anos de trabalho forado na Bahia, viu-se livre da escravido, provavelmente comprando sua prpria carta de alforria ou ganhando-a de algum amigo rico. Estava enfim livre do sistema que o tirou da frica quando jovem, jogou-o num navio imundo e o trouxe amarrado para uma terra estranha. Jos tinha uma profisso - havia trabalhado cortando e costurando tecidos, o que lhe rendeu o apelido de Z Alfaiate. No entanto, o ex-escravo decidiu dar outro rumo a sua vida: foi operar o mesmo comrcio do qual tinha sido vtima. Voltou frica e se tornou traficante de escravos. Casou-se com uma das filhas de Francisco Flix de Souza, o maior vendedor de gente da frica atlntica, e passou a mandar ouro, negros e azeite de dend para vrios portos da Amrica e da Europa. Foi o fotgrafo e etnlogo Pierre Verger que encontrou, com um neto de Z Alfaiate, uma coleo de 112 cartas escritas pelo ex-escravo. As mensagens foram enviadas entre 1844 e 1871 e tratam de negcios com Salvador, Rio de Janeiro, Havana (Cuba), Bristol (Inglaterra) e Marselha (Frana). Em 22 de outubro de 1846, numa carta para um comerciante da Bahia, o traficante conta que teve problemas ao realizar um dos atos mais terrveis da escravido - marcar os negros com ferro incandescente. Diz ele:

    Por esta goleta [uma espcie de escuna] embarquei por minha conta em nome do sr. Joaquim dAlmeida 20 bales [escravos] sendo 12 H. e 8 M. com a marca 5 no seio direito. Eu vos alerto que a marca que vai na listagem geral V seio mas, como o ferro quebrou durante a marcao, no houve ento outro remdio seno marcar com ferro 5.

  • Talvez Z Alfaiate tenha entrado para o trfico por um desejo de vingana, na tentativa de repetir com outras pessoas o que ele prprio sofreu. O mais provvel, porm, que visse no comrcio de gente uma chance comum e aceitvel de ganhar dinheiro, como costurar ou exportar azeite. Havia muito tempo que o costume de atacar povos inimigos e vend-los era comum na frica. Com o trfico pelo oceano Atlntico, as pilhagens a povos do interior, feitas para capturar escravos, aumentaram muito - assim como o lucro de reis, nobres cidados comuns africanos que operavam a venda. Essa personalidade dupla da frica diante do trfico de escravos s vezes aparece num mesmo indivduo, como o caso de Z Alfaiate. Ex-escravo e traficante, foi ao mesmo tempo vtima e carrasco da escravido.

    No era preciso sair do Brasil para agir como ele. Por aqui, os escravos tiveram que se adaptar a um novo modo de vida, mas no abandonaram costumes do outro lado do Atlntico. Nas vilas da corrida do ouro de Minas Gerais, nas fazendas de tabaco da Bahia, era comum africanos ou descendentes escravizarem. Como um pedao da frica, cristo e falante de portugus, o Brasil tambm abrigou reis africanos que vinham se exilar no pas quando a situao do seu reino complicava, embaixadores negros interessados em negociar o preo de escravos, e at mesmo filhos de nobres africanos que vinham estudar na Bahia, numa espcie de intercmbio estudantil. Esses fenmenos certificam uma boa metfora que Joaquim Nabuco usa no livro O Abolicionismo, clssico do movimento brasileiro pelo fim da escravido. Nabuco dizia que o trfico negreiro provocou uma unio das fronteiras brasileiras e africanas, como se a frica tivesse aumentado seu territrio alguns milhares de quilmetros. Lanou-se, por assim dizer, uma ponte entre a frica e o Brasil, pela qual

  • passaram milhes de africanos, e estendeu-se o habitat da raa negra das margens do Congo e do Zambeze s do So Francisco e do Paraba do Sul. Com os mais de 4 milhes de escravos que vieram forados ao Brasil, veio tambm a frica.Na dcada de 1990, quando os historiadores passaram a dar mais peso influncia da cultura africana na escravido brasileira, os estudos sofreram uma revoluo. Em obras como Em Costas Negras, publicada em 1997 pelo historiador Manolo Florentino, houve uma mudana de ponto de vista muito parecida com a que aconteceu com os ndios. Os negros deixaram de ser vistos como vtimas constantemente passivas, que nunca agiam por escolha prpria. Em franca reao viso reificadora do africano sugerida pelos estudos das dcadas de 1960 e 1970, os historiadores buscaram mostrar o negro como sujeito da histria, protagonista da escravido, ainda que no aquilombado, quando no cmplice do cativeiro, escreveu o historiador Ronaldo Vainfas. Essa nova corrente de estudos descobriu personagens bem diferentes dos pares senhor cruel/escravo rebelde ou senhor camarada/escravo submisso, como se refere o historiador Flvio dos Santos Gomes. Tambm fez aflorar histrias aparentemente desagradveis para minorias e movimentos sociais, como as que esto a seguir.

    No auge de seu poder, o rei africano Kosoko, de Lagos, hoje capital da Nigria, resolveu dar um presente para trs de seus filhos. Mandou-os para uma espcie de intercmbio estudantil do outro lado do Atlntico, provavelmente de carona num navio negreiro cheio de escravos vendidos pelo pai deles.

  • PRNCIPES AFRICANOS VINHAM ESTUDAR NO BRASIL

    Na Bahia, os irmos ficaram a cargo de um comerciante amigo do rei. Segundo Benjamin Campbell, cnsul ingls em Lagos, os trs foram muito bem tratados na Bahia, como se fossem prncipes. Voltaram para casa em 28 de agosto de 1850, batizados, com nomes cristos - Simplcio, Loureno e Camlio - e elogiando ahospitalidade dos brasileiros, viagens assim no foram raras durante a escravido. Algumas dcadas antes da viagem dos trs irmos, em 1781, o prncipe Guinguin foi carregado por seus sditos a bordo de um navio portugus para ser levado ao Brasil, onde foi educado, conta Pierre Verger. Forneceram-lhe vinte escravos para sua subsistncia.

  • ZUMBI TINHA ESCRAVOS

    Zumbi, o maior heri negro do Brasil, o homem em cuja data de morte se comemora em muitas cidades do pas o Dia da Conscincia Negra, mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forados no Quilombo dos Palmares. Tambm sequestrava mulheres, raras nas primeiras dcadas do Brasil, e executava aqueles que quisessem fugir do quilombo.

    Essa informao parece ofender algumas pessoas hoje em dia, a ponto de preferirem omiti-la ou censur-la, mas na verdade trata-se de um dado bvio. claro que Zumbi tinha escravos. Sabe-se muito pouco sobre ele - cogita-se at que o nome mais correto seja Zambi -, mas certo que viveu no sculo 17. E quem viveu prximo do poder no sculo 17 tinha escravos, sobretudo quem liderava algum povo de influncia africana.

    Desde a Antiguidade, os humanos guerrearam, conquistaram escravos e muitas vezes venderam os que sobravam. At o sculo 19, em Angola e no Congo, de onde veio a maior parte dos africanos que povoaram Palmares, os sobs se valiam de escravos na corte e invadiam povoados vizinhos para capturar gente. O sistema escravocrata s comeou a ruir quando o Iluminismo ganhou fora na Europa e nos Estados Unidos. Com base na ideia de que todos as pessoas merecem direitos iguais, surgiu a Declarao dos Direitos da Virgnia, de 1776, e os primeiros protestos populares contra a escravido, na Inglaterra. Os abolicionistas apareceram um sculo depois de Zumbi e a 7 mil quilmetros da regio onde o Quilombo dos Palmares foi construdo.

  • difcil acreditar que, no meio das matas de Alagoas, Zumbi tenha se adiantado ao esprito humanista europeu ou previsto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revoluo Francesa. ainda mais difcil quando consultamos os poucos relatos de testemunhas que conheceram Palmares. Elas indicam o esperado: o quilombo se parecia com um povoado africano, com hierarquia rgida entre reis e servos. Os moradores chamavam o lugar de Ngola Janga, em referncia aos reinos que j existiam na regio do Congo e de Angola. Significa novo reino ou novo sobado.

    Ganga Zumba, tio de Zumbi e o primeiro lder do maior quilombo do Brasil, provavelmente descendia de imbangalas, os senhores da guerra da frica Centro-Ocidental. Os imbangalas viviam de um modo similar ao dos moradores do Quilombo dos Palmares. Guerreiros temidos, eles habitavam vilarejos fortificados, de onde partiam para saques e sequestros dos camponeses de regies prximas. Durante o ataque a comunidades vizinhas, recrutavam garotos, que depois transformariam em guerreiros, e adultos para trocar por ferramentas e armas com os europeus. Algumas mulheres conquistadas ficavam entre os guerreiros como esposas. As prticas dos imbangalas tinham o propsito de aterrorizar a populao em geral e de encorajar as habilidades marciais - bravura na guerra, lealdade total ao lder militar e desprezo pelas relaes de parentesco, afirma o historiador Americano Paul Lovejoy. Essas prticas incluam a morte de escravos antes da batalha, canibalismo e infanticdio. Tanta dedicao a guerras e sequestros fez dos imbangalas grandes fornecedores de escravos para a Amrica. Lovejoy estima que trs quartos dos cerca de 1,7 milho de escravos embarcados entre 1500 e 1700 vieram da frica Centro-Ocidental, sobretudo do sul do Congo. Como a aliana com os portugueses s vezes se

  • quebrava, os guerreiros tambm acabavam sendo escravizados. Provavelmente foi assim que os pais ou avs de Zumbi chegaram ao Brasil.

    Entre os soldados que lutaram para derrubar o Quilombo de Palmares, o que mais impressionava, alm da fora militar dos quilombolas, era o modo como eles se organizavam politicamente. Segundo o relato do capito holands Joo Blaer, que lutou contra o quilombo em 1645, todos os quilombolas eram [...] obedientes a um que se chama o Ganga Zumba, que quer dizer Senhor Grande; a este tm por seu rei e senhor todos os mais, assim naturais dos Palmares como vindos de fora; tem palcio, casas de sua famlia, assistido de guardas e oficiais que costumam ter as casas reais. tratado com todos os respeitos de rei e com todas as honras de senhor. Os que chegam sua presena pem os joelhos no cho e batem palmas das mos em sinal de reconhecimento e protestao de sua excelncia; falam-lhe majestade, obedecem-lhe por admirao.

    No h relatos de que os moradores de Palmares cometesseminfanticdio ou canibalismo, mas diversos falam de ataques a camponeses, sequestros de homens e mulheres e ainda de vilarejos fortificados.

    Para obter escravos, os quilombolas faziam pequenos ataques a povoados prximos. Os escravos que, por sua prpria indstria e valor, conseguiam chegar aos Palmares, eram considerados livres, mas os escravos raptados ou trazidos fora das vilas vizinhas continuavam escravos, afirma Edison Carneiro no livro O Quilombo dos Palmares, de 1947. No quilombo, os moradores deveriam ter mais liberdade que fora dele. Mas a escolha em viver ali deveria ser um caminho sem volta, o que lembra a mfia hoje em dia. Quando alguns negros fugiam, mandava-lhes crioulos no encalo e uma vez pegados, eram mortos, de sorte que entre eles reinava o temor, afirma o capito Joo Blaer. Consta mesmo que os palmaristas

  • cobravam tributos - em mantimentos, dinheiro e armas - dos moradores das vilas e povoados. Quem no colaborasse poderia ver suas propriedades saqueadas, seus canaviais e plantaes incendiados e seus escravos sequestrados, afirma o historiador Flvio Gomes no livro Palmares.

    No d para ter certeza de que a vida no quilombo era assim mesmo, mas os vestgios e o pensamento da poca levam a crer que sim. Apesar disso, Zumbi ganhou (um retrato muito diferente por historiadores marxistas das dcadas de 1950 a 1980. Dcio Freitas, Joel Rufino dos Santos e Clvis Moura fizeram do lder negro do sculo 17 um representante comunista que dirigia uma sociedade igualitria. Para eles, enquanto fora do quilombo predominava a monocultura de cana-de-acar para exportao, faltava comida e havia classes sociais oprimidas e opressoras (tudo de ruim), em Palmares no existiam desnveis sociais, plantavam-se alimentos diversos e por isso havia abundncia de comida (tudo de bom). Nesta bibliografia de vis marxista h um esforo em caracterizar Palmares como a primeira luta de classes na Histria do Brasil, afirma a historiadora Andressa Barbosa dos Reis em um estudo de 2004.

    A imaginao sobre Zumbi foi mais criativa na obra do jornalista gacho Dcio Freitas, amigo de Leonel Brizola e do ex-presidente Joo Goulart. No livro Palmares: A Guerra dos Escravos, Dcio afirma ter encontrado cartas mostrando que o heri cresceu num convento de Alagoas, onde recebeu o nome de Francisco e aprendeu a falar latim e portugus. Aos 15 anos, Atendendo ao chamado do seu povo, teria partido para o quilombo. As cartas sobre a infncia de Zumbi teriam sido enviadas pelo padre Antnio Melo, da vila alagoana de Porto Calvo, para um padre de Portugal, onde Dcio as teria encontrado. Ele nunca mostrou as mensagens para os historiadores que insistiram em ver o material. A

  • mesma suspeita recai sobre outro livro seu, O Maior Crime da Terra. O historiador Cludio Pereira Elmir procurou por cinco anos algum vestgio dos registros policiais que Dcio cita. No encontrou nenhum. Tenho razes para acreditar que ele inventou as fontes e que pode ter feito o mesmo em outras obras, disse-me Cludio no fim de 2008. O nome de Francisco, pura cascata de Dcio Freitas, consta at hoje no Livro dos Heris da Ptria da Presidncia da Repblica.

    Tambm se deve historiografia marxista o fato de Zumbi ser muito mais importante hoje em dia do que Ganga Zumba, seu antecessor. Enquanto o primeiro ficou para a histria como heri da resistncia do quilombo, seu tio faz o papel de traidor. Essa fama se deve ao acordo de paz que fez com os portugueses em 1678. Ganga Zumba, recebido em Recife quase como chefe de Estado, prometeu ao governador de Pernambuco mudar o quilombo para um lugar mais distante e devolver os moradores que no tivessem nascido em Palmares. Em troca, os portugueses se comprometeriam a deixar de atacar o grupo. Os historiadores marxistas acharam a promessa de entregar os negros uma traio, que Zumbi teria se recusado a levar adiante. A ele [Zumbi] foram associados os valores da guerra, da coragem, do destemor e principalmente a postura de resistir continuamente s foras coloniais, conta a historiadora Andressa dos Reis. Esta viso de Freitas foi a imagem do Quilombo e de Zumbi que se cristalizou nas dcadas de 1980 e 1990. Os poucos documentos do perodo no so o bastante para dizer que Zumbi agiu diferente de Ganga Zumba e foi mesmo contra o acordo de paz. Se foi, pode ter agido contra o prprio quilombo, provocando sua destruio. Acordos entre comunidades negras e os europeus eram comuns na Amrica Latina - e nem sempre os quilombolas cumpriram a promessa de devolver escravos. No Suriname, o

  • quilombo dos negros chamados saramacs respeitou o acordo de paz com os holandeses. Esse grupo, que o historiador Americano Richard Price considera a experincia mais extraordinria de quilombos no Novo Mundo, conseguiu manter o povoado protegido dos ataques europeus. Tem hoje 55 mil habitantes.

    Em 1685, na tentativa de fazer um acordo de paz com o quilombo, o rei de Portugal mandou uma mensagem carinhosa para Zumbi. Um trecho: Convido-vos a assistir em qualquer estncia que vos convier, com vossa mulher e vossos filhos, e todos os vossos capites, livres de qualquer cativeiro ou sujeio, como meus leais e fiis sditos, sob minha real proteo.

    Hoje em dia relacionamos negros e escravos porque a escravido africana foi a ltima. Essa relao tem uma histria muito recente. Houve um tempo em que escravos lembravam brancos deolhos de azuis.

  • QUANDO OS ESCRAVOS TINHAM OLHOS AZUIS

    A prpria palavra escravo vem de eslavos os povos do leste europeu constantemente submetidos vontade de germanos e bizantinos na alta Idade Mdia. Brancos europeus tambm foram escravizados por africanos. Entre 1500 e 1800, os reinos rabes do norte da frica capturaram de l milho a 1,25 milho de escravos brancos, a maioria deles do litoral do Mediterrneo, segundo um estudo do historiador Americano Robert Davis, autor do livro Christian Slaves, Muslim Masters (Cristos Escravos, Senhores Muulmanos).

  • O SONHO DOS ESCRAVOS ERA TER ESCRAVOS

    O livro Mulheres Negras do Brasil, de Schuma Schumaher e rico Vital Brazil, foi lanado em 2007 com patrocnio do Banco do Brasil e da Petrobras. Um captulo da obra trata das mulheres negras livres de Minas Gerais do sculo 18. O livro rene belas imagens da poca, mas deixa de fora uma informao essencial. Nas vinte pginas sobre as negras mineiras, no h sequer uma meno ao fato mais corriqueiro daquela poca: assim que conseguiam economizar para comprar a alforria, o prximo passo de muitas negras era adquirir escravos para si prprias.

    A corrida do ouro de Minas Gerais do sculo 18 fez pequenas vilas rurais se transformarem em cidades efervescentes. Era um fenmeno poucas vezes visto no Brasil. At ento, mesmo as capitais das provncias eram povoados buclicos que funcionavam como centros administrativos das colnias ao redor. J as ruas de Mariana, Diamantina, Sabar e Vila Rica, atual Ouro Preto, ficaram de repente apinhadas de aventureiros e mineiros enriquecidos. Depois de duzentos anos procurando, Portugal tinha enfim encontrado ouro em larga escala no Brasil. Entre 1700 e 1760, um em cada quatro portugueses veio ao Brasil, quase todos para Minas Gerais. O ouro que esses aventureiros descobriam fazia as cidades vibrar. Hospedarias lotadas, tabernas e armazns se multiplicavam, vendedores disputavam espao nas ruas oferecendo porcos, galinhas, frutas, doces e queijo. Sapateiros, ferreiros, alfaiates, teceles e chapeleiros enriqueciam. As irmandades religiosas faziam festas e competiam para construir a igreja mais bonita. Nesse novo ambiente urbano, havia possibilidades para muita gente, inclusive escravos e escravas.

  • A mando de seus donos, as escravas costumavam vender doces e refeies nas lavras de ouro para os garimpeiros famintos. Quando ultrapassavam a venda que o senhor esperava, faziam uma caixinha para si prprias. Com alguns anos de economia, conseguiam juntar o suficiente para comprar a carta de alforria, tornando-se forras. Tambm acontecia de ganharem a liberdade por herana, quando o dono morria ou voltava para Portugal. Nessas ocasies, eram ainda agraciadas com alguns bens do senhor falecido. Em 1731, a ex-escrava Lauriana ganhou do testamento do seu antigo dono o stio onde moravam. A mesma coisa fez o portugus Antnio Ribeiro Vaz morto em 1760 na cidade de Sabar. Libertou seus sete escravos e legou a eles a casa e todos os bens que possua.

    Em liberdade, essas Chincas da Silva tinham muito mais tempo e ferramentas para ganhar dinheiro. Contando com escravos como mo de obra barata, algumas fizeram fortuna. A angola Isabel Pinheira morreu em 1741 deixando sete escravos no testamento, que deveriam ser todos alforriados quando ele morresse. Na dcada de 1760, a baiana Brbara de Oliveira tinha vrios imveis, jias, roupas de seda e nada menos que 22 escravos. Era uma fortuna para a poca. Apesar de serem livres e ricas, as negras forras no viraram senhoras da elite: continuaram carregando o estigma da cor. Havia uma compensao. Elas desfrutavam de uma autonomia muito maior que as mulheres brancas. Enquanto as donas ficavam em casa debaixo das decises do marido e cuidando de sua reputao, as negras circulavam na rua, nas lavras e pelas casas, conversando com quem quisessem e tocando a vida independentemente de maridos.

    No livro Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Sculo dezoito, o historiador Eduardo Frana Paiva mostra mais um caso interessante: o da negra Brbara Gomes de Abreu e Lima. Dona de um casaro em frente

  • Igreja Matriz de Sabar, ele tinha sete escravos e parcerias comerciais com empresrios e polticos. Seu testamento indica que ela revendia ouro e controlava negcios em diversas cidades de Minas e da Bahia. A herana inclua dezenas de jias e artefatos de metais preciosos, com cordes, coraes, argolas, brincos, tudo de ouro, alm de quatro colheres de prata pesando oito oitavas cada uma, quatro garfos de prata e uma faca com cabo de prata, saias de seda e vestidos. Nem todas as negras tiveram tantas riquezas, direitos e relaes quanto Brbara. Mas, como diz o historiador Eduardo Paiva, ela representava, certamente, um modelo a ser seguido por outras escravas libertas.

    Donas de escravos como qualquer outro senhor colonial, essas negras forras tambm praticavam atos cruis que marcaram a escravido brasileira. Uma das piores coisas que poderia acontecer para escravos da mesma famlia era serem separados e vendidos para cidades diferentes. Essa prtica frequentemente resultava em fugas e rebelies nas senzalas. A negra forra Lusa Rodrigues no se importou com isso em seu testamento, de 1753. Consta ali sua deciso de vender dois dos quatro filhos de sua escrava Leonor. Tambm concedeu alforria para um dos outros dois filhos da escrava, provavelmente querendo compensar o fato de ter separado a famlia.

    Negros agiam assim por todo o pas, e no s as mulheres. Em Campos dos Goytacazes [Rio de Janeiro], no final do sculo 18, um tero da classe senhorial era de cor. Isso acontecia na Bahia, em Pernambuco etc., escreveu o historiador Jos Roberto Pinto de Ges. O historiador Americano Bert Barickman, analisando os registros de posses de escravos em vilas rurais ao redor de Salvador, descobriu que negros eram uma parcela considervel dos

  • proprietrios de escravos. No vilarejo de So Gonalo dos Campos, pardos e negros alforriados tinham 29,8 por cento de todos os cativos. Em Santiago do Iguape, 46,5 por cento dos escravos eram propriedade de negros, que, diante dos brancos, eram minoria da populao livre. Embora possussem geralmente apenas um nmero reduzido de cativos, esses no brancos eram, ainda assim, senhores de escravos, diz o historiador Barickman.

    Tambm houve casos de escravos que se tornaram traficantes, como mostra Z Alfaiate no comeo deste captulo. Entre os negros que depois de livres voltaram para a terra natal, formando a comunidade de brasileiros no Daom, hoje Benin, vrios passaram a vender gente. O africano Joo de Oliveira voltou frica em 1733, depois de adquirir a liberdade na Bahia. Abriu dois portos de venda de escravos, pagando do prprio bolso o custo das instalaes para o embarque dos negros capturados. O ex-escravo Joaquim dAlmeida tinha casa no Brasil e na frica. Cristo e enriquecido pelo trfico, financiou a construo de uma capela no centro da cidade de Agu, no Benin.

    No h motivo para ativistas do movimento negro fechar os olhos aos escravos que viraram senhores. Ningum hoje deve ser responsabilizado pelo que os antepassados distantes fizeram sculos atrs. Negras forras e ricas podem at ser consideradas heronas do movimento negro, personagens que ativistas deveriam divulgar com esforo. Para um brasileiro descendente de africanos, muito mais gratificante (alm de correto) imaginar que seus ancestrais talvez no tenham sido vtimas que sofreram caladas. Tratar os negros apenas como vtimas indefesas, como afirmou o historiador Manolo Florentino, dificulta o processo de identificao social das nossas crianas com aquela figura que est sendo maltratada o tempo

  • todo, sempre faminta, maltrapilha. uma pena que historiadores comprometidos com a causa negra ou patrocinados por estatais escondam esses personagens.

  • OS PORTUGUESES APRENDERAM COM OS AFRICANOS A COMPRAR ESCRAVOS

    Na mancha clara e sem fim do deserto do Saara, um trao negro se movimenta devagar. Em fila indiana, 2 mil escravos so conduzidos para o comprador, no norte da frica. Esto presos uns aos outros com forquilhas no pescoo e carregam, ao lado de camelos, sacos de ouro, algodo, marfim e couros. Meses antes, soldados de uma nao vizinha invadiram a cidade deles, mataram quase metade dos moradores e os que sobraram agora marcham sob o sol do Saara, como mercadoria. Chegaro em poucas semanas a castelos de reis rabes, onde as mulheres se tornaro concubinas eos homens, trabalhadores forados.

    Entre a diversidade das culturas africanas, a escravido funcionava como um trao comum. Era quase uma regra dos reis ter escravos eunucos, escravas domsticas, dezenas de mulheres - que por sua vez tinham serviais. As caravanas de comrcio escravo existiam muitos sculos antes de os europeus atingirem a costa oeste do continente. No sculo 8, logo depois da colonizao rabe no norte da frica, africanos do sul do Saara passaram a atravessar o deserto para vender aos rabes algodo, ouro, marfim e sobretudo escravos. Na volta, as caravanas levavam aos reis africanos sal, jias, objetos metlicos e tecidos. Diz o historiador Americano Paul Lovejoy:

    A escravido j era fundamental para a ordem social, poltica e econmica de partes da savana setentrional, da Etipia e da costa oriental africana havia vrios sculos antes de 1600. A escravizao era uma atividade organizada, sancionada pela lei e pelo costume. Os cativos eram a

  • principal mercadoria do comrcio, incluindo o setor de exportao, e eram importantes na esfera interna, no apenas como concubinas, criados, soldados e administradores, mas tambm como trabalhadores comuns.

    Seis grandes rotas ligavam naes ao sul do Saara aos povos rabes do norte. Trs saam do Imprio de Gana, no oeste da frica, rumo ao Marrocos e Arglia; uma ligava o Chade Lbia, e outras duas iam, pelo rio Nilo, das terras sudanesas at o Egito.

    Como h pouqussimos registros dessa poca, os historiadores no sabem direito qual o nmero de escravos vendidos pelo Saara. Mas concordam com o tamanho dele. Para o historiador Luiz Felipe de Alencastro, foram 8 milhes de pessoas. O Americano Patrick Manning fala que s as rotas transaarianas escoaram 10 mil escravos por ano l milho de escravos por sculo. Contando as caravanas transaarianas e orientais at o fim da escravido, Paul Bairoch soma 25 milhes de escravos - mais que o dobro do que foi levado s Amricas, geralmente estimado em 12 milhes de pessoas.

    Com a venda de escravos, alguns reinos africanos viraram imprios, como o reino de Kano, na atual Nigria. Quando os portugueses chegaram regio, em 1471, para comprar ouro direto da fonte em vez de obt-lo por intermedirios rabes, Kano j era um territrio enriquecido havia um sculo pela venda de ouro, escravos, sal e couro. Em outras regies, a escravido era uma cultura estabelecida com tanta fora que camponeses pagavam impostos ao Estado central usando escravos como moeda. Esse

  • sistema facilitava a obteno de escravos que seriam vendidos a europeus, Americanos e rabes. O Imprio Axante, que se espalhava de Gana para a Costa do Marfim e Togo, cobrava dessa forma os impostos de regies conquistadas. Somente o pagamento de tributos eram da ordem de 2 mil escravos por ano por volta de 1820, escreveu o historiador Paul Lovejoy. Para conseguir comprar ouro nessa regio, os portugueses precisaram arranjar escravos como moeda de troca. Estima-se que, entre 1500 e 1535, eles compraram cerca de 10 mil cativos no golfo do Benin apenas para troc-los por ouro na prpria frica. Entraram em contato com os costumeslocais e se tornaram escravistas.

  • OS AFRICANOS LUTARAM CONTRA O FIM DA ESCRAVIDO

    Se j estavam ricos com a venda de escravos aos rabes, os reinos africanos lucraram muito mais com o comrcio pela costa do oceano Atlntico. Trocando pessoas por armas, o reino de Axante expandiu seu territrio. O rei Osei Kwame (1777-1801), graas aos escravos que vendia, tinha palcios luxuosos, alm de estradas bem aparadas que ligavam as cidades de seu imprio centralizado. Outro exemplo bem documentado o reino do Da