guia dos perplexos maimonides 2

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Parte

0 Guia dos Perplexos

Parte 2

M a i m ô n i d e s

0 G u ia d o s P e r p l e x o s

Parte 2

Tradução

U ri Lam

P refácio

Jo sé Luiz G o ld farb

IILAN DY

Título original:

Moré Há-Nevuchim

© da presente edição:

Uri Lame Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda.

Tradução e Introdução:Uri Lam

Preparação de originais:Sylmara Beletti

Capa:Camila Mesquita

Coordenação editorial:Vilm a M aria da Silva

Editor:Antonio Daniel Abreu

Produção:Kleber Kohn

.Editoração:ETCetera Editora de Livros e Revistas Ltda.

Fones: (011) 3825-3504 / 3826-4945 Fax: (011) 3826-7770

[email protected]

Direitos reservados para a língua portuguesaaLANDY

Landy Livraria Editora e Distribuidora Ltda. Alameda Jaú, 1.791 — tel. efax: (11) 3081-4169 (tronco-chave)

CEP 01420-002 — São Paulo, SP, Brasil [email protected] www.landy.com.br

2003

Os mais sinceros agradecim entos ao m eu orien tador d e Mestrado, Prof. Dr. Luiz Paulo Rouanet, p e lo momento inspirado em que m e sugeriu trabalhar com O Guia dos Perplexos. Ao Jo sé Luiz Goldfarb, p e la fe l iz ind ica ção da Editora Landy pa ra a pub lica ção desta obra. A toda a equ ipe da Landy, em especia l ao Daniel, p o r acreditar no projeto, à Vilma e à Sylmara, pelo cu idado e sensibilidade na revisão ep elas sugestões que tanto enriqueceram este trabalho. F inalmente, um agradecim en to especia l à Nancy, que está tão orgulhosa quanto eu p e la concretização deste trabalho cu ja importância, sabemos hoje, superou em muitas vezes as nossas expectativas iniciais.

Sumário

P R E F Á C IO ................................................................................................................................... 13

IN T R O D U Ç À O ............................................................................................................................ 15

A nálise da Parte 2 de O Guia dos P erp lexos.................................................... 25

In tro d ução ......................................................................................................... 25Provas filosóficas para a existência, incorporeidade e unicidadeda Prim eira Causa (cap. 1) ......................................................................... 26Sobre as Esferas Celestes e as Inteligências Puras ou Separadas(cap. 2 a 1 2 ) ....................................................................................................... 27Sobre a teoria da E ternidade do Universo (cap. 13 a 3 1 ) ............ 28Sobre a Profecia (cap. 32 a 4 8 ) ............ : ................................................... 31

P ossível contribuição de M ainiônides p a ra a fi lo so fia so cia l con tem porân ea ..... 35

O Profeta como modelo de líder e crítico so c ia l............................ 40Abraham loschua Heschel: os Profetas como m o d e lo ............... 43

O G U IA D O S PE R P L E X O S

P arte 2

INTRODUÇÃO

Y inte e seis proposições dos Peripatéticos para dem onstrar a existência, unicidade e incorporeidade de D e u s ......................................................................... 47

PROVAS FILOSÓFICAS PARA A EXISTÊNCIA, INCORPOREIDADE E UNICIDADE DA PRIMEIRA CAUSA

1. Os argum entos f ilo só fico s ................................................................................. : 55

SOBRE AS ESFERAS CELESTES E AS INTELIGÊNCIAS PURAS OU SEPARADAS

2. Sobre a ex istência das In teligências Puras ou Seres Puram enteE sp ir itu a is .................................................................................................................... 65

3. Sobre a hipótese de A ristóteles acerca das causas dos m ovim entosdas esferas celestes .................................................................................................. 69

4. As esferas celestes e as causas do seu m ov im en to ..................................... 71

1 0 O G U I A D O S P E R P L E X O S

5. . Concordância da teoria de Aristóteles com os ensinamentos daBíblia.......................................................................................................... 75

6. O que se entende pelo term o Malách (Anjo) e suas acepções,especialmente a de Inteligências Separadas......................................... 79

7. -A polivalência do termo Malách (Anjo)............................................... 85

8. Sobre a música das esferas celestes...................................................... 87

9. Sobre o número de esferas celestes...................................................... 89

10. A influência das esferas celestes sobre a Terra se manifesta de quatromodos diferentes..................................................................................... 91

11. A teoria da Excentricidade preferível à dos Epiciclos....................... 9712. Sobre a natureza da Influência (Emanação) Divina e a das esferas

celestes....................................................................................................... 101

SOBRE A TEORIA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO

13. Três teorias diferentes sobre a origem do U niverso.......................... 105

14. Sete métodos por meio dos quais os filósofos buscaram provar aEternidade do U niverso......................................................................... 111

15. Aristóteles não prova sua teoria............................................................ 115

16. A teoria da Creatio ex nihilo, mais provável que a da Eternidade doUniverso.................................................................................................... 119

17. As Leis da Natureza se aplicam às coisas criadas, mas não regulamo ato criativo que as produz. Refutação das quatro primeiras provas dos aristotélicos....................................................................................... 121

18. Refutação dos três últimos métodos dos aristotélicos...................... 125

19. Plano da Natureza. Provas em favor da Creatio ex nihilo. Refutam-sealgumas falhas da teoria aristotélica..................................................... 129

20. Objeções à teoria da Eternidade do Universo.................................... 13721. A teoria da Creatio ex nihilo é preferível à da Eternidade do Universo 141

22. As dificuldades de compreensão da Natureza e do movimento das esferas de acordo com a teoria de Aristóteles desaparecem dianteda idéia do Universo criado por D eu s................................................. 145

23. A Teoria da Creatio ex nihilo é preferível àquela da Eternidade doUniverso.................................................................................................... 149

24. As dificuldades de compreensão da Natureza e do movimento dasesferas de acordo com a teoria de Aristóteles desaparecem diante da idéia do Universo criado por D eus....................................................... 151

25. A Teoria da Criação é adotada devido à sua superioridade própria,mesmo que as provas baseadas na Bíblia sejam inconclusivas......... 157

26. Exame de uma passagem de Pirkê di-Rabi Eliezer com relação àCriação ...................................................................................................... 161

S U M Á RI O I I

27. A teo ria de um a futura destru ição do U niverso não faz p arte dacrença religiosa ensinada na B íb l ia .................................................................. 165

28. O ensinamento bíblico está a favor da indestrutibilidade do Universo.A doutrina de Salom ão - livros sap ienciais a ele atribuídos — com relação à E ternidade do Universo e sua p e rm an ên c ia .......................... 167

29. Explicação das frases bíblicas que im plicam a destruição dos Céuse da T e rra ..................................................................................................................... 171

30. Interpretação filosófica de Gênesis 1 -4 ........................................................ 183

31. A instituição do Shabát serve para ensinar a Teoria da Criação e paraprom over o bem -estar do H om em .................................................................. 193

SOBRE A PROFECIA

32. Três teorias a respeito da P ro fec ia ................................................................... 195

33. A d iferen ça entre M oisés e os outros israe litas com respeito àRevelação no M onte S in a i................................................................................... 199

34. Explicação de Êxodo 23:20 ................................................................................ 203

35. A d iferença entre M oisés e os outros P rofetas com respeito aosm ilagres perpetrados por e le s ............................................................................ 205

36. Sobre as faculdades mentais, físicas e m orais dos P ro fe tas ................. 209

37. A Em anação D ivina sobre as faculdades imaginativas e mentais doHomem através do Intelecto A t iv o ................................................................ 215

38. A coragem e a intuição atingem o grau m ais alto da perfeição nosProfetas ........................................................................................................................ 219

39. M oisés foi o Profeta m ais apropriado para receber e p rom ulgar aLei Imutável. Os Profetas que o sucederam apenas a ensinaram e exp licaram ................................................................................................................... 223

40. O teste da Profecia V erd ad e ira ......................................................................... 227

41. O que se entende por V isão Profética: os quatro m odos bíblicos 231

42. Profetas receberam comunicação direta apenas em Sonhos ou Visões 235

43. Sobre as parábolas dos P ro fetas ........................................................................ 239

44. Sobre os diferentes modos através dos quais os Profetas recebemm ensagens d iv in a s ................................................................................................... 243

45. Os diversos tipos de P ro fetas: onze graus de P ro fec ia ou dePercepção Profética; seu estudo cm três grupos .................................... 245

46. As parábolas dos Profetas fazem parte das visões P ro féticas............ 253

47. Sobre o estilo m etafórico dos escritos p ro fé tico s .................................... 257

48. A B íb lia confere a D eus, como Prim eira Causa de todas as coisas,os fenômenos diretam ente originados de causas n a tu ra is ................... 261

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................... 265

Prefácio

Em 1990, atuando então como editor, tive a oportunidade de con­vidar Haroldo de Campos a escrever a quarta capa da edição brasileira de Os 613 Mandamentos de Maimônides. E o sábio poeta pontuou:

“J. G uinsburg escreveu a respeito de M aim ônides: “O m ovim ento fi­

lo sófico que se in icia com A braão ibn D aud e que exige um a síntese

o rgânica, racional, en tre as doutrinas peripatéricas e os textos escritu ­

rais encontra na obra de M aim ônides a sua Sum a R ab ín ica. C om isso

tornou-se ele o grande lum inar da escolásrica judaica da Idade M édia e,

m ais ainda, pela qualidade filosófica e r igo r de suas form ulações, que

constituem respostas c lássicas aos p rob lem as in telectuais de seu tem ­

po, um dos m aiores pensadores em Israel de todos os tem pos.” (D o

E studo e da Oração, Col. Juda ica , V. 3, Ed. Perspectiva, 1968).

M aim ônides, que o autor d e d E strela da R edenção , F. Rosenzw eig,

cham a “o grande teórico da R evelação” , in sp irou-se em A ristó teles

no seu em penho em m ostrar a com patib ilidade da fé com a razão. A

tarefa assum ida pela teo logia judaica clássica, segundo G. Scholem , na

form ulação de “antíteses ao panteísm o e à teo logia m ítica”, ou seja,

em “provar que estão errados” ÇA M ística Judaica, Col. E studos, Ed.

Perspectiva, 1972). E ste livro , S eferH á-M it^ votb (L ivro dos M andam en tos

ou Os 613 M andam en tos), conform e salienta seu tradutor, G. N aháíssi,

“ constitu i a m elhor in trodução ao estudo da L ei M osa ica” , (quarta

capa de Os 613 M andam en tos , Ed. N ova Stella, 1990).

As palavras de Haroldo de Campos antecipam-nos a dimensão do pensador que podemos agora conhecer em português na primorosa edição que aqui nos oferece a Editora Landy. Maimônides é sem dúvi­da um dos pilares do pensamento judaico. Não há hoje escola judaica, religiosa, leiga, filosófica que não reflita o pensamento de Maimônides.

O G U I A D O S P E R P L E X O S

Uri Lam, em sua brilhante pesquisa como mestrando, produziu uma tradução a um só tempo precisa e apaixonada da Segunda Parte — de três partes — de 0 Guia dos Perplexos, na qual segundo o exímio tradutor ‘Maimônides teve por meta estabelecer uma relação inteligível entre a sabedoria judaica e a filosofia clássica grega através de uma espécie de diálogo entre os discursos dos nossos Sábios, por um lado; e os de Aris­tóteles (considerado por Maimônides “o Príncipe dos Filósofos”) e os Peripatéticos, por outro”.

Fundir religião e ciência, filosofia e fé, um projeto medieval, de uma Idade Média que há quase um século deixa de aparecer-nos como um período de Trevas e cada vez mais apaixona o contemporâneo. Um período fecundo em que o Ocidente greco-latino aprende/dialoga com o Oriente árabe-hebraico. Em que culturas e geografias diversas exi­gem um pensamento criativo e sintético.

Nestas páginas vamos reconhecer questões que hoje sabemos te­rem sido de vital importância nas determinações do contexto cultural em que se moldaram as origens da ciência moderna. Tomemos, para tomar apenas um caso emblemático, a discussão em torno da existên­cia da música das esferas celestes. Maimônides tem de enfrentar-se, na defesa desta tese, com Aristóteles e com os Sábios de Israel. A mesma tese que viria a influenciar Kepler e o próprio Isaac Newton. A heran­ça medieval incorporada à modernidade, de uma Idade Média redes- coberta, torna-se mais e mais re-dimensionada principalmente nos es­tudos da história da ciência.

Conhecer mais a fundo esta erudita e importante contribuição filo­sófica de Maimônides é um convite para re-visitarmos o século XII

medieval, lançando ao mesmo tempo bases para compreendermos mais a fundo as origens da modernidade, sua ciência e sua tecnologia. As­sim poderemos melhor reconhecer as luzes do futuro que novamente estão a exigir sínteses entre Ocidente e Oriente. Como o tradutor, o jovem corajoso e audacioso Uri Lam nos indica, é hora de estudarmos Maimônides.

Setembro, 2003.José L uiz G oldfarb*

* Professor de História da Ciência da PUC-SP; Assessor de Gabinete, Secretaria de Estado da Cultura; curador do Prêmio Jabuti, CBL; Diretor Geral de Cultura, A Hebraica’.

Introdução>

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Há uma antiga expressão sobre Maimônides que afirma: “De Moisés a Moisés, nunca houve outro como Moisés”, A extensa obra de Maimô­nides sempre foi alvo de grande interesse. Sua importância para o pen­samento judaico pode ser comparada à de São Tomás de Aquino para a filosofia cristã católica.

Além de exercer inúmeras atividades durante sua vida, principal­mente médico da corte do Sultão Saladino no Egito, Maimônides foi também um importante teórico e construiu uma obra considerável, que abrange a teologia, a filosofia, a astronomia e a medicina.

Todavia, três de suas obras merecem maior destaque: Mishnaiót, ou os múltiplos Comentários sobre a M ish n á M ish n ê Torá (Repetição da Lei), obra gigantesca que lhe ocupou doze anos de trabalho contínuo (1168-1180) e marcou época na história do pensamento judaico tal- múdico, pois se trata de uma sistematizaçâo da vasta literatura talmú- dica até então; e Dalalát al-Hairín (em árabe,) ou MoréHá-Nevucbim (em hebraico), O Guia dos Perplexos (1180-1190) — escrito originalmente em árabe — tida como a obra de sua maturidade. Segundo Maeso,2 “o MoréHá-Nevuchim só admite comparação, quanto à grandiosidade, com a Suma Teológica e a Divina Comédia, cada uma em seu gênero, a cujos autores precedeu em um século ou mais, balizando assim, os três, a história da cultura como figuras máximas da Baixa Idade Média (sécu­lo X II, Maimônides; século X III, São Tomás de Aquino; século X IV,

Dante Aliguieri)”.

1 Mishná-. o Código da Lei Rabínica que constitui o cerne do Talmnd.2 Cf. Maeso in: Maimônides. Guia de Perpkjos, p. 13.

Estas três obras maiores de Maimônides estão entremeadas crono­logicamente com outras muitas, cujas datas são impossíveis de preci­sar. Provavelmente escreveu seus tratados médicos nos últimos anos de vida, quando atuou quase que exclusivamente como médico da cor­te de Saladino.

2

Maimônides, também conhecido como Rambám, um acrônimo for­mado pelas iniciais de seu nome completo, acrescido do título de Ra­bino - Rav (Mestre, em hebraico), Moshé (Moisés), be.n (filho), Mai- mon — nasceu em Córdoba, na Andaluzia,3 Espanha, em 30 de março de 1135, no tempo da dominação dos Almohades* sobre a Península Ibérica. Córdoba era a cidade de sua família há oito gerações. Seu pai era estudioso do Talmúd e foi discípulo do Rabino Yossêf ibn Migáts, da Academia Talmúdica de Lucena;5 era então o chefe do Tribunal Rabínico de Córdoba e o mais importante mestre das tradições judai­cas do local. Em 1148, os Almohades — sob a liderança de Mahadiibn

IÓ O G U I A D O S P E R P L E X O S

3 Andaluzia: também conhecida como AlAndalus^ ou Espanha Muçulmana. '4 Almohades - do árabe “Confessores da Unidade”: grupo muçulmano funda-

mentalista liderado por Abd ei Mumin, cujo reinado se estendeu da Síria ao Oceano Atlântico. Os Almohades exigiam a conversão ao “Verdadeiro Islamis- mo”, a emigração ou a morte; constituíram uma séria ameaça aos cristãos e principalmente aos judeus, já então ameaçados pelas Cruzadas (cf. Nahaissi in: Maimônides, M. —Os 613 Mandamentos. 1990, p. 15).

5 Lucena (Al-Yussana); cidade espanhola considerada, durante os séculos IX a XII, uma cidade de judeus. Com a decadência da Academia Talmúdica de Sura, na Babilônia, seus últimos mestres, após naufragarem em Córdoba e terem sido vendidos como escravos, foram resgatados por seus correligionários, in­corporaram-se à comunidade judaica e transformaram a Andaluzia no centro espiritual do Judaísmo. Com o fim do califado de Córdoba, em meio a lutas pelo poder, muitos judeus fugiram para Lucena, já então denominada “A Péro­la de Sefarád” (Espanha judaica). Os séculos XI e XII foram o período de maior esplendor da Lucena judaica, cujo maior destaque foi a Academia Tal­múdica sob o comando espiritual de Isaac ibn Gaj^yát. A invasão dos Almoha­des, na primeira metade do século XII, culminou com a conversão, expulsão ou morte de todos os não-muçulmanos. Em 1148 a Academia de Lucena foi fechada. Os judeus, em boa parte, exilaram-se em terras cristãs. O último rabi­no de Lucena, Meir ibn Yossêf, passou a ensinar a tradição talmúdica em Mar- bona, no sul da França.

I N T R O D U Ç Ã O 17

Tamurt, sucedido por Abd el Mumin — conquistaram a antiga capital do califado, o que desencadeou uma sangrenta perseguição contra judeus e cristãos, dando-lhes as opções de conversão ao Islamismo, a emigração ou a morte. Dadas as condições, em 1151 a família Mai- mon foi forçada a deixar Córdoba. Maimônides e sua família passa­ram por um período relativamente pacífico em Almeria,6 até a toma­da também desta cidade pelos Almohades. A partir de então, iniciaram novamente a vida de peregrinos por diversas cidades do sul da Espa­nha. Em 1158, aos 23 anos, Maimônides iniciou sua carreira literária com um tratado sobre o calendário judaico; na mesma época escre­veu, em árabe, o livro Conceitos de Lógica. Em 1160, abandonaram a Espanha, rumo ao Marrocos (norte da África). Durante sua adoles­cência e juventude, Maimônides pôde se dedicar aos estudos, pois era sustentado por seu irmão mais velho, David, um próspero mercador de pérolas. Em 18 de abril de 1165, um sábado, emigraram para a Terra de Israel, então Palestina. Maimônides tinha trinta anos. Chega­ram em Aco (Acre) no dia 16 de maio, depois de penosa travessia. A Terra de Israel na época estava devastada pelas Cruzadas. Seguiram então a Fustat (Velho Cairo, Egito). Neste ano faleceram: o pai de Maimônides, seu irmão David — em um naufrágio durante uma via­gem de negócios — e sua esposa. Maimônides casou-se novamente com a irmã de um influente palaciano egípcio, Ibn Almati, um dos secretários do rei. Este, por sua vez, casou-se com uma irmã de Maimônides, com a qual teve um filho de nome Abrahão. Após um ano em estado depressivo, Maimônides recobrou a saúde física e emo­cional. Dedicou-se então à prática da Medicina para assegurar o sus­tento da família e se tornou um dos médicos mais respeitados de todo o Egito, Maimônides também abriu uma escola de Filosofia e se in­corporou à Academia de Medicina. Em 1168 terminou seu grande Tratado Sobre aM isbná, iniciado na Espanha ainda em 1158. Em 1171 foi nomeado médico da corte de Saladino, a convite do Vizir Al-Fadel — cargo que desempenhou até sua morte e herdado por seu filho e des­cendentes. Maimônides era especialista em Gastroenterologia e escre­veu uma longa série de tratados médicos, especialmente no campo da

6 Almeria: província de posição estratégica, voltada ao mar Mediterrâneo. No século X os árabes fundaram sua capital, Almoraciti, que se tornaria um dos mais importantes centros da Espanha muçulmana durante oito séculos.

i8 O G U I A D O S P E R P L E X O S

medicina preventiva. Em 1177 foi nomeado Naguíd (Presidente) da comunidade judaica do Egito. Em 1180 terminou de escrever sua obra de maior fôlego, o Mishné Torá, iniciada doze anos antes e, aos 45 anos, passou a escrever, em árabe, o Dalalát al-Hairín — O Guia dos Perplexos — que terminaria em 1190. Em 1199, Maimônides escreveu uma carta a Shmuêl ibn Tibon, residente em Lunel (França), que, em setembro daquele ano, iniciara a tradução do Dalalát al-Hairín para o hebraico, sob o título de M oré há-Nevuchím. A tradução, encerrada em 1204, foi aprovada por Maimônides. Maimônides morreu em 13 de dezembro do mesmo ano, aos 69 anos. Foi enterrado em Tiberíades, Israel.

3

O objetivo inicial de Maimônides, com 0 Guia dos Perplexos, era res­ponder aos anseios de Yossêf ibn Yehuda ibn Aknin, que viera de Ceuta7 para Alexandria com o único intuito de se tornar seu discípulo. Ele partiu, após dois anos, para Alepo, na Síria, por motivos ignorados. Antes de sua partida, obteve de Maimônides a promessa de que este redigiria um tratado no qual responderia as suas dúvidas.

Maimônides acreditava que, ao escrever uma obra que abordasse a relação possível entre o texto bíblico e a tradição oral contida no Tal- mud, por um lado, e a filosofia, por outro, poderia possibilitar o acesso da razão aos segredos contidos na Bíblia e, assim, aliviar a “perplexida­de” dos judeus eruditos diante das dificuldades na compreensão do texto bíblico.

Segundo o estudioso Nahaissi,8 Maimônides, ao escrever O Guia dos Perplexos, não visava o público em geral, mas sim os estudiosos das tradições judaicas. Para ele, “a originalidade de Maimônides nesse tra­balho foi a de estabelecer um diálogo entre o mosaísmo e a filosofia, ao invés de se limitar à utilização de seus conhecimentos filosóficos para fazer a apologia do judaísmo. Ele não renuncia a nenhuma das tradições do pensamento judeu, nem tampouco alimenta a ilusão de poder “conciliar” a verdade bíblica e a verdade filosófica. Ao invés

7 Ceuta: cidade portuária localizada na costa mediterrânea do Marrocos, cm frente ao Estreito de Gibraltar, Espanha.

8 Veja em Maimônides, M. Os 613 Mandamentos. 1990, p. 27.

I N T R O D U Ç Ã O 19

disso, confronta as duas tradições, de maneira a sobrepô-las. Assim, Maimônides se outorga a missão de guiar os estudiosos para o conhe­cimento metafísico, o qual, segundo ele, é uma possessão original do judaísmo que havia se perdido durante o Exílio, e c essa perda que torna o Exílio tão trágico. Ele tem a convicção de que o renascimento da compreensão mais elevada, obtida graças à introdução da filosofia nos estudos religiosos, é o fato libertador que conduzirá ao aconteci­mento messiânico, teoria essa que, aliás, acredita-se ser ele o primeiro a introduzir naqueles tempos de Exílio”. Maeso, por sua vez, afirma que “(...) a obra não é dirigida nem aos filósofos nem tampouco aos leigos de toda formação intelectual, mas sim ao círculo de estudiosos que se vêem desconcertados por certos problemas que aparentam contradi­ção entre a religião e a filosofia ou simplesmente a razão natural (...)”, e declara que filosofia e religião são “(...) ambos os extremos que 0 Guia dos Perplexos se propõe a conciliar”.9

Conforme o historiador Nachman Falbel, o acesso de Maimônides à filosofia grega somente teria sido possível de forma indireta, por meio dos filósofos árabes muçulmanos — afinal de contas, segundo ele, Maimônides não sabia grego. Seu interesse em buscar a conciliação en- ffe filosofia e religião estaria em criar uma teologia judaica de alto nível e em demonstrar que a leitura dos textos bíblicos não deveria ser literal.

4

0 Guia dos Perplexos consiste de uma introdução e três partes, cujos temas centrais são os seguintes:

Plimeira Parte: Exposição das idéias esotéricas (sodót— segredos) con­tidas nos Livros dos Profetas.

Segunda Parte: Defesa da Teoria da Criação em contraposição à Teo­ria da Eternidade do Universo de Aristóteles e seus seguidores, os Peripatéticos; caracterização dos conceitos de Profeta c Profecia.

Terceira Parte: Exame e refutação do sistema e do método do Kalám — corrente filosófica de orientação islâmica; análise do Maassê Merkavá, ou seja, do texto esotérico denominado Relato das Carruagens Divinas (Ezequiel 1).

9 Veja em Maimônides, Guia de Perplejos, p. 15.

2 . 0 O G U I A D O S P E R P L E X O S

De acordo com esta estrutura e seu conteúdo, o trabalho ao qual Maimônides se propôs termina com o sétimo capítulo da Terceira Par­te. Os capítulos que se seguem podem ser considerados um apêndice e tratam dos seguintes temas teológicos: a existência do Mal; Onisciên- cia e Providência; Tentações; a Forma na Natureza; por dentro da Lei (Tora) e por dentro das narrativas bíblicas; e, finalmente, a verdadeira adoração a Deus.

Parece que o autor adotou este arranjo pelas seguintes razões: primeiro pretendeu estabelecer o fato de que os antropomorfismos bíblicos não implicam corporeidade e que o Ser Divino mencionado pela Bíblia poderia, portanto, ser considerado idêntico à Primeira Causa dos filósofos. Estabelecido este princípio, na Segunda Parte discute, a partir de um ponto de vista filosófico e em diálogo com 'a filosofia aristotéüca, as propriedades da Primeira Causa e sua relação com o Universo. Uma vez estabelecida a possibilidade de exposição das passagens da Bíblia à razão, na Terceira Parte Maimônides trata de refutar o Kalám, demonstrando que os argumentos dele são ilógi­cos e ilusórios.

Maimônides era um grande admirador da filosofia de Aristóteles, se bem que, à primeira vista, a filosofia islâmica dos Mutakálemim10 pudesse parecer mais simpática às crenças judaicas. O Kalám sustenta­va a teoria da Existência de Deus, da Incorporeidade e da Unicidade, juntamente com a Creatio ex nihilo. Maimônides, contudo, se opôs ao Kalám, expôs o que considerava ser, do seu ponto de vista, a fragilidade e as falácias desta filosofia e preferiu o sistema de Aristóteles, apesar de este incluir a teoria da Eternidade do Universo, contrária ao ensina­mento fundamental da Bíblia.

5

A partir do original escrito em árabe, ao longo de oito séculos foram escritas muitas versões de 0 Guia dos Perplexos em diversas línguas. Abaixo, citamos as principais:

Hebraico: Há duas mais conhecidas — a de Shmuêl ibn Tibon, reali­zada entre 1199 e 1204 e a de Yehudá al Harizí, contemporâneo de

10 Mutakálemim. partidários da filosofia muçulmana do Kalám.

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I N T R O D U Ç Ã O 21

Shmuêl ibn Tibon. A versão do primeiro, realizada ainda durante a vida de Maimônides, com quem trocou cartas de orientação, foi auto­rizada por ele. Segundo Friedlander,11 a versão de Shmuêl ibn Tibon é muito acurada; ele sacrificou a elegânda de estilo pelo desejo consáente de reproduzir o trabalho do autor, e não negligenciou nem mesmo, uma ínfima parte, p o r menos importante que pudesse parecer. Sua versão, por isso mesmo, é considerada um calco do original, favorecida até pelo fato de se tratar de duas lín­guas semíticas antigas muito próximas.'Embora a versão de Yehudá al Harizí seja considerada mais sofisticada e elegante, a literalidade e o fato de ter sido autorizada pelo próprio Maimônides consagraram a versão de Shmuêl ibn Tibon.

A edição mais antiga que se tem notícia da versão de Shmuêl ibn Tibon encontra-se na Biblioteca Nacional de Paris. Trata-se de um manuscrito de 1452, copiado por um certo Shmuêl ben Yitzchák.12 Utüizou-se, nessa tradução, a versão de ibn Tibon.

Tatim: Imagina-se que já havia versões de 0 Guia dos Perplexos em latim no século XIII, pois a obra era conhecida de Alberto Magno e São Tomás de Aquino. A mais conhecida, e tida como a melhor, foi realizada por Juan Buxtorf Filho, publicada em 1629 na Basiléia, Suíça.

Francês: Aquela que é considerada a melhor versão é a de Salomão Munk, sob o título U Guide dês Egarés, Traite de Théologie et de Philosophie, parM oise ben Maimoun, dit Maimonide. Considerada por muitos como a melhor já escrita em línguas modernas,13 é referência para muitas tra­duções posteriores. Publicada originalmente entre 1856 e 1866, era tida como obra rara até ser reimpressa em 1970.

Italiano: A primeira foi realizada por Amadeo M. di Recanati (Yedí- dia ben Moshé), que a ditou ao irmão, Elias. Este terminou a tradução para o idioma italiano (mas com letras hebraicas) em 1583. Uma se­gunda versão, na verdade uma re-tradução da versão francesa de Munk,

11 Maimônides, M. The Guideforthe Perplexed. Tradução por Moses Friedlander. 2a edição. New York, USA: Dover Publications, 1956 [1904], 414p. Tradução de: Da/alât al-Hairín, p. xxviii.

12 Em: Maimônides. Guia de Perplejos, p. 32.13 Idem, p. 33.

O G U I A D O S P E R P L E X O S

foi realizada por j. Maroni nos anos de 1870-1871, em Firenze, sob o título Guida degli Smarriti.

Alemão: A obra foi traduzida parcialmente por três autores. A Ter­ceira Parte por Simon Scheyer, em Frankfurt A. M., em 1838; a Primei­ra Parte por R. Fürstenthal, em Krotoschin, em 1839 e a Segunda Par­te, por M. E. Stern, em Viena, em 1864.

Inglês: São duas as versões mais conhecidas. A de M. Friedlander, The G uideforth e Perplexed, diretamente do árabe e com base na versão francesa de Munk. A Primeira Parte foi originalmente publicada em 1881. A versão completa e revisada, em três tomos, só viria a ser publicada em 1904. A outra versão é a de Shlomo Pines e Leo Strauss, sob o patrocínio da Universidade de Chicago, cuja primeira edição data de 1936. Embora a contracapa do livro a considere a melhor versão de O Gaia dos Perplexos já escrita em inglês, Maeso considera- a excessivamente literal.14

Espanhol: Há uma antiga tradução em espanhol, realizada a partir da versão hebraica de Yehuda al Harizí, por um certo Pedro de Toledo entre 1419 e 1432. Somente na segunda década do século XX surgiram outras versões espanholas (somente da Primeira Parte), re-traduções da versão francesa de Munk: a mais conhecida sob o título Guia de los descarnados, por José Suarez Lorenzo. Em 1955 foi publicada uma nova tradução, pouco conhecida, realizada por Leon Dujovne. Em 1994, a primeira edição da versão de David Gonzalo Maeso foi publicada na Espanha, sob o título Guia de Perplejos, pela Editora Trotta. A terceira edição foi lançada em 2001.

Português: uma coletânea de O Guia dos Perplexos foi recentemente publicada pela Editora Sêfer em 2003. Esta tradução integral da Parte 2 de O Guia dos Perplexos, publicada agora pela Editora Landy, é a pri­meira traduzida diretamente do hebraico para a língua portuguesa. A primeira e terceira partes serão publicadas em breve pela Landy.

14 Em: Maimônides. Guia de Perplejos, p. 33.

I N T R O D U Ç Ã O

A tradução de 0 Guia dos. Perplexos para o português foi realizada to­mando-se por base a versão de Maeso em espanhol, comparada ã ver­são de Friedlander em inglês. Por último foi feita a tradução definitiva a partir da versão em hebraico de Shmuêl ibn Tibon. Quanto à transli- teração dos caracteres hebraicos para a língua portuguesa, optou-se por uma das metodologias atualmente em voga no Brasil, particular­mente segundo o Sidur Completo com Tradução e Transliteração, livro de orações judaicas publicado pela Editora Sêfer.lD

Assim, utilizamos a seguinte metodologia quanto à translitera­ção de letras hebraicas para o português:

• Consoante Guímel — G. Diante das vogais “e” e “i”, substitui- se por “gue” e “gui”, respectivamente.

• Consoante Hei — H, pronunciada de modo aspirado, como em half, em inglês. No final da palavra torna-se muda e nem sempre é transliterada.

• Consoantes Cbáf e Cbêt— CH, pronunciadas de forma gutural, como o “j” espanhol.

• Consoante Rêish — R pronunciada sempre como em “caro”.• Consoantes Sámech e Sín — “S” sempre que estiver no início da

palavra, precedido ou seguido de consoante; “SS” quando esti­ver entre vogais.

• Consoante Shín — Sh..• Consoante Tsádi— Ts.

Além destas regras, foi adotado também o uso de um hífen para dis­criminar o artigo do substantivo, que no hebraico vêm juntos. Por exem­plo, escreve-se Há-Nevucbim (dos Perplexos), ao invés de Hanevuchím.

As consoantes K af e K uf foram transliteradas pela letra K.

6

15 Em FRIDLIN, 1- (prgl), S idur Completo com Tradução e Transliteração. São Paulo: Sêfer, 1997 [1987], 707 p. Tradução do: Sidur Rinat Israel, pp. VII-VIII.

I N T R O D U Ç Ã O 2-5

Análise da Parte 2 de O Guia dos Perplexos

INTRODUÇÃO

Maimônides enumera, em princípio, vinte e cinco proposições, por meio das quais Aristóteles e os filósofos aristotélicos posteriores provaram a existência de Deus — na linguagem filosófica, a Primeira Causa — e suas propriedades principais: o fato de ser incorpóreo, imutável, sempre atuante e único.

As três primeiras proposições afirmam a impossibilidade da existência de magnitudes e séries de causa e efeito infinitas. A quarta proposição determina quatro categorias sujeitas à mudança: 1) Substância — mo­dificada pela Gênese e Destruição; 2) Quantidade — sujeita a Aumento ou Diminuição-, 3) Qualidade — sujeita a Transformações', e 4) L ugar— a pas­sagem de um lugar para outro é chamada de Movimento. O conceito de movimento é desenvolvido entre a q uinta e a nona proposição. A déáma, décima primeira e déáma segunda proposições tratam das coisas abstratas, incorpóreas, ligadas à matéria. São elas: a causa do objeto e os aciden­tes que existem através do objeto. Por estarem ligados ao objeto e este ser finito, tanto a causa quanto os acidentes são considerados finitos. A décima terceira, déáma quarta, déáma quinta, déáma sétima e décima oitava proposições falam sobre movimento e mudança, com destaque para a déáma quinta, que ressalta a ligação indissolúvel entre tempo e movi?nento. A déáma sexta proposição diferencia os seres incorpóreos li­gados ao corpo — e, portanto, contados juntamente com estes — dos seres espirituais puros, que não podem ser contados, pois não estão ligados a um corpo; a décima nona proposição afirma que uma coisa abstrata, dependente de certas causas, somente existirá enquanto estas existirem — portanto, é finita. As seis últimas proposições tratam

2.6 O G U I A D O S P E R P L E X O S

da diferença entre um ser de existência necessária, que não é conse­qüência de nenhuma causa, e seres compostos de no mínimo dois elementos, que são necessariamente materiais, têm uma causa exter­na que lhes provoca a existência e, antes de existirem de fato, perma­necem em estado de potência.

Maimônides então acrescenta, a estas, uma vigésima sexta proposição, que afirma que o Tempo e o Movimento são eternos, constantes e de existência de fato, posição aristotélica da qual discorda. Apesar disto, propõe-se a aceitá-la provisoriamente, para posteriormente refutá-la e demonstrar sua própria teoria: somente Deus é eterno, constante e de existência constante.

PRO VAS FILOSÓFICAS PAR A A EXISTÊNCIA, INCORPOREIDADE

E UNI CIDADE DA PRIM EIRA C A U SA (CAP. 1)

Os filósofos aristotélicos apresentam quatro argumentos para provar a existência, incorporeidade e unicidade da Primeira Causa:

Primeiro argumento filosófico : Deve haver um primeiro agente motor que mova todas as coisas transitórias e lhes dê condições para receber Torma. Somente uma possibilidade satisfaz esta condição, sem ferir as proposições men­cionadas anteriormente: que se trate de um ser incorpóreo e separado do Universo.

Segundo argumento filosófico'. Se dois elementos coexistem em um estado combi­nado, e um destes elementos pode também ser achado livre, então também o segundo elemento pode ser achado livre. Sendo possível existir seres sozinhos, é pos­sível a existência de um que possa mover, mas não ser movido — a Primeira Causa, de acordo com o primeiro argumento, única, indivisível, incorpórea e atemporal: Deus.

Terceiro argumento filosófico'. Há três possibilidades de existência-. 1) Nada tem iníáo efim , 2) Tudo tem iníáo efim-, 3) Algumas coisas têm e outras não têm iníáo efim . A única possibilidade viável é a terceira, pois além dos seres transitórios, deve haver um ser imortal que seja a causa dos demais, caso contrário, se o Universo fosse totalmente destruído, não poderia ser reproduzido.

Quarto argumento filosófico-, É necessário um agente externo que fa ça o outro sair do estado de potência para o estado de movimento. No limite, haverá ne­cessariamente uma Primeira Causa, que não é posta em movimento

I N T R O D U Ç Ã O 2-7

por nenhum agente externo — logo, esta jamais esteve em estado de potência, pois, se assim fosse, nunca poderia colocar outra coisa em movimento. Do mesmo modo, não satisfaz a condição de um ser corpóreo, qual seja, ter estado em um determinado momento em es­tado de potência. Portanto, é um ser incorpóreo. Como incorpóreo, não pode ser contado, então só poder ser Um.

Além destes, Maimônides apresenta outros dois argumentos adi­cionais, relativos à unicidade de Deus:

1) “Não se pode imaginar a atuação de dois deuses que agem de forma alternada na formação do Universo”: não há razão para que um esteja agindo e o outro, não; por outro lado, deveria haver então uma causa anterior que permitisse a um atuar e ao outro não. A vinculação ao tempo e o estado de potência são condições impossíveis para um Deus, como já vimos; logo, na hipótese de dois deuses, nenhum deles seria Deus de fato.

2) “Não se pode imaginar dois deuses amando juntos na formação do Universo”: para que houvesse esta união seria necessário uma causa anterior; logo, nenhum deles seria, tampouco, Deus de fato. Quanto à incorporeidade de Deus, Maimônides argumenta que Ele é uno, enquan­to todo corpo é necessariamente composto de ao menos duas partes — portanto, Deus é incorpóreo.

SOBRE A S ESFERAS CELESTES E A S INTELIGÊNCIAS PURAS OU

SEPARAD AS (CAP. 2 A 12)

A teoria filosófica da Primeira Causa foi relacionada ao conceito judaico de Deus. O Universo, do qual a Terra é o centro, é vivo e orgânico. Qualquer mudança na Terra é causada por uma seqüência constante de influências que fluem desde Deus, passando por quatro esferas: dos astros fixos; dos planetas; do Sol e da Lua. A divisão das esferas em quatro é tida como um insight de Maimônides. Para ele, esta divisão harmoniza as várias, redes de transmissão: a primeira transmissão de forças parte de Deus {Primeira Causa) e se distribui entre as quatro Inte­ligências Separadas, destas para as quatro esferas celestes, daí para os quatro elementos terrenos (terra, água, ar e fogo) e destes, finalmente, às quatro classes de seres: mineral, vegetal, animal e racional (huma­no). Esta transmissão de forças de um nível para outro é denominada Shéfa (Emanação ou Injluênád).

2.8 O G U I A D O S P E R P L E X O S

Maimônides segue Aristóteles em sua descrição das esferas celes­tes. As esferas não contêm qualquer dos quatro elementos do mundo terreno; são tidas como um Quinto Elemento, totalmente diferente. En­quanto as coisas na Terra são transitórias, os seres que habitam as esfe­ras celestes são eternos. Segundo Aristóteles, as esferas celestes e as Inteligências Separadas existem de forma permanente e coexistem desde sempre com a Primeira Causa. Maimônides, fiel à tradição judaica, dis­corda de seu mestre: sustenta que tanto as esferas celestes quanto as Inteligências Separadas tiveram um início e passaram a existir a partir da vontade de Deus.

As esferas são dotadas de Alma, que permitem a elas se mover livremente.O impulso para o movimento é dado pelo Intelecto, que con­cebe uma idéia a partir do desejo de se assemelhar ao ideal, representado pela Primeira Causa (Deus). Cada esfera tem o seu intelecto, que, por sua vez, recebe a influência de uma determinada Inteligência Separada. A Inte­ligência Separada que atua sobre o intelecto da esfera da Lua é denomina­da Intelecto Ativo (Sêchel há-Poêl). Os anjos, mencionados na Bíblia como malachím, elohím ou adoním, são considerados idênticos às Inteligências Se­paradas-. são seres incorpóreos, e suas vontades tendem invariavelmente para aquilo que é bom e nobre. Mas, de acordo com Maimônides, o termo anjo contém diversos significados: assim, além de Inteligências Se­paradas, também significa ideais, Profetas, homens comuns e animais; até mesmo os quatro elementos podem ser identificados como anjos em um dado contexto, se estiverem servindo ao propósito de Deus,

SOBRE A TEORIA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO (CAP. 13 A 31)

Não interessa a Maimônides comprovar sua teoria nem desmontar a teoria de Aristóteles. E suficiente para ele demonstrar que a teoria da Criação é uma possibilidade, de um ponto de vista filosófico, tão viável quanto a teoria da Eternidade do Universo; a partir daí, buscará com­provar que a sua teoria é a mais provável.

Maimônides apresenta três teorias com respeito às origens do Uni­verso, a saber:

1) teoria bíblica judaica'. Deus criou o Universo a partir do nada;2) teoria platônica e teoria islâmica (dos mutakálemim)-. Deus formou o

Universo — que é transitório — de uma substância eterna;3) teoria aristotêlica-. Deus e o Universo são eternos e coexistentes.

I N T R O D U Ç Ã O

Na terceira teoria, a Eternidade do Universo está fundada em pro­priedades da Natureza e da Primeira Causa, segundo os aristotélicos, e estas estão demonstradas em quatro e três métodos, respectivamente, aqui apresentados. Além destes, Aristóteles reforça sua teoria, consi­derando o fato de existir uma crença popular geral na Eternidade do Universo. Maimônides refuta os primeiros quatro métodos ao argu­mentar que estes não levam em conta que as leis, por meio das quais o Universo está regulamentado, não precisariam vigorar antes de o Uni­verso existir, assim como é um equívoco considerar o funcionamento do organismo de um feto a partir do funcionamento do organismo de uma pessoa já nascida. De modo semelhante, quanto aos últimos três métodos, refuta-os ao argumentar que as vontades e ações dos Seres Puramente Espirituais não estão sujeitas às mesmas leis que as dos seres terrenos: enquanto se necessita de uma alteração nos últimos ou na vontade do homem, não é necessário produzir uma mudança nos seres incorpóreos.

Maimônides segue adiante e explica que não precisaria da autorida­de da Bíblia para adotar a teoria da Criação. Seguem-se dois de vários argumentos: 1) Ao admitir que a grande variedade de coisas no mundo terreno está ligada àquelas leis imutáveis que regulamentam a influên­cia das esferas sobre estas mesmas coisas, a variedade de esferas so­mente pode ser explicada como resultado da Vontade Divina; 2) Se­gundo Aristóteles, é impossível que um ser simples possa, de acordo com as leis da Natureza, ser a causa de seres compostos. Como Deus, que é um ser simples, é a causa de seres compostos, Ele não segue as leis da Natureza e, portanto, não precisa necessariamente ter uma cau­sa anterior, como é o caso do Universo. Logo, Deus é eterno, mas o Universo é criado. O autor aderiu à teoria da Criação ao verificar que os argumentos contrários eram insustentáveis. Surpreendeu-se com Rabi Eliezer, sábio judeu que parece defender a teoria da Eternidade do Universo, a ponto de advertir seu discípulo para que não se equivocas­se ao ler os Pirké (Capítulos) de Rabi Eliezer.

A teoria da Criação não envolve a crença de que o Universo será destruído no futuro. Como não segue as leis da Natureza, o fato de ter havido um início determinado para o Universo não implica ne­cessariamente que haverá um fim — esta é uma possibilidade que de­pende exclusivamente da Vontade Divina, não é uma propriedade inerente ao Universo.

O G U I A D O S P E R P L E X O S

O relato da Criação no livro do Gênesis e demais textos judaicos, em especial no Talmud, é explicado pelo autor segundo as duas regras seguintes:

1) Sua linguagem é simbólica.2) Os termos empregados têm mais do que um significado.

As palavras érets, máim, rúach e chóshech são polivalentes e, em princí­pio, significam respectivamente os quatro elementos: terra, água, ar e fogo; em outras instâncias, Arets é o Planeta Terra; Máim refere-se ou ao firmamento (Céus Inferiores) ou aos Céus Superiores; Ritach signi­fica vento ou Sopro Divino (Espírito); e Chóshech pode ser ou escuri­dão ou noite. Segundo Maimônides, o Universo teve um início execu­tado pela Primeira Causa; esta não faz parte do Universo criado nem coexiste com ele — deu início ao Universo, mas não é a primeira parte deste. Após a Criação, a diversidade de seres foi criada sucessivamente, sob influência do movimento das esferas celestes, bem como das di­versas combinações entre luz e escuridão. A partir do sétimo dia, Deus descansou e o Universo passou a seguir as Leis da Natureza. Este dia — o Shabát— foi abençoado e santificado. Segundo o Talmud, os judeus devem guardar o Shabát por dois motivos: para se lembrarem da Cria­ção do Universo (Êxodo 20:10-11);16 e em comemoração à saída do Egito (Deuteronômio 5:15), ll pois durante o período da escravidão no Egito, eles não sabiam o que era liberdade e bem-estar.

Na história bíblica, os casais — Adão e Eva; a serpente e Samael (Satã) — são metáforas que representam, respectivamente: o intelecto e o corpo; a imaginação e o desejo. A imaginação e o desejo formam o par que influencia fortemente o aspecto físico do Homem. Enquan­to é dada maior atenção à imaginação e ao desejo, o intelecto se enfraquece e o corpo se degrada. A imaginação, ao invés de ser guia­da e controlada pela razão, fica sujeita ao desejo, que enfraquece e

16 “E o sétimo dia é Shabát para YHYH teu Deus. Não farás nenhuma obra - tu, teu filho, tua filha, teu servo, tua serva, teu animal e teu peregrino que estiver em tuas cidades, porque em seis dias fez YHVH os Céus e a Terra, o mar e tudoo que há neles, e repousou no sétimo dia. Portanto abençoou YHVH o dia do S habá te santificou-o.” (Êxodo 20:10-11).

17 “E lembrarás que servo foste na Terra do Egito, e que de lá te tirou YHVH Teu Deus, com mão forte e braço estendido; portanto te ordenou YHVH, Teu Deus, para fazer o Dia do Shabát.” (Deuteronômio 5:15).

I N T R O D U Ç Ã O 3 1

degrada o corpo. Em seguida são estabelecidas outras metáforas, re­lativas aos filhos de Adão e Eva. Nos três filhos - Caim, Abel e Set - Maimônides encontra uma alusão, respectivamente, às três proprie­dades do ser humano: vegetativa — vital; animal — instintiva; e intelec­tual — racional. Abel (vegetal-vital) é eliminado por Caim (animal- instintiva); este é superado por Set (intelectual-racional) que sobrevive e forma a base da condição humana daí em diante. Fica claro que o fato de Maimônides considerar o texto bíblico como absolutamente verdadeiro não significa que faça dele uma leitura literal. A verdade do texto bíblico só pode ser extraída a partir de uma interpretação correta de seus simbolismos.

SOBRE A PRO FECIA (CAP. 32 A 4 8 )

Nesta seção Maimônides trata das características dos Profetas e das Profecias. Inicia mencionando três opiniões correntes acerca da Profecia:

1) Segundo a visão popular, qualquer pessoa, independente de suas qualificações morais ou físicas, pode ser escolhida por Deus para se tornar Profeta.

2) Segundo osfilósofos aristotélicos árabes, a Profecia, cumpridas as qua­lificações físicas e morais, certamente será atingida através de muito estudo.

3) Segundo a tradiçãojudaica, além de perfeição física, retidão moral e estudo, depende da vontade de Deus para ser revelada a alguém.

Maimônides define Profecia como uma Emanação que, através da vontade de Deus, flui para o Intelecto Ativo; deste para a faculdade racional e daí, finalmente, para a faculdade imaginativa das pessoas qualificadas para a condição de Profetas, segundo a terceira opinião apresentada. O Profeta é diferenciado dos filósofos — que somente receberam esta influência sobre o seu intelecto — e dos políticos, adivi­nhos e sonhadores — que somente tiveram a sua imaginação influenci­ada pela emanação divina. Maimônides considera o Profeta como al­guém com capacidade maior do que o filósofo, pois acrescenta, à capacidade intelectual de leitura racional da realidade, a captação de idéias supra-sensíveis, transmitidas por Deus através dos anjos e re­transmitidas em linguagem simbólica.

3 2 O G U I A D O S P E R P L E X O S

Tudo aquilo que evita ou dificulta o desenvolvimento mental, des­via a imaginação e prejudica a força física, impedindo o homem de atingir a condição de Profeta. A ansiedade e a depressão também são obstáculos, ainda que temporários, à capacidade de profetizar; por ou­tro lado, a alegria e a música favorecem esta condição.

Embora fosse considerada uma condição para o Profeta exibir ex­celente preparo físico, no momento da Profecia o corpo era adormeci­do com uma espécie de torpor. Em um estado extático de consciência, o Profeta transmitia as idéias puras que lhe chegavam à faculdade ra­cional, fluíam para a imaginativa e finalmente eram reproduzidas em uma linguagem simbólica, de modo que seria impossível compreendê- las corretamente sem que houvesse uma interpretação das mesmas, adequando-as ao contexto e ao modo de pensar das pessoas. Geral­mente, a transmissão destas idéias era intermediada por um anjo, tido como o mensageiro que levava a palavra de Deus aos Profetas. Este mensageiro tão especial podia aparecer nas formas mais diversas: como uma pessoa, um animal ou até mesmo um fenômeno natural, como os ventos. Todos os Profetas recebiam as Profecias por meio dos anjos, através de sonhos ou de visões diurnas (com o corpo entorpecido), e as transmitiam de forma simbólica — à exceção de Moisés, que se man­tinha consciente e com o corpo sob controle ao receber a emanação divina. Para ele, a transmissão do conhecimento também não era sim­bólica, mas explícita e direta, pois a recebia de forma pura, sem a inter­mediação de um anjo, mas diretamente de Deus para sua faculdade racional. Desta forma, Maimônides enfatiza que, ao chamar Moisés de Profeta, o termo não tem o mesmo significado aplicado.aos demais Profetas — são tão somente homônimos.

Maimônides também explica que os poderes dos Profetas não eram todos iguais: variavam tanto segundo suas condições físicas, morais e intelectuais, quanto com relação à freqüência, idade e hu­mor. Classificou as Profecias em onze graus, divididos em três gru­pos. O prim eiro grupo é composto dos dois primeiros graus, considera­dos uma preparação para a condição de Profeta. E formado por pessoas que possuíam uma coragem ímpar, certas da presença de Deus, para socorrer os oprimidos e realizar ações boas, grandes e relevantes, bem como inspiradas para transmitir palavras de sabedo­ria e beleza. O segundo grupo abrange do terceiro ao sétimo grau: os Profetas, durante o sono, percebiam parábolas transmitidas em so­nhos proféticos. O terceiro grupo abarca do oitavo .ao décimo primeiro

I N T R O D U Ç Ã O

grau: o Profeta - principalmente Abrahão - recebia as Profecias em Visão Profética, ou seja, acordado, embora em estado de êxtase. Em separado, considera um décimo segundo grau, para explicitar que Moisés, como já mencionado, é considerado Profeta como os outros apenas por homonímia, pois profetizava em estado normal de cons­ciência e não entrava em torpor físico. Moisés foi o único capaz de ouvir e entender as palavras ditas por Deus no Monte Sinai, referen­tes aos oito últimos mandamentos — o enunciado moral destes teve que ser retransmitido por Moisés ao restante do povo, que os ouvira, porém não entendera. Na ocasião, as pessoas só ouviram claramente os dois primeiros mandamentos, de caráter doutrinário, que defini­am a questão da Existência e Unicidade de Deus.

A teoria de que a linguagem metafórica é um elemento essencial na Profecia é apoiada pelo fato de que o discurso simbólico é predomi­nante no discurso profético. Nem sempre, no entanto, os Profetas es­clareceram que seus relatos eram frutos de um sonho, de uma visão ou de um fato concreto.

I N T R O D U Ç Ã O 35

Possível contribuição de Maimônides para a filosofia social contemporânea

“A voz escatológica dominante hoje em dia é claramente re­volucionária - no Islã, em grupos cristãos fundamentalistas e

evangélicos americanos e entre certos grupos de judeus, em

Israel e ao redor do mundo. Nós entendemos os motivos

que impelem estas comunidades a aderirem a programas des­se tipo. Também estamos convencidos dos seus perigos: ex- clusivismo, triunfalismo, ações políticas radicais e, no extre­mo, militarismo e até mesmo terrorismo.”18

Em 2004 completam-se oitocentos anos da morte de Maimônides. Após oito séculos, alguns podem perguntar: “Conhecido como a maior autoridade haláchica,19 bem como o filósofo mais profundo que o Judaís­mo já produziu, muitas gerações referem-se ao mestre pelo título de sua grande obra — O Guia dos Perplexos. Embora este título seja ainda muito popular, algumas pessoas têm problemas em estudá-lo: por um lado, de fato, ele mesmo parece ser causador de perplexidade; por outro, muitos o repelem antes mesmo de conhecerem-no, por sua forma e seus con­ceitos reconhecidamente medievais. Será que Maimônides tem algo a nos dizer? (...) Será que este retrospecto medieval e aristotélico não relega Maimônides inevitavelmente a nada mais do que uma impor­tância histórica, tornando seu pensamento irrelevante para o contexto

18 Declaração de Princípios (1988) — denominada Emêt Ve-Emuná, “Verdade e Crença” — da corrente judaica Conservative Judaism. Extraído do capítulo “The MessianicHope” (“A Esperança Messiânica”), comrespeito ao fundamentalismo.

19 Autoridade haláchica'. versado em legislação judaica (Halachá), segundo a Tradi­ção Oral ou Talmud.

O G U I A D O S P E R P L E X O S

da ciência moderna e da filosofia?;”20 ou ainda: “Será que há mensa­gens de relevância atual que possam ser obtidas dos escritos de um filósofo que viveu há oito séculos? Será que as repreensões anti-autori­tárias de Maimônides fazem sentido para os nossos dias?”21 Será que 0 Guia dos Perplexos, particularmente quando se refere aos Profetas, pode inspirar um modelo de crítica social do qual ainda podemos nos beneficiar nos tempos atuais?

Para alguns, a filosofia de Maimônides teria sua contribuição unica­mente voltada ao aspecto ético e, mesmo assim, presa ao seu Zeitgeist, o “espírito de sua época”. Particularmente entendo que, dada a geniali­dade, profundidade e profusão de temas e argumentos, é muito prová­vel que uma releitura da obra de Maimônides, incluído 0 Guia dos Per­plexos, à luz dos tempos contemporâneos, possa ser de grande valia. Infelizmente, no Brasil são praticamente inexistentes as obras que dis­cutem esta possibilidade.

Inicialmente, para que possamos verificar esta possível contribui­ção, analisaremos o contexto histórico e geográfico em que viveu o Rambám. Filho de uma família respeitada na comunidade judaica es­panhola do século XII, Maimônides, ao mesmo tempo em que teve a oportunidade de se tornar um erudito em filosofia judaica, sofreu “na pele” a perseguição dos fundamentalistas islâmicos almohades. Após migrar com sua família por muitas terras espanholas, passando pelo Marrocos e Israel, chegou finalmente ao Egito, onde passou boa parte de sua vida. Tornou-se médico do Sultão Saladino e, segundo Soffer (1993), Saladino também veio a se tornar, junto a seus súditos, um fundamentalista islâmico. Amado e respeitado por judeus e muçulma­nos (que o chamavam de Abu Imran ou ibn Maimun), Maimônides pode ter moldado sua visão crítica social ao lidar com dois mundos entrelaçados: o judaico e o islâmico.

Embora radicalmente enraizado nas tradições judaicas e um pro­fundo conhecedor das leis rabínicas, Maimônides buscava harmonizá- las à realidade dos judeus orientais de sua época. Foi neste contexto

20 Rabinovitch , in Rosner, F. & Kottek, S. S. (org.). Moses Maimônides: Phjsician, Scientist andPhilosopher. Northvale, Newjersey, EUA: Jason Aronson Inc., 1993, p. 68.

21 Soffer, in Rosner, F. & Kottek, S. S. (org.). Moses Maimônides: Pbjsician, Sríentist and Philosopher. Northvale, Newjersey, EUA: Jason Aronson Inc., 1993, p. 207.

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que escreveu 0 Guia dos Perplexos-, para judeus que viviam não somente de acordo com as leis e costumes judaicos, mas influenciados também pelo Islamismo e pelo pensamento clássico grego, as culturas domi­nantes da época. Por outro lado, embrenhado tanto por motivos pro­fissionais quanto familiares (lembremo-nos que Maimônides casou-se em 1165, após a morte de sua primeira esposa, com a irmã de um influente palaciano egípcio, Ibn Almati, um dos secretários do rei) na cultura islâmica, deve ter exercitado como nunca sua capacidade de amar como um respeitado líder da comunidade judaica do Egito, em meio a um rigoroso controle de comportamentos e de pensamentos, imposto pelo Sultão Saladino. Pode-se dizer que Maimônides convi­veu bem com a corte islâmica, ao mesmo tempo em que se desdobrou para manter a liberdade religiosa e de identidade judaica. Este talento para lidar com a cultura dominante e ser respeitado como líder de uma minoria já serve, por si mesmo, como um modelo de convivência dig­no de ser estudado nos dias atuais, em que uma relação deste tipo parece pouco provável em diversas partes do planeta.

Maimônides tinha um profundo senso da necessidade de se man­ter as leis básicas que regiam o povo judeu, a fim de garantir a sobre­vivência de sua identidade coletiva. Todavia, possuía clareza quanto à necessidade de adaptá-las de acordo com a época e o local em que viviam estes judeus. Como exemplos, podemos citar a posição de Maimônides a respeito da possibilidade ou não de se navegar pelos rios Tigre e Eufrates em pleno Shabát e quanto à questão da conver­são ao Judaísmo.

No primeiro exemplo, segundo as leis judaicas, o Shabát precisa ser absolutamente respeitado como um dia em que se deve descansar e não produzir qualquer forma de energia, a partir do conceito de Imita- tio Dei — imitar as qualidades de Deus que, segundo a tradição bíblica judaica, após ter trabalhado na criação do Universo por seis dias, des­cansou no sétimo, denominado Yom Shabát, o dia do descanso. Pois bem, Maimônides determinou que os judeus poderiam viajar pelos rios Tigre e Eufrates no Shabát, uma vez que eram demasiado largos e esse era um precedente necessário em benefício das pessoas que por lá moravam. A analogia às regras que regulamentam a circulação das pes­soas judias praticantes nos grandes centros urbanos dos dias atuais é direta: caso Maimônides estivesse vivo, será que ele consideraria proi­bido viajar de automóvel no Shabát, por entre as avenidas demasiado largas das grandes metrópoles modernas? Seria permitido, também,

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viajar de avião, no Shabát, dadas as largas distâncias entre cidades ou mesmo continentes?

O segundo exemplo diz respeito às precondiçÕes para que uma pes­soa se converta ao Judaísmo. Segundo Soffer (1993), de acordo com o Talmud, se um homem vive com uma mulher não-judia, mesmo que mais tarde ela se converta, está proibida de casar-se com um judeu. Maimônides determinou, neste caso, que “em nossa época [século XII], se ele não desposá-la, devemos assumir que continuará a viver com ela. Por isso, deve casar-se com ela de acordo com a le i”. Também em seu Mishnê Torá (.Issurê Biá 14:1), defende que o tribunal rabínico deveria aceitar “imediatamente” uma conversão, após ouvir o desejo expresso do candidato ou candidata de se identificar com o povo judeu, “confun­dido e envolvido pelo sofrimento inerente”. O candidato deve tornar-se ciente dos princípios básicos do Judaísmo, ou seja, a unicidade de Deus e a proibição da idolatria. Em seguida, ele é informado de alguns mandamentos mais ou menos importantes, mas sem a necessidade de se aprofundar demais neles, pois mais importante do que isso é colocá- lo em um “bom caminho”, um caminho de justiça e misericórdia. Nes­tes casos, fica claro que Maimônides prioriza o bem-estar social às leis, através do uso da razão como um antídoto ao autoritarismo e ao funda- mentaüsmo. Em outras palavras, estas regulamentações mostram um Maimônides que, por meio da crídca racional, relativiza a literalidade de antigas leis, tomadas por alguns como pétreas, em benefício da vida das pessoas no contexto das épocas e lugares em que vivem.

Por outro lado, há uma certa controvérsia sobre se Maimônides tinha, de fato, uma boa relação com a corte islâmica de Saladino ou se foi coagido a assumir determinadas posições, de ordem teológica, em defesa de sua própria sobrevivência. Segundo Soffer (1993), Maimôni­des precisou lidar com uma situação dramática de intolerância que afe­tou sua vida e refletiu-se em seus escritos. Segundo ele, Maimônides escreveu, em julho de 1191, seu Tratado sobre a Ressurreição, uma apolo­gia à ressurreição dos mortos — sob pressão. O renomado rabino hu­manista Abraham Joschua Heschel (1907-1972) escreveu a respeito deste assunto em sua biografia de Maimônides: “Judeus chassidim (piedosos) anti-filosóficos e muçulmanos acusaram O Guia \dos Perple­xos] de desviar as pessoas para a perversidade, uma posição que pode­ria levar a efeitos sérios dentro desta área de religião reacionária. Ao ignorar o dogma da ressurreição — enquanto este aponta, por suas razões, para a idéia de imortalidade — Maimônides reforçou as suspeitas

contra ele”.22 Conta-se também que, pouco antes de Maimônides es­crever seu Tratado sobre a Ressurreição, um árabe místico de nome Suhraawardi fora morto a mando de Saladino, por haver expressado “pontos de vista independentes”; Saladino, bem como a população árabe egípcia, acreditava com fervor no dogma da ressurreição. Para Maimônides, defender a ressurreição futura vinculada à condição de imortalidade do ser humano — o que iria contra sua convicção de que somente Deus é Eterno e Imortal — seria, segundo alguns, a única forma de permanecer vivo naquela sociedade.

Todavia, esta versão é desmentida no prefácio à edição brasileira do Tratado sobre a Ressurreição, de autoria do rabino David Weitman (1994).Ele afirma que Maimônides já havia escrito brevemente sobre o tema da ressurreição em seus livros Comentário da Mishná e Mishnê Torá. A crença na ressurreição é asseverada também em seus famosos “Treze Princípios da Fé Judaica”, cujo décimo terceiro princípio é: “Eu creio com fé completa que haverá a ressurreição dos mortos quando for do agrado do Criador (,..)”.23 Segundo o rabino Weitman (1994, p.10),“(...) Maimônides sustenta que, após a ressurreição, com as almas rein­vestidas nos corpos, haverá um outro estágio final, o Mundo Vindou­ro, exclusivamente para as mesmas, num mundo isento de matéria”.24 •

De qualquer modo — quer tenha escrito este tratado convicto do tema da ressurreição, quer tenha escrito sob coação — Maimônides sabia muito bem da importância de manter boas relações com o poder dominante, e o fez com maestria, conseguindo o feito de ser admirado tanto por judeus quanto por muçulmanos. A medida deste modelo de tolerância nas relações sociais pode se encontrar na seguinte frase atri­buída a Maimônides: “Deixe que o ignorante caia no erro de que qual­quer homem é responsável pelo estabelecimento de uma grande ver­dade. As leis religiosas são feitas não por indivíduos, mas pelo julgamento em concerto de muitas gerações de pensadores”.25

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22 Heschel, A. J. “Maimônides: A Biography”, in Rosner, F, & Kottek, S. S. (iorg.). Moses Maimônides: Physician, Scientist and Philosopher. Traduzido para o inglês por J. Neugroschel. Nova York: Farrar Satraus Giroux, 1982, nota do cap. 23, p. 269.

23 in Fridlin. J. (org.), Sidur Completo com Tradução e Transliteração, 1997, p. 120.24 in Maimônides, Tratado sobre a Ressurreição.25 Soffer, A. “Maimônides, an Enemy o f Authoritarianism”, in\ Rosner, F, & Kot­

tek, S. S. (org.). Moses Maimônides: Plysician, Scientist and Philosopher,: cap. 23, p. 211.

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Em outra crítica mordaz ao poder constituído, seja intelectual, reli­gioso ou político, Maimônides descreve a “doença dos intelectuais”: “Se eles são aplaudidos, pensam que conhecem todos os ramos do conhecimento e, de uma hora para outra, tornam-se autoridades. Nin­guém se opõe a eles e, então, cresce sua popularidade; é aí que sua doença se agrava na mesma proporção”.26

Esta noção de que a verdade é construída por muitas pessoas, ao longo de muitas gerações, de acordo com a época e o lugar e de forma dinâmica, constitui, ao mesmo tempo, a crítica social e o antídoto de Maimônides frente ao autoritarismo de um indivíduo ou grupo, tanto em sua época como nos dias atuais.

O PROFETA COMO MODELO DE LÍDER E CRÍTICO SOCIAL

No capítulo 32 de 0 Guia dos Perplexos, Maimônides defende seu con­ceito de Profeta: um “candidato a Profeta” deveria ser fisicamente apto, irrepreensível do ponto de vista moral e um erudito do ponto de vista intelectual. Além disso, porém, deveria ser escolhido por Deus para que se capacitasse a receber, com seu intelecto e com a sua imaginação, a emanação divina que lhe proporcionaria o dom da profecia.

Portanto, não é qualquer um que pode se denominar Profeta: deve ser, obrigatoriamente, uma pessoa justa e piedosa. Mas não necessaria­mente um homem ou mulher justos e piedosos se tornarão profetas. Tampouco é suficiente ser um filósofo dotado de grande sabedoria e discernimento racional, se lhe falta capacidade de traduzir seu pensa­mento em uma linguagem acessível ao povo. Muito menos podem ser vistos como pretensos Profetas os políticos, os adivinhos e os charla­tões, pois a sua imaginação, na visão de Maimônides, não é acompa­nhada de inteligência e probidade moral na mesma proporção.

Dito isto, ainda tomando por foco a pessoa, havia profetas e profe­tas. Todos põssuíam qualidades morais, intelectuais e imaginativas para realizarem profecias, bem como foram escolhidos por Deus para exer­cerem suas atividades. Porém, a qualidade e a freqüência de suas profe­cias variavam de acordo com a maior ou menor excelência daqueles atributos. Assim, alguns profetizavam somente uma vez na vida, inspi­rados por uma voz ou visão recebida através de sonhos. No outro

26 Idem , p. 212.

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extremo, o maior dos profetas (segundo Maimônides), Moisés, foi o único a ser inspirado por Deus de forma consciente e sem intermedi­ários. Também foi o mais inteligente, justo e crítico social que já houve na história do povo judeu, haja vista ter questionado e enfrentado, segundo a tradição bíblica, o poder do Faraó do Egito que, em meio à opulência das fortalezas egípcias, mantinha, como escravos, gerações e gerações de judeus e de outros povos. Moisés ousou até mesmo en­frentar e criticar o “poder constituído desde sempre” de Deus em di­versos momentos, por ocasião da conhecida caminhada de quarenta anospelo deserto, entre a “Terra da Escravidão” e a “Terra da Liber­dade”, o que mostra que a caminhada de um crítico social pode ser longa, penosa e nem sempre reconhecida.

O conteúdo das profecias variava também de acordo com o grupo ao qual os profetas se dirigiam. Para o importante pensador contem­porâneo norte-americano Michael Walzer,27 os Profetas — considera­dos por ele os mais antigos exemplos de crítico social — voltavam-se ora para os hebreus, seu próprio povo, ora para os povos estrangeiros. O motivo, porém, era o mesmo: a crítica ao modo de vida vigente de seus governantes, juizes e sacerdotes. No primeiro caso a crítica era mais contundente, pois os profetas sabiam para quem estavam falan­do e a quem estavam criticando — como é o caso do profeta Amós, ao atacar fortemente a riqueza desmesurada do reino de Jeroboão II, rei de Israel, entre os anos de 785 e 746 A.E.C.28, enquanto os pobres, os trabalhadores e os agricultores estavam cada vez em condições mais miseráveis. No último caso, os motivos ficam um tanto obscuros, como não poderia deixar de ser quando se faz a crítica social de uma estru­tura política ou de uma realidade que se desconhece, ou que se conhe­ce muito pouco. Foi o caso do Profeta Jonas, designado por Deus para destruir a população de Nínive, porque recebeu a informação de que eram pessoas perversas. Aqui, nem o arrependimento daquela popu­lação por suas transgressões — desconhecidas de Jonas, diga-se a bem da verdade — nem o perdão de Deus foram suficientes para Jonas. Ao contrário, o profeta ficou muito contrariado com Deus por isso, após tê-lo feito correr um alto risco de morrer, quer em meio a uma tem­pestade na viagem a Nínive, quer na simbólica passagem de três dias

27 Walzer, M. Interpretation and Socia l Critirísm. Cambridge, Massachusscts, USA: Harvard University Press, 1987, 96p.

28 A.E.C. (Antes da Era Comum) e E.C. (Era Comum) são notações encontradas em todos os textos judaicos. Correspondem respectivamente a A.C e D.C.

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dentro de um peixe. Parece que, depois de tanto sofrimento pessoal, ainda que a população de Nínive se redimisse, para Jonas deveria ser destruída mesmo assim, a fim de que ele “não perdesse a viagem” — não se sabe se mudou sua opinião após a repreensão divina. Afinal, até mesmo Deus recuou da decisão de acabar com a cidade.

Em ambos os casos, era comum aos profetas preverem grandes desgraças, que poderiam ser evitadas em caso de arrependimento, re­conhecimento dos erros e a lembrança dos valores comuns a todo um j

povo. Este arrependimento era freqüentemente exigido dos mais ricos \ e privilegiados, graças às condições econômicas e políticas que goza­vam. A crítica, segundo Walzer, não era pelo fato de os ricos viverem com fartura, mas porque esta existia em detrimento das condições dos mais pobres. Deixar os mais necessitados de lado era, para os profetas, quebrar o Pacto da Aliança, estabelecido entre Deus e o Povo de Israel e confirmado com o recebimento das Leis no Monte Sinai, após o aban­dono da escravidão no Egito. Tais leis baseavam-se, sobretudo, na so­lidariedade e em relações justas entre as pessoas.

Em outras palavras, tomando-se o profeta como exemplo de críti­co social, pode-se compreender que a crítica social pressupõe o conhe­cimento do que é uma condição social justa, segundo os valores e a cultura de uma dada sociedade. Não há como exportar “valores justos” de uma sociedade para outra que os desconhece. O conceito de “arrependi­mento” — que, em hebraico, tem a mesma raiz que a palavra “retorno”(teshuvá) — pressupõe conhecer para onde e para o quê se pretende voltar. Segundo Walzer, as profecias de Amós, portanto, são críticas sociais, “pois desafiam os líderes, as convenções, as práticas rituais de uma dada sociedade. E porque faz isso em nome de valores reconheci­dos e que são parte daquela mesma sociedade”.29

Logo, seria um erro considerar que uma crítica social, a exemplo da mensagem dos profetas, pode ser universal; ela só poderia ser total­mente compreendida dentro d<e um determinado contexto cultural, temporal e local. Nas palavras de Walzer, “cada nação tem sua própria profecia, tanto quanto sua própria história (...)”.30 No máximo, uma crítica social pode ser semelhante em lugares diferentes, e caso venha a se considerar a possibilidade de utilizá-la, devem ser feitas as devidas adaptações referentes às questões contextuais já expostas acima.

29 op. cit. p. 89.30 Ibid., p. 94.

I N T R O D U Ç A O

A B R A H A M JO SC H U A H E SCH E L: OS PRO FETA S CO M O MODELO

O pensador e estudante de rabinato brasileiro Alexandre G. Leone descreve, em seu livro ^4 imagem divina e o p ó da terra — da crítica da modernidade na obra do pensador A. J. Heschel — a visão deste huma­nista do pós-Segunda Guerra Mundial a respeito da figura do Profeta. Segundo Heschel, o profeta “está profundamente ligado ao seu tem­po, participando geralmente de forma ‘crítica’ de sua sociedade, sen­tindo, por meio do encontro com a divindade, inclusive na dimensão emocional desse encontro, a dor de sua época”.31 Para ele, o profeta, tal como para Maimônides e Walzer, é um homem de seu tempo, sen­sibilizado pelopatbos (sofrimento) do seu povo através de sua conexão com Deus, dadas as suas qualidades morais e intelectuais. Mas o profe­ta não denuncia somente as injustiças sociais nem apenas prevê des­graças; “a mensagem bíblica é endereçada ao ser humano, sensível tan­to às suas mazelas e mesquinharias quanto à possibilidade de realização plena de sua semente de imagem divina (...) sendo o profeta um perso­nagem dotado de um tipo especial de sensibilidade ao sentido da exis­tência humana”.32

Segundo Leone (2002), ao tomar o profeta como modelo — tanto em suas qualidades pessoais quanto na sua sensibilidade para captar criticamente a realidade na qual está inserido — “Heschel assume para si o encargo de levar o ‘apelo profético bíblico’ de reverência à pessoa humana considerada como imagem divina”. Nos anos 50 e 60 do sé­culo XX, Heschel assumiu o papel de rabino militante de causas huma­nitárias, políticas e sociais. O “apelo profético hescheliano” manifes- tou-se também “pela militância política e social a favor do diálogo inter-religioso, dos direitos civis, em especial da população negra nor­te-americana, pela liberdade dos judeus na antiga União Soviética e contra a Guerra do Vietnã.”33

Pode-se perceber, pelos campos de ativismo e de crítica social es­colhidos por Heschel, a veracidade das posições de Walzer quanto ao caráter particular da profecia como crítica social. Como Maimônides, todavia, Heschel era um homem com um pé em cada mundo: em um deles, a sociedade norte-americana — pela qual lutou, adotou o partido

31 in Leone, A. Al Imagem Divina e o Pó da Terra, p. 31.32 Idem, p. 32.33 Ibid., p. 43.

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de Martin Luther King em defesa dos negros, contra a discriminação violenta naquele país, criticou a guerra do Vietnã; no outro, lutava pelo direito dos judeus de saírem da então União Soviética, onde - como tantas outras populações religiosas — não tinham liberdade de expres­são e eram discriminados social, profissional e politicamente. Aparen­temente, o que Heschel tinha a ver com os judeus da antiga União Soviética? Como podia compreender ou criticar a realidade em que viviam? A identidade cultural, histórica e religiosa criava as bases sobre as quais ele era capaz de compreender o sofrimento do seu povo em terras tão distantes e lutar por eles.

Portanto, a figura do profeta como um modelo de liderança moral e intelectualmente digna, conectado local e historicamente com o povo a quem se dirige, tanto segundo o próprio Maimônides quanto segun­do pensadores contemporâneos, como Heschel, Rabinovitch, Soffer, Walzer e mais recentemente Leone (2002), entre tantos outros, já justi­fica um estudo mais detalhado de O Guia dos Perplexos, bem como da vasta obra filosófica de Maimônides, como um modo particular de resgate de uma importante fonte de reflexão a respeito da crítica e da justiça social.

0 G u ia d o s P e r p l e x o s

Parte 2

Introdução

VIN TE E SEIS PROPOSIÇÕES DOS PERIPA TETICO S PA R A DE­

M O N ST R A R A E X ISTÊ N CIA , UN ICID AD E E IN CO RPO REID AD E

DE DEUS

“(...) em nome de YHVH,1 Deus de sempre”.2

Vinte e cinco das proposições que são utilizadas para a prova da existência de Deus — ou dos argumentos que demonstram que Deus é incorpóreo, não é uma força conectada a um ser material e que Ele é Um — foram totalmente estabelecidas e sua correção está acima de qualquer dúvida. Aristóteles e os Peripatéticos que o seguiram prova­ram cada uma destas proposições. Há, no entanto, outra proposição que nós não aceitamos - qual seja, aquela que afirma a Eternidade do Universo —, mas iremos admiti-la por ora, pois, ao agir assim, estare­mos claramente em condições de demonstrar nossa própria teoria.

Primeira proposição: A existência de uma magnitude infinita é impossível.

Segunda proposição: A coexistência de um número infinito de magnitu- des finitas é impossível.

1 YHVH — Tetragrama Imprommàávek refere-se a Deus, cujo nome é, segundo a tradição judaica, impronunciável (NT).

2 Em Gênesis 21:33: “E plantou [Abrahão] uma tamargucira (arbusto) em Beer- Shéva, e lá invocou em nome de YHVH, Deus de sempre” . (Maimônides)

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Terceira proposição: A existência de um número infinito de causas e efei­tos é impossível, ainda que não sejam magnitudes. Se, por exemplo, uma Inteligência fosse a causa de uma segunda, a segunda a causa de uma terceira, a terceira a causa de uma quarta e assim por diante, as séries não poderiam continuar ad infinitum.

Quarta proposição: Quatro categorias estão sujeitas à mudança:

a) substância — mudanças que afetam a substância de uma coisa são chamadas Gênese e Destruição',

b) quantidade — mudanças quanto à quantidade são o Aumento ou a Diminuição',

c) qualidade — mudanças nas qualidades das coisas são Transformações',d) lu g a r - Mudança de lugar é chamada de Movimento.

O termo “movimento” é aplicado para mudança de lugar, mas é também usado no sentido geral de todo tipo de mudança.

Quinta proposição'. Todo movimento implica uma mudança e transição da Potência ao Ato.

Sexta proposição: O movimento de uma coisa é ora essencial, ora aciden­tal; ou é devido a uma força externa ou devido à participação de uma coisa no movimento de outra coisa. Este último tipo de movimento é semelhante ao acidental. Uma instância do movimento essencial pode ser encontrada na translação de algo de um lugar para outro. Afirma-se que o acidente de uma coisa, como, por exemplo, sua cor negra, move- se quando a própria coisa muda de lugar. O movimento de uma pedra para cima, devido à força aplicada sobre ela naquela direção, é uma instância de movimento causado por uma força externa. O movimen­to de um prego em um barco pode servir para ilustrar o movimento causado pela participação de uma coisa no movimento de outra coisa, pois, quando o barco se move, espera-se do prego que também se mova do mesmo modo. É o mesmo caso com tudo o que é composto de muitas partes, quando a própria coisa se move, todas as suas partes movem-se do mesmo modo.

Sétima proposição'. Coisas mutáveis são, ao mesmo tempo, divisíveis. Por­tanto, tudo o que se move é divisível e, conseqüentemente, corpóreo. Porém, aquilo que é indivisível não pode se mover e, por conseguinte, é incorpóreo.

I N T R O D U Ç Ã O

Oitava proposição'. Todo aquele que se move por acidente necessaria­mente tem de descansar, porque não se move por sua própria in i­ciativa. Portanto, o movimento acidental não pode continuar perpe­tuamente.

Nona proposição: Uma coisa corpórea que coloca outra coisa corpórea em movimento só pode fazer isto ao se colocar em movimento no momento em que faz a outra coisa se movimentar.

Décima proposição: Uma coisa da qual se afirma que está em um corpo deve satisfazer uma das duas condições seguintes: existir através desse objeto, como é o caso dos acidentes ou ser a causa da existência do objeto, como por exemplo, a forma física, sua propriedade essencial. Em ambos os casos, trata-se de uma força existindo em um corpo.

Décima primeira proposição: Entre as coisas que existem através de um objeto material, há algumas que participam na divisão daquele objeto e são, portanto, acidentalmente divisíveis, como, por exemplo, as cores e as demais qualidades distribuídas em todas as suas partes. Por outro lado, entre as coisas que formam os elementos essenciais de um obje­to, há algumas que não podem ser divididas de modo algum, como a alma e o intelecto.

Décima segunda proposição: Uma força que ocupa todas as partes de um corpo é finita, porque o próprio objeto é finito.

Décima terceira proposição: Nenhum dos vários tipos de mudança pode ser contínuo — exceto o movimento de um lugar para outro, desde que este seja circular.

Décima quarta proposição: A locomoção é, na ordem natural dos diversos tipos, o primeiro e o principal movimento. Isto porque a geração e a destruição são precedidas por uma transformação que, por sua vez, é precedida por uma aproximação do agente transformador ao objeto a ser transformado. O crescimento e a diminuição também são impossí­veis sem prévio nascimento e corrupção.

Décima quinta proposição: O tempo é um acidente que acompanha e é inerente ao movimento, de tal modo que nunca um é encontrado sem

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o outro. O movimento somente é possível no tempo, e a idéia de tempo não pode ser concebida senão em conexão com o movimento. As coisas que não se movem não têm relação com o tempo.

Décima sexta proposição-, tudo aquilo que é incorpóreo somente pode ser enumerado quando se trata de forças situadas em um corpo; as muitas forças devem, então, ser contadas conjuntamente com as subs­tâncias ou objetos nos quais eles existam. Portanto, seres espirituais puros, que não são nem corpóreos nem forças situadas em objetos corpóreos, não podem ser contados, exceto quando consideradas as causas e os efeitos.

Décima sétima proposição: Quando um objeto se move, deve haver algum agente que o mova: seja de fora, como no caso de uma pedra colocada em movimento por uma mão; seja de dentro, por exemplo, quando o corpo de um ser vivo se move. Seres vivos possuem em si mesmos, simultaneamente, o agente do movimento e o objeto movido. No en­tanto, quando o ser vivo morre e o agente do movimento — a alma — perde o corpo — isto é, a coisa movida —, o corpo permanece por algum tempo na mesma condição anterior e, todavia, não pode se mover do modo como se movia antes. O agente do movimento, quando in­cluso no objeto movido, está oculto e imperceptível aos sentidos. Esta circunstância levou à crença de que o corpo de um animal se move sem a ajuda de um agente do movimento. Sendo assim, quando nós afirmamos, com respeito à coisa em movimento, que este é o seu pró­prio agente de movimento ou, como é dito em geral, que este se move por sua própria iniciativa, queremos dizer que a força que realmente põe o corpo em movimento existe no próprio corpo.

Décima oitava proposição-, Tudo o que passa da potência ao ato é levado a isso por algum agente externo. A razão é que se aquele agente existisse na própria coisa e nenhum obstáculo impedisse a transição, a coisa jamais teria estado em estado de potência, mas sempre 110 de existên­cia necessária. Por outro lado, se enquanto a própria coisa contivesse um agente, houvesse algum obstáculo e, em um certo momento, o obstáculo fosse removido, o que provocou a remoção do obstáculo poderia, sem dúvida, ser descrito como a causa da transição da potên­cia ao ato (e não como uma força situada dentro do corpo). Preste atenção nisso.

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Décima nona proposição-, Uma coisa que deve sua existência a certas cau­sas tem somente nelas a possibilidade de existência, pois somente se estas causas existirem, a coisa existirá. Esta não existe se as causas não existem, se deixaram de existir ou se houve uma mudança na relação que permite a sua existência como uma conseqüência neces­sária daquelas causas.

Vigésima proposição-, Todo aquele que é de existência necessária não pode ter, para existir, qualquer causa que seja.

Vigésimaprimeiraproposição-, Uma coisa composta de dois elementos tem necessariamente esta composição como a causa de sua existência pre­sente. Sua existência não é, portanto, devida à sua própria essência; esta depende da existência e da combinação destes dois componentes parciais.

Vigésima segunda proposição-. Objetos materiais são sempre compostos por dois elementos ao menos e são, sem exceção, sujeitos a acidentes. Os dois elementos formadores de todos os corpos são: substância e forma. Os acidentes atribuídos aos objetos materiais são: quantidade, forma geométrica e posição.

Vigésima terceira proposição: Tudo o que existe em potência, e cuja essên­cia inclua um certo estado de possibilidade, pode não existir de fato em um dado momento.

Vigésima quarta proposição-, Tudo o que é algo em potência é necessaria­mente material, pois o estado de possibilidade está sempre conectado à matéria.

Vigésima quinta proposição-, Toda substância composta consiste de maté­ria e forma e requer um agente para a sua existência, ou seja, uma força que coloque a substância em movimento e, então, permita predispô-la a receber uma certa forma. A força que assim prepara a substância de um determinado ser individual é chamada de Primeiro Motor.

Aqui a necessidade leva à investigação das propriedades do movi­mento, do agente do movimento e da coisa movida. Mas isto já foi suficientemente explicado, e a opinião de Aristóteles pode ser expressa

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na seguinte proposição: ^4 matéria não se move p o r sua própria iniàativa — uma importante proposição que levou à investigação do Primeiro Mo­tor (o primeiro agente de movimento).

Destas vinte e cinco proposições apresentadas, algumas podem ser verificadas por meio de pouca reflexão e da aplicação de algumas pro­posições passíveis de provas, ou de axiomas ou teoremas com pratica­mente a mesma força, assim como foi explicado por mim. Outras re­querem muitos argumentos e proposições. Todas elas, no entanto, foram estabelecidas através de provas conclusivas, em parte na Física (no livro Acroasis) e seus comentários e em parte no livro da Metafísica e seus comentários. Já destaquei que, neste trabalho, minha intenção não é copiar os livros dos filósofos ou explicar problemas difíceis, mas sim­plesmente mencionar aquelas proposições que estão mais proxima- mente ligadas ao nosso assunto e são necessárias ao nosso propósito.

As proposições acima, é preciso acrescentar mais uma: a que enun­cia que o universo é eterno. Aristóteles sustenta que ela é verdadeira e também mais aceitável do que qualquer outra teoria. No momento nós vamos admiti-la, por hipótese, apenas com o propósito de demonstrar nossa teoria. A proposição é a seguinte:

Vigésima sexta proposição'. O Tempo e o Movimento são eternos, cons­tantes e têm existência de fato.

De acordo com essa proposição, Aristóteles é compelido a assu­mir que existe, na verdade, um corpo com movimento constante, sem­pre em ato, que é o Quinto Elemento. Por esta razão, ele sustenta que o Céu não está submetido à gênese ou à destruição, porque o seu movi­mento não pode ser gerado nem destruído. Também defende que todo movimento deve ser precedido de outro movimento, ora do mesmo tipo, ora diferente. A crença de que a locomoção do animal não é precedida de outro movimento não é verdade, pois a causa para que o animal se mova, após ter repousado, remonta à intenção de obter as várias coisas que originam aquela locomoção: uma mudança no estado de saúde, alguma imagem ou uma nova idéia que possa produzir um desejo de buscar aquilo que conduza ao seu bem-estar ou de evitar o que lhe contraria. Cada uma dessas três causas coloca o ser vivo em movimento e cada uma delas é produzida por vários tipos de movimento. Aristóteles, dessa forma, afirma que tudo o que é cria­do deve, antes de sua criação de fato, ter existido em estado potencial.

I N T R O D U Ç Ã O

Por inferências a partir dessa afirmativa, ele busca confirmar sua pro­posição — a coisa que se move é finita e o seu caminho é finito, mas esta repete o movimento no seu caminho um número infinito de ve­zes. Isto somente pode ocorrer quando o movimento é circular, assim como ficou demonstrado pela décima terceira proposição. Deduz-se, por­tanto, que um número infinito de coisas não pode coexistir, mas elas podem suceder umas às outras infinitamente.

Aristóteles se esforça constantemente em confirmar esta proposi­ção, mas eu acredito que ele não considerou suas provas conclusivas. Pareceu-lhe ser a proposição mais provável e aceitável. No entanto, seus seguidores e os comentaristas de seus livros defendem que a pro­posição não contém somente uma prova corroborável, mas demons­trativa e que foi, de fato, totalmente estabelecida. Por outro lado, os Mutakálemim tentam provar que a proposição não pode ser verdadeira, assim como, na opinião deles, é impossível conceber como um núme­ro infinito de coisas poderia vir a existir mesmo de forma sucessiva. Eles assumem esta impossibilidade como um axioma. Eu, no entanto, penso que aquela proposição é admissível, mas não é demonstrativa como os comentaristas de Aristóteles afirmam, nem, por outro lado, impossível, como os Mutakálemim dizem. Nós não temos a intenção de explicar aqui as provas fornecidas por Aristóteles, como tampouco expor nossas dúvidas a respeito, nem enunciar nossas opiniões sobre a Criação do Universo. Eu desejo simplesmente mencionar aquelas pro­posições de que iremos precisar para provar os três princípios expos­tos acima. Havendo, portanto, citado e admitido estas proposições, irei agora tentar explicar o que pode ser inferido delas.

Provas filosóficas para a existência, incorporeidade e unicidade da Primeira Causa

CA PÍTU LO 1

OS ARGUM EN TOS FILOSÓFICOS

Primeiro argumento filosófico: De acordo com a vigésima quinta proposição, deve existir um agente de movimento que move a substância de todas as coisas transitórias existentes e que deu a elas as condições para rece­ber Forma. A causa do movimento deste agente é encontrada na exis­tência de outro motor, de sua espécie ou diferente, sendo o termo mudança, em um senso geral, comum a quatro categorias (quarta proposi­ção). Esta série de mudanças não é infinita (terceira proposição). Acredita­mos que ela pode continuar até o Quinto Elemento, e então pára. O movimento do Quinto Elemento é a fonte de toda força que move e prepara qualquer substância na terra para sua combinação com uma determinada forma, e é conectado com aquela força através de uma corrente de movimentos intermediários. ^4 Esfera Celeste (ou o Quinto Elemento) possui o movimento de locomoção, que é o primeiro de uma série de tipos de movimentos {décima quarta proposição), e toda locomo­ção acaba sendo um efeito indireto do movimento desta esfera; por exemplo, uma pedra é colocada em movimento por um bastão; o bas­tão, pela mão de um homem; a mão, pelos tendões; os tendões, pelos músculos; os músculos, pelos nervos; os nervos, pelo calor natural do corpo e o calor do corpo, por sua forma. Esta é, indubitavelmente, a causa motivacional imediata, mas a ação desta causa imediata ocorre de acordo com um certo projeto, por exemplo, o de jogar uma pedra

O G U I A D O S P E R P L E X O S

no buraco, atingindo-a com um bastão, para fechar a fenda, a fim de que não penetre ali o vento que sopra. O movimento do ar que causa o vento é feito do movimento da esfera celeste. Do mesmo modo, pode ser demonstrado que a causa última de toda geração e destruição pode ser traçada até o movimento da esfera celeste.

De forma semelhante, deve ser mostrado que a causa última de toda gênese e destruição pode ser traçada pelo movimento da esfera. Mas o movimento da esfera deve, igualmente, ser movido por um agente (,décima sétima proposição) que resida fora da esfera ou dentro dela; um terceiro caso é impossível. No primeiro caso, se o motor está fora da esfera, este deve ser corpóreo ou incorpóreo. Se incorpóreo, não pode ser dito que o agente está fora da esfera, somente pode ser descrito como separado desta, pois um objeto incorpóreo só pode ser descrito como residindo fora de um determinado corpo metaforicamente. Na segunda condição, se o agente reside dentro da esfera, deve ser ou uma força distribuída ao longo de toda a esfera, de modo que cada parte dela inclua uma parte da força, como é o caso do calor do fogo, ou uma força indivisível, como é a alma e o intelecto (décima e déáma p r i­meira proposições).

O agente que coloca a esfera em movimento deve ser, conseqüen­temente, um destes quatro casos-, 1) um corpo exterior à esfera; 2) um ser incorpóreo, separado desta esfera; 3) uma força espalhada por toda a esfera; 4) ou uma força indivisível (dentro da esfera).

O primeiro caso, que supõe um agente de movimento da esfera como um corpo exterior a ela, é impossível, como será explicado. O agente de movimento, sendo corpóreo, deve se mover ao colocar outro obje­to em movimento (nonaproposição). Assim que este sexto elemento igual­mente se mover ao transmitir movimento a outro corpo, será colocado em movimento por um sétimo elemento, que também deve se mover. Deduz-se daí que um número infinito de corpos iria ser necessário antes que a esfera pudesse ser posta em movimento. Isto é contrário à segunda proposição.

0 terceiro caso — o motor da esfera é uma força difundida por toda a esfera — é do mesmo modo impossível. Sendo a esfera corporal e ne­cessariamente finita [primeiraproposição), sua força será igualmente fini­ta (décima segunda proposição), desde que cada parte da esfera contenha parte da força (décima primeira proposição)-, a última não poderá, conse­qüentemente, produzir um movimento infinito, como afirmamos na vigésima sexta proposição, que por ora admitimos.

P R O V A S F I L O S Ó F I C A S .

0 quarto caso é igualmente impossível — a esfera é posta em movi­mento por uma força indivisível, que resida dentro da esfera assim como a alma reside no corpo humano. Porque esta força, ainda que indivisível, não pode ser, por si só, a causa do movimento infinito. Se fosse esse o caso, o Primeiro Motor teria um movimento acidental {sexta proposição). No entanto, o que se move acidentalmente deve descansar {oitavaproposição), portanto quando algo é posto em movi­mento também descansa. O que se segue deve servir como uma ilus­tração da natureza do movimento acidental. Quando o homem (apre­sento como exemplo) é movido por sua alma — que é sua forma — para subir a um aposento superior, seu corpo se move diretamente, enquanto a alma — a causa realmente eficiente do movimento —, par­ticipa acidentalmente disso. Pois, pelo deslocamento do corpo do centro da casa até o aposento superior, a alma também muda de lugar. Então, o corpo, posto em movimento por este impulso, vai descansar, e o movimento acidental da alma é descontinuado. Con­seqüentemente, o movimento daquele suposto Primeiro Motor deve obedecer a alguma causa que não faz parte das coisas compostas por dois elementos, ou seja, o agente de movimento e o objeto movido. Se esta causa, o princípio do movimento, se encontra presente, o Primeiro Motor, situado em tal complexo, colocará o outro elemento em movimento; na falta desta causa, não haverá movimento. Os seres vivos, portanto, não se movem continuamente, ainda que cada um te­nha um elemento motivacional indivisível. Isso porque seu motor não move constantemente, o que aconteceria se este produzisse movimen­to por iniciativa própria. Ao contrário, as coisas às quais a ação está ligada são separadas do motor. A ação é causada pelo desejo do agra­dável, por aversão àquilo que é desagradável, por alguma imagem ou por uma idéia — quando o ser móvel tem a capacidade de concebê-la. Quando alguma destas causas está presente então o motor ama; seu movimento é acidental e necessariamente se encaminha para um fim {oitava proposição). Se o motor da esfera celeste fosse desse tipo, não poderia se movimentar ad injinitum. Nosso oponente,3 no entanto, sustenta que as esferas se movimentam continuamente ad infinitim .

3 No sentido de antagonista, de opinião oposta, não precisamente adversário: refere-se a Aristóteles, cuja opinião, acerca da eternidade do Universo, Maimô­nides combate mais adiante (Maeso).

5» O G U I A D O S P E R P L E X O S

Se assim fosse, e isto é de fato possível (décima terceira proposição), a causa eficiente do movimento da esfera deveria ser, de acordo com a divisão acima, pertinente ao segundo caso, ou seja, um ser incorpóreo e separado da esfera.

Fica, pois, demonstrado que a causa eficiente do movimento da esfera celeste, se este é eterno e contínuo, não pode ser, de modo al­gum, corporal nem residir em um corpo; não pode se mover por inici­ativa própria ou por acidente; deve ser indivisível e imutável (sétima e quinta proposições). Este Primeiro Motor da esfera celeste é Deus (Ben­dito seja o Seu Nome!).

A hipótese de que existam dois deuses é inadmissível, pois seres absolutamente incorpóreos não podem ser contados (décima sexta p r o ­posição), exceto por suas causas e efeitos. A relação de tempo não é aplicável a Deus (décima quinta proposição), pois o movimento não pode ser predicado a Ele.

Conseqüentemente, o resultado da argumentação acima é o se­guinte:

1) a esfera celeste não pode se mover ad infinitum por iniciativa própria;

2) o Primeiro Motor não é corpóreo nem uma força residindo em um corpo;

3) é Um, imutável, e sua existência independe do tempo.

Três dos nossos postulados estão, portanto, provados pelos princi­pais filósofos.

Segundo argumento filosófico: Os filósofos empregam outro argumen­to,-baseado na seguinte proposição de Aristóteles: “Caso se tenha uma coisa composta de dois elementos, e um deles sabe-se que existe por si mesmo, separado daquela coisa, então o outro deve igualmente existir por si mesmo, separado daquele composto. Pois se a natureza dos dois elementos fosse tal que eles apenas pudessem existir em conjunto, como por exemplo a matéria e a forma, nenhum dos dois poderia existir, de qualquer forma que fosse, sem o outro. Assim, o fato de um dos elementos ter uma existência separada prova que os dois elementos não estão indissoluvelmente ligados; portanto, o ou­tro elemento também pode ter uma existência separada. Concluímos, então, quanto à existência do vinagre com mel e do mel sozinho, que também o vinagre existe sozinho”. Logo após expor esta proposição,

P R O V A S F I L O S Ó F I C A S .

Aristóteles continua: “...encontramos muitos objetos compostos de um motor e de um motum, ou seja, os objetos põem outras coisas em movimento e, ao mesmo tempo em que fazem isto, eles mesmos são postos em movimento por outras coisas. Isto está claro em todos os elementos intermediários de uma série de coisas em movimento. Mas também vemos uma coisa que é movida, sem que ela mesma mova algo, ou seja, é o último membro da série. Conseqüentemente, um motor deve existir sem ser, ao mesmo tempo, um motum, e este é o Primeiro Motor, o qual, não sendo sujeito ao movimento, é indivi­sível, incorpóreo e independente do tempo, como foi exposto no argumento anterior.”

Terceiro argumento filosófico: Extraído das palavras de Aristóteles, em­bora este o tenha formulado de uma forma diferente. Sua argumenta­ção é a seguinte: não há dúvida que muitas coisas existem de fato, quais sejam, aquelas percebidas pelos sentidos. Somente pode haver três possibilidades:

1) nenhuma destas coisas tem início e fim;2) todas elas têm início e fim;3) algumas têm e outras não têm início e fim.

O primeiro caso é evidentemente inadmissível, pois percebemos claramente objetos que vêm a existir e são subseqüentemente destruí­dos. O segundo também é inadmissível, pois se tudo tivesse somente uma existência temporária, todas as coisas seriam destruídas, e aquilo que representa toda uma classe de coisas é necessariamente perma­nente. Todas as coisas, portanto, deveriam caminhar para um fim, e então nada poderia existir, porque não haveria ser algum para produzir qualquer coisa. Conseqüentemente, nada existiria (se todos os seres fossem transitórios). Mas como nós vemos as coisas existirem e perce­bemos a nós mesmos como seres existentes, concluímos o seguinte: desde que há seres que, indubitavelmente, têm existência temporária, deve existir também um ser eterno que não é sujeito à destruição e cuja existência seja real, não somente possível.

Argumentou-se, posteriormente, que a existência deste ser é neces­sária, seja com relação a si mesmo ou a uma força externa. Em suma, sua existência ou inexistência seria igualmente possível, devido às suas próprias propriedades, mas sua existência seria necessária devido a uma força externa. Aquela força seria, então, o ser que possui existência

6o O G U I A D O S P E R P L E X O S

absoluta (décima nona proposição). Fica, pois, demonstrada a obrigatorie­dade de haver um ser, cuja existência seja absolutamente independente e também a fonte da existência de todas as coisas, sejam elas transitó­rias ou permanentes, se, como defende Aristóteles, existe uma coisa que é o efeito de uma causa eterna e, portanto, deve ser, ela mesma, eterna. E uma demonstração cuja correção não admite dúvida, nem discussão ou rejeição, exceto por aqueles que não têm conhecimento do método demonstrativo. Depois disso, nós diremos que qualquer coisa cuja existência é independente não deve sua existência a alguma causa (décima proposição), e que um ser assim não inclui, de modo algum, qualquer pluralidade (vigésima primeiraproposição). Do que se conclui que não pode ser um corpo, nem uma força residindo em um corpo (vigési­ma segunda proposição). Fica agora claro que deve haver um ser com exis­tência absolutamente independente, um cuja existência não pode ser atribuída a nenhuma causa externa e que não admite elementos dife­rentes. Ele não pode ser corpóreo nem uma força residindo em um corpo. Este ser é Deus.

Pode ser facilmente demonstrada a impossibilidade de que a exis­tência absolutamente independente não pode ser atribuída a dois se­res. Pois se fosse este o caso, a existência absolutamente independente seria uma propriedade adicionada à substância de ambos. Assim, ne­nhum deles seria absolutamente independente devido a sua essência, mas somente devido a uma certa propriedade, ou seja, a da existência independente, comum a ambos. Poderia se explicar de múltiplas ma­neiras que a existência independente não pode se conciliar com o prin­cípio do dualismo por uma série de motivos. Não faria diferença se imaginássemos dois seres com propriedades semelhantes ou distintas. A razão para tudo isso está, sobretudo, na absoluta simplicidade no nível mais alto de perfeição da essência deste ser, que é o único mem­bro de sua espécie e nunca depende de causa alguma. Este ser, portan­to, não tem nada em comum com os outros seres.

Quarto argumento filosófico: Este também é um conhecido argumento filosófico. E sabido que estamos constantemente vendo coisas que, da potência, passam ao ato, mas em todo caso há, para a transição de uma coisa, um agente separado dela (décima oitava proposição). Está claro, ou- trossim, que o agente também passou da potência para o ato. Ele foi primeiro potencial, porque não poderia ser amante devido a alguns

P R O V A S F I L O S Ó F I C A S .

obstáculos contidos nele ou devido à falta de uma certa relação entre ele e o objeto de sua ação. Tornou-se um agente amante assim que a relação tornou-se amai. Seja qual for o caso, um agente é novamente necessário para remover o obstáculo ou criar a relação. O mesmo pode ser argumentado com respeito ao agente antes mencionado, que cria a relação ou remove o obstáculo. Esta série de causas não pode seguir ad infinitum; nós devemos finalmente chegar a uma causa da transição de um objeto de um estado de potência àquele de ato, que seja constante e não admita potência de qualquer tipo. Nada existe de potencial na essência desta causa, pois se a sua essência incluísse alguma possibili­dade de existência, não existiria de forma alguma (vigésima terceira propo­sição)-, esta não pode ser corpórea, mas deve ser espiritual (vigésima quar­ta proposição). E o ser imaterial que nunca inclui possibilidade, mas existe em ato por sua própria essência, é Deus. Desde que Ele seja incorpóreo, como tem sido demonstrado, segue-se que Ele é Um {déci­ma sexta proposição).

Mesmo que admitíssemos a Eternidade do Universo, nós podería­mos, por qualquer um destes métodos, provar: a existência de Deus, que Ele é Um e Incorpóreo e não reside como uma força em um corpo.

Além disso, há outro método correto para provar a Incorporeida­de e a Unicidade de Deus: se houvesse dois deuses, seria obrigatório que possuíssem algo em comum, pelo fato de serem deuses, e outro elemento pelo qual seriam diferenciados um do outro e exisdriam como dois deuses. O elemento diferenciador poderia, em ambos, ser diferente da propriedade comum aos dois — neste caso, ambos con- sisdriam de elementos diferentes, e nenhum dos dois poderia ser a Primeira Causa ou teriam existência absolutamente independente. Po­rém, a existência de ambos dependeria de certas causas (décima nona proposição) ou, caso o elemento diferenciador estivesse somente em um deles e fosse diferente do elemento comum a ambos, então o ser não poderia ter independência absoluta. Outra prova da unicidade de Deus-, Tem sido demonstrado que o Universo inteiro é um corpo orgânico, cujas partes estão interligadas, e que as influências das esferas acima impregnam toda a substância terrestre e a prepara para suas formas. Estabelecido isto, é impossível considerar que uma deidade esteja engajada na formação de uma parte e outra deidade, na formação de outra parte deste corpo orgânico, cujas partes estão tão estreitamente

O G U I A D O S P E R P L E X O S

interligadas. Uma dualidade não pode ser imaginada desta forma, quer uma deidade esteja ativa por um tempo e a outra por outro tempo; quer ambas atuem simultaneamente, tudo sendo feito somente pelas duas juntas. A primeira alternativa é absurda por vários motivos: se, no tempo em que uma deidade esteja ativa, a outra pudesse também estar ativa, não haveria razão por que uma poderia agir e a outra não; se, por outro lado, for impossível para uma deidade agir enquanto a outra está trabalhando, deve haver então outra causa (entre estas dei- dades) que (por um certo tempo) permita a uma agir e não permita à outra. Esta diferença não poderia ser causada pelo tempo, pois o tem­po é imutável e o objeto da ação, do mesmo modo, remonta a um e ao mesmo todo orgânico. Além disso, cada uma das duas se incluiria dentro do tempo, quando sua atuação estivesse conectada a ele. Cada uma das duas passaria da potência ao ato, ao atuar, de maneira que ambas necessitariam de um agente para esta transição. Enfim, have­ria na essência de cada uma das duas uma possibilidade (de existência). Pois bem, supor que ambas, conjuntamente, operam sempre em tudo quanto se realiza no Universo, de maneira que uma não atue sem a outra, é absurdo. Com efeito, sempre que uma determinada ação só pode se realizar por um conjunto de forças, nenhuma destas forças age por iniciativa própria, como tampouco é a causa imediata de tal ação — mas a união é a causa imediata. Já se demonstrou que a ação do Absoluto não pode se dar devido a uma causa (externa). A união é também um ato que pressupõe uma causa que leve a esta união. E se há esta causa, ela é indubitavelmente Deus. Porém, se isto tam­bém consiste de um número de forças separadas, uma causa é neces­sária para a combinação destas forças, assim como no primeiro caso. E assim se chegará necessariamente a um ser único, causa da existên­cia do Universo, que é um todo; não fará diferença se assumirmos que a Primeira Causa produziu o Universo pela Creatio ex nihilo ou se o Universo coexistiu com a Primeira Causa. Então fica claro como po­demos provar, do fato de que este Universo é um todo, a Unicidade de Deus.

Outro argumento para estabelecer a incorporeidade de Deus:

1) todo corpo é composto de matéria e forma (vigésima segunda p r o ­posição)-,

•2) toda composição destes dois elementos requer um agente para efetuar a combinação.

P R O V A S F I L O S Ó F I C A S .

Logo, é evidente que um corpo é divisível e tem dimensões. Um corpo é, portanto, indubitavelmente sujeito a acidentes. Como con­seqüência, não pode ser uma unicidade, seja porque tudo o que é corpóreo é divisível ou porque é uma composição. Portanto, pode ser logicamente dividido em dois elementos, pois um corpo só pode ser definido como um corpo determinado quando o elemento dife­renciador é acrescido ao substratum corpóreo e deve, assim, incluir dois elementos. No entanto, já ficou demonstrado que o Absoluto nunca admite dualismo.

Agora que já discutimos estas provas, iremos expor nosso próprio método, como havíamos prometido.

Sobre as Esferas Celestes e as Inteligências Puras ou Separadas

CA PÍTU LO 2SOBRE A EXISTÊNCIA D AS INTELIGÊNCIAS PURAS OU SERES

PURAMENTE ESPIRITUAIS

Este Quinto 'Elemento, a esfera celeste, tem que ser necessariamente transitório, assim como o movimento, ou eterno, como afirma o opo­nente. Se as esferas são transitórias, então Deus é o seu Criador, pois tudo quanto existe após a inexistência pressupõe um agente, sendo absurdo considerar que a coisa gerou a si mesma. Todavia, se esta esfera não cessou nem cessará de se mover, com movimento perpé­tuo e eterno, segue-se necessariamente, de acordo com as proposi­ções precedentes, que o agente deste movimento perdurável não é um corpo, nem força em um corpo, é Deus (Bendito seja o Seu nome!). Veja claramente que a existência de Deus — ser necessário, carente de causa e cuja existência está por si isenta de toda possibilidade— demons­tra-se com provas diretas e certas, seja o mundo Creatio ex nihilo a partir da inexistência ou não. Fica, desta forma, provado que Ele é um e incorpóreo, como dissemos, pois a demonstração de sua unicidade e incorporeidade é comprovada, mesmo sem qualquer referência à teo­ria da Criação ou à Eternidade do Universo, conforme expusemos no terceiro argumento filosófico4 (sobre a existência de Deus) e, também, em

4 Vide capítulo 1 (NT).

66 O G U I A D O S P E R P L E X O S

nossa descrição subseqüente dos métodos dos filósofos em provar a incorporeidade e unicidade de Deus.

Parece-me conveniente completar as teorias dos filósofos expondo suas provas acerca da existência das Inteligências Separadas, de modo a demonstrar explicitamente sua concordância com os princípios de nossa religião. Refiro-me, aqui, à existência dos anjos. Terminado este assun­to, voltarei ã prometida argumentação sobre a Creatio ex nihilo, dado que nossas provas mais sólidas a esse respeito somente serão válidas e claras depois de bem entendida a teoria da existência das Inteligências Separadas e de apresentadas suas provas. Mas, antes de tudo, mostrare­mos os segredos de todo este tema, tanto dos capítulos anteriores quanto dos posteriores.

Observação prelim inar: É importante saber que não é meu propósito neste Tratado ocupar-me das ciências naturais, nem elucidar as ques­tões da metafísica, segundo certos sistemas, ou demonstrar o que já está demonstrado. Tampouco foi minha intenção resumir e compen- diar a disposição das esferas celestes ou dar a conhecer o seu número, já que os livros sobre esses assuntos são suficientes e, se não o foram em alguma dessas matérias, o que eu poderia acrescentar não valeria mais do que o já dito. Meu objetivo no presente Tratado é aquele indi­cado na Introdução, ou seja, esclarecer os pontos obscuros da Bíblia e expor explicitamente o verdadeiro sentido de seus fundamentos, en­cobertos à inteligência do povo. Por isso, quando me referir à existên­cia e ao número de Inteligências Separadas ou das esferas, bem como às causas de seus movimentos ou ao verdadeiro conceito da matéria e da forma; ou então ao sentido da Manifestação Divina ou coisas seme­lhantes, não pense que eu abrigue o propósito de investigar acerca de algum ponto filosófico, pois estas matérias têm sido expostas em nu­merosos livros e a maior parte comprovada. Minha única intenção é trazer à memória o que possa elucidar certas obscuridades da Lei,' para que algumas dificuldades sobre o conhecimento deste assunto desapareçam. Você já sabe, pela introdução deste Tratado, que seu objetivo aponta para a explanação do delato da Criação — M aassêBereshít (Gênesis 1 a 3) e do delato da Carruagem Divina — MaassêMerkavá (Eze- quiel 1) e, também, para a elucidação de questões a respeito da Profecia

5 A Lei: refere-se à Torá ou à Palavra de Deus descrita na Bíblia, segundo a tradição judaica (NT).

S O B R E A S E S F E R A S C E L E S T E S .

e do conhecimento de Deus. Sempre que, em um capítulo, eu abordar a explicação de um ponto já demonstrado, seja nas Ciências Naturais, seja na Metafísica, ou apresentado simplesmente como o mais prová­vel ou, ainda, um assunto relacionado à Matemática, saiba que este ponto é a chave imprescindível para se compreender algum aspecto dos Livros dos Profetas, com respeito a sua interpretação esotérica. Por isso, menciono, explico e demonstro o ponto em questão como útil para a compreensão dos relatos da Carruagem Divina ou da Criação ou para a exposição de algum princípio relacionado à Profecia ou à crença em quaisquer das verdades ensinadas na Bíblia.

A partir desta observação prévia, voltaremos ao tema que começa­mos a tratar.

S O B R E A S E S F E R A S C E L E S T E S . 6p

CA PÍTU LO 3SOBRE A HIPÓTESE DE ARISTÓTELES A CE R CA DAS C A U SA S

DOS M OVIM ENTOS DAS ESFERAS CELESTES

A teoria formulada por Aristóteles acerca das causas dos movimentos das esferas celestes levou-o a assumir a existência das Inteligências Separadas. Ainda que se tratem de hipóteses indemonstráveis, são, não obstante, entre as opiniões que podem ser enunciadas, as menos ex­postas a dúvida, como afirma Alexandre (de Afrodisia) no livro intitu­lado 4 Origem do Universo,6 Inclui máximas idênticas àquelas ensinadas na Bíblia, sobretudo segundo as interpretações midráshicas genuínas mais famosas, conforme demonstrarei. Por este motivo exporei as ditas te­orias e provas, selecionando as coincidentes com a Torá e com a dou­trina dos nossos Sábios.

6 “O tratado de Alexandre de Afrodisia, não conservado em grego, parece ser o mesmo que menciona Casiri com o título De rerum creatorum principiis e cuja tradução árabe se encontra no manuscrito árabe DCCXCIC de El Escoriai. Vide Casiri, Bibliotheca ar. Hisp., 1.1., p. 242” (Munk).

S O B R E A S E S F E R A S C E L E S T E S . 71

CAPÍTULO 4

AS ESFERAS CELESTES E AS CAUSAS DO SEU MOVIMENTO

A simples reflexão evidencia que a esfera celeste está dotada de alma. Não obstante, há aqueles para quem, à primeira vista, isto seja consi­derado ininteligível, ou seja rechaçado de pronto, imaginando que quando consideramos as esferas como dotadas de alma, trata-se de uma alma como a do homem, do asno ou do touro. Não é este o sentido, mas sim que sua locomoção indica que ela possui em si, indubitavel­mente, um princípio por meio do qual se move, e é, com toda segu­rança, uma alma. Seria absurdo considerar que o princípio do movi­mento circular das esferas fosse semelhante ao movimento retilíneo de uma pedra, para baixo, ou do fogo, para cima, de tal maneira que fosse uma propriedade natural e não uma alma. Pois aquilo que possui tal impulsão natural somente é movido pelo princípio que possui em si mesmo quando se encontra fora de seu lugar e tende a voltar a ele. Assim que chega lá, passa a descansar.7 No entanto, a esfera celeste move-se em círculos, dentro de sua órbita, e não é porque está dota­da de alma que tem de se mover assim, pois todo ser animado se põe em movimento por instinto ou pela ra%ão. Por instinto, aqui, entendo

7 Vide Primeira Parte, cap. 72 (Maeso).

72. O G U I A D O S P E R P L E X O S

como a tendência ao conveniente ou a fuga ao repulsivo, não impor­tando se o agente motor é externo, como, por exemplo, quando o animal foge do calor solar e, sedento, dirige-se ao local onde está a água. Não faz diferença se o motivo realmente existe ou se é fruto de sua imaginação, dado que o animal é impulsionado, desta forma, pela repulsa ao nocivo e tendência ao conveniente. Pois bem, a esfera celeste não se move porque seu propósito é fugir do prejudicial ou aproximar-se do benéfico, já que o ponto para o qual converge é o da partida, Além disso, caso seu movimento tivesse tal objetivo, ocorre­ria necessariamente que, ao chegar a sua meta, permaneceria em re­pouso, posto que, ao se mover para buscar ou para evitar algo, sem jamais poder alcançá-lo, o movimento resultaria inútil. A ação circu­lar de uma esfera somente pode se efetuar em virtude de uma idéia determinante para que se mova assim. Todavia, se uma idéia somen­te é factível em seres dotados de intelecto, então a esfera celeste é um ser dotado de intelecto.

Pois bem, todo aquele que possui intelecto, por meio do qual con­ceba uma idéia, e uma alma, pela qual possa se mover, realiza isso por obra da mera representação mental, dado que esta, por si só, não ne­cessita de movimento. Isto já foi exposto na Metafísica, de Aristóteles. Você mesmo reconhecerá que concebe muitas coisas pelas quais pode­ria se mover e, sem dúvida, não se move de modo algum até que não lhe sobrevenha um desejo impulsivo em direção ao objeto representa­do. Somente então se mobiliza para a consecução do planejado. Fica claro, portanto, que nem a alma, fonte do movimento, nem o intelecto, fonte das idéias, são suficientes para originar o movimento se não hou­ver o desejo pelo objeto.

Segue-se daqui, portanto, que a esfera celeste possui desejo por um ideal tal como ela o compreende e que este ideal, pelo qual anseia, é Deus (Bendito seja!). E neste sentido que se afirma que Deus move as esferas celestes, pois as esferas desejam se tornar semelhantes ao com­preendido por elas como ideal. Este ideal é somente no sentido estrito da palavra, não sujeito à mudança ou alteração de qualquer tipo, mas constante na produção de tudo o que é bom. Para a esfera, como corpo, isto é impossível, porque sua ação é o movimento circular e nada mais, esta é a única ação de seres corpóreos que pode ser perpétua, é o movi­mento mais simples de um corpo e não permite nenhuma mudança na essência da esfera nem nos resultados benéficos de seu movimento.

S O B R E A S E S F E R A S C E L E S T E S .

Aristóteles, ao chegar a estes resultados, investigou o tema poste­riormente e descobriu, por inferência, que as esferas são muitas e que todas se movimentam em círculos, mas diferem entre si em velocidade e direção. Ele argumenta que o ideal compreendido por uma esfera que completa seu circuito em um dia é diferente, naturalmente, do de outra esfera que efetua seu circuito completo em trinta anos. Daí con­clui categoricamente que existem tantos ideais quantas são as esferas e que cada esfera tem um desejo por aquele ideal, fonte de sua existên­cia, e o desejo é a causa de seu movimento individual. Portanto, de fato, o ideal coloca a esfera em movimento. Nem Aristóteles nem qual­quer outro pensador decidiu se o número destes ideais é dez ou cem, ele afirma somente que são tantas quantas são as esferas. Pois bem, como alguns de seus contemporâneos sustentavam que o número de esferas era cinqüenta, Aristóteles disse que, se isso fosse verdade, o número de ideais seria igualmente de cinqüenta. Em seu tempo os conhecimentos matemáticos eram escassos e, todavia, imperfeitos. Acreditava-se que, para cada movimento, precisava-se de uma esfera em separado, pois ignoravam que a inclinação de uma só esfera origina muitos movimentos visíveis, como, por exemplo, o caso da mudança na longitude de um astro, sua declinação e os lugares de seu nascimen­to e ocaso, vistos no círculo do horizonte. Mas como este não é nosso objetivo no momento, voltemos ao tema.

Os filósofos modernos têm afirmado que as Inteligências Separa­das são dez, porque contaram as esferas que têm astros e a esfera cir­cundante, ainda que algumas delas contenham numerosas órbitas. Há no total nove esferas: a esfera circundante universal, a dos astros fixos e as dos sete planetas. Nove Inteligências Separadas correspondem às nove esferas e a Décima Inteligência é o Intelecto Ativo, cuja existên­cia está demonstrada pela transição, por parte do nosso intelecto, da potência ao ato; e pela mesma transição no caso das formas de todos os seres transitórios. Pois tudo quanto passa da potência ao ato neces­sita de um agente externo do mesmo tipo. Com efeito, o artífice não fabrica um cofre por ser um artífice, mas sim porque tem em sua men­te a forma do cofre, e é esta forma na mente do artífice que, ao traba­lhar na madeira, faz o cofre passar da forma potencial à existência. E o que transmite forma à matéria deve ser forma pura; logo, a fonte do intelecto deve ser Inteligência Pura, neste caso, o Intelecto Ativo. A relação deste com os elementos e seus componentes é análoga à das

7 4 O G U I A D O S P E R P L E X O S

Inteligências Separadas junto às respectivas esferas. E o nosso intelec­to em ação — originado no Intelecto Ativo e que nos permite compre­endê-lo — encontra paralelo nos intelectos de cada uma das esferas, originados na Inteligência Separada correspondente a cada esfera ce­leste, e que, da mesma forma, possibilita à esfera compreender a sua Inteligência Separada, formar uma idéia dela e se movimentar no sen­tido de se tornar semelhante a ela.

Aristóteles depois inferiu o que já foi explicado: Deus não ama por contato direto. Assim, quando Ele destrói tudo pelo fogo, este é posto em ação através do movimento das esferas, e estas, pelas Inteligências Separadas. Estas são idênticas aos anjos, que estão em volta Dele, e suas ações por influência direta são, conseqüentemente, cada uma na sua vez, a causa do movimento das esferas. Pois bem, como os Seres Puramente Espirituais não diferem em sua essência, nem são de modo algum suscetíveis de numeração quanto a sua diversidade, deduz-se, segundo ele (Aristóteles), que Deus criou a Primeira Inteligência, que é o agente de movimento da primeira esfera. A Inteligência que mobili­zou a segunda esfera tem como causa e princípio a Primeira Inteligên­cia, e assim sucessivamente, de maneira que a inteligência que põe em movimento a esfera mais próxima à Terra é a fonte e a origem do Intelecto Ativo, o último na série de Seres Puramente Espirituais. A série de corpos materiais começa, de forma semelhante, pela esfera superior e termina pelos elementos e seus componentes. A Inteligên­cia que move a esfera superior não é o Ser Absoluto, pois há um ele­mento comum a todas as Inteligências, que é a propriedade de ser um agente de movimento de uma esfera, e há outro elemento pelo qual cada uma é distinta das demais. Cada uma das Dez Inteligências inclui, portanto, dois elementos e, conseqüentemente, outro ser deve ser a Primeira Causa.

Esta é a teoria e a opinião de Aristóteles, e seus argumentos a res­peito têm sido expostos, enquanto podem sê-lo, nas obras da Escola Aristotéüca. Em suma, ele acredita que: as esferas são seres dotados de alma e intelecto, capazes de compreender totalmente os princípios de suas existências; existem Seres Puramente Espirituais (Inteligências Separadas) incorpóreos, cuja existência é derivada de Deus, e estes formam o elemento intermediador entre Ele e este mundo material.

Nos capítulos seguintes vou expor quanto os ensinamentos da Bí­blia estão em harmonia com estes pontos de vista e o quanto deles diferem.

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CAPÍTULO 5

CONCORDÂNCIA DA TEORIA DE ARISTÓTELES COM OS ENSINAMENTOS DA BÍBLIA

A Bíblia sustenta a teoria de que as esferas celestes são dotadas de alma e intelecto, isto é, capazes de compreender as coisas. Não são, como acreditam os ignorantes, corpos inanimados como o fogo e a terra, mas sim — como asseguram os filósofos — dotados de vida, obedientes a seu Senhor, Louvando-o e Elogiando-o em alto grau: “Os Céus declaram a Glória de Deus” (Salmo 19:2). É um grande erro pensar que esta é somente uma figura de linguagem, pois os verbos higníd (declarar) e sipêr (narrar), quando usados juntos, em hebraico, referem-se a seres dotados de inteligência, é isto o que o Salmista realmente quer dizer ao descrever a própria ação celeste. Em outras palavras, o que as esferas fazem de fato, e não o que o Homem pensa sobre elas, pode ser inferido melhor das palavras: “Não há fala e não há palavras, não são ouvidas suas vozes” (Salmo 19:4). Assim, está claro e manifesto que se refere a elas mesmas, louvando a Deus e anunciando Suas maravilhas, sem palavras de lábios ou lín­gua. Quando o ser humano louva a Deus com palavras pronuncia­das, descreve apenas as idéias que ele concebeu; mas são as idéias que formam o verdadeiro louvor. A razão pela qual ele dá expressão a estas idéias está no seu desejo em comunicá-las aos outros ou de se

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certificar de que foi ele mesmo quem as concebeu. Por isso é dito a este respeito: “Reflitam em seus corações quando estiverem em seus leitos, e silenciem.” (Salmo 4:5), conforme expusemos.8 Somente pessoas ignorantes ou obstinadas poderiam recusar-se a admitir esta prova obtida da Bíblia.

De acordo com a opinião dos nossos Sábios, não vejo necessidade de explicação nem de prova. Considere tão somente a forma que eles deram à benção recitada ao se ver a Lua Nova9 e as idéias recorrentes nas orações e comentários midráshicos, a propósito das seguintes pas­sagens: “E os exércitos dos Céus se prostram ante Ti” (Neemias 9:6) e “Em um único clamor os astros da manhã e os aplausos de todos os filhos de Deus” (Jó 38:7). E m BereshitKabá, sobre a passagem: “ Ve-há- A ret^ haitáüòYm. va-V ôhu” — “E a Terra estava va^ja e sem form a” (Gê­nesis 1:2), nossos Sábios se expressam assim: “As palavras'Tôhu e Vôhu significam lamentava-se e chorava; a Terra se lamentava e chorava por sua má sorte, como se dissesse: ‘Eu e os Céus fomos criados junta­mente; e no entanto os seres acima vivem para sempre e nós somos mortais’” . Nossos Sábios, por meio deste comentário, indicam sua crença de que as esferas são seres dotados de alma e não de matéria inanimada como os elementos.

A opinião de Aristóteles, de que as esferas são capazes de com­preensão e concepção, está de acordo com as palavras de nossos profetas, teólogos ou Sábios. Os filósofos concordaram posterior­mente com o fato de que este mundo inferior é governado por influ­ências que emanam das esferas celestes,10 e que estas compreendem e têm conhecimento das coisas que as influenciam. Esta teoria tam­bém é encontrada na Bíblia: [os astros — todo o exército dos Céus] “(..,) que separou YHVH Teu Deus a eles, para todos os povos sob os Céus” (Deuteronômio 4:19). O que quer dizer: Deus mostrou que os astros existem para serem os intermediários no governo de Suas cri­aturas, não para serem objetos de adoração por parte do Homem. Isto foi, portanto, deixado bem claro na passagem: “E para governar (Limshól) de dia e de noite” (Gênesis 1:18). Aqui, o sentido do termo

8 Vide Primeira Parte, cap. 64.9 Bênção da Lua: Bircát Há-Levaná (NT).

10 Vide Primeira Parte, cap. 72.

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Governo ('Memsbalá) refere-se ao poder que as esferas possuem de go­vernar a Terra, é uma idéia complementar à de oferecer lu^ e trevas — estas últimas, causas diretas da geração e da destruição, tal como é esclarecido nas palavras: “separar a luz das trevas” (Gênesis 1:18). É impossível supor que quem governa algo seja ignorante das coisas que governa, se tom -à im os governar n o seu sentido próprio. Acrescen­taremos outro capítulo a este assunto.

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CAPÍTULO 6O QUE SE ENTENDE PELO TERMO MALÁCH (ANJO) E SUAS ACEPÇÕES, ESPECIALMENTE A DE INTELIGÊNCIAS SEPARADAS

Com respeito à existência dos anjos, é desnecessário citar provas da Bíblia, onde o fato é freqüentemente mencionado. O termo TLlohím significa Jui\esn como em: “A causa de ambas as partes deve ser leva­da diante dos ju iz es” (Exodo 22:8). Aplica-se metaforicamente aos anjos e também a Deus, como Juiz acima dos anjos. Quando está escrito: “Eu sou YHVH, vosso Deus”, o pronome vosso se refere a toda a Humanidade, mas a frase Hlohê há-TLlohím (Juiz dos Juizes) refere-se ao Deus dos anjos e, em A donê há-Adoním (Senhor dos Se­nhores), ao Deus das esferas e dos astros, que são os senhores de todas as demais criaturas corpóreas. Os nomes Hlohím (Juizes) tA don ím (Se­nhores), nestas frases, não se referem a juizes humanos ou mestres, pois estes estão em um nível inferior ao dos corpos celesdais; muito menos se referem à Humanidade em geral, incluindo mestres e servos, ou a objetos de pedra e madeira adorados por alguns como deuses, pois não seria elogio ou honra a Deus fazê-lo superior por meio de uma pedra, madeira ou pedaço de metal. Estas frases, portanto, não

11 Vide Primeira Parte, cap. 2.

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admitem outra interpretação além desta: Deus é o Juiz dos Juizes, isto é, o Senhor dos anjos e o Senhor das esferas celestes.

Já dedicamos anteriormente um capítulo para demonstrar que os anjos são incorpóreos, com o que também concorda Aristóteles. Há apenas uma diferença nos nomes empregados: ele denomina Inteligên­cias Separadas ao que nós chamamos Anjos, Sua teoria é a de que as Inteligências Separadas são seres intermediários entre a Primeira Causa e as coisas existentes, e produzem o movimento das esferas, de cujo movimento depende a existência de todas as coisas. Esta é a visão também encontrada em toda a Bíblia, na qual toda ação de Deus é descrita como tendo sido realizada por Malacbím (Anjos). Mas anjo sig­nifica mensageiro. Portanto, todo aquele que é imbuído de uma certa missão é um anjo. Mesmo os movimentos do animal irracional são, às vezes, semelhantes à ação de um anjo, quando estes movimentos ser­vem ao propósito de Deus, que nele pôs uma força executora de tal movimento. Por exemplo, quando Daniel afirma: “Meu Deus enviou o seu anjo, que fechou a boca dos leões, e não me atacaram” (Daniel 6:22). Outro exemplo está nos movimentos do asno de Bilám, descri­tos como causados por um anjo. Até mesmo os elementos recebem igualmente a denominação de malachím (anjos ou mensageiros), como acon­tece em: “Que faz Seus anjos (malacháv) os ventos, Seus ministros o fogo flamejante” (Salmo 104:4).

Não há dúvidas de que a palavra anjo é usada como:

1) um mensageiro entre os homens, por exemplo: “E Enviou Jacob anjos/mensageiros ('malachímj à sua frente” (Gênesis 32:4);

2) um Profeta, por exemplo: “Subiu o anjo/Profeta de YHVH de Guilgál a Bochínf' (Juizes 2:1), “e enviou um anjo/Profeta (malách), e nos tirou do Egito” (Números 20:16);

3) ideais percebidos pelos Profetas em visões proféticas;4) faculdades anímicas nos homens, conforme explicaremos mais

adiante.

Quando afirmamos que a Bíblia ensina que Deus governa este mundo por meio dos anjos, queremos dizer que estes anjos são idênti­cos às Inteligências Separadas. Em algumas passagens, utiliza-se o plural em referência a Deus, como em: “Façamos o Homem à Nossa Ima­gem” (Gênesis 1:26), ou “Vamos, desçamos e confundamos ali a sua língua” (Gênesis 11:7). Nossos Sábios explicam isso do seguinte modo:

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Deus não faz nada antes de contemplara Família Superior. A expressão contemplar é surpreendente, pois é a mesma utilizada por Platão ao dizer que “Deus contemplou o Mundo das Idéias, e então produziu os seres existentes”. Em certas passagens nossos Sábios declaram de forma decidida: “Deus não faz nada sem consultar a Família Superior” (a palavra fam ília significa exêráto em grego). Sobre as palavras: “o que Eles já fizeram” (Eclesiastes 2:12), o seguinte comentário é feito no Talmúd, no Beresblt Rxibá e no Midrásb Kohélet-. “Não se diz ‘O que Ele tem feito’, mas sim ‘o que Eles têm feito’”, do que se conclui que Ele e Seu tribunal deliberam com respeito a cada um dos membros da hu­manidade antes de colocar a cada um deles no seu lugar, conforme se diz: “Ele, teu pai, te assumiu, Ele te fez e te preparou” (Deuteronômio 32:6). O Bereshít Rabá explica que, onde quer que o termo e (Deus) ocorra na Bíblia, entenda-se Ele e Seu tribunal.

Em todos estes textos não se insinua que Ele fale, delibere, exa­mine ou consulte com o propósito de se servir da opinião alheia, como acreditam os ignorantes. Como Deus poderia ser ajudado por aqueles a quem Ele criou! Tudo isto somente mostra que todas as partes do Universo, mesmo os membros do Reino Animal em sua forma atual, foram feitos por meio dos anjos, já que forças naturais e anjos são idênticos. Quão ruim e injuriosa é a cegueira da ignorância! Se você diz a uma destas pessoas, que afirma pertencer aos Sábios de Israel, que Deus envia Seu anjo para formar o feto no útero da mu­lher, ele ficará satisfeito com o resultado, acreditará e até considerará como uma manifestação do Poder e Sabedoria Divina. Ao mesmo tempo, ele acredita que o anjo consiste de fogo ardente e que seu tamanho se iguala a um terço do universo inteiro e considera isto possível, como um milagre divino. Mas diga-lhe que Deus pôs no sêmen uma força formativa que modela e estrutura os membros de uma espécie, e que esta força é chamada de anjo, ou que esta força é o resultado da influência do Intelecto Ativo e este é um anjo e o Príncipe do Mundo, de quem tanto falam nossos Sábios, ele não acreditará, porque é incapaz de compreender o sentido dessa autêntica grandeza e poderio das forças criativas, amando em um corpo sem serem per­cebidas pelos sentidos. Os Sábios já esclareceram, para quem é inteli­gente, que cada uma das forças que residem em um corpo são forças ativas no Universo — são anjos.

A teoria de que cada força ama somente de um determinado modo é expressa no Bereshít Rabá (cap. 1), em que lemos: “Um anjo não faz

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duas coisas, e dois anjos não fazem uma”. Esta é exatamente a proprie­dade destas forças. Podemos encontrar a confirmação de que as forças naturais e psíquicas de um indivíduo denominam-se anjos, como fre­qüentemente dizem nossos Sábios, originalmente no Bereshít Rabá (cap. 78): “Todos os dias Deus cria uma legião de anjos; eles cantam para Ele e desaparecem”. Quando, em objeção a esta posição, outras posi­ções afirmam que os anjos são eternos — e, com efeito, reiteradamente tem-se explicado que eles vivem permanentemente — a resposta é que uns são permanentes e outros, perecíveis. E esta é a realidade, pois as forças individuais são transitórias, enquanto as das espécies correspon­dentes são permanentes e imperecíveis. Novamente, lemos (em Be- reshitRabá, cap. 85), referindo-se à relação entre Judá e Tamar: “Rabi Yochanán disse que Judá quis prosseguir (sem ver Tamar), mas Deus colocou diante dele um anjo da cobiça, quer dizer, da disposição libidi­nosa, para apresentar-se a ele”. Esta disposição humana é chamada aqui de anjo. Do mesmo modo, encontramos freqüentemente a frase: “um anjo designado para isto ou aquilo”. No Midrásb Kohélet (sobre Eclesiastes 10:7)12 está escrito: “Enquanto o homem dorme, sua alma conversa com o anjo, e este com o querubim”. O leitor inteligente encontrará aqui uma afirmação clara de que a faculdade imaginativa também se chama anjo e o intelecto, querubim. Quão belo isto deve parecer para aqueles que entendem e quão absurdo para os ignorantes!

Já fizemos constar que as formas com as quais os anjos aparecem fazem parte da Visão Profética. Alguns Profetas vêem os anjos como se fossem seres humanos, por exemplo: “E eis que três homens (anashím) estavam parados à sua frente” (Gênesis 18:2). Outros percebem um anjo como um ser temeroso e terrível, como em: “E o seu aspecto era como o aspecto de um anjo (malách) de Deus muito terrível” (Juizes 13:6). Outros, ainda, os vêem como fogo, por exemplo: “Apareceu-lhe o anjo (malách) de YHVH em uma chama de fogo” (Êxodo 3:2). Em Bereshit Rabá (cap.l), há o seguinte comentário: “A Abrahão, cujo po­der profético era fantástico, os anjos apareceram na forma de homens; para Lot, cujo poder era deficiente, apareceram como anjos”. Há aqui um princípio importante da Profecia que será melhor discutido quan­do tratarmos do tema (cap. 32). Em outra passagem do Bereshit Rabá

12 Eclesiastes 10:7: “Vi escravos sobre cavalos e príncipes caminhando como escravos sobre a nação” (NT).

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(;ibid..) se afirma: “Antes de os anjos cumprirem suas missões, eram chamados homens; depois de realizadas, eram anjos”. Considere como eles dizem claramente que o termo anjo não significa mais do que uma determinada ação, e que toda aparição de um anjo é parte de uma visão Profética, dependendo da capacidade da pessoa que o percebe.

Naquilo que Aristóteles deixou dito sobre o particular, tampouco há algo contraditório com a Bíblia. A grande diferença entre ele e nós é que ele acredita que todas estas coisas são eternas, coexistentes com a Primeira Causa como seu agente necessário, e nós acreditamos que elas tiveram um início, que Deus criou as Inteligências Separadas e deu às esferas celestes a capacidade de buscarem ser como elas. Ao criar as Inteligênúas e as esferas, Ele as dotou de capacidade para governar. Neste ponto discordamos dele.

No decurso deste Tratado iremos tratar de sua teoria, bem como da teoria da Creatio ex nihilo, ensinada na Bíblia.

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CAPÍTULO 7

A POLIVALÊNCIA DO TERMO MALÁCH (ANJO)

Já foi explicado que o termo Malácb é um termo polivalente que com­preende as Inteligências Separadas, as esferas e os elementos, pois todos eles executam o Comando Divino. Mas não pense que as In­teligências e as esferas são como outras forças que residem nos corpos e que atuam segundo as leis da natureza, inconscientes do que fazem. As Inteligências Separadas e as esferas são conscientes de suas ações e escolhem por livre arbítrio os objetos de sua in­fluência, embora não do mesmo modo como nós exercemos o livre arbítrio e o governo sobre outras coisas que dizem respeito somen­te a seres temporários.

Adotei esta teoria devido a algumas passagens na Bíblia. Quando um anjo diz a Lot: “porque não poderei fazer nada (...)” (Gênesis 19:22) e, ao liberá-lo, o anjo diz: “Veja, atenderei a teu pedido” (Gê­nesis 19:21). Novamente: “Guarda-te diante dele e escuta sua voz, não te rebeles contra ele, porque não perdoará vossos delitos, por­que Meu Nome está nele.” (Êxodo 23:21). Todas estas passagens demonstram que os anjos são conscientes do que fazem e têm livre arbítrio na esfera da ação confiada a eles, assim como nós temos livre arbítrio em nossa cidade, de acordo com o poder entregue a nós em toda a nossa existência. A diferença é que o que fazemos é o

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mais baixo estágio de excelência, e nossa influência e o que fazemos são precedidos da ausência de ação. Já com as Inteligências e esferas ocorre sempre o que é bom; nelas está contido o que é bom e perfei­to, como será mostrado adiante, e têm sido continuamente ativas desde o início.

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CAPÍTULO 8

SOBRE A MÚSICA DAS ESFERAS CELESTES

Uma das antigas opiniões, muito difundida entre os filósofos e as pessoas em geral, é a de que o movimento das esferas celestes origina sons formidáveis e violentos. Eles observaram como pequenos obje­tos produziam, por meio de um movimento rápido, um ruído alto, estrépito e retumbante, e concluíram que este deve ser o caso, em um nível muito mais alto, dos corpos solar, lunar e estelar, dado seu ta­manho e velocidade. Os Pitagóricos acreditavam que estes corpos emitem sons harmoniosos e que, mesmo altos, mantêm as mesmas proporções entre eles que as notas musicais mantêm entre si. Expli­caram também o motivo pelo qual não ouvimos estes sons tão fortes e tremendos. Esta crença também se espalhou por nossa nação. Nos­sos Sábios descrevem a grandeza do som produzido pelo Sol no ci­clo diário de sua órbita. A mesma descrição é dada para todos os corpos celestes. Aristóteles, no entanto, rejeita esta idéia e sustenta que eles não produzem sons. Esta opinião pode ser encontrada no livro Os Céus e o Mundo (De Coeló). Não se deve achar estranho que Aristóteles discorde aqui da opinião dos nossos Sábios. A teoria da Música das Esferas está ligada à teoria do movimento dos astros fi­xos em uma esfera, e nossos Sábios, nesta questão astronômica, aban­donaram sua própria teoria em favor da teoria de outros. Logo, é

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confirmada a afirmação de que os Sábios das outras nações venceram os Sábios de Israel. E verdade que nossos Sábios abandonaram a sua pró­pria teoria, pois todos tratam os problemas especulativos de acordo com os resultados de seus próprios estudos e aceitam o que lhes é estabelecido através de demonstração.

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CAPÍTULO 9SOBRE O NÚMERO DE ESFERAS CELESTES

Já lhe expusemos que o número das esferas não foi determinado no tempo de Aristóteles, e aqueles que atualmente contam nove esferas consideram que uma esfera com várias órbitas é uma, segundo é notó­rio para quem tem conhecimento de Astronomia. Por isso, não deve­mos rejeitar a opinião daqueles que assumem a existência de duas esfe­ras, de acordo com as palavras da Bíblia: “Pertencem a YHVH Teu Deus os Céus e os Céus dos Céus.” (Deuteronômio 10:14). Eles calcu­lam todas as esferas com os astros, ou seja, todas as órbitas nas quais os astros se movem, como uma; e a Esfera Circundante, na qual não há astros, é considerada por eles como a segunda. Por isso, eles susten­tam que há duas esferas.

Apresentarei, aqui, uma explanação necessária para a compreensão do nosso ponto de vista sobre este assunto. Há discrepância de opini­ões entre os antigos astrônomos se as duas esferas de Vênus e Mercú­rio estão acima ou abaixo do Sol, pois não está demonstrada a posição destas duas esferas. A opinião de todos os antigos era a de que elas estavam acima do Sol. Veja bem, depois veio Ptolomeu, afirmando que se encontram abaixo do Sol, pois acreditava que, desta maneira, o arranjo das esferas seria mais razoável. O Sol estaria no meio, com três planetas acima e três abaixo. Mais recentemente, alguns estudiosos

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andaluzes13 concluíram, segundo alguns princípios deixados por Pto- lomeu, que Vênus e Mercúrio se encontravam acima do Sol. Chabir ibn Aflá, de Sevilha, com cujo filho me relacionei, escreveu um livro famoso sobre o tema, como também o excelente filósofo Abu Bakr ibn Al-Saíg, de um de seus discípulos recebi aulas, que examinou a questão e formulou alguns argumentos — que dele copiamos — sobre a improbabilidade de Vênus e Mercúrio estarem acima do Sol. As pro­vas oferecidas por Abu Bakr mostram somente a improbabilidade, não a impossibilidade. Em suma, de qualquer forma, todos os antigos situ­avam Vênus e Mercúrio acima do Sol e, por este motivo, contavam cinco esferas: a da Lua, indubitavelmente a mais próxima de nós, a do Sol, necessariamente por cima dela, a dos outros cinco planetas, a dos astros fixos e a esfera que a tudo circunda, na qual não há astro algum.

Conseqüentemente, o número de esferas que c o n t e m figuras — ou seja, astros, chamados de figuras pelos antigos em seus famosos tra­balhos — são quatro: a esfera dos astros fixos, a dos cinco planetas, a do Sol, a da Lua e, por cima de todas, uma esfera vazia, sem astro algum. Este número é muito importante para mim, por causa de uma idéia que nenhum dos filósofos esclareceu e à qual fui levado por diversas declarações dos filósofos e dos nossos Sábios. Agora vou descrevê-la e explicá-la.

13 Nova referência de Maimônides a sua terra natal, o que demonstra que estava muito atento ao movimento cultural em Andaluzia nesta época (Maeso).

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CAPÍTULO 1 0

A INFLUÊNCIA DAS ESFERAS CELESTES SOBRE A TERRA SE MANIFESTA DE QUATRO MODOS DIFERENTES

E conhecido e difundido em todas as obras filosóficas sobre a Ordem do Universo que o regime no mundo sublunar dos seres transitórios depende das forças procedentes das esferas, Temos afirmado isso rei- teradamente e do mesmo modo nossos Sábios dizem : “Não há abai­xo nem a mais insignificante erva sem o seu Ma^ál (Astro) que a im­pulsiona e a ordena crescer, pois está dito: ‘Já aprendeu as leis dos Céus, se estas policiam a Terra?”’ (Jó 38:33). O termo Ma^ál, literal­mente uma constelação do Zodíaco, é usado também para todo astro, como pode ser inferido da seguinte passagem no inicio do Beresbít Kabá (cap. 10), em que se afirma: “Enquanto um M «^/ completa sua órbita em trinta dias, outro completa em trinta anos”. Portanto, indi­ca-se claramente nesta passagem que todo ser individual no mundo tem seu astro correspondente. Embora as influências das esferas se estendam sobre todos os seres, o indivíduo está sob a influência de­terminada de um astro específico dirigido a cada espécie em particu­lar. Este fato também é percebido com referência a diversas forças em um único organismo, pois todo o Universo é como um único organis­mo, conforme já dissemos. Por este motivo, os filósofos falam da influência peculiar da Lua sobre o elemento particular da água. Este

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caso é comprovado pelo aumento e diminuição da água dos mares e rios, de acordo com o crescimento e a diminuição da Lua, também pela subida e descida das marés conforme o avanço ou o retorno da Lua, isto é, sua ascensão e descenso nos diversos quadrantes de sua órbita, como é claro a quem já tenha observado este fenômeno.14 A influência dos raios solares sobre o fogo pode ser facilmente verifica­da pelo aquecimento ou resfriamento da Terra, de acordo com a apro­ximação ou o afastamento solar. Isto é tão claro que não precisa de mais explicações.

Ocorreu-me que as quatro esferas que contêm astros exercem in­fluência sobre todos os seres terrestres que vêm a existir e, de fato, são a causa da existência dos mesmos, mas cada uma das quatro esfe­ras é fonte exclusiva das propriedades de apenas um dos quatro ele­mentos, e se torna, a partir de seus movimentos, a causa do movi­mento e das mudanças daquele elemento. Assim, a água é posta em movimento pela esfera lunar; o fogo, pela esfera solar; o ar, pela esfe­ra dos outros planetas, que se movem em cursos variados e diferen­tes, com retrocessos, progressos e paradas, e então produzem as vári­as formas de ar com suas freqüentes mudanças, contrações e expansões; e a esfera dos outros astros, ou seja, os astros fixos, que colocam a terra em movimento. Razão pela qual, talvez devido ao movimento lento dos astros fixos, a terra se movimente tão lenta­mente e se combine com os outros elementos. A influência particular que os astros fixos exercem sobre a terra está implícita na declaração dos nossos Sábios de que o número das espécies de plantas corres­ponde ao das individualidades incluídas no termo geral astros. A or­dem do Universo, portanto, pode ser assumida da seguinte forma: quatro esferas, quatro elementos postos em movimento por elas e, também, quatro propriedades principais das quais os seres terrestres derivam, como já expusemos. Além disso, as causas do movimento de cada esfera são quatro, a saber, os seguintes elementos essenciais da esfera:

14 “O que o autor declara aqui, a respeito do influxo da Lua não somente sobre os mares, mas também sobre o caudal dos rios, é uma hipótese que se encontra já em alguns autores antigos. Sem dúvida, nos escritos que nos restam de Aris­tóteles, apenas se faz alguma alusão ao fluxo e refluxo do mar.” (Munk).

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1) seu formato esférico;2) sua alma;3) seu intelecto, através do qual a esfera é capaz de formar idéias;4) a Inteligência Separada, que a esfera deseja imitar.

Veja, a explicação para o que eu disse é a seguinte: a esfera não poderia estar continuamente em movimento se não tivesse esta forma peculiar, e a continuidade do movimento só é possível quando o movi­mento é circular. O movimento retilíneo, mesmo que se repita freqüen­temente , não pode ser contínuo, pois, quando um corpo se movimenta sucessivamente em duas direções opostas, passará necessariamente por um momento de descanso, como foi demonstrado no lugar apropria­do. A necessidade de um movimento contínuo, repetido constante­mente no mesmo local, implica a necessidade de uma forma circular. As esferas devem ter uma alma, pois somente seres animados podem se mover livremente. Deve haver uma causa para o movimento e, desde que isto não consista no temor de algo que seja injurioso- ou no desejo de algo que seja agradável, deve ser encontrada na noção for­mada pelas esferas de um determinado ser e no desejo de se aproximar deste ser. A formação desta noção exige, em primeiro lugar, que as esferas possuam intelecto e, depois, que exista algo correspondente àquela noção , da qual as esferas desejam se aproximar. Estas são as quatro causas do movimento das esferas celestes. Em seguida temos as quatro principais forças derivadas diretamente das esferas:

1) a natureza dos minerais;2) as propriedades particulares das plantas (vegetativas);3) as faculdades animais (anímicas);4) o intelecto.

Um exame destas forças nos mostra que elas possuem duas fun­ções, a saber:

1) Produzir coisas.2) Perpetuá-las.

Ou seja, preservar perpetuamente as espécies e os indivíduos de cada espécie por um certo tempo. Estas são também as funções da Natureza, da qual se diz que é sábia para governar o Universo, preocupar-se em

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planejar a produção de seres vivos e se preocupar também com a sua preservação e perpetuação. A Natureza cria faculdades formativas, que são a causa da produção de seres vivos, e faculdades nutritivas como fonte de sua existência temporal e preservação. Deve ser por meio da Natureza que o Desejo Divino, que é a origem daqueles dois tipos de faculdade por meio da mediação das esferas celestes, é cumprido.

O número quatro é estranho e merecedor de nossa atenção. No M/í/m^Ta^huma15 se diz: “Quantos degraus tinha a Escada dejacob? —Quatro”. Trata-se da passagem: “(...) e eis uma escada apoiada sobre a Terra” (Gênesis 28:12). Em todos os Midrashím se constata que havia quatro legiões de anjos, afirmação repetida com freqüência.16 Em al­guns escritos se pode ler: “Quantos degraus havia na escada? — Sete”; mas todos os escritos e todos os Midrashím expressam unanimemente que os anjos, vistos por Jacob subindo e descendo a escada, eram so­mente quatro, dois que subiam e dois que desciam. Estes quatro anjos — os dois que subiram e os dois que desceram— ocuparam, alinhados, um degrau da escada. Daí se inferiu que a extensão da escada, na visão Profética, era equivalente a quatro terços do Universo, pois o tamanho de um anjo na visão Profética era igual a um terço do Universo. Em conformidade com este outro texto: “E o seu tamanho era como dois sextos” (Daniel 10:6), os quatro anjos, portanto, ocupavam quatro ter­ços do Universo. Zacarias, ao descrever a seguinte visão metafórica: “Quatro carruagens saem do meio de duas montanhas; e as monta­nhas são montanhas de cobre” (Zacarias 6:1), acrescenta a explicação: “Eis quatro ventos dos Céus saindo para se apresentar diante do Se­nhor de toda a Terra” (Zacarias 6:5), que são a causa de todas as mu­danças no Universo. A palavra cobre aqui empregada, assim como a frase “cobre polido”, utilizada por Ezequiel (Ezequiel 1:7),17 são ter­mos em certa medida homônimos, o que será discutido mais adiante.

15 Midrásh Tan’huma : Comentário talmúdico de Rav (Mestre, Rabino, Sábio) Tan’huma (NT).

16 “ Vide, por exemplo, Pirkê (Capítulos) de Rav Eliézer, cap. 4, em que se afir­ma que o Trono de Deus está circundado por quatro legiões de arcanjos: Miguel, Gabriel, Uriel e Rafael.” (Munk). Sobre este tema em geral, veja ^4 A.ngelologia na L iteratura Rabínica e Sefaradí, por C. Gonzalo Rubio (Barcelona, 1977). (Maeso).

17 Ezequiel 1:7: “E seus pés — pé reto, e a sola dos seus pés — como a sola do pé de um bezerro, como não há cobre polido”. (NT)

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Quanto à afirmação dos nossos Sábios de que um anjo é igual a um terço do Universo ou, nas palavras do Bereshít Rabá (cap. 10), que o anjo é uma terça parte do mundo, isto está totalmente claro, nós já o explicamos em nossa grande obra sobre a Santa Lei.18 A Criação, em sua totalidade, consiste de três partes:

1) as Inteligências Puras, ou anjos;2) os corpos das esferas celestes;3) a matéria-prima ou os corpos sob as esferas celestes, sujeitos a

mudanças constantes.

Desta forma irão entender os ditos obscuros dos Profetas aqueles que desejarem entendê-los, aqueles que despertarem do sonho do es­quecimento, salvando-se do mar da ignorância e elevando-se para mais próximo dos seres superiores. Mas aqueles que preferirem nadar nas águas da sua ignorância — e “você descerá muito baixo” (Deuteronô- rnio 28:43) — não precisam cansar o corpo nem o coração. Precisam apenas parar de se movimentar e, então, descerão segundo a lei da natureza. Pense nisso e reflita bem sobre tudo o que eu lhe disse.

18 Maimônides refere-se aqui à sua grande obra de sistematização das leis judai­cas, o M ishnê Torá (NT).

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CAPÍTULO 1 1

A TEORIA DA EXCENTRICIDADE PREFERÍVEL À DOS EPICICLOS

Deve-se levar em conta, com respeito às questões astronômicas trata­das, que se um simples matemático as lê e compreende, pensará que a forma e o número das esferas são fatos comprovados. Este não é o caso, pois nem é isso o que busca a ciência astronômica, embora inclua temas que podem ser provados, como por exemplo, a comprovação da inclinação indubitável da órbita solar até o Equador. Mas ainda não se decidiu se a esfera solar é excêntrica ou contém um epiciclo giratório. O astrônomo não pára a fim de pensar nisso, dado que a finalidade desta ciência é simplesmente formular uma hipótese que leve a um movimento circular e uniforme dos astros, sem aceleração, retarda­mento ou mudança, e cujo resultado esteja de acordo com a observa­ção. Ele também buscará uma hipótese que exigirá o movimento mais simples e o menor número de esferas. Irá, portanto, preferir uma hipó­tese que explique todo o fenômeno dos astros por meio de três esferas a outra que requeira quatro esferas. Por esta razão, tratando-se da órbi­ta do Sol, optamos pela Teoria da Excentricidade e rejeitamos a Teoria dos Epiciclos, assumida por Ptolomeu. Quando então percebemos que todo o movimento dos astros fixos ocorre de maneira uniforme e na mesma direção, sem a menor diferença, concluímos que estão todos

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em uma mesma esfera. É possível que os astros tenham, cada um, a sua própria esfera, com um centro em separado, e, mesmo assim, mo- vam-se na mesma direção. Se esta teoria for aceita, um certo número de Inteligências Separadas deve ser admitido, igual ao dos astros, con­forme o afirmado na Bíblia: “Há número para suas divisões milita­res?” (Jó 25:3), pois as Inteligências Separadas, os corpos celestes e as forças naturais são chamados de Exércitos de Deus. Todavia, suas es­pécies não podem ser numeradas e, não obstante, ainda poderíamos justificar a contagem das esferas dos astros fixos coletivamente, como uma só esfera. Assim como as cinco esferas dos planetas, as numero­sas esferas que estas contêm são tomadas por nós como uma só. Nos­so propósito em adotar este número é, como você já sabe, dividir as influências que podemos perceber no Universo de acordo com o cará­ter geral destas, sem nos preocuparmos em fixar o número das Inteli­gências e das esferas celestes.

Nosso objetivo, em suma, tem sido provar que:

1) Toda a Criação está dividida em três partes, a saber:a) as Inteligências Separadas;b) os corpos das esferas celestes, dotados de formas permanen­

tes (as formas destes corpos não se transferem de um subs­trato a outro, nem o seu substrato sofre qualquer mudança, qualquer que seja);

c) todos os seres terrestres transitórios, que consistem da mes­ma matéria.

2) O governo emana do Criador e é recebido pelas Inteligências Separadas conforme o seu tipo. Parte daquilo que é Bom e da Lu% outorgada às Inteligências Separadas é comunicada às esfe­ras celestes que, de posse da abundância por elas extraída, trans­mitem forças e benefícios sobre os seres do mundo transitório.

Devemos acrescentar que a parte que beneficia a outra do modo descrito não tem, como objetivo de sua existência, somente a pro­dução daquele benefício, pois, se fosse este o caso, levaria ao para­doxo de que as coisas mais elevadas, melhores e mais nobres existi­riam pelo bem das coisas inferiores, quando, na realidade, o objetivo deve ser mais importante do que os significados utilizados para defini- lo. Nenhuma pessoa inteligente poderia admitir esta possibilidade.

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A natureza da influência que uma parte da Criação exerce sobre a outra deve ser explicada da seguinte forma: uma coisa de certo modo perfeita ou é perfeita em si mesma, sem que tenha condições de co­municar esta perfeição a outro ser, ou é tão perfeita que é capaz de aperfeiçoar outro ser. Uma pessoa pode possuir riqueza suficiente para suas próprias necessidades e nada lhe sobrar para beneficiar al­guém, ou pode ter riqueza suficiente para beneficiar também a outras pessoas, até mesmo enriquecê-las bastante, e ainda doar parte de suas propriedades a outros. Da mesma forma, a ação criativa do Altíssi­mo, ao dar existência às Inteligências Separadas, dota estas primeiras de força para dar existência a outros, e assim sucessivamente até o Intelecto Ativo, o nível mais baixo dos Seres Espirituais Puros. Pela produção de outras Inteligências, cada Inteligência dá existência a uma das esferas celestes, da mais elevada à mais baixa, que é a esfera da Lua. Após esta última, segue-se o mundo transitório, ou seja, a matéria e tudo o que é composto dela. Assim, os (quatro) elementos recebem certas propriedades de cada esfera e, então, uma sucessão de geração e destruição é produzida.

Já mencionamos que estas teorias não se opõem ao que foi ensina­do pelos nossos Profetas ou pelos nossos Sábios. Nossa nação é sábia e perfeita, conforme foi declarado pelo Altíssimo por meio de Moi­sés, que nos aperfeiçoou: “Somente um povo sábio e prudente é esta grande nação” (Deuteronômio 4:6). Mas quando os malvados bárba­ros aniquilaram nossas boas qualidades, destruíram nossa ciência e literatura e assassinaram nossos Sábios, tornamo-nos ignorantes. Isto foi previsto pelos Profetas, quando pronunciaram a punição por nos­sos pecados: “E se perderá a sabedoria de seus Sábios, e o conheci­mento de seus prudentes se eclipsará” (Isaías 29:14). Nós nos mistu­ramos a outras nações, aprendemos as suas opiniões e seguimos seus caminhos e atos. O Salmista, deplorando a imitação das ações de ou­tras nações, diz: “E se misturaram às nações e aprenderam seus atos” (Salmo 106:35). Do mesmo modo, Isaías se queixa de que os israelitas adotaram as opiniões de seus vizinhos, e declara: “E com os filhos dos estrangeiros pactuaram” (Isaías 2:6) ou, de acordo com o Tar- gum 19 — a versão aramaica de Yonatán ben Uziel: “E eles andam pelos caminhos das nações”. Assim, pois, ao nos habituarmos às opiniões

19 Targum: tradução do texto b íb lico do hebraico para o aram aico (NT).

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das pessoas ignorantes em Filosofia, inclinamo-nos a considerar estas opiniões filosóficas como estranhas à nossa religião, do mesmo modo que as pessoas não-educadas consideram-nas estranhas às suas pró­prias concepções. Mas, na verdade, não é assim.

Dado que temos falado repetidamente da influência que emana de Deus e das Inteligências Separadas, passaremos agora a explicar qual é o significado verdadeiro desta influência e, depois disso, discutirei a teoria da Criação.

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CAPÍTULO 1 2

SOBRE A NATUREZA DA INFLUÊNCIA (EMANAÇÃO) DIVINA E A DAS ESFERAS CELESTES

E evidente que sempre que uma coisa é produzida, uma causa eficiente, que não existia anteriormente, deve existir para sua produção. A causa eficiente imediata pode ser tanto corpórea quanto incorpórea. Se cor- pórea, não é uma causa eficiente devido a sua corporeidade, mas sim por ser um corpo individual, ou seja, devido a sua forma. Falarei sobre isto depois. A causa eficiente imediata de uma coisa pode ser também e novamente de outras causas, e assim por diante, porém, não adinfinitum. A série de causas para um determinado produto deve necessariamente ser concluída com a Vrimeira Causa, que é a verdadeira causa daquele produto e cuja existência não depende de nenhuma outra causa. Surge então a questão: por que esta coisa foi produzida agora e não muito antes, posto que a causa sempre existiu? A resposta é que, se a causa fosse corpórea, faltaria uma determinada relação entre causa e produto; ou, se fosse incorpórea, a substância não estaria suficientemente prepa­rada. Tudo isso está de acordo com os ensinamentos das Ciências Na­turais. Ignoraremos por ora a questão se consideramos a Eternidade do Universo ou a Creatio ex nihilo. Não pretendemos discutir isto aqui.

Já foi exposto na Física que um corpo que ame sobre outro corpo deve estar em contato direto com este ou, indiretamente, através da

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mediação de outros corpos. Assim, por exemplo, um corpo que está sendo aquecido está em contato com o fogo, ou o ar que envolve o corpo está sendo aquecido pelo fogo e transmitiu o calor ao corpo: a causa imediata do aquecimento deste corpo é a substância corpórea do ar aquecido. A pedra-ímã atrai o ferro à distância por meio de uma certa força transmitida ao ar que envolve o ferro. O magneto não exer­ce esta atração a qualquer distância, assim como o fogo não aquece a qualquer alcance, mas na proporção em que o ar entre o fogo e o objeto seja afetado pelo primeiro. Quando o ar não é mais afetado pelo fogo que está sob um pedaço de cera, a última não derrete. E o mesmo caso do magnetismo. Quando um objeto, não aquecido previ­amente, fica quente, a causa para o seu aquecimento, então, foi criada agora: ou algum fogo foi produzido ou a distância entre o fogo e o objeto foi modificada. A causa criada nesse momento é a relação alte­rada entre ambos. Analogamente, descobrimos as causas de todas as mudanças do Universo como alterações na combinação dos elemen­tos que atuam sobre os outros, quando um corpo se aproxima ou se separa de outro.

Há, no entanto, mudanças que não estão ligadas à combinação de elementos, mas dizem respeito somente à forma das coisas. Estas precisam, do mesmo modo, de uma causa eficiente, assim deve exis­tir uma força que produza as diversas formas. Esta causa é incorpó- rea, pois aquela que produz forma deve ter, ela mesma, uma forma abstrata, como ficou demonstrado anteriormente. A comprovação deste teorema também foi exposta em capítulos anteriores. Os pró­ximos poderão servir para ilustrar o seguinte: todas as combinações de elementos estão sujeitas a aumento ou redução, e esta mudança ocorre gradualmente. No entanto, com as formas é diferente: elas não se modificam gradualmente e, portanto, são imóveis; aparecem e desaparecem instantaneamente e, conseqüentemente, não resultam da combinação de elementos corpóreos. Esta combinação somente prepara a matéria para receber uma determinada forma. A causa efi­ciente que produz a forma é indivisível, pois é do mesmo tipo que a coisa produzida. Logo, conclui-se que este agente que produziu uma determinada forma, ou deu a ela uma determinada substância, deve ser, ele mesmo, uma forma abstrata. A ação deste agente incorpóreo independe de uma determinada relação com o produto corpóreo. Sendo incorpóreo, não pode se aproximar de um corpo ou afastar-se dele, assim como nem um corpo poderia se aproximar ou se afastar

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de um agente incorpóreo, pois não há relação de distância entre seres corpóreos e incorpóreos. A razão pela qual a ação não ocorreu antes deve ser vista com base no fato de que a substância não estava prepa­rada para a atuação da forma abstrata.

Fica claro que a ação recíproca exercida pelos corpos, de acordo com suas formas, prepara a substância para receber a ação de um ser incorpóreo, ou Vorma. Portanto, a existência de ações de Seres Pura­mente Espirituais, em todos os casos de mudança que não se originem da mera combinação de elementos, está agora firmemente estabeleci­da. Estas ações independem de contato ou de uma determinada dis­tância. São denominadas influências ou emanações, por analogia com a semelhança da aspersão de água. Este ato espalha água em todas as direções, sem um local determinado para receber ou gastar seu con­teúdo; a água é aspergida para todos os lados e molha continuamente tanto os lugares vizinhos quanto os distantes. Igualmente, os seres in­corpóreos, ao receberem força e distribuí-la aos outros, não estão limi­tados a um lugar, distância ou tempo particulares. Sua ação é constante e, sempre que um objeto está suficientemente preparado, ele recebe o efeito desta ação contínua, denominada Shéfa (influência ou emana­ção). Sendo Deus incorpóreo e tudo aquilo que é obra Dele é causa eficiente, afirmamos que o Universo foi criado por Influência Divina e que todas as mudanças no Universo emanam Dele. Do mesmo modo se diz que Ele é a causa da Sabedoria que emana de Si mesmo e se dirige aos Profetas. Em todos estes casos nós queremos apenas dizer que um Ser Incorpóreo, cuja ação denominamos influência, produziu um determinado efeito. O termo influência é considerado aplicável ao Criador devido à similaridade entre Suas ações e aquelas da aspersão de água. Esta analogia é o melhor caminho para descrever a ação de um ser incorpóreo, já que não pode ser encontrado qualquer termo que possa descrevê-la de forma precisa. Por isso é tão difícil formar uma idéia desta ação quanto formar uma idéia do próprio ser incorpó­reo. Assim como imaginamos somente corpos ou forças residindo em corpos, imaginamos, do mesmo modo, ações possíveis somente quan­do o agente está próximo, a uma determinada distância e em um deter­minado lado. Há, portanto, pessoas que, ao estudarem que Deus é incorpóreo ou que Ele não se aproxima do objeto da Sua ação, acredi­tam que Ele comanda os anjos e estes cumprem os atos mediante aproximação ou contato direto — assim como quando nós produzimos algo. Estas pessoas então imaginam que os anjos também são corpos.

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Há aqueles que acreditam que Deus comanda uma ação com palavras que consistem, como as nossas, de letras e som, e que a ação é feita desta forma. Tudo isso é puro processo imaginativo, o que é, na verda­de, semelhante a uma má inclinação. Pois todos os nossos defeitos de expressão ou de caráter se devem à ação direta ou indireta da imagina­ção. Este não é o tema deste capítulo, em que pretendemos explicar o termo influênáa assim como é aplicado a seres incorpóreos, ou seja, a Deus e às Inteligências Separadas (ou Anjos). Mas o termo também se aplica às forças das esferas celestes em seus efeitos sobre a Terra. E aqui nos referimos à influênáa das esferas, mesmo que estas sejam cor- póreas — e os astros, sendo corpóreos, atuam somente a determinadas distâncias, ou seja, conforme se coloquem mais ou menos distantes do centro da ação ou a uma distância definida uns dos outros. Esta cir­cunstância levou à Astrologia.

Quanto ao mencionado por nós, que a Bíblia aplica a noção de influência a Deus, compare: “Abandonaram-me as fontes de águas vi­vas” (Jeremias 2:13), ou seja, a Influência Divina que dá Vida ou Existência — pois Vida e Existência são indubitavelmente idênticas. Mais adiante se diz: “Porque Contigo está a fonte da Vida” (Salmo 36:10), ou seja, a Influência Divina que fornece a Existência. As pa­lavras finais deste Salmo, “Em Tua luz veremos luz” (Salmo 36:10), expressam exatamente o que afirmamos: por meio da influência do Intelecto Ativo que emana de Deus, tornamo-nos sábios e assim so­mos guiados e postos em condições de compreender o Intelecto Ativo. Entenda bem isso.

Sobre a teoria da Eternidade do Universo

CAPÍTULO 1 3TRÊS TEORIAS DIFERENTES SOBRE A ORIGEM DO UNIVERSO

Entre aqueles que acreditam na existência de Deus, sào três as teorias que discutem se o Universo é eterno ou não:

Primeira Teoria: Aqueles que seguem a Lei de M oshé Kabênir susten­tam que o Universo inteiro, à exceção de Deus, foi por Ele trazido à existência a partir da nào-existência. No início somente Deus havia, e mais nada; nem anjos, nem esferas celestes, nem o quanto nelas existi­ria. Ele então produziu do nada todas as coisas existentes, tais como são, por Sua vontade e desejo. Mesmo o tempo pertence às coisas criadas, pois o tempo depende do movimento, isto é, de um acidente sobre as coisas que se movem. E as coisas de cujo movimento o tempo depende são, elas mesmas, seres criados, que passaram da inexistência à existência. Afirmamos que Deus existe antes da Criação do Universo, embora o verbo existir implique a noção de tempo. Acreditamos tam­bém que Ele existe por um espaço de tempo infinito antes da Criação do Universo, mas, neste caso, não queremos dizer tempo no seu sentido concreto. Utilizamos o termo para significar algo análogo ou seme­lhante ao tempo, pois este é, indubitavelmente, um acidente e, de acor­do com a nossa consideração, um dos acidentes criados — tais como a

1 M oshé Rabêmt - Moisés Nosso Mestre: modo pelo qual os judeus costumeira- mente se referem a Moisés, em hebraico (NT).

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negrura ou a brancura — não é uma qualidade, mas um acidente ligado ao movimento. Isto deve ser claro para quem compreendeu o que Aris­tóteles afirmou sobre o tempo e sua real existência.

Vamos expor aqui uma idéia que, ainda que marginal à nossa aborda­gem, poderá ser útil no decurso de nossa discussão. Muitos cientistas não sabem realmente o que é o tempo, e homens como Galeno ficaram tão perplexos acerca deste assunto que questionaram se o tempo é real ou não. A razão para esta dúvida pode ser encontrada no fato de o tem­po ser um acidente de um acidente. Acidentes que estão diretamente ligados a corpos materiais, como as cores e os sabores, são facilmente compreendidos e formam-se noções corretas a respeito deles. No en­tanto, há acidentes ligados a outros acidentes, como o brilho da cor, a inclinação ou a curvatura de uma linha; destes é muito difícil formar uma noção correta, principalmente quando o acidente que forma o subs­trato para outro acidente não é constante, mas variável. Ambas as difi­culdades estão presentes na noção de tempo: ele é um acidente do mo­vimento, que, por sua vez, é um acidente do objeto movido. Além disso, não é uma propriedade fixa. Ao contrário, sua condição verdadeira e essencial é não permanecer no mesmo estado nem por dois momentos consecutivos. Esta é a fonte da ignorância acerca da natureza do tempo.

Consideramos o tempo uma coisa criada: vem à existência assim como os demais acidentes e as substâncias que formam os substratos para os acidentes. Por esta razão, pelo fato de o tempo pertencer às coisas criadas, não se pode dizer que Deus produziu o Universo no iníáo. Veja bem: este argumento serve para quem não compreende sua incapaci­dade de refutar as fortes objeções levantadas contra a teoria da Creatio ex nihilo. Se você admitir a existência do tempo antes da Criação, será compelido a aceitar a teoria da Eternidade do Universo — pelo fato de o tempo se tratar de um acidente que requeira um substrato. Então terá que admitir que algo (junto a Deus) existiu antes da Criação do Universo, posição à qual é seu dever se opor.

Esta é a primeira teoria e é, indubitavelmente, um princípio funda­mental da Lei de Moisés; a mais importante depois do princípio da Uni­cidade de Deus. Não siga nenhuma outra teoria. Avraham Avinu (o Patri­arca Abrahão)2 foi o primeiro a ensinar isto depois de tê-la estabelecido

2 A vraham A vinu: A brahão Nosso Pai.Trata-se do modo como os judeus costu- meiramente se referem ao Patriarca Abrahão em hebraico (NT).

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por meio de pesquisa especulativa. Ele então proclamou: “Em nome de YHVH, Deus de Sempre” (Gênesis 21:33). E declarou publicamente esta crença ao dizer: “Criador dos Céus e da Terra” (Gênesis 14:22).

Segunda Teoria: A teoria de todos os filósofos, cujas opiniões e traba­lhos nos são conhecidos, é a seguinte: é impossível que Deus produza tudo do nada ou que reduza tudo a nada. Em outras palavras, é impos­sível que um objeto consistente de matéria e forma pudesse ser produ­zido quando a matéria era absolutamente inexistente ou que pudesse ser destruído de tal modo que a matéria passasse a não existir mais. Dizer que Deus pode produzir uma coisa do nada ou reduzir uma coisa a nada é, de acordo com a opinião destes filósofos, o mesmo que afirmar que Ele poderia levar uma substância a ter, simultaneamente, duas propriedades opostas, ou de criar outro ser semelhante a Ele, ou se transformar em corpo, ou, ainda, produzir um quadrado cuja diagonal fosse igual a um de seus lados, ou coisas igualmente inviáveis. Os filó­sofos, portanto, acreditam que não é um defeito no Ser Supremo a não- criação de coisas impossíveis, pois a natureza do que é impossível é constante — independe da ação de um agente e, por esta razão, não pode ser modificada;3 do mesmo modo que, segundo eles, não há defeito na grandeza de Deus por Ele ser incapaz de produzir uma coisa do nada, pois eles consideram isto uma das impossibilidades. Conseqüentemen­te, admitem que uma determinada substância coexiste com Deus pela Eternidade, de tal forma que nem Deus possa existir sem ela, nem ela sem Deus. No entanto, não defendem que a existência desta substância seja equivalente à de Deus, pois Deus é a causa de sua existência. A substância está para Deus assim como a argila está para o ceramista ou o ferro, para o forjador, Deus pode fazer com isto o que lhe agrade: ora forma Céus e Terra, ora, qualquer outra coisa. Aqueles que sustentam esta visão assumem também que os Céus são transitórios, que vieram à existência — mas não do nada — e podem deixar de existir, embora não possam ser reduzidos a nada. Os Céus são transitórios do mesmo modo que os indivíduos, entre os seres vivos: são produzidos de uma mesma substância existente e são novamente reduzidos à mesma parte da subs­tância, esta permanece existindo. O processo de gênese e destruição é, no caso dos Céus, o mesmo que em qualquer ser terrestre.

3 Veja Terceira Parte, cap. 15 (Maeso).

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Os adeptos desta teoria se subdividem em várias escolas, cujas opi­niões e princípios é desnecessário discutirmos aqui, mas o que menci­onei é comum a todos eles. Também Platão sustenta a mesma opinião. Aristóteles conta, em sua obra Física (Acroasis), que, de acordo com Platão, os Céus são transitórios. Esta visão é tratada também em seu livro Timaeus. Sua opinião, sem dúvida, é discordante da nossa crença. Somente pessoas superficiais e descuidadas admitem, de forma equi­vocada, que Platão acredita no mesmo que nós. Enquanto sustenta­mos que os Céus são criados do Nada Absoluto, Platão acredita que os Céus foram formados de algo.4 Esta é a segunda teoria.

Terceira Teoria'. E a de Aristóteles, seus discípulos e comentaristas. Aristóteles argumenta, assim como os adeptos da segunda teoria, que um corpo não pode ser produzido sem uma substância corpórea. To­davia, ele vai mais longe e defende que o Céu é indestrutível. Ele afir­ma que o Universo, em sua totalidade, nunca foi diferente e nunca se modificará: os Céus, que são um elemento permanente do Universo e não estão sujeitos à gênese nem à destruição, têm sido sempre assim. O tempo e o movimento são eternos, permanentes e não possuem princípio nem fim. O mundo sublunar, que inclui os elementos transi­tórios, tem sido sempre o mesmo, porque a matéria-prima é eterna e simplesmente se combina sucessivamente de diferentes formas; quan­do uma forma é removida, outra é assumida. Portanto, toda esta orga­nização, tanto lá em cima quanto aqui embaixo, nunca é perturbada ou interrompida, e nada é produzido fora das leis ou do curso normal da Natureza. Ele ainda diz — embora não nestes termos — que considera impossível para Deus modificar Sua Vontade ou conceber um novo desejo, que Deus produziu este Universo em sua totalidade por Sua Vontade, mas não do nada. Aristóteles considera impossível admitir que Deus mude Sua Vontade ou conceba um novo desejo, seria como

4 “Como se pode ver, de acordo com Maimônides, a diferença entre Platão e Aristóteles é a seguinte: este admite não somente a eternidade da matéria, mas também a do movimento e do tempo, enquanto que Platão, ainda aceitando a eternidade da matéria e do Caos, acredita, não obstante, que o mundo, tal como é, teve um princípio; e que os Céus, como todo complexo sublunar, são produto do Caos; por conseguinte, o movimento e o tempo tiveram um prin­cípio. A opinião de Platão tem sido interpretada neste sentido geralmente pe­los árabes e os escolásticos (...)” (Munk). Esta nota de Munk se prolonga em um total de 76 linhas (Maeso).

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acreditar que Ele é inexistente ou que Sua Essência é mutável. Conse­qüentemente, conclui-se que este Universo tem sido sempre o mesmo desde o passado e será o mesmo eternamente.

Esta é uma mostra completa das opiniões daqueles que consideram que a existência de Deus, a Primeira Causa do Universo, foi estabeleci­da por meio de demonstração. Mas seria desnecessário mencionar as opiniões daqueles que não reconhecem a existência de Deus, porém acreditam que o estado de existência das coisas é resultado da combi­nação acidental e separação dos elementos e que o Universo não tem um Legislador ou Governador. Esta é a teoria de Epicuro e sua escola, e de filósofos semelhantes, segundo Alexandre (de Afrodisia). Seria supérfluo repetir seus pontos de vista, já que a existência de Deus já ficou demonstrada, enquanto a sua teoria é construída sobre uma base comprovadamente insustentável. E igualmente inútil corroborar a cor­reção dos seguidores da segunda teoria quando afirmam que os Céus são transitórios, pois, ao mesmo tempo em que acreditam na Eternida­de do Universo, adotam aquela teoria. Assim, é indiferente para nós se acreditam que os Céus são transitórios e que somente sua substância é eterna ou que os Céus são tidos como indestrutíveis, de acordo com a visão de Aristóteles. Aqueles que seguem a Lei de Moisés e do Patriar­ca Abrahão — e todos aqueles que partilham de teorias semelhantes — assumem que nada é eterno exceto Deus e a teoria da Creatio ex nihilo não inclui qualquer coisa que seja impossível, enquanto alguns pensa­dores ainda consideram isto uma verdade estabelecida.

Descritas estas diferentes concepções, mostraremos como Aris­tóteles provou sua teoria e o que o induziu a adotá-la.

S O B R E A T E O R I A D A E T E R N I D A D E D O U N I V E R S O III

CAPÍTULO 1 4

SETE MÉTODOS POR MEIO DOS QUAIS OS FILÓSOFOS BUSCA­RAM PROVAR A ETERNIDADE DO UNIVERSO

Não necessito repetir, em cada capítulo, que lhe escrevi este Tratado unicamente porque conheço sua formação e, conseqüentemente, é desnecessário que cite textualmente, em cada passagem, as palavras dos filósofos; basta resumir suas concepções. No entanto, apontarei os métodos a que recorriam, assim como fiz em relação às teorias dos- Mutakálemim? Não abordarei a opinião de qualquer outro filósofo, além da de Aristóteles, pois suas teorias são as únicas merecedoras de consi­deração. Caso nossas objeções ou dúvidas com respeito a qualquer coisa forem bem fundamentadas, isto acontecerá em um nível muito mais elevado do que seria se comparado a todos os outros oponentes de nossos princípios fundamentais.

Agora passarei a descrever os métodos dos filósofos:'Primeiro Método: Segundo Aristóteles, o movimento é eterno, ou seja, o

movimento por excelência. Pois se o movimento tivesse um início, en­tão já teria havido algum movimento anterior quando surgiu, pois a tran­sição da potência ao ato e da inexistência à existência sempre implicam

5 Na Primeira Parte do livro (NT).

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movimento. Logo, este movimento anterior, causa do movimento se­guinte, deve ser eterno, senão haveria uma série ad infmitum. De confor­midade com este mesmo princípio, Aristóteles sustenta que o tempo é eterno, porque está relacionado e ligado ao movimento. Não há movi­mento exceto no tempo, e o tempo somente pode ser percebido através do movimento, como ficou demonstrado. Com base neste argumento, Aristóteles prova a Eternidade do Universo.

Segundo Método-, A. Primeira Substância comum aos quatro elementos é eter­na. Pois, para que tivesse um início, teria vindo à existência a partir de outra substância; seria posteriormente dotada de uma forma, pois pas­sar a existir é nada mais do que receber uma Forma. Mas, por Primeira Substância nós entendemos uma substância sem forma; se esta, portan­to, não passou a existir a partir de outra substância, então não deve ter início nem fim. Assim, conclui-se que o Universo é eterno.

Terceiro Método: 4 substância das esferas não contém elementos opostos, po is o movimento circular não possui direções opostas como acontece no movimento retilí- neo. Tudo o que é destruído deve a sua destruição aos elementos con­trários que contém. As esferas não contêm elementos opostos. São, portanto, indestrutíveis e, pelo fato de serem indestrutíveis, também não têm início. Aristóteles, assim, assume a seguinte máxima: tudo o que tem um início é destrutível e tudo o que é destrutível teve um início; as coisas sem início são indestrutíveis e as coisas indestrutíveis não têm início. Dessa forma, atinge-se a Eternidade do Universo.

Quarto Método: ^4 produção corrente de algo éprecedida, no tempo, p o r sua possibilidade. A mudança corrente de algo é, do mesmo modo, precedida, no tempo, p o r sua possibilidade. A partir daí Aristóteles conclui pela eterni­dade do movimento circular das esferas. Os aristotélicos, em tempos mais recentes, empregaram este método para demonstrar a Eternida­de do Universo, Eles argumentam: quando o Universo ainda não exis­tia, sua existência era possível, necessária ou impossível. Sc era neces­sária, o Universo sempre existiu; se impossível, o Universo nunca existiria; se possível, a questão que se levanta é: qual é o substrato desta possibilidade? Porque deveria necessariamente existir algo que fosse o substrato desta possibilidade. Este é um forte argumento a favor da Eternidade do Universo. Alguns dos mais recentes pensado­res Mutakâlemim imaginaram que poderiam resolver a dificuldade ao afirmar que a possibilidade está com o agente, e não com a produção. Mas esta objeção não tem qualquer força, pois há duas possibilidades distintas, quais sejam:

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1) a coisa criada teve a possibilidade de ser produzida antes do seu nascimento; 2) o agente teve a possibilidade de produzir, antes de tê-lo feito realmente. Há, desta forma, duas possibilidades — uma, de a subs­tância receber determinada forma e a outra, de o agente realizar uma determinada ação.

Estes são os principais métodos, baseados nas propriedades do Universo, através dos quais Aristóteles prova a Eternidade do Univer­so. Mas há também outros métodos para prová-la. São fundamentados nas noções formadas de Deus e derivados da Filosofia de Aristóteles, por filósofos posteriores a ele. Alguns deles utilizaram-se dos seguin­tes argumentos:

Quinto Método: Se Deus produziu o Universo do nada, antes de ser um agente de fato, Ele deve ter sido um agente potencial que teria passado da potência ao ato — já que a potência é simplesmente uma possibilidade e requer um agente para realizá-la. Este argumento é, da mesma forma, fonte de grandes dúvidas e qualquer pessoa inteligente deve examiná-lo com a intenção de refutá-lo, bem como de expor o seu caráter.

Sexto Método: Um agente é ativo em um momento e inativo em outro, de acordo com as circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis que porventura surjam. As circunstâncias desfavoráveis causam o aban­dono de uma ação pretendida; as favoráveis, por outro lado, permitem que seja criado o desejo, que não havia anteriormente, para determina­da ação. Como Deus não é sujeito a acidentes que permitam mudanças em Sua Vontade e não é afetado por obstáculos e impedimentos que venham a aparecer ou desaparecer, é impossível, argumentam, imagi­nar que Deus seja ativo em um momento e inativo em outro. Ao con­trário, Ele está sempre ativo, do mesmo modo como Sua existência é constante.

Sétimo Método: As ações de Deus são perfeitas. Elas jamais podem ser defeituosas ou conter algo de inútil ou supérfluo. Em termos se­melhantes, Aristóteles freqüentemente louva a Deus quando afirma que a Natureza é sábia e nada ocorre em vão, porém ela faz tudo da forma a mais perfeita possível. Os filósofos então afirmam que este Universo existente é tão perfeito que não pode ser melhorado e, por­tanto, deve ser permanente, pois é resultado da Sabedoria Divina, que não somente é sempre presente em Sua essência, mas é idêntica a ela.

Todos os argumentos a favor da Eternidade do Universo funda­mentam-se nos métodos acima e poderiam se reduzir a um ou a outro

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deles. A seguinte objeção é também levantada contra a Creatio ex nihilo: Como Deus poderia ficar inativo, sem produzir ou criar nada, no pas­sado infinito? Como poderia passar o longo período infinito prece­dente ã Criação sem produzir nada, como se a Criação do Universo acontecera ontem? Mesmo que você dissesse, por exemplo, que Deus criou anteriormente tantos mundos sucessivos quanto a mais longín­qua esfera poderia conter grãos de mostarda e que cada um destes mundos existiria por muitos anos. Considerando a existência infinita de Deus, seria o mesmo que afirmar que Ele iniciou a Criação ontem. Desde que admitamos o início da existência das coisas após sua não- existência, é indiferente se milhares de séculos passaram-se desde o início ou apenas um curto espaço de tempo. Aqueles que defendem a Eternidade do Universo consideram ambas as posições igualmente improváveis.

Oitavo Método: Este método está baseado na circunstância de que a teoria implica uma crença muito comum a todos os povos e épocas — universal portanto — que parece expressar um fato real e não simples­mente uma hipótese. Aristóteles afirma que todas as pessoas acredi­tam evidentemente na permanência e na estabilidade dos Céus e, ao pensarem que estes são eternos, declaram-nos como sendo a habita­ção de Deus e dos Seres Espirituais ou Anjos. Por isso, ao atribuírem os Céus a Deus, expressam sua crença de que os Céus são indestrutí­veis. Muitos outros argumentos do mesmo tipo são empregados por Aristóteles ao tratar este tema, de forma a reforçar os resultados de sua especulação filosófica por meio do senso comum.

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CAPÍTULO 1 5

ARISTÓTELES NÃO PROVA SUA TEORIA

Neste capítulo pretendo mostrar que Aristóteles estava bem ciente de que não provara a Eternidade do Universo e não se equivocara a este respeito. Ele sabia que não poderia provar sua teoria e que seus argu­mentos e provas eram apenas aparentes e plausíveis. Estas eram, no mínimo, questionáveis, de acordo com Alexandre. Mas, de acordo com a mesma autoridade, Aristóteles não poderia considerá-las conclusi­vas, após ele mesmo nos ensinar as regras da lógica e os meios pelos quais os argumentos podem ser refutados ou confirmados.

A razão pela qual expus este tema foi a seguinte: filósofos mais recentes, discípulos de Aristóteles, afirmam que ele provou a Eterni­dade do Universo, e a maioria daqueles que acreditam que são filóso­fos seguem-no cegamente neste ponto e aceitam todos os seus argu­mentos como provas conclusivas e absolutas. Consideram errado discordar de Aristóteles ou pensar que ele ignorava ou se equivocava em alguma coisa. Por este motivo, partindo do ponto de vista deles, mostrarei que o próprio Aristóteles não pretendeu haver provado a Eternidade do Universo. Ele diz em sua obra Física ÇAcroasis) (8, cap.1): “Todos os físicos anteriores a nós acreditaram que o movimento é eterno, exceto Platão, que sustenta que o movimento é transitório; se­gundo sua concepção, os Céus são, igualmente, transitórios”. Pois bem,

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se Aristóteles tivesse provas conclusivas para sua teoria, não conside­raria necessário reforçá-la citando as considerações dos físicos prece­dentes, nem apontar a loucura e a posição absurda de seus oponentes. Pois uma verdade, uma vez estabelecida a prova, não ganha força nem certeza devido ao consentimento de todos os cientistas, nem perde pela discordância geral.

Nós descobriremos, posteriormente, que Aristóteles, no livro Os Céus e o Mundo, apresenta sua teoria sobre a Eternidade do Universo do se­guinte modo; Investiguemos a natureza dos Céus e vejamos se é ou não produto de algo. Exposto o problema, segue citando os pontos de vista daqueles que defendem que os Céus tiveram um início, nos seguintes termos:

Se assim procedêssemos, nossa teoria seria mais plausível e aceitável aos grandes pensadores. Sobretudo quando, como propomos, os ar­gumentos dos nossos oponentes são ouvidos antes. Pois se colocásse­mos nossa opinião e nossos argumentos sem mencionar os dos nos­sos oponentes, nossas palavras seriam recebidas de forma menos favorável. Aquele que deseja ser justo não deve se mostrar hostil ao seu oponente; melhor, deve ser simpático com ele e aceitar pronta­mente toda verdade contida em suas palavras. Deve admitir a corre­ção dos argumentos do seu oponente, assim como admitiria se estes fossem a seu favor.

Este é o conteúdo das palavras de Aristóteles.Agora eu lhe pergunto, homem inteligente: poderemos reclamar

dele depois dessa afirmação tão franca? Ou alguém pode imaginar que uma prova real possa ser dada para a Eternidade do Universo? Ou pode Aristóteles ou qualquer outro acreditar que um teorema, mesmo que totalmente demonstrado, seria inaceitável, a menos que os argu­mentos dos oponentes fossem totalmente refutados? Devemos tam­bém levar em consideração que Aristóteles descreve sua teoria como sua opinião e suas provas, como argumentos. Será que Aristóteles ignora­va a diferença entre argumento e prova? Entre as opiniões, qual deve­ria ser recebida mais ou menos favoravelmente? E as verdades passí­veis de demonstração? Ou, se houvesse uma prova real, seria feito um apelo retórico à imparcialidade com relação aos oponentes a fim de reforçar sua teoria? Certamente que não.

Aristóteles desejava tão somente mostrar que sua teoria era melhor que as dos seus oponentes, tanto os que sustentavam que a especula­ção filosófica leva à convicção de que os Céus são transitórios, mas

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nunca foram totalmente inexistentes, quanto os que defendiam que os Céus tiveram um início, mas são indestrutíveis ou, ainda, aqueles que apoiavam qualquer um dos outros pontos de vista mencionados por ele. Nisso ele está indubitavelmente certo, porque sua teoria se mostra mais próxima da verdade do que as de seus adversários, tanto quanto uma prova pode ser obtida da natureza das coisas existentes. Nós dis­cordamos dele, conforme será explicado. A Paixão, que exerce grande influência em todas as seitas, deve ter influenciado até mesmo os filó­sofos que desejavam afirmar que Aristóteles demonstrou sua teoria fundamentado em provas. Talvez eles realmente acreditem nisso, argu­mentando que o próprio Aristóteles não estava ciente disso, pois só foi descoberto após a sua morte! Estou convicto de que a afirmação de Aristóteles sobre a Eternidade do Universo — a causa dos diversos movimentos das esferas e da ordem das Inteligências — não pode ser corroborada e Aristóteles nunca pretendeu provar estas coisas. Con­cordo com ele que os caminhos para se provar sua teoria têm seus portões fechados diante de nós, e não há fundamento sobre o qual ela possa ser construída. Suas palavras sobre este tema são bem conheci­das. Ele declara: “Há coisas sobre as quais somos incapazes de racioci­nar ou que consideramos muito difíceis para nós. Dizer por que estas coisas têm uma determinada propriedade é tão difícil quanto decidir se o Universo é eterno ou não”. São palavras textuais de Aristóteles. A interpretação oferecida por Abu Nasr (Al Farabi) é bem conhecida. Ele nega que Aristóteles tenha qualquer dúvida acerca da Eternidade do Universo e é muito severo com Galeno, que considera esta teoria ainda passível de dúvida, da qual se desconhece qualquer prova. Se­gundo Abu Nasr, é claro e demonstrável que os Céus são eternos, mas tudo o que está envolvido pelos Céus é transitório. Nós sustentamos que nenhuma teoria pode ser estabelecida, refutada ou equilibrada se­gundo os métodos citados neste capítulo.

Somente mencionamos estas coisas porque sabemos que a maioria daqueles que se consideram sábios, ainda que nada conheçam de filo­sofia, aceitam a teoria da Eternidade do Universo apoiando-se na au­toridade de filósofos famosos. Eles rejeitam as palavras dos Profetas, já que estes não empregam qualquer método filosófico capaz de ins­truir somente às poucas pessoas intelectualmente bem preparadas, mas simplesmente comunicam a verdade tal como é recebida por meio da Inspiração Divina.

Nos próximos capítulos demonstraremos a teoria da Criação se­gundo os ensinamentos da Bíblia.

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CAPÍTULO 1 6

A TEORIA DA CREATIO EX NIHILO, MAIS PROVÁVEL QUE A DA ETERNIDADE DO UNIVERSO

Apresentar-lhe-ei, no presente capítulo, minha consideração a res­peito desta matéria e, em seguida, sustentá-la-ei por meio da argu­mentação — não com argumentos como os dos Mutakálemim , que acreditam haver demonstrado a Creatio ex nihilo. Não me enganarei, considerando métodos dialéticos como provas, e o fato de uma de­terminada proposição haver sido provada através de argumentos di­aléticos nunca me levará a aceitá-la. Ao contrário, enfraquecerá mi­nha crença e me levará a duvidar dela, pois quando compreendemos a falácia de uma prova, nossa crença na própria proposição fica aba­lada. E preferível que, sendo esta indemonstrável, seja recebida como uma máxima, ou que uma de duas soluções possíveis do problema seja aceita como autoridade. Os métodos estabelecidos pelos M u­takálemim em prol da Creatio ex nihilo já foram por mim descritos e os seus pontos fracos expostos. Assim como as provas de Aristóteles e seus seguidores para a Eternidade do Universo, eles são, na minha opinião, inconclusivos e sujeitos a fortes objeções, como será expli­cado. Pretendo mostrar que a teoria da Criação, conforme ensinada na Bíblia, não contém nada impossível, e todos aqueles argumentos filosóficos que aparentemente reprovam nosso ponto de vista apre­sentam pontos fracos que os tornam vulneráveis e os ataques de seus

defensores, insustentáveis. Estando eu convencido da correção do meu método, e considerando possíveis qualquer uma das duas teo­rias — a da Eternidade do Universo e a da Criação —, aceito a última, apoiado na autoridade da Profecia, que pode ensinar coisas além do alcance da filosofia especulativa. Pois, como será mostrado no de­correr deste Tratado, a crença na Profecia é consistente até mesmo com a crença na Eternidade do Universo. Quando estabelecer a pos­sibilidade da nossa teoria, tratarei de demonstrar, por raciocínio filo­sófico, que a teoria da Criação é mais aceitável do que a da Eternida­de do Universo e que, mesmo que ela inclua pontos abertos à crítica, mostrarei que há razões muito mais fortes para a rejeição da teoria dos nossos oponentes.

Passarei a expor agora o método por meio do qual as provas dadas a favor da Eternidade do Universo podem ser refutadas.

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CAPÍTULO 1 7

AS LEIS DA NATUREZA SE APLICAM ÀS COISAS CRIADAS, MAS NÃO REGULAM O ATO CRIATIVO QUE AS PRODUZ. REFUTA­ÇÃO DAS QUATRO PRIMEIRAS PROVAS DOS ARISTOTÉLICOS

Tudo o que é produzido nasce a partir da inexistência. Mesmo que a substância de uma coisa já existisse e tivesse somente mudado sua for­ma, a própria coisa, que passou a existir por meio do processo de gêne­se e desenvolvimento, ao concluir sua transformação, tem propriedades diferentes daquelas que possuía no início da transição da potência à realidade, ou mesmo antes disso. Assim, tomemos o exemplo do óvulo humano quando se encontra no sangue feminino, ainda contido em seus vasos. Nesse momento, sua natureza difere daquela que lhe era própria ao se efetuar a concepção, ou seja, quando foi encontrado pelo sêmen masculino e começou a se desenvolver. As propriedades do sê­men, naquele momento, são diferentes daquelas do ser vivo após o seu nascimento, já totalmente desenvolvido. É, portanto, praticamente im­possível inferir, com base na natureza que uma coisa possui após passar por todos os estágios do seu desenvolvimento, qual era o estado dela no momento do início do processo. Tampouco, partindo do mesmo esta­do, pode-se saber qual era a sua condição anterior. Se você se equivocar a respeito e se empenhar em provar a natureza de algo em estado de potência baseado nas propriedades agora efetivamente existentes, ficará muito confuso, rejeitará verdades evidentes e admitirá falsas opiniões.

12.2. O G U I A D O S P E R P L E X O S

Suponha, no exemplo apresentado, que um indivíduo nascido perfeito foi cuidado por sua mãe durante poucos meses e que, quando ela mor­reu, o seu pai levou-o para viver sozinho em uma ilha deserta, até crescer, tornar-se inteligente e adquirir conhecimento. Suponha, ainda, que este homem, que nunca viu uma mulher, nem mesmo um animal fêmea, per­gunte a alguém como um homem nasce e se desenvolve, e então receba a seguinte resposta: “O homem inicia sua existência no ventre de uma pessoa de nossa espécie, ou seja, no ventre de uma mulher, que tem uma determinada forma. Quando está no ventre, ele é muito pequeno, mas tem vida, move-se, alimenta-se e cresce pouco a pouco, até que chega a um certo estágio de desenvolvimento. Ele então deixa o ventre e conti­nua a crescer até que esteja em condições de ser notado por você. O órfao naturalmente perguntará: E este indivíduo, quando estava dentro do ventre, vivo, movendo-se e crescendo, comia e bebia? Respirava pelo nariz e pela boca? Excretava alguma coisa?” A resposta será: Não. Indu­bitavelmente ele se recusaria a acreditar e se apressaria em demonstrar a impossibilidade de todas essas coisas, baseando-se no ser totalmente de­senvolvido. Diria: “Se qualquer um de nós fosse privado de respirar por um breve tempo, morreria e cairia inerte. Como imaginar que alguém possa permanecer durante meses dentro de um saco, e este saco, dentro de um corpo, e permanecer vivo e em movimento? Se alguém devorasse um pássaro vivo, este morreria instantaneamente ao chegar ao estômago e, por um motivo maior, quando chegasse no baixo ventre. Caso alguém não comesse nem bebesse, morreria, sem dúvida alguma, em poucos dias. Como, pois, poderia alguém ficar durante meses sem comer nem beber? Qualquer um que, tendo se alimentado, não evacuasse, sofreria dores terríveis e a morte chegaria em poucos dias. Como eu acreditaria que aquele homem viveu por meses sem esta função? Suponha que, por acidente, um buraco se formasse na barriga de uma pessoa — seria fatal. No entanto, temos que acreditar que o umbigo do feto ficou aberto! Como o feto não abre os olhos, nem estende suas mãos, nem estira suas pernas, como você acredita que seus membros estejam inteiros e em perfeito estado?” Este tipo de raciocínio leva à conclusão de que o ho­mem não pode nascer e se desenvolver do modo descrito.

Se os filósofos considerassem este exemplo e refletissem sobre ele, descobririam que representa exatamente a disputa entre Aristóteles e nós. Porque nós, os seguidores de M oshé Kabênu e dty4.vrahamA.vinu, acreditamos que o mundo foi produzido de uma determinada maneira e criado em uma determinada seqüência. Os aristotélicos, por sua vez,

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opõem-se a nós argumentando com provas baseadas na existência do ser de fato, totalmente desenvolvido. Nós admitimos a existência des­tas propriedades, mas afirmamos que em nada se parecem com o ser no momento em que foi gerado. Sustentamos, ainda, que estas propri­edades vieram à existência a partir da absoluta inexistência. Portanto, os argumentos deles não se constituem em objeções à nossa teoria. E Eles somente possuem força demonstrativa contra aqueles que susten­tam que a natureza das coisas, como existem no presente, provam a Criação. Mas esta não é a minha opinião.

Volto agora ao nosso tema — a descrição das principais provas de Aristóteles — demonstrando que nada provam contra nós, que afirma­mos que Deus, do nada absoluto, levou o Universo inteiro à existência, e que Ele foi a causa do desenvolvimento até o estado presente. Aris­tóteles declara que a matéria-prima é eterna e, baseando-se nas coisas transitórias, tenta provar sua premissa. Assim, mostra que a matéria- prima não poderia ser produzida, e ele está certo. Nós não sustenta­mos que a matéria-prima foi produzida do mesmo modo como o ho­mem é produzido do ovo, nem que possa ser destruída da mesma maneira como o homem é reduzido a pó. Mas acreditamos que Deus criou-a do nada e que, desde então, ela tem suas próprias propriedades, ou seja, todas as coisas se formam a partir dela e são novamente redu­zidas a ela quando deixam de existir. Pois a matéria-prima não existe sem forma e ela é a fonte de toda a gênese e destruição. Sua gênese não é igual à das coisas produzidas a partir dela, nem a sua destruição, pois ela foi criada do nada e, se agradasse ao Criador, Ele poderia reduzi-la a absolutamente nada.

O mesmo argumento se aplica ao movimento. Aristóteles funda­menta algumas de suas provas no fato de o movimento não estar sujeito à gênese ou à destruição. Isto é verdade. Se considerarmos o movimen­to como este que existe no momento, não imaginaríamos, em sua tota­lidade, que ele estaria sujeito, como movimentos individuais, à gênese e à destruição. De um certo modo Aristóteles estava correto ao conside­rar que o movimento circular não tem começo, levando-se em conta que, ao observarmos a rotação do corpo esférico na presente existên­cia, não concebemos a idéia de que esta rotação tenha jamais faltado.

Empregamos o mesmo argumento em relação à lei que preconiza que a potência precede todas as gêneses correntes. Esta lei se aplica ao Universo tal como existe no presente, quando tudo o que é gerado origina-se de alguma outra coisa. No entanto, nada percebido por meio

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de nossos sentidos ou compreendido por nossa mente é capaz de pro­var que algo criado do nada esteve, anteriormente, em um estado po­tencial. Novamente, com respeito à teoria de que os Céus não contêm opostos (e são, portanto, indestrutíveis), admitimos sua correção, mas não que os Céus foram formados como o cavalo ou o jumento, nem, por fim, que sejam como as plantas e os animais, destrutíveis devido à presença dos elementos opostos em seu interior. Em suma, as propri­edades das coisas, quando plenamente desenvolvidas, nada têm a ver com as propriedades existentes antes de seu aperfeiçoamento. Nós não consideramos impossível a opinião daqueles que afirmam que os Céus foram produzidos antes da Terra ou o contrário, que os Céus já existiam sem os astros ou, ainda, que certas espécies de animais exis­tiam e outras, não. Pois o estado de todo o Universo quando veio à existência é comparável àquele dos animais quando nasceram. O cora­ção evidentemente aparece antes dos testículos, e as veias, antes dos ossos. Todavia, quando o animal está plenamente desenvolvido, ne­nhuma das partes essenciais à sua existência está faltando. Esta obser­vação não é supérflua, se a descrição bíblica da Criação for tomada literalmente. Na verdade, pode não se considerá-la no sentido literal, como será mostrado quando tratarmos deste tema.

O princípio desenvolvido a seguir deve ser bem compreendido, porque é uma grande muralha construída em torno da Lei, capaz de resistir contra tudo o que for atirado contra ela. Aristóteles — quero dizer, seus seguidores — talvez nos perguntasse como sabemos que o Universo foi criado e quais as outras forças, além das existentes no presente, atuaram na sua Criação, já que sustentamos que suas proprie­dades, tal como existem no presente, nada provam a respeito de sua Criação? Respondemos que, segundo nosso plano, não há necessidade disso, pois não desejamos provar a Criação, mas tão somente a sua possibilidade. E não se refuta esta possibilidade por meio de argumen­tos baseados na natureza do Universo presente, que não questionamos. Quando estabelecermos a possibilidade da nossa teoria, demonstrare­mos então a sua superioridade. Quanto a provar a impossibilidade da Creatio ex nihilo, os aristotélicos podem não obter qualquer apoio da natureza do Universo e, então, terão que recorrer à noção de Deus formada pela nossa mente. Suas provas incluem os três métodos ante­riormente citados por mim, baseados na noção concebida de Deus. No próximo capítulo apresentarei os pontos fracos destes argumentos e mostrarei que nada provam absolutamente.

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CAPÍTULO 1 8

REFUTAÇÃO DOS TRÊS ÚLTIMOS MÉTODOS DOS ARISTOTÉLICOS

No primeiro método criado pelos filósofos, assume-se que houve uma transição da potência ao ato com a própria Deidade, caso Ela tenha produzido algo somente em um determinado tempo.6 A refutação deste argumento é muito fácil. Ele se aplica somente a corpos compostos de substância, que é o elemento que contém a possibilidade (de mudança) de forma. Se um corpo deste tipo, durante um certo tempo, não agia e, em virtude de sua forma, agora age é porque indubitavelmente pos­suía algo em potência que ora se tornou corrente, e a transição somen­te foi efetuada por meio de algum agente externo. Como os corpos materiais são assim considerados, isto já foi plenamente comprovado. Mas aquilo que é incorpóreo e imaterial não admite coisa alguma que seja simplesmente possível. Tudo o que ele contém existe sempre. Não cabe, portanto, aplicar-lhe o argumento acima, nem é impossível a um ser deste tipo atuar em um momento e não atuar em outro. Isto não implica qualquer mudança para o próprio ser incorpóreo, sequer uma transição da potência ao ato. O Intelecto Ativo pode ser ilustrativo

6 Veja cap. 14, Quinto método (Maeso).

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dessa questão: de acordo com Aristóteles e sua escola, o Intelecto Ati­vo, um ser incorpóreo, ora atua, ora não, como indicou Abu Nasr (Al Farabi) em seu tratado Sobre o Intelecto. Ele praticamente afirma o se­guinte: “É um fato evidente que o Intelecto Ativo não age continua­mente, mas apenas às vezes”. E, no entanto, ele não diz que o Intelecto Ativo é mutável ou que passa do estado de potência para o de ato, embora em um momento produza algo não produzido antes. Por isso, não há, jamais, relação ou comparação entre seres corpóreos e incor- póreos, nem no momento da ação nem no da abstenção. Somente por homonímia que o termo ação é utilizado com referência às formas re­sidentes nos corpos e também se refere aos Seres Puramente Espiri­tuais. A circunstância na qual um Ser Puramente Espiritual não atua em um momento e atua em outro não necessita de uma transição da potência ao ato, que é necessária no caso de forças ligadas aos corpos. Pode-se objetar, talvez, que nosso argumento é, até determinado pon­to, uma falácia, pois não se relaciona a nada contido no próprio Inte­lecto Ativo. Porém, na ausência de substâncias suficientemente prepa­radas para a sua ação, ele às vezes não atua. O Intelecto Ativo age sempre que as substâncias suficientemente preparadas estão presentes e, quando a ação se interrompe, é porque faltam estas substâncias e não porque aconteceu qualquer mudança no Intelecto. Respondo que não é nossa intenção expücar a razão por que Deus criou neste ou naquele momento, nem fazer um paralelo com o Intelecto Ativo, afir­mando que Deus atua em uma hora e não em outra, do mesmo modo intermitente que age o Intelecto Ativo, um Ser Puramente Espiritual. Não declaramos isso e, se o fizéssemos, a conclusão seria falaciosa. O que nós inferimos — e estamos certos em inferir — é que o Intelecto Ativo nem é um corpo nem uma força residente em um corpo. Atua de modo intermitente e, qualquer que seja a causa de não atuar sem­pre, não afirmaremos que o Intelecto Ativo passou da potência ao ato que permita uma possibilidade de mudança ou, ainda, que exista um agente causador da transição da potência ao ato. Deste modo refuta­mos a forte objeção levantada por aqueles que defendem a Eternidade do Universo. Desde que acreditemos que Deus não é um corpo mate­rial nem uma força residente em um corpo, não devemos assumir que a Criação, após um período de inatividade, provoque uma mudança no próprio Criador.

O segundo método empregado para provar a Eternidade do Univer­so é baseado na teoria de que tudo demanda, muda e os obstácld&s-

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não estão preenchidos com a essência de Deus. A nossa difícil e profunda refutação a esta proposição, é a seguinte: todo ser, dotado de livre arbítrio e que realiza determinados atos para com outro ser, necessariamente interrompe estas ações em um momento ou outro, devido a determinados obstáculos ou mudanças. Por exemplo: al­guém deseja ter uma casa, mas não a constrói por causa de alguns obstáculos, como não dispor dos materiais necessários ou, tendo-os, não estar preparado caso falte os instrumentos apropriados ou, ain­da, tem o material e os instrumentos, mas não deseja mais construí- la, pois não sente necessidade de um refúgio. No entanto, quando as circunstâncias se alteram, com o aumento do calor ou do frio, ele é obrigado a procurar refúgio, então passa a desejar construir uma casa. Está claro, pois, que as circunstâncias modificam sua vontade, e a vontade, quando encontra obstáculos, não é levada adiante. Este caso é válido somente quando as causas das ações são externas, porém, quando a ação não tem outro objetivo senão o de satisfazer a vonta­de, então ela não depende da existência de circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis. Na falta total de obstáculos, o ser dotado desta vontade não precisará atuar continuamente, pois sua ação segue sim­plesmente a vontade. Assim, para ele, na ausência de obstáculos, não existe qualquer motivo que o obrigasse a atuar.

Alguém pode perguntar: “Admitindo que isto esteja correto, que­rer a ação em um momento e não em outro não implica mudança?” Responderemos que a verdadeira essência da vontade de um ser é simplesmente a faculdade de conceber um desejo em uma hora e não concebê-lo em outra. Se esta vontade pertence a um ser material, ela se dirige a um objetivo externo e muda de acordo com os obstáculos e circunstâncias. Mas a vontade de um Ser Puramente Espiritual, que independe de causas externas, é imutável, e o fato de desejar uma coisa em um dia e outra diferente em outro dia não implica uma mu­dança na essência deste ser, nem requer uma causa externa. Do mes­mo modo, demonstramos que o fato de um ser agir em uma hora e não agirem outra não envolve uma mudança em seu próprio ser. Está claro agora que o termo vontade é utilizado de forma homônima para a vontade humana e a vontade de Deus, porém, nunca poderia haver comparações entre a vontade de Deus e a do ser humano. Esta obje­ção está refutada e nossa teoria não foi abalada por ela. Isto era tudo o que desejávamos estabelecer.

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O terceiro método empregado para provar a Eternidade do Universo é este: quando a Sabedoria de Deus decide produzir algo, é produzido, mas como a Essência desta Sabedoria é eterna, o que resulta da Sua Sabedoria também deve ser eterno. Este argumento é muito fraco. Assim como ignoramos porque a Sabedoria de Deus produziu nove esferas - nem mais nem menos - ou porque Ele fixou o número e a medida dos astros exatamente como são, também não podemos entender porque Sua Sabedoria, em um dado momento, levou o Universo a existir, en­quanto um pouco tempo antes ele não existia. Tudo é conforme a sua Sabedoria Eterna e Constante, mas ignoramos os caminhos e métodos desta Sabedoria, desde que, segundo a nossa opinião (de que Deus não tem atributos), Sua Vontade é idêntica à Sua Sabedoria e todos os Seus Atributos são uma e a mesma coisa, ou seja, Sua Providência,7 Portan­to, esta objeção à nossa teoria cai por terra. Não há evidências da teoria da Eternidade do Universo, nem do fato citado por Aristóteles acerca do consenso geral dos povos antigos, quando descreviam os Céus como a habitação dos anjos e de Deus, nem da aparente concordância dos textos bíblicos com esta crença. Estes fatos somente provam que os Céus nos inspiram a acreditar na existência das Inteligências Separa­das, isto é, ideais e anjos, e que estes, por sua vez, levam-nos a acreditar na existência de Deus, pois Ele os coloca em movimento e os governa. Explicaremos e demonstraremos que não há melhor evidência da exis­tência de um Criador, tal como acreditamos, do que aquela fornecida pelos Céus. Mas também, segundo a opinião dos filósofos, como já mencionamos, os Céus evidenciam a existência de um Ser que os colo­ca em movimento e este Ser não é nem um corpo material nem uma força residente em um corpo.

Demonstrada a nossa teoria, e que esta não é impossível como afirmam os defensores da Eternidade do Universo, mostrarei nos ca­pítulos seguintes que ela é preferível à do ponto de vista dos filósofos e exporei os absurdos concernentes à teoria de Aristóteles.

7 Veja Terceira Parte, cap. 13 e 17; item, Primeira Parte, cap. 69. (Maeso)

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CAPÍTULO 1 9PLANO DA NATUREZA. PROVAS EM FAVOR DA C RE ATI O EX NIHILO. REFUTAM-SE ALGUMAS FALHAS DA TEORIA ARISTOTÉLICA

Do sistema de Aristóteles e de quantos professam a Eternidade do Universo, deduz-se claramente que o Universo é inseparável de Deus. Ele é a causa e o Universo é o efeito, e este efeito é necessário. Assim como não se explica porque ou como Deus existe de determinado modo — ou seja, Uno e Incorpóreo — do mesmo modo não há como quesdonar sobre o Universo inteiro, por que ou como ele existe de um modo particular. Para isso é necessário que o todo, causa e efeito, exis­tam de modos particulares, pois é impossível não existirem ou serem diferentes do que de fato são. Conclui-se que a natureza de tudo perma­nece constante, nada muda de forma alguma a sua essência e uma mu­dança deste tipo é impossível em qualquer ser existente. Também é dito que o Universo não é resultado de projeto, mudança ou desejo, pois se este fosse o caso, ele não existiria antes de o projeto ser concebido.

Por outro lado, segundo nossa opinião, é evidente que tudo quan­to existe é resultado de um projeto e não somente de uma necessida­de, pois Ele, que planejou tudo, pode modificá-lo quando muda Seu projeto. Mas nem todo projeto está sujeito a mudanças, há coisas que são impossíveis de alterar, pois sua natureza é imutável, como expli­caremos. Meu propósito neste capítulo é lhe explanar, por meio de

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argumentos muito próximos à demonstração, que o Universo nos dá evidências de um projeto. No entanto, não cairei no erro dos Mutaká­lemim-. ignorar a natureza existente das coisas, admitir a existência de átomos ou a criação sucessiva de acidentes, ou, ainda, quaisquer das suas proposições que tentei explicar e que pretendiam estabelecer o princípio da Seleção Divina. Não se deve pensar que eles compreende­ram o princípio do mesmo modo que nós, mas sim que, indubitavel­mente, o objetivo era o mesmo e abordaram os temas de que vou tratar, quando refletiram sobre a Seleção Divina. No entanto, eles não distinguem entre seleção, quando se trata de uma planta ser vermelha e não branca ou doce e não amarga, e determinação, como no caso dos Céus, que lhes deu o formato geométrico peculiar e não uma forma triangular ou quadrilátera. Os Mutakálemim estabeleceram o Princípio da Determinação mediante suas proposições, enumeradas anteriormente.8 Estabelecerei este princípio somente quando necessário e apenas por meio de proposições filosóficas baseadas na natureza das coisas. Mas antes de iniciar meu argumento apresentarei os seguintes fatos: a Ma­téria é comum a diferentes coisas. Então, deve haver uma causa exter­na que dote esta matéria parcialmente de uma propriedade e parcial­mente de outra, ou deve haver tantas causas diferentes quantas são diferentes as formas da matéria comum a todas as coisas. Estes pressu­postos são aceitos por aqueles que defendem a Eternidade do Univer­so. Assentada esta proposição, seguirei com a discussão do nosso tema de um ponto de vista aristotéüco, na forma de um diálogo.

Nós: Você provou que todas as coisas no mundo sublunar têm uma substância comum. Por que então as espécies das coisas variam? Por que os indivíduos dentro de cada espécie são diferentes uns dos outros?

Aristotélicos-. Porque a substância das coisas formadas daquela subs­tância varia. Pois a substância comum, em princípio, recebeu quatro formas, cada forma foi dotada de duas qualidades e, mediante estas quatro formas, a substância se transforma nos elementos a partir dos quais todas as coisas são formadas. A composição dos elementos ocorre do seguinte modo: primeiro são misturados como conseqü­ência do movimento das esferas celestes e, então, se combinam. A causa da variação depende da gradação do calor, do frio, da umidade

8 Veja na Primeira Parte, cap. 73.

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e secura dos elementos que formam as partes constituintes das coi­sas. Por meio destas diferentes combinações, as coisas são dispostas de modos variados a fim de receberem diferentes formas, as quais, por sua vez, são novamente preparadas para receberem novas for­mas e, assim, sucessivamente. Cada forma genérica encontra uma grande esfera em sua substância, tanto em relação à qualidade quan­to à quantidade, e os indivíduos da espécie variam de acordo com esta relação. Tudo isto está plenamente explicado pelas Ciências Naturais. E certo e claro para qualquer um que conheça corretamen­te a verdade, e não deseja se enganar.

Nós: Dado que a combinação de elementos prepara e permite às substâncias receberem diferentes formas, o que preparou a Primeira Substância para que uma parte recebesse a forma de fogo, outra a de terra, e as intermediárias entre elas recebessem as formas de água e a de ar, se há uma substância comum a todas? O que fez a substância da terra mais apropriada para a forma de terra e a do fogo para o fogo?

Aristotélicos: O fator determinante é a diferença de posições, pois os diferentes lugares prepararam a mesma substância de formas diferen­tes, ou seja, a parte mais próxima da esfera circundante tornou-se mais rarefeita e com movimento mais suave, aproximando-se da natureza daquela esfera, e recebeu por meio desta preparação a forma de fogo. Quanto mais longe a substância está da esfera circundante, em direção ao centro, mais densa, mais sólida e menos luminosa ela é, tornando-se terra, o mesmo princípio serve para a formação da água e do ar. É necessariamente assim, pois seria absurdo negar que cada parte da subs­tância está em um determinado lugar ou afirmar que a superfície é idêntica ao centro, ou vice-versa. A diferença de localização determi­nou as diferentes formas, isto é, predispôs a substância a receber dife­rentes formas.

Nós: A substância da esfera circundante, ou seja, os Céus, é a mes­ma daquela dos elementos?

Aristotélicos: Não. A substância é diferente e as formas são diferen­tes. O termo corpo é utilizado de modo homônimo para os corpos de baixo e os dos Céus, como foi demonstrado pelos filósofos modernos. Tudo isso está demonstrado. Escute agora, você, leitor deste Tratado. Aristóteles demonstrou que a diferença de formas torna-se evidente pela diferença das ações. Sendo retilíneo o movimento dos elementos e circular o das esferas, inferimos que as substâncias são diferentes. Esta inferência é apoiada pelas Ciências Naturais. Quando, mais à frente,

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mostrarmos que as substâncias com movimento retilíneo diferem quan­to às suas direções, umas se movem para cima, outras para baixo; e que as substâncias que se movem na mesma direção têm velocidades diferentes, concluiremos que suas formas são diferentes.

Portanto, aprendemos que há quatro elementos. Por argumentação análoga segue-se necessariamente que todas as esferas celestes cons­tam da mesma matéria, porque todas elas se movem de modo circular. Entretanto, no tocante à forma, diferem entre si, pois uma se move de Leste para Oeste e a outra, de Oeste para Leste, seus movimentos diferem também em velocidade. Podemos perguntar para Aristóteles: dado que todas as esferas têm matéria idêntica e cada qual tem uma forma particular, quem então determinou e predispôs estas esferas a receberem formas diferentes? Há por trás das esferas algum ser capaz de determinar isto, além de Deus?

Devo chamar sua atenção para a profundidade e a perspicácia extraordinária de Aristóteles quando esta questão o perturbou. Ele se esforçou muito para lidar com esta objeção por meio de argumen­tos que, no entanto, não corroboraram os fatos. Ainda que ele não mencione explicitamente a objeção, depreende-se de suas palavras o desejo de nos apresentar sistematicamente a existência das esferas, assim como mostrou a natureza das coisas do mundo terreno. Tudo é, segundo ele, resultado das leis da Natureza e não do projeto de um Ser que o idealiza como quer, ou da determinação de um Ser que decide como lhe agrada. Mas seu argumento não se sustenta- nem isso é possível — empenhado em encontrar o motivo pelo qual a esfe­ra se move do Leste e não do Oeste. Pelo fato de algumas esferas se moverem mais rapidamente e outras mais lentamente, ele considera como causa destas diferenças suas posições distintas em relação à Esfera Circundante. Mais adiante tenta mostrar porque há esferas para cada um dos sete planetas, enquanto há uma só esfera para o número enorme de astros fixos. Esforça-se para indicar as causas de tudo isso com o objetivo de nos mostrar que o todo ordenado é resultado das leis da Natureza. Ele não foi bem sucedido em seu objetivo, pois tudo quanto nos expõe com respeito ao mundo terre­no está de acordo com os fatos. Assim, a relação entre causa e efeito é claramente demonstrada, e pode-se afirmar que tudo ocorre em virtude do movimento e das influências das esferas celestes, mas, quando trata das propriedades das esferas, não demonstra claramen­te a relação causai, nem explica o fenômeno de modo sistemático

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como a hipótese das leis naturais demandaria. Portanto, em relação às esferas, observamos que uma esfera dotada de movimento mais rápido se coloca atrás de uma esfera mais lenta e. em outro caso, observamos o inverso. Em um terceiro caso, há duas esferas com velocidades iguais, uma atrás da outra. Há também outros fenômenos que vão fortemente contra a hipótese de que tudo é regulado pelas leis da Natureza. Dedi­carei um capítulo especial deste Tratado a eles.

Em suma, com certeza Aristóteles sabia da fraqueza de seus argu­mentos ao traçar e descrever a causa de todas estas coisas, por isso prefaciou suas pesquisas assim:

Queremos agora investigar detidamente duas questões, que é nosso dever analisar e discutir de acordo com a nossa capacidade, sabedoria e opinião. Mas nada deverá ser atribuído à presunção e ao orgulho, mas ao nosso zelo no estudo da filosofia, pois quando examinamos questões elevadas e transcendentais nos esforçamos para oferecer uma solução apropriada. Qualquer um que ouça isto deverá se regozi­jar e ficar satisfeito.

São suas palavras literais. E evidente que reconhecia a insuficiência de sua teoria, que parece ainda mais fraca quando nos lembramos que a Astronomia não estava plenamente desenvolvida e que, nos dias de Aristóteles, os movimentos das esferas não eram tão bem conhecidos como são atualmente. Penso que o objetivo de Aristóteles, ao atribuir em sua obra Metafísica uma Inteligência Separada para cada esfera ce­leste, era o de assumir a existência de algo capaz de determinar o curso peculiar de cada esfera. Mais adiante demonstrarei que ele nada conse­gue com isto. Mas agora explicarei as palavras “segundo nossa capaci­dade, conhecimento e opinião”, inscritas na passagem citada, pois não as vi esclarecidas por nenhum dos comentaristas. Ao dizer “nossa opi­nião”, ele se refere ao princípio de que tudo é resultado das leis natu­rais ou à teoria da Eternidade do Universo. A expressão “nosso conhe­cimento” indica o conhecimento daquilo que é claramente e geralmente aceito, a saber, que a existência de cada uma destas coisas se deve a uma determinada causa e não a uma possibilidade. Por nossa capacidade, entenda-se nossa incapacidade para descobrir as causas de todas estas coisas. Ele somente quis traçar as causas para algumas delas, e assim o fez, pois dá uma excelente razão para o fato de a esfera dos astros fixos se mover lentamente, enquanto as demais esferas se movem com maior

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velocidade, qual seja, porque o seu movimento ocorre em direção oposta (do da Esfera Circundante). Afirma posteriormente que, quanto mais afastada se encontra uma esfera da oitava, maior é a sua velocidade. Porém, esta regra não parece boa a nenhum dos casos, como já expli­quei. Mais grave ainda é a seguinte objeção: há esferas abaixo da oitava esfera que se movem do Leste para o Oeste. De acordo com esta regra, cada esfera de cima deveria ser mais rápida que aquela abaixo dela, mas a velocidade destas esferas seria praticamente a mesma que a da nona esfera. A Astronomia, à época de Aristóteles, não estava tão desenvol­vida como hoje.

Segundo a nossa teoria da Criação, tudo isso é facilmente explica­do. Afirmamos que existe um Ser que determina a direção e a veloci­dade do movimento de cada esfera — ainda que ignoremos o modo como a Sabedoria deste Ser deu, a cada esfera, sua propriedade pecu­liar. Se Aristóteles fosse capaz de explicar a diversidade de movimen­tos nas esferas e de mostrar que estão de acordo com suas respecti­vas posições, teria sido excelente. A variedade daqueles movimentos seria explicada do mesmo modo que a variedade de elementos, por sua posição relativa ao centro e à superfície, mas não é este o caso, còmo já disse.

Há um fenômeno ligado às esferas celestes que mostra claramente a existência de uma determinação voluntária. Ele não pode ser explica­do de outra forma a não ser assumindo que algum ser o projetou. Este fenômeno é a existência dos astros. O fato de se encontrarem as esfe­ras constantemente em movimento e os astros estarem sempre fixos demonstra que a substância dos astros é diferente da substância das esferas. Já Abu Nasr (Al Farabi), em seus comentários sobre a Física (Acroasis) de Aristóteles, afirmou que: “Entre as esferas e os astros existe uma diferença: as esferas são transparentes, os astros são opa­cos. A razão disto é que há uma diferença, por menor que seja, entre suas substâncias e formas”. Estas são suas palavras textuais. Eu não diria que a diferença é pequena, mas enorme, pois não o deduzo da transparência das esferas, mas sim dos seus movimentos. Estou con­vencido de que há três tipos diferentes de substâncias, com três tipos diferentes de formas, a saber:

1) Corpos que nunca se movem por vontade própria, como os astros;

2) Corpos que estão sempre em movimento, como as esferas;3) Corpos ora em movimento, ora em repouso, como os elementos.

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Pergunto agora: o que juntou estas duas matérias — entre as quais há, na minha opinião, uma diversidade extrema ou, conforme o juízo de Abu Nasr, uma pequena diferença — e quem preparou estes corpos para esta união? Em suma, seria estranho que, sem a existência de um projeto, dois corpos diferentes se unissem um ao outro de modo a se fixarem em um determinado lugar, que não combinasse com um de­les. É ainda mais difícil explicar a existência de muitos astros na oitava esfera. Todos são esféricos, uns grandes, outros pequenos; há dois as­tros aparentemente a uma distância de um cúbito um do outro; em determinado local há um grupo de dez aglomerados, enquanto, em outro lugar, há um grande espaço vazio. O que determinou que aquela pequena parte tenha dez astros e esta outra, nenhum? E, sendo o cor­po da esfera uniforme, por que um astro em particular ocupa um lugar e não outro? É muito difícil responder a estas questões e a outras se­melhantes, se assumirmos que tudo emana de Deus como resultado necessário de determinadas leis permanentes, como sustenta Aristóte­les. Mas se admitimos que tudo isso é resultado de um projeto, nada há de estranho ou improvável, e a única questão é esta: qual é a causa deste projeto? A resposta é que tudo foi feito com um propósito deter­minado, que não conhecemos, mas nada foi feito em vão ou por acaso. E sabido que as veias e nervos de um cão ou de um asno não são produto do acaso, nem são suas proporções pura casualidade, tampou­co uma veia é grossa e a outra é fina por acaso, mas por um propósito determinado. Da mesma forma, um nervo se ramifica e outro não, um desce em direção reta e outro se enrola sobre si, e sabemos que tudo isto deve ser assim como é. Como, portanto, uma pessoa inteligente imaginaria que as posições desses astros, suas dimensões, as quantida­des e os movimentos de suas diversas esferas carecem de objetivo e são produtos do acaso? Não há dúvida de que todas estas coisas são necessárias e seguem um determinado projeto, é extremamente im­provável que sejam o resultado necessário das leis naturais.

Encontro a melhor prova para o projeto do Universo nos diferen­tes movimentos das esferas celestes e na posição fixa dos astros nas esferas. Por este motivo você descobrirá que os Profetas utilizaram os astros e as esferas como provas da existência necessária da Divindade. Assim, Abrahão refletiu sobre os astros, como é sabido.9 Isaías (40:26)

9 Segundo o Talmud, Abrahão possuía grandes conhecimentos astronômicos e todos os reis do Oriente e do Ocidente o consultavam (Maeso).

exorta-nos a aprender com eles sobre a existência de Deus: “Levante ao alto vosso olhos e veja: Quem criou estas coisas?”. Jeremias [cha­ma Deus] de “O Criador dos Céus” (Jeremias 32:17; 10:12; 51:15). Abrahão O chama de: “Deus dos Céus” (Gênesis 24:7), e Moisés, o Príncipe dos Profetas, usa a frase por nós explicada na Primeira Parte, cap. 70: “Ele que cavalga nos Céus” (Deuteronômio 33:26). A com­provação acerca dos Céus é convincente, pois a variedade de coisas no mundo terreno, embora sua substância seja uma e a mesma, pode ser explicada como obra das influências das esferas ou como resulta­do da variedade na posição da substância em relação às esferas, como foi demonstrado por Aristóteles. Mas quem determinou a variedade de esferas e astros, senão a Vontade de Deus? Dizer que foram as Inteligências Separadas é totalmente inútil, pois elas são incorpóreas e não têm relação direta com as esferas. Então por que uma esfera faz o movimento de atração até sua Inteligência Separada, o Leste, e ou­tra até o Oeste? Você acredita que esta Inteligência se encontra no Leste e a outra no Oeste? E por que uma se movimenta com grande velocidade e a outra lentamente? Esta diferença não tem relação com as distâncias entre elas, como se sabe. Devemos então afirmar que a natureza e essência de cada esfera necessita ter seu movimento em determinada direção e de uma determinada maneira, como conseqü­ência do seu desejo em se aproximar de sua Inteligência. Aristóteles expressou claramente sua opinião.

Assim, retornamos ao nosso ponto de partida e declaramos que todas as esferas estão constituídas por uma só e idêntica matéria. O que faz a natureza de uma porção ser diferente da outra? Por que uma esfera tem um desejo que produz um movimento diferente da­quele produzido pelo desejo de outra esfera? Isto deve ser realizado por um agente apto a determinar estas coisas. Temos então que exa­minar duas questões:

1) E ou não necessário admitir que a variedade das coisas no Uni­verso é resultado de um Projeto e não de leis fixas da Natureza?

2) Supondo que tudo isso seja resultado de um Projeto, então se deve concluir que [o Universo] foi criado a partir de sua inexistência ou a Creatio ex nihilo não é a explicação adequada e foi o Ser quem determinou que tudo fosse sempre assim?

Alguns que acreditam na Eternidade do Universo defendem a últi­ma consideração. Nos capítulos seguintes abordarei estas duas ques­tões, expondo o procedente a esse respeito.

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CAPÍTULO 20OBJECÕES À TEORIA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO

Aristóteles demonstra que nada na Natureza se origina por acaso e formula sua hipótese nestes termos: o acaso não reaparece continua­mente nem freqüentemente, mas todos os produtos da Natureza rea­parecem ou constantemente ou freqüentemente, Quanto aos Céus, com tudo o que encerram, permanecem constantes e são imutáveis, como já foi explicado, tanto em relação à sua essência, quanto ao seu lugar. Mas no mundo terreno encontramos tanto coisas constantes quanto coisas que reaparecem freqüentemente (embora não constantemente). Por exemplo, o calor do fogo ou a tendência de uma pedra à queda são propriedades constantes, assim como a forma e o modo de vida dos indivíduos em cada espécie, na maioria dos casos, são os mesmos. Tudo isto está claro. Se as partes do Universo não são acidentais, como o Universo, na sua totalidade, pode ser considerado resultado do acaso?

Logo, a existência do Universo não é casual. Eis aqui a objeção que Aristóteles levanta contra um dos antigos filósofos que admiti­ram que o Universo é fruto do acaso e passou a existir por si mesmo, sem causa alguma: Alguns assumem que os Céus e todo o Universo passaram a existir espontaneamente, bem como a rotação e o movi­mento das esferas, que produziu a variedade de coisas e estabeleceu a organização atual. Esta opinião implica um grande absurdo. Eles

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admitem que animais e plantas não surgiram nem nasceram por aca­so, mas por uma causa determinada, seja esta a Natureza, a razão ou o que for . Eles não admitem que tudo possa ter se criado ao acaso, de uma semente ou sêmen, mas de uma determinada semente da qual somente uma oliveira é produzida e de um determinado sêmen do qual somente um ser humano se desenvolve. Por outro lado, afir­mam que os Céus e os corpos celestes são, entre todos os corpos, divinos e que passaram a existir espontaneamente, sem a ação de qual­quer causa ao contrário do que acontece com as plantas e os animais. Aristóteles examinou esta teoria e, então, rejeitou-a fortemente.

Fica patente que Aristóteles argumenta e prova que todos estes seres não existem por mero acaso, não são acidentais, pois são essenci­ais, isto é, há uma causa que justifica esta condição e, por esta causa, são exatamente como são. Esta é a opinião e a argumentação de Aris­tóteles. Mas não penso que, segundo ele, a rejeição da origem espontâ­nea das coisas implica a admissão do Projeto e da Vontade. Como é impossível conciliar dois opostos, é também impossível conciliar estas duas teorias: a da origem espontânea das coisas com a da Criação pelo desejo e vontade de um Criador. Pois a existência necessária, assumida por Aristóteles, deve ser compreendida no sentido de que, para tudo que não é produto do trabalho, há uma determinada causa, com pro­priedades próprias, que o produz e, ainda, para esta causa há outra causa, e para a segunda, uma terceira e assim por diante. A série de causas termina com a Primeira Causa, da qual deriva tudo o que existe, pois é impossível que a série continue até o infinito. Ele, contudo, não quer dizer que a existência do Universo é necessariamente produto de um Criador, ou seja, da Primeira Causa, do mesmo modo como a som­bra se origina do corpo, o calor, do fogo ou a luz, do Sol. Somente aqueles que não compreendem suas palavras atribuem estas idéias a Aristóteles. Ele usa o termo necessário aqui com o mesmo sentido de quando afirmamos que o inteligível necessariamente deriva do intelec­to, o qual é agente do inteligível10. Mesmo Aristóteles sustenta que a

10 “Aristóteles, ainda que considere a existência do mundo como uma coisa ne­cessária, sem dúvida não acredita que, por isso, o mundo seja obra de uma fatalidade cega e que tenha surgido de uma causa que opera sem consciência de sua obra, como o corpo que origina a sombra, mas sim que, ao contrário, Deus é a causa do inteligível, o qual, enquanto isso, é necessariamente pensado e compreendido pelo intelecto” (Munk).

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Primeira Causa é o intelecto mais elevado e mais perfeito. Ele ainda afirma que a Primeira Causa é agradecida, satisfeita e se compraz com aquilo que necessàriamente se origina dela, e é impossível que Seu desejo fosse diferente.

Mas não chamaremos isso de Projeto, pois não há nada em comum com um projeto. Por exemplo: um homem está agradecido, satisfeito, tem prazer em ser dotado de olhos e mãos e é impossível que desejasse outra coisa. Apesar disso, os olhos e as mãos de um homem não são resultados de seu projeto, não é devido a sua própria determinação que ele adquiriu estas propriedades e é capaz de realizar certas ações. A noção de projeto e determinação se aplica somente às coisas que ainda não existem, quando há apenas a possibilidade de existirem ou não, segundo este projeto. Não sei se os modernos aristotélicos entende­ram as implicações das palavras de Aristóteles de que a existência do Universo pressupõe alguma causa, na forma de um projeto, e determina­ção, ou se, em oposição a ele, admitiram os conceitos de projeto e determi­nação, acreditando que não entram em conflito com a teoria da Eterni­dade do Universo.

A partir do exposto, abordarei as opiniões destes filósofos modernos.

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CAPÍTULO 2 1

A TEORIA DA CREATIO EX NIHILO É PREFERÍVEL À DA ETERNIDADE DO UNIVERSO

Alguns filósofos modernos, partidários da Eternidade do Universo, defendem a idéia de que Deus produz o Universo e que Ele, por Sua Vontade, projeta e determina sua existência e forma. Rejeitam, no entanto, a teoria de que isto ocorreu em um momento determinado e admitem que sempre foi assim e sempre será. O motivo pelo qual não podemos imaginar um agente a não ser que exista precedente ao re­sultado de sua ação é explicado, por eles, pelo fato de que isto é exa­tamente assim em tudo o que nós produzimos, pois em todo agente, como nós, há momentos de inatividade e, em virtude disso, somos somente agentes em potência, ou seja, tornamo-nos agentes ao agirmos. Mas com relação a Deus não há momentos de inatividade ou de po­tencialidade em nenhum sentido, Ele não se coloca antes da Sua obra, Ele é sempre um agente atuante. E assim como há uma diferença abismai entre Sua essência e a nossa, do mesmo modo a relação entre Ele e Sua obra difere da existente entre nós e nossas obras. Eles apli­cam o mesmo argumento à vontade e determinação, pois não há dis­tinção entre dizer: Ele atua, quer, projeta ou determina. Admitem ainda que uma mudança em Sua ação ou vontade é impossível. Fica então claro que estes filósofos abandonaram o termo resultado necessário, mas

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mantiveram a sua teoria. Procuraram talvez usar uma expressão me­lhor ou remover um termo questionável. Mas é a mesma coisa se dis­sermos, segundo o ponto de vista de Aristóteles, que o Universo é resultado da Primeira Causa e deve ser eterno, assim como a causa é eterna ou, segundo estes filósofos, que o Universo é resultado da ação, projeto, vontade, seleção e determinação de Deus, mas sempre foi as­sim e sempre será. Do mesmo modo como, sem dúvida alguma, o nascer do Sol produz o dia sem que necessariamente o preceda. No entanto, este não é o nosso conceito de Projeto. Por isso, queremos explicar que o Universo não é o resultado necessário da existência de Deus, assim como o efeito é o resultado necessário da causa eficiente. No último caso, o efeito não pode ser separado de sua causa, a menos que esta mude totalmente ou em parte. Entendido isto, compreenderemos facilmente quão absurdo é dizer que o Universo está para Deus assim como o efeito está para a causa eficiente e considerar, ao mesmo tem­po, que o Universo é resultado da ação e determinação de Deus.

Exposto o tema, discutiremos se a causa, admitida pela variedade de propriedades percebidas nos seres celestes, é somente uma causa eficiente que deve necessariamente produzir aquela variedade e seu efeito, ou se aquela variedade se deve a um agente determinante, como acreditamos, segundo a teoria de Moshé Rabênu. Antes de discutir isto, explicarei exatamente o que Aristóteles quer dizer com resultado necessá­rio', em seguida lhe explanarei, por meio de argumentos filosóficos li­vres de qualquer falácia, porque eu prefiro a teoria da Creatio ex nihilo.

Quando Aristóteles declara que a Primeira Inteligência resulta ne­cessariamente da existência de Deus, e a Segunda Inteligência é resul­tado da existência da Primeira, a Terceira, da Segunda e assim por diante, e que as esferas são o resultado necessário da existência das Inteligênáas Separadas, na ordem das passagens relacionadas a isso, co­nhecida e estudada por você, a qual resumimos no capítulo 4, fica claro que ele não pretende afirmar que uma coisa preexistiu e que dela tenha se originado a segunda como seu resultado necessário, pois ele nega que um destes seres teve um início. Por resultado necessário expressa simplesmente a relação causai, significando que a Primeira Inteligência é a causa da existência da segunda, e esta, da terceira, e assim sucessiva­mente até a última das Inteligências. O mesmo se afirma do concer­nente às esferas e à matéria-prima, dado que estas coisas não antece­dem umas às outras, nem existem, segundo ele, umas sem as outras. Nós dizemos, por exemplo, que o resultado necessário das qualidades

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primárias são a aspereza e a maciez, a dureza e a moleza, a porosidade e a solidez, pois ninguém duvida que calor, frio, umidade e secura sejam as causas da aspereza e maciez, dureza e moleza, porosidade e solidez e qualidades similares, nem que estas últimas sejam resultado necessá­rio das quatro primeiras qualidades. Também é impossível que exista um corpo que, possuindo as primeiras, careça das segundas, pois a relação entre os dois tipos de qualidade é o de causalidade, não o de agente e seu produto. Exatamente deste modo que o termo resultado necessário é usado por Aristóteles quando, ao se referir ao Universo como um todo, afirma que uma porção é resultado de outra e continua a série até a Primeira Causa — assim denominada por ele — ou Primeiro Intelecto, se preferir este termo. Para nós, ambos significam a mesma coisa, com uma diferença: para Aristóteles, tudo além daquele Ser é resultado necessário deste, como já mencionei, enquanto que, para nós, aquele Ser criou o Universo como um todo com projeto e vontade, de modo que o Universo, inexistente anteriormente, passou a existir de­vido a Sua Vontade.

Nos capítulos seguintes, exporei as minhas provas a favor da supe­rioridade da nossa teoria, a da Creatio ex nihilo.

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CAPÍTULO 22A S DIFICULDADES DE COMPREENSÃO DA NATUREZA E DO

MOVIM EN TO D AS ESFERAS DE ACORDO COM A TEORIA DE

ARISTÓTELES DESAPARECEM DIANTE DA IDEIA DO UN IVER­SO CRIADO POR DEUS

Umaproposição aceita por Aristóteles e por todos os filósofos é que uma coisa simples somente produz outra coisa simples, enquanto um com­posto pode produzir tantas coisas quantos forem os elementos sim­ples nele contidos. Por exemplo, o fogo contém duas qualidades - calor e secura —, aquece mediante o calor e seca em virtude desta secu­ra. Uma coisa composta de matéria e forma produz determinadas coi­sas de acordo com a sua matéria e outras de acordo com a sua forma, se tanto matéria quanto forma consistirem de vários elementos. Se­gundo este axioma, Aristóteles sustenta que a emanação direta de Deus deve ser uma Inteligência Simples, não mais do que isso.

Segunda proposição: Uma coisa não é produzida aleatoriamente por outras coisas, há alguma relação de causa e efeito. Portanto, acidentes não são produzidos aleatoriamente por acidentes, qualidade não é ca­paz de originar quantidade ou vice-versa. Uma forma não se origina da matéria nem vice-versa.

Terceira proposição: Um agente único que age com projeto e vontade, e não somente por força das leis da Natureza, é capaz de produzir diferentes objetos.

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Quarta proposição-, Um todo, integrado por vários elementos justa­postos, é mais um composto do que um objeto cujos diferentes elemen­tos estão inteiramente combinados. Exemplo: ossos, carne, veias e nervos são mais simples que a mão ou o pé, que são uma combinação de ossos, carne, veias e nervos. Tudo isto está claro e não precisa de maior explicação.

A partir da apresentação destas proposições, faço a seguinte ques­tão: Aristóteles sustenta que a Primeira Inteligência é a causa da Se­gunda e esta, da terceira, e assim por diante, até milhares de graus, se admitirmos uma série desse tipo. Agora, o Primeiro Intelecto é, sem dúvida alguma, simples. Como uma forma composta de coisas exis­tentes viria de um Intelecto deste tipo segundo as leis fixas da Natu­reza, como sustenta Aristóteles? Concordamos com ele quando afir­ma que, quanto mais as Inteligências se afastam (do Primeiro Intelecto), maior a multiplicidade do seu composto, devido ao gran­de número de objetos compreensíveis pelas Inteligências. Mas, ainda que se admita isto, permanece a questão: por meio de qual lei da Natureza as esferas celestes emanaram das Inteligências? Que rela­ção existe entre seres materiais e imateriais? Ainda supondo que acei­temos que cada esfera tenha emanado de uma Inteligência na forma enunciada, que a Inteligência, do modo como se compreende — era composta de dois elementos — produz a próxima Inteligência por meio de um elemento e uma esfera por meio do outro, então como um elemento simples produziria a esfera, que contém duas substân­cias e duas formas — quais sejam, a substância e a forma da esfera e ainda a substância e a forma do astro fixo naquela esfera — se, de acordo com as leis da Natureza, um composto somente deriva de um composto? Deve haver, portanto, um elemento, do qual deriva o cor­po da esfera e outro elemento, do qual deriva o corpo do astro. Isto seria necessário mesmo que a substância de todos os astros fosse a mesma, mas é possível que os astros luminosos não tenham a mesma substância que os astros não-luminosos. Além disso, é sabido que todo corpo tem sua própria matéria e sua própria forma. Fica, pois, paten­te que esta emanação não pode ocorrer por força das leis da Nature­za, como defende Aristóteles. Nem a diferença de movimento das esferas segue a ordem destas posições e, portanto, não podemos afir­mar que esta diferença é resultado de determinadas leis da Natureza. Já mencionamos isto (cap. 19).

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Há, nas propriedades das esferas celestes, outra circunstância oposta às leis da Natureza. Se a substância de todas as esferas é a mesma, por que razão a forma desta esfera não combina com a substância de outra, como ocorre com as coisas na Terra? Simples­mente porque suas substâncias são aptas a tais mudanças? Se a subs­tância de todas as esferas é a mesma, se não se admite que cada uma delas tem a sua substância peculiar e se, contrariando todos os prin­cípios, o movimento peculiar de cada esfera não é devido ao caráter especial de sua substância, por que então uma determinada forma permaneceria constantemente unida a uma determinada substância? Novamente, se todos os astros têm a mesma substância, o que os distingue uns dos outros? As formas? Ou os acidentes? Qualquer que seja o caso, as formas e os acidentes trocariam de lugar, de modo a se unir sucessivamente a cada um dos astros, desde que sua subs­tância (sendo a mesma) admita essas combinações (com qualquer uma das formas ou acidentes).

Isto mostra que o termo substância, quando usado para as esferas ou para os astros, não tem o mesmo significado que ao ser usado para as coisas terrestres, mas é aplicado para os dois casos como homôni­mos. Isto indica também que qualquer um dos corpos das esferas tem sua forma peculiar de existência, diferente de todos os demais seres. Por que, então, o movimento circular é comum a todas as esferas e por que a posição fixa dos astros em suas respectivas esferas é comum a todos os astros? Se admitirmos o projeto e determinação de um Criador, segundo Sua Sabedoria incompreensível, todas estas dificul­dades desaparecem. Elas surgem quando consideramos todo o Uni­verso não como resultado do Livre Arbítrio, mas como resultado das leis fixas da Natureza. Essa é uma teoria que, por um lado, não está em harmonia com a ordem existente das coisas e não oferece, para isto, razão ou argumento suficiente; e, por outro lado, implica muitas e grandes improbabilidades, pois, segundo ela, Deus, cuja perfeição em todos os níveis é reconhecida por toda pessoa inteligente, está em tal relação com o Universo que nada pode mudar. Assim, se Ele dese­jasse aumentar a asa de uma mosca ou reduzir o número de pernas de um verme, não poderia. Segundo Aristóteles, Ele nem pode tentar fazer isto e é totalmente impossível, para Ele, desejar qualquer mu­dança na ordem existente das coisas. Caso Ele pudesse, isto não au­mentaria Sua perfeição, ao contrário, segundo alguns pontos de vista, poderia até diminuí-la.

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Ainda que certos críticos parciais me reprovem, considerando mi­nha opinião acerca da teoria de Aristóteles conseqüência de uma com­preensão insuficiente ou oposição intencional, não deixarei, por isso, de expor os resultados das minhas pesquisas, por mais pobres que sejam as minhas capacidades. Sustento que a teoria de Aristóteles é absolutamente correta com respeito às coisas que existem entre a esfe­ra lunar e o centro da Terra. Somente um ignorante rejeita isso — ou uma pessoa com opiniões preconcebidas, que deseja mantê-las ou de- fendê-las, o que a leva a ignorar fatos claros. Mas o que Aristóteles expõe da esfera lunar para cima é, com algumas exceções, simples ima­ginação e opinião, em um nível mais extenso no que se refere à ordem das Inteligências, assim como em algumas das suas teorias metafísicas — estas incluem enormes improbabilidades, promovem idéias que to­das as nações consideram como evidentemente corrompidas e causa a propagação de pontos de vista que não podem ser comprovados.

Talvez me perguntem porque enumerei todas as dúvidas que pos­sam existir contra a teoria de Aristóteles. E possível refutar uma teo­ria por meio de dúvidas ou estabelecer uma teoria contrária a ela? Certamente não, mas nossa atitude diante deste filósofo é aquela que seus seguidores nos induzem a adotar. Com efeito, Alexandre deixou bem claro que, quando uma coisa não é suscetível de demonstração, devem ser propostas as duas hipóteses mais opostas, a fim de ressal­tar as dúvidas Inerentes a cada uma delas e aceitar a mais verossímil. Alexandre acrescenta que esta regra se aplica a todas aquelas opi­niões de Aristóteles na Metafísica que não são demonstráveis, pois todos quantos seguiram Aristóteles acreditaram que suas opiniões eram, de longe, as menos sujeitas a dúvida. É o que fazemos, con­vencidos de que a questão — se os Céus são eternos ou não — não pode ser demonstrada, nem afirmativamente nem negativamente. Enumeramos as objeções levantadas contra cada ponto de vista e mostramos como a teoria da Eternidade do Universo é sujeita a for­tes objeções, sendo mais apta a corromper as noções a respeito de Deus (do que outras). Acrescentamos que a teoria da Criação foi de­fendida por A.vraham A vinu e M oshé Rabênu.

Ao mencionar o método de teste das duas teorias por meio das objeções erguidas contra elas, considero necessário esclarecer algo sobre o tema.

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CAPÍTULO 23A TEORIA DA CREATIO EX NIHILO É PREFERÍVEL ÀQUELA DA ETERNIDADE DO UNIVERSO

Ao comparar as dúvidas levantadas contra uma opinião àquelas con­trárias à sua, para decidir a favor da menos questionável, não se deve considerar o número de objeções, mas o nível de improbabilidade e de desvio dos fatos reais (apontados pelas objeções), pois uma só objeção pode ter mais peso do que mil outras. A comparação somente será proveitosa para quem conceda paridade às duas hipóteses opostas. Se você está predisposto a aceitar uma delas, seja devido a sua educação ou a um interesse qualquer, está cego demais para enxergar a verdade. Pois aquilo que pode ser demonstrado não deve ser rejeitado, não im­porta o quanto esteja inclinado a fazê-lo. No entanto, nas questões semelhantes às consideradas, você estará apto a debater (devido à sua inclinação). Em certas ocasiões, será capaz de decidir a questão se esti­ver livre de paixões, ignorar costumes e seguir somente a sua razão. Mas, para isso, determinados requisitos devem ser preenchidos:

Primeiro: Levar em conta a sua capacidade mental e seus talentos naturais, os quais você obterá por meio do estudo da Matemática e da familiarização com a Lógica.

Segundo: Adquirir um bom conhecimento de Ciências Naturais, para estar apto a entender a Natureza e suas objeções.

Terceiro: Ser moralmente bom. Se uma pessoa é voluptuosa ou pas­sional e, ao perder as rédeas, permite que a sua raiva passe dos limites,

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não importa se esta atitude faz parte de sua natureza ou é um hábito, ela resvalará, tropeçará pelo caminho e seguirá a teoria que estiver de acordo com as suas inclinações.

Chamo-lhe a atenção para que não se deixe seduzir; porque é pos­sível que qualquer dia alguém, por meio de objeções levantadas, balan­ce sua crença na teoria da Criação e facilmente lhe desoriente. Você então adotaria a teoria [da Eternidade do Universo], contrária aos prin­cípios fundamentais da nossa religião, e daria seu assentimento a here­sias acerca de Deus. Sempre suspeite da própria razão e aceite a teoria ensinada pelos dois Profetas [Abrahão e Moisés] que são o pilar da ordem existente nas relações sociais e religiosas da Humanidade. So­mente uma prova demonstrativa seria capaz de fazer você abandonar a teoria da Criação, mas esta prova não existe na Natureza.

Não se admire porque eu apresento, nesta discussão, uma questão histórica como apoio à teoria da Criação, pois o maior dos filósofos, Aristóteles, empregou, em seus principais trabalhos, recursos históri­cos para defender sua teoria da Eternidade do Universo. A respeito disso podemos muito bem afirmar: Será que a nossa Lei Perfeita não é tão boa quanto os mexericos deles}11 Se ele sustenta o seu ponto de vista citan­do lendas do Povo de Sabá,12 por que não apoiaríamos nossos pontos de vista naquilo que Moisés e Abrahão declararam e naquilo que se segue de suas palavras?

Prometi anteriormente descrever, em um capítulo à parte,13 as for­tes objeções que ocorrem àquele que pensa que a sabedoria humana entende totalmente a natureza das esferas celestes e seus movimentos, e que estes estão sujeitos a leis fixas e podem ser compreendidos quan­do sua ordem e inter-relações são observadas. Explicarei isso agora.

11 Veja no Talmud da Babilônia, Baba Batra, 115b. (Friedlander, citado por Maeso).12 Sabá ou Shéba: nome bíblico de uma região do sul da Arábia, que corresponde

hoje, em parte, à região do Iêmen. Seus habitantes são denominados sabeanos. Segundo algumas passagens do Gênesis e das Primeiras Crônicas, Sheba, tata- raneto de Noé, era o ancestral do Povo de Sabá. Segundo outras passagens, todavia, era descendente de Abrahão. Sheba colonizou a Etiópia há aproxima­damente três mil anos. Naquele tempo, a Rainha de Sabá fez sua famosa visita ao Rei Salomão. Situada ao longo da rota comercial entre a índ ia e a África, Sheba era conhecida como uma região muito próspera. Foi conquistada pela Etiópia em 525. Em 572 tornou-se uma província persa e, com o surgimento de Maomé, caiu sob controle islâmico e perdeu a sua identidade (fonte: site http://www.newadvent.org/cathen/13285c.htm, em 12/11/2002).

13 Veja cap. 19 (Maeso).

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CAPÍTULO 2 4

AS DIFICULDADES DE COMPREENSÃO DA NATUREZA E DO MOVIMENTO DAS ESFERAS DE ACORDO COM A TEORIA DE ARISTÓTELES DESAPARECEM DIANTE DA IDEIA DO UNIVER­SO CRIADO POR DEUS

Você já conhece, em Astronomia, o que estudou e aprendeu, sob a. minha orientação, no A lmagesto^ mas não houve tempo para lhe ini­ciar em ponderações ulteriores.15

14 Almagesto: Mais conhecido como Sjntaxis, A lmagesto (S êfer há-Maguestê, em he­braico) é o título da tradução árabe (ano 827) do livro de Astronomia de Pto- lomeu (século II E.C.) - astrólogo, astrônomo, matemático e geógrafo, que viveu em Alexandria. Em Almagesto, Ptolomeu expõe o sistema geocêntrico que leva o seu nome, e supõe a Terra como o centro ao redor do qual giram os demais corpos celestes. Esta hipótese perdurou por toda a Idade Média e foi substituída pelo sistema heliocêntrico de Copérnico (1473-1543) (Maeso).

15 Neste capítulo, Maimônides se dirige particularmente ao seu discípulo, Rav Yossef ibn Aknin. Sabemos que este emigrou do Magreb (região de aproxima­damente 4 mil km2, situada no noroeste do continente africano. Atualmente compreende a Argélia, a Tunísia e o Marrocos, países localizados no extremo oeste do mundo árabe. E limitada pelo Mar Mediterrâneo, ao Norte; Deserto do Saara, ao Sul; Oceano Atlântico, a Oeste; e Deserto da Líbia, ao Leste). Estabeleceu-se depois na cidade de Alepo (localizada na atual Síria), esteve com Maimônides e residiu na antiga cidade do Cairo, por algum tempo, dedi­cando-se a estudos astronômicos (NT).

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A teoria de que as esferas celestes se movem regularmente e que os cursos reconhecidos dos astros estão em harmonia com a observação, dependem, como você sabe, de duas hipóteses: aceitarmos os epici- clos, ou as esferas excêntricas, ou uma combinação de ambos. Mas agora vou lhe mostrar que ambas as hipóteses são irregulares e total­mente contrárias aos resultados das Ciências Naturais. Levaremos em conta, primeiro, um epiciclo, tal como se admite nas esferas da Lua e dos Cinco Planetas: rodando sobre certa esfera, mas não ao redor do centro da esfera que o carrega. Este arranjo produziria necessaria­mente um movimento de rotação, ou seja, o epiciclo giraria e mudaria completamente de lugar. No entanto, Aristóteles considera impossí­vel que qualquer coisa nas esferas mude de lugar. Por isso, Abu Bakr ibn Al-Sa’ig, em seu Tratado sobre Astronomia, rejeitou a existência de epiciclos. Ao lado desta impossibilidade, ele menciona outras, demons­trando que a teoria dos epiciclos implica diversas noções absurdas. Explicá-las-ei aqui:

1) E absurdo admitir que a revolução de um ciclo não tenha o Universo como centro, pois há um princípio fundamental quanto à ordem do Universo de que os movimentos são somente três: a p a r ­tir do centro,pa ra o centro e ao redor do centro. Mas um epiciclo não se move a partir do centro, nem em direção ao centro e nem ao redor dele.

2) Segundo aquilo que Aristóteles explica nas Ciências Naturais, é absolutamente necessário algo fixo ao redor do qual se efetue o movi­mento. Esta é a razão pela qual a Terra permanece estacionária. Mas o epiciclo se moveria ao redor de um centro não-estacionário.

Soube que Abu Bakr descobriu um sistema em que não há epici­clos, mas não se excluíam as esferas excêntricas. Não soube disso pelos seus pupilos, mas, mesmo que fosse verdade, ele não ganharia muito com isso, pois a excentricidade é completamente contrária aos princípios assinalados por Aristóteles. Parece-me que uma esfera ex­cêntrica não se move em torno do centro do Universo, mas ao redor de um ponto imaginário distante do centro e, portanto, em torno de um ponto que não é fixo. Um ignorante em Astronomia pensaria que o movimento das esferas excêntricas poderia, ainda assim, ocorrer ao redor de algo fixo, pois seus centros estão aparentemente dentro da esfera lunar. Mesmo que a esfera estivesse situada na região do fogo ou do ar, as esferas não se moveriam ao redor de um ponto

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estável. Mas devo lhe mostrar que os módulos das excentricidades foram descritos, de alguma forma, no Almagesto. Os estudiosos mo­dernos calcularam a quantidade exata de excentricidade em relação ao semidiâmetro da Terra e comprovaram os resultados. A mesma medida foi utilizada, na Astronomia, para descrever todas as distân­cias e magnitudes. Conseqüentemente, ficou claro que o ponto ao redor do qual o Sol se move está, sem dúvida alguma, fora da esfera lunar e abaixo da superfície da esfera de Mercúrio. O centro para o circuito de Marte — quero dizer, o centro da esfera excêntrica de Marte — está fora da esfera de Mercúrio e dentro da esfera de Vênus. O centro de Júpiter se encontra eqüidistante, a saber, entre as esferas de Vênus e Mercúrio, enquanto o centro de Saturno localiza-se entre as esferas de Marte e Júpiter. Considere, contudo, como tudo isso parece im­provável segundo as leis das Ciências Naturais. Você compreenderá isto quando considerar as distâncias e magnitudes conhecidas de cada esfera e de cada astro, expressos em relação ao semidiâmetro terres­tre. Há uma medida uniforme para todos, e a excentricidade de cada esfera não está determinada por unidades proporcionais às suas pró­prias magnitudes.

E ainda mais improvável e questionável assumir que há duas esfe­ras, uma dentro da outra, e que elas estão interligadas por todos os lados, mas seus centros são diferentes, de tal forma que a menor se move, enquanto a maior está parada. No entanto, quando a maior se move, a menor não pode ficar parada e deve se mover, junto com a maior, na mesma proporção em que esta última gira ao redor de qual­quer outro eixo, além daquele que passa pelos dois centros. Assim, temos esta proposição que pode ser comprovada, a teoria estabeleci­da de que não há vácuo, bem como a teoria da excentricidade das esferas. Segue-se necessariamente que, em ambas as esferas, o movi­mento da esfera maior fará com que a menor se mova do mesmo jeito e ao redor do mesmo centro. Todavia, não é o que acontece. As esfe­ras externa e interna não se movem do mesmo modo, nem ao redor do mesmo centro ou do mesmo eixo, cada uma tem seu movimento peculiar. Daí a necessidade de se admitir que, entre cada duas esferas, há substâncias diferentes daquelas que compõem estas esferas. Se este for o caso, é uma afirmativa muito duvidosa, pois onde se localizariam os centros destas substâncias intermediárias? Seus movimentos se­riam também peculiares? Thabit ibn Kurra16 expôs isto em um tratado,

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demonstrando que devemos admitir uma substância de uma forma esférica intermediária entre uma esfera e outra. Não lhe expliquei tudo isso quando você acompanhou minhas aulas, porque não queria des­viá-lo do meu objetivo principal, o de lhe ensinar. Quanto à inclinação e obliqüidade relativas às latitudes de Vênus e Mercúrio, já lhe expliquei de viva voz que é impossível imaginar seres materiais sob estas condi­ções. Você deve ter notado que Ptolomeu já apontara esta dificuldade, quando disse literalmente:

Ninguém acredita que estes princípios e outros semelhantes sejam improváveis. Se alguém considera o que expusemos aqui do mesmo modo como considera coisas produzidas com ponderações artificiais e sutilezas rebuscadas, considerará improvável. Porém, não é certo comparar coisas humanas a coisas divinas.

Já lhe indiquei as passagens nas quais pode comprovar tudo o que lhe disse, à exceção do exposto sobre a posição dos centros das esferas excêntricas, pois nunca soube que alguém tivesse se interessado por esta questão. Mas você compreenderá isso quando conhecer a medida do diâmetro de cada esfera e a extensão de sua excentricidade em rela­ção ao semidiâmetro da Terra, segundo os fatos que Alchabitius17 esta­beleceu em seu tratado sobre distâncias. Quando examiná-las, confir­mará minhas palavras.

16 Thabit ibn Kurra (826-901 E.C.) nasceu na Mesopotâmia (atual Turquia) e faleceu em Bagdá (no atual Iraque). Era membro da seita dos Sabianos, que idolatravam os astros e produziram muitos bons astrônomos e matemáticos. Thabit era fluente em grego, devido à influência da cultura grega, e também em árabe e siríaco, dialeto aramaico ocidental falado na Mesopotâmia. Após ter abandonado Harrán, acusado de heresia devido às suas filosofias liberais, tornou-se o astrônomo da corte de Bagdá, sob a proteção do Califa Al-Muta- did. Foi tradutor e revisor de traduções de muitas obras gregas para o árabe. Além disso, foi um brilhante pesquisador e fez muitas descobertas importan­tes no campo da Matemática. Na Astronomia, foi um dos reformadores do sistema ptolomaico e um dos descobridores do conceito de Estática (NT, a partir de pesquisa em http://www-gap.dcs.st-and.ac.uk/~history/Mathema- ticians/Thabit.html, em 22/11/2002).

17 Abdilazi Alchabitius: astrólogo e astrônomo árabe medieval, cuja Introductio- rium adsáentiamjudirialem astronomia foi publicada somente em 1473 E.C. (NT).

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Previna-se, pois, das grandes dificuldades que advêm de tudo isso. Se o que Aristóteles afirma nas Ciências Naturais é certo, não há epici­clos nem esferas excêntricas e tudo gira ao redor da Terra! Mas, neste caso, como são explicados os diversos cursos dos astros? Como é pos­sível assumir uma rotação uniforme perfeita e que responda aos fenô­menos visíveis, senão admitindo uma das duas hipóteses, ou ambas? A dificuldade fica mais explícita quando vemos que, ao acatar o que Pto- lomeu explica com respeito ao epiciclo da Lua e a sua inclinação até um ponto exterior, tanto do centro do Universo quanto do seu pró­prio centro, os cálculos realizados segundo estas hipóteses estão per­feitamente corretos, e a sua veracidade é comprovada pelo mais apu­rado cálculo do tempo, duração e extensão dos eclipses, sempre baseados nestas hipóteses. Além disso, sem admitir a existência dos epiciclos, como podemos conciliar a aparente retroação de um astro com seus outros movimentos? Como a rotação, ou movimento, ocorre ao redor de um ponto que não seja fixo? Estas são as grandes dificuldades.

Já lhe expliquei de viva voz que estas dificuldades não cabem ao astrônomo, pois não é sua função ilustrar-nos a respeito da proprieda­de das esferas, mas sim sugerir se uma teoria, em que se preconiza que o movimento dos astros seja circular e uniforme, está certa ou não e, ainda, se está de acordo com a nossa consideração ou adequada ao que é perceptível pela visão, quer a realidade seja ou não assim. Você sabe que Abu Bakr ibn Al Sa’ig, falando da Física, questiona se Aristóteles teve conhecimento da excentricidade do Sol e se calou sobre isso, pre- ocupando-se unicamente com a resultante da inclinação, pois viu que o efeito da excentricidade era idêntico ao da inclinação. O certo é que [Aristóteles] a ignorava e jamais ouvira falar dela, pois a ciência não era perfeita naquela época. Se soubesse de sua existência, se oporia forte­mente a ela e, se estivesse convencido de sua correção, ficaria cons­trangido quanto a tudo o que discorreu sobre o tema. Repetirei o mencionado anteriormente (cap. 22): a teoria de Aristóteles, referente ao mundo terreno, está de acordo com a inferência lógica — em que conhecemos a relação causai entre um fenômeno e outro, percebemos como a ciência pode investigá-la e a ordenação da Natureza é clara e inteligível. Com respeito ao mundo celeste, o Homem tudo ignora, salvo alguns cálculos matemáticos. Direi em termos poéticos: “Os Céus são Céus para YHVH, e a Terra deu para os seres humanos” (Salmo 115:16), ou seja, somente Deus conhece a verdadeira natureza dos Céus,

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sua essência, forma, movimentos e causas. Entretanto, Ele deu ao Homem o poder de conhecer as coisas sob os Céus, aqui é o mundo do Homem, esta é a casa que lhe pertence, na qual foi colocado e da qual ele mesmo faz parte. É por isso que os fatos de que necessitamos para provar a existência dos seres celestiais nos são inacessíveis. Os Céus estão muito longe de nós, tanto por sua localização quanto por sua natureza. As faculdades humanas são muito deficientes para com­preender até mesmo a prova geral, contida nos Céus, da existência Daquele que os coloca em movimento. É, de fato, ignorância ou uma espécie de loucura fatigar nossas mentes com questões que estão fora do nosso alcance, sem a posse dos meios para nos aproximarmos de­las. Devemos nos contentar com aquilo que está ao nosso alcance e abandonarmos o que não pode ser alcançado pela inferência lógica, conforme aconselha aqueles dotados de grande influência divina, ex­pressa nestas palavras: “Boca a boca falarei com ele”. (Números 12:8).18

isto é tudo o que posso explanar sobre este tema. Quem sabe outro encontre uma demonstração que evidencie a verdade do que, para mim, parece obscuro. Demonstro constrangimento nestes temas devido ao meu grande amor à verdade, e desconheço se alguma destas teorias foi estabelecida por demonstração.

18 Maimônides se refere aqui aos Profetas (NT).

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CAPÍTULO 2 5

A TEORIA DA CRIAÇÃO É ADOTADA DEVIDO À SUA SUPERIO­RIDADE PRÓPRIA, MESMO QUE AS PROVAS BASEADAS NA BÍ­BLIA SEJAM INCONCLUSIVAS

Não rejeitamos a Eternidade do Universo porque os textos bíblicos confirmam a Criação, já que as passagens que afirmam a Criação não são mais numerosas do que as alusões à corporeidade de Deus, nem é difícil ou impossível encontrar para estas uma interpretação conve­niente — poderíamos explicá-la da mesma maneira que fizemos com respeito à Incorporeidade de Deus. Talvez fosse até muito mais fácil, e certamente muito produtivo, mostrar os textos bíblicos que visariam estabelecer a Eternidade do Universo, se a aceitássemos. Poderíamos, então, explicar os antropomorfismos da Bíblia, mas, ao invés disso, rejeitamos a idéia da corporeidade de Deus. Duas razões nos movem a proceder assim:

1) A Incorporeidade de Deus foi demonstrada. Aquelas passagens bíblicas que, em seu sentido literal, contêm premissas passíveis de se refutar por demonstração, podem e devem, todavia, ser interpretadas. Mas a Eternidade do Universo não foi demonstrada. Um simples ar­gumento a favor de uma determinada teoria não é razão suficiente para rejeitar o sentido literal de um texto bíblico e explicá-lo de modo figurado, quando uma teoria oposta poderia ser sustentada por um argumento equivalente.

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2) Nossa crença na Incorporeidade de Deus não contraria nenhum princípio fundamental de nossa religião, nem desmente nenhum texto dos Profetas. Somente os ignorantes acreditam que isto contraria os ensinamentos bíblicos. Demonstramos que não é este o caso, ao con­trário, a Bíblia ensina a Incorporeidade de Deus. Admitir a Eternidade do Universo tal como ensina Aristóteles, ou seja, que todo no Univer­so é resultado de leis fixas, que a Natore2a não muda e que não existe nada sobrenatural, seria se opor necessariamente à base de nossa reli­gião, desmentir todos os milagres e sinais, rejeitar todas as esperanças e temores derivados da Bíblia, a menos que se pretenda interpretar os milagres de modo figurado. Os Batinies (os Metafóricos) muçulmanos fizeram isso e chegaram a conclusões absurdas. De todo modo, caso se admitisse a Eternidade do Universo conforme a segunda das teorias que expusemos — a de Platão, segundo a qual os Céus também são transitórios —, não nos oporíamos aos princípios fundamentais de nos­sa religião, pois esta teoria não implica a rejeição de milagres, mas ad­mite a possibilidade. Se o texto bíblico fosse explicado de acordo com esta teoria, muitas expressões seriam encontradas na Bíblia e em ou­tros escritos que a confirmariam e a sustentariam. Mas não necessita­mos deste expediente, porque esta teoria ainda não foi demonstrada. Como não há provas suficientes para nos convencer, nem ela, nem a outra precisam consideradas. Preferimos interpretar os textos bíblicos em seu sentido literal e afirmar que estes nos ensinam uma verdade que não pode ser comprovada. Os milagres são evidências da correção do nosso ponto de vista.

Admitida a Criação do Universo, todos os milagres são possíveis, bem como a Profecia, e se desvanecem todas as dificuldades. Caso se pergunte: “Por que Deus inspirou uma determinada pessoa e não ou­tra? Por que Deus revelou a Lei a uma certa pessoa e em uma época específica? Por que permitiu algumas coisas e proibiu outras? Por que mostrou por meio de um Profeta determinados milagres particulares? Qual é o propósito dessas leis? Por que Ele não fez os mandamentos e proibições como parte da nossa natureza, se era Seu objetivo que vi­vêssemos segundo estas leis?”

Respondamos a todas estas questões: Ele quis assim ou Sua Sabedo­ria decidiu assim. Ele criou o Universo segundo a Sua Vontade, em um determinado momento e de uma determinada forma, e assim como nós não compreendemos porque Sua Vontade ou Sua Sabedoria decidiu esta forma e este momento peculiares, também não podemos compreender

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porque Sua Vontade ou Sabedoria determinou quaisquer das coisas men­cionadas nas questões precedentes. Mas se admitirmos que o Universo tem a sua forma atual como resultado de leis fixas, então surge a neces­sidade das questões acima, que somente poderiam ser respondidas de forma equivocada, implicando a negação e a rejeição dos textos bíblicos, de cuja correção nenhuma pessoa inteligente duvida.

Logo, rejeitamos a teoria da Eternidade do Universo por falta de provas. É por estas várias razões que as mentes mais nobres despende­ram e ainda despenderão seus dias pesquisando sobre esta matéria, pois se a teoria da Criação do Universo for comprovada, nem que seja tão somente segundo a hipótese de Platão, todos os argumentos dos filósofos contra nós perdem o valor. Se, por outro lado, Aristóteles tivesse uma prova para sua teoria, todo o ensinamento da Bíblia seria rejeitado, e seriamos obrigados a seguir outras opiniões. Com isso, lhe expus tudo sobre esta questão. Preste atenção nisso.

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CAPITULO 26EXAME DE UMA PASSAGEM DE PIRICE DI-RAB1 ELIEZERl<) COM RELAÇÃO À CRIAÇÃO

Nos celebrados Capítulos de Rubi Elie^er, o Grande, intitulados Pirkê di- Rabi Elie\er, li uma passagem tão estranha como jamais lera entre os seguidores da Lei de Moisés. Refiro-me à seguinte passagem:

De onde foram criados os Céus? Ele tomou parte da luz de Sua vesti­menta, estendeu-a como um manto e assim os Céus se estendem con­tinuamente, conforme está dito: “Envolvido em luz como um manto, estendendo os Céus como uma cortina” (Salmo 104:2). De onde foi criada a Terra? Ele tomou da neve sob o seu Trono de Glória e a espa­lhou, segundo o dito: “Disse à neve: Seja terra” Qó 37:6).

Estes são os termos da passagem em questão. Eu, surpreso, per­gunto: em que acreditava este Sábio? Será que ele pensava que nada pode ser produzido do nada e que as coisas foram formadas a partir de uma substância? Será que, por esta razão, ele pergunta de onde os Céus e a Terra foram criados? O que ele obtém com a resposta? Poderíamos

19 Pirkê di-RabiElie^er. Capítulos de Rabi Eliézet (NT).

lhe perguntar: De onde vem a luz que forma a Sua vestimenta? E a neve sob o seu Trono de Glória? E o próprio Trono de Glória? Se as ex­pressões /«£ da Sua vestimenta e Trono de Glória significam algo eterno, devem ser rejeitadas, pois implicaria admitir a Eternidade do Universo, ao menos segundo a teoria de Platão. A criação do Trono de Glória é mencionada por nossos Sábios de uma forma estranha. Eles dizem que este Trono foi forjado antes da Criação do Universo.20 A Bíblia, no entanto, não menciona a criação do Trono, salvo nas palavras de David: “Y H V H nos Céus preparou Seu Trono” (Salmo 103:19). Mas este é um texto bastante suscetível a interpretação metafórica. No entanto, a Eter­nidade do Trono é descrita expressamente: “Tu, Y H V H , para sempre sentarás em Teu Trono, de geração em geração” (Lamentações 5:19). Agora, se Rabi Eliézer admitisse que o Trono era eterno, então a pala­vra trono expressaria um atributo de Deus e não algo criado. Como algo seria criado de um simples atributo? Mais estranho ainda é sua expressão da lu% da Sua vestimenta.

Em suma, esta passagem confunde sobremaneira as noções de qual­quer pessoa inteligente e religiosa. Sou incapaz de explicá-la a conten­to e tão somente a recordei para que você não seja induzido a erro por isso. Uma coisa importante que Rabi Eliézer nos ensinou aqui é que a substância dos Céus é diferente daquela da Terra. Há duas substâncias diferentes: uma é descrita, pela sua posição superior, como pertencen­te a Deus: a lu^ da Sua vestimenta-, e a outra, distante do Seu esplendor e luz — a substância terrestre, portanto — é descrita como a neve sob o seu Trono de Glória, o queo me levou a interpretar as palavras “E sob Seus pés como obra de construção de safira (...)” (Êxodo 24:10) no sentido de que os nobres do Povo de Israel compreenderam, em visão Profé­tica, a natureza da matéria-prima terrestre, pois, segundo Onkelos,21 o pronome da frase Seus p és refere-se ao Trono, como já lhe expliquei. Isto indica que a brancura sob o trono significa a substância terrestre. Rabi Eliézer reproduziu isto e esclareceu que existem duas matérias, uma superior e outra inferior, e que não há substância comum entre elas. Este é um tema importante e não devemos menosprezar a opinião dos maiores Sábios de Israel a respeito, dado que se trata de um ponto

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20 “Os antigos rabinos enumeram sete coisas criadas antes da Criação do Mundo, entre as quais figura o Trono de Glória.” (Munk).

21 Onkelos: tradutor e intérprete da Bíblia, do hebraico para o aramaico (NT).

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importante na explicação da existência do Universo e um dos segredos da Lei. No Bereshit Rabá (cap. 12) se lê: “Rabi Eliézer afirma: as coisas dos Céus foram criadas nos Céus. As coisas da Terra, na Terra”. Ob­serve como o Sábio concluiu, de forma engenhosa, que todas as coisas da Terra têm uma substância comum e os Céus, e tudo o que ele con­tém, têm outra matéria, diferente daquela. Além dessas coisas prece­dentes, ele ainda explica, em seus Capítulos, a superioridade da substân­cia celeste e sua proximidade de Deus e, por outro lado, a inferioridade da substância terrestre e sua posição. Preste atenção nisso.

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CAPÍTULO 2 7

A TEORIA DE UMA FUTURA DESTRUIÇÃO DO UNIVERSO NÃO FAZ PARTE DA CRENÇA RELIGIOSA ENSINADA NA BÍBLIA

Já lhe expus que a crença na Criação do Universo é, necessariamente, o fundamento de toda religião, No entanto, não consideramos, como um princípio de nossa fé, que o Universo será novamente reduzido a nada. Assumimos que o Universo continuará a existir para sempre. Talvez você pergunte: Não fo i demonstrado que tudo quanto nasce éperecível e, portanto, se f o i gerado, perecerá? Este axioma, segundo o nosso ponto de vista, não se aplica neste caso. Não defendemos que o Universo pas­sou a existir do mesmo modo que as demais coisas da Natureza, como resultado das leis naturais, pois tudo o que deve sua existência à ação das leis naturais é, segundo estas mesmas leis, perecível. A lei que cau­sou a existência de um ser a partir da inexistência é também a causa da sua existência transitória, assim como a inexistência anterior prova que a natureza de uma coisa não necessita de uma existência permanente. Segundo nossa teoria, ensinada na Bíblia, a existência ou inexistência das coisas depende tão somente da vontade de Deus e não das leis fixas. Todavia, disso não se deduz que Deus deve destruir o Universo após tê-lo criado do nada. Depende da Sua vontade. Dependerá da Sua vontade ou do decreto da Sua Sabedoria destruí-lo ou conservá-lo. Portanto, é possível que o conserve perpetuamente e lhe outorgue uma

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permanência semelhante à Dele. Você sabe que os Sábios nunca disse­ram que o Trono da Glória perecerá, todavia admitem que é algo criado. Nenhum Profeta nem Sábio disse que o Trono da Glória será destruído ou aniquilado, ao contrário, as passagens bíblicas falam da sua perpe- tuidade. Acreditamos que as almas dos piedosos, que foram criadas, são imortais.22 Conforme as teorias daqueles que se prendem ao senti­do literal dos Midrashím, seus corpos gozarão também de eterna felici­dade. Esta noção é semelhante à conhecida crença de determinadas pessoas, de que há prazeres físicos no Paraíso.

Em suma, a razão nos leva à conclusão de que a destruição do Universo não é uma certeza. Esta questão deve ser examinada à luz das palavras dos Profetas e dos Sábios, com o intuito de verificar se eles afirmam que o mundo chegará, com certeza, ao fim ou não. O povo, em geral, acredita que este ensinamento foi dado e que todo o Mundo será destruído. Demonstrarei o contrário. Muitas passagens na Bíblia falam da existência permanente do Universo. Aquelas passagens que, no sentido literal, indicariam a sua destruição sem dúvida alguma de­vem ser entendidas no sentido figurado, como será demonstrado. Se, no entanto, os seguidores do sentido literal da Bíblia rejeitam nosso ponto de vista e assumem que a destruição final do Universo é parte de sua fé, eles têm liberdade para assim pensar. Mas nós devemos lhes explicar que a crença na destruição não está necessariamente relacio­nada à crença na Criação. Nisso eles acreditarão, pois confiam no Es­critor-- que usou a expressão figurada, cujas palavras eles tomaram lite­ralmente. Sua fé, no final das contas, não será prejudicada por isso.

22 “Já se tem visto, em outro lugar, que nosso autor atribui a imortalidade somen­te às almas dos justos, ou seja, aos que nesta vida chegaram ao grau de intelecto adquirido, enquanto as almas dos ímpios, ou daqueles que não buscaram neste mundo a perfeição pela virtude ou pela ciência, estão condenadas à destrui­ção.” (Munk). Alusão a Provérbios 25:2 (“A Glória de Deus é encobrir as coi­sas, e a honra do rei, esquadrinhá-las”), que os antigos rabinos aplicam aos segredos contidos no primeiro capítulo do Gênesis (Maeso).

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CAPÍTULO 28O ENSINAMENTO BÍBLICO ESTÁ A FAVOR DA INDESTRUTIBI- LIDADE DO UNIVERSO. A DOUTRINA DE SALOMÃO - LIVROS SAPIENCIAIS A ELE ATRIBUÍDOS - COM RELAÇÃO À ETERNI­DADE DO UNIVERSO E SUA PERMANÊNCIA

Muitos de nossos correligionários pensaram que o Rei Salomão acre­ditava na Eternidade do Universo. Isto é muito estranho. Como pode­mos supor que qualquer um que adote a Lei de M osbé Rabênu aceitaria aquela teoria? Se alguém suspeitasse que Salomão, neste ponto, tivesse se desviado das Leis de Moisés (Deus nos livre!), por que a maioria dos Profetas e Sábios aceitaria isso? E como não haveria oposição ou recri- minação por ele sustentar esta opinião, assim como foi reprimido por se casar com mulheres estrangeiras e por outras coisas? O que me induziu a refletir sobre isto foram as afirmações dos Sábios: Eles quise­ram suprimir o livro de Kobélel (Eclesiastes), po is suas palavras podem levar ao ceticismo. Assim é, sem dúvida. Quero dizer que neste livro, se tomado literalmente, há conceitos estranhos aos ditados pela Lei, que reque­rem interpretação. Mas, no tocante à Eternidade do Universo, não há versículo algum que a afirme, nem se encontra absolutamente qual­quer passagem que leve explicitamente a esta teoria. No entanto, apa­recem algumas passagens que implicam a indestrutibilidade do Uni­verso, uma doutrina verdadeira, e, pelo fato de ser ensinada neste livro,

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algumas pessoas inferiram erroneamente que o autor acreditava na Eternidade do Universo, O texto referente à indestrutibilidade do Universo declara: “Geração vem, geração vai e a Terra para sempre (le-Olám) permanece”. (Eclesiastes 1:4), Aqueles que discordam de mim com respeito à distinção acima (entre a indestrutibilidade e a Eterni­dade do Universo) são induzidos a explicar o termo lê-Olám como o tempo fixado para a existência da Terra. Do mesmo modo esclarecem que as palavras de Deus, “(...) em todos os dias da Terra” (Gênesis 8:22), significam que seus dias estão fixados. Mas eu queria saber o que se entende por estas palavras de David: “Estabeleceu a Terra sobre suas fundações, para que não se movesse para todo o sempre (lê-Olám vaêa) ” (Salmo 104:5). Porque se a expressão Olám vaêd não significasse, tam­pouco, a perpetuidade, concluiriam que também Deus teria perma­nência limitada, dado o que a Bíblia afirma acerca de sua perpetuida­de: “YHVH reinará para todo o sempre (lê-Olám vaêd)” (Êxodo 15:18 e Salmo 10:16). Devemos ter em mente que Olám somente significa sempre quando combinado com ad. Não faz diferença se vem em se­guida, como em Olám váêd, ou na frente, como em ád Olám. As pala­vras de Salomão, que somente contêm o termo lê-Olám , têm menos força que as palavras de David, que usa o termo Olám vaêd. David também expôs em outras passagens a incorruptibilidade dos Céus, a perpetuidade e a imutabilidade de suas leis e de todos os seres celes­tes. Ele afirmou: “Louva a YHVH desde os Céus (...) porque Ele orde­nou e foram criados. E os ergueu para todo o sempre, deu-lhes um estatuto e não passará” (Salmo 148:1-6), o que significa que as leis ditadas por Ele jamais se alterarão, ou as fontes das propriedades dos Céus e da Terra, mencionadas pelo Salmista anteriormente, pois ele ensina: Ele ordenou eforam criados.

[O Profeta] jeremias expressa-se desta forma: “Assim falou Deus: Dei o Sol para a luz dos seus dias; as Leis; a Lua e os astros para a luz da noite (.,.). Se deixarem de reger estas Leis diante de Mim, oráculo de YHVH, também a descendência de Israel cessará de ser uma nação diante de Mim por todos os dias.” (Jeremias 31:34-35), Ele declara, portanto, que estes decretos nunca serão removidos, embora possuam um início.

Prosseguindo a investigação, estas afirmações serão confirmadas em outros textos, além dos de Salomão. Ele também afirmou que estas obras de Deus, a saber, o Universo e o que ele encerra, perdurarão com suas propriedades para sempre, apesar de terem sido criadas: “Tudo

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quanto faz Deus é para sempre, a isto nada a acrescentar, e disso nada a piorar” (Eclesiastes 3:14). Declara neste versículo que o mundo é obra de Deus e é permanente. Quando afirma “a isto nada a acrescen­tar, e disso nada a piorar”, está incluindo a razão da perpetuidade. É como dizer que as coisas mudam para suprir aquilo que se espera ou para se livrar daquilo que é supérfluo. As obras de Deus, sendo perfei­tas, sem possibilidade de adição ou subtração, permanecem necessari­amente tais como são para sempre. É impossível que qualquer coisa que existe pudesse modificá-las. Ao final deste versículo, Salomão, como se quisesse descrever o propósito das exceções nas leis da Natureza ou justificar suas mudanças, declara: E Deusfempara que o vejam defrente. Sua vontade era afirmar: “Que se renovem as maravilhas”. Em seguida, suas palavras são “O que será já é; e o que foi, será. E Deus requisitou o que é seguido” (Eclesiastes 3:15). Elas significam que Ele deseja a perpetuidade do Universo e que cada pequena parte está encadeada a outra pequena parte.

O fato de que as obras de Deus são perfeitas e não admitem adição nem subtração já foi mencionado por Moisés, o maior dos Sábios: “A Rocha:23 Perfeitas são Suas obras” (Deuteronômio 32:4), ou seja, que todas as suas obras, a saber, as suas criaturas, são absolutamente perfei­tas, e qualquer acréscimo seria supérfluo ou desnecessário. Tudo quan­to Deus decreta para e por aquelas criaturas é inteiramente justo e conforme o ditame de Sua Sabedoria, como se explanará em alguns capítulos do presente Tratado.

23 A Rocba\ a palavra hebraica Tsúr, que significa rocha, é uma das formas utiliza­das na Bíblia para se referir a Deus (NT).

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CAPÍTULO 29EXPLICAÇÃO DAS FRASES BÍBLICAS QUE IMPLICAM A DES­TRUIÇÃO DOS CÉUS E DA TERRA

Quando ouvimos uma pessoa falando uma língua incompreensível para nós, sabemos sem dúvida que ela fala, mas não sabemos o que suas palavras significam. Todavia, mais grave é perceber, nesta fala, vocábu­los que no idioma do falante têm determinado sentido e, em nossa lín­gua, significam exatamente o contrário. Além disso, se interpretarmos as palavras no sentido que assumem em nossa língua, imaginamos que o falante as utilizou no sentido por nós conhecido. Como um homem árabe que, ouvindo um homem hebreu falar: Atvá,24 pensa que o hebreu recusa alguma coisa, enquanto, na verdade, ele diz que está agradecido e satisfeito. Exatamente o mesmo acontece com o leitor leigo dos Profe­tas, que não entende algumas palavras em absoluto, como disse um dos Profetas: “E será para vocês toda a Profecia como palavras de um livro selado” (Tsaías 29:11). Em outras passagens entende o oposto ou o inverso daquilo que o Profeta quis dizer, conforme disse outro Profe­ta: “E inverteram as palavras do Deus Vivo” (Jeremias 23:36). Leve em consideração que cada Profeta emprega sua linguagem peculiar, como

24 Avá\ se escrita com as letras hebraicas Alef, V ête Hê, significa “desejo” (NT).

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se fosse sua própria língua, ao par que sua revelação Profética particular lhe faz expressar assim a quem a entende.

A partir desta introdução, você deve entender a linguagem metafó­rica freqüentemente utilizada por Isaías (a paz esteja com ele) e, em menor grau, por outros Profetas. Quando se refere à queda de um povo ou à destruição de uma grande nação, serve-se de expressões tais como: os astros caíram, os Céus se moveram, o Sol obscureceu, a Terra ficou devastada e treme, e metáforas similares. Entre os árabes se diz: Os Céus viraram sobre sua Terra, a propósito daquele que foi vítima de uma gran­de desgraça.. Quando descrevem a prosperidade de uma nação afir­mam que A. lu% do Sol e da Tua aumentou, Um novo Céu e uma nova Terra foram criados, e outras afirmações semelhantes. Assim também os Pro­fetas, referindo-se à ruína de uma pessoa, nação ou estado, atribuem a Deus estados de cólera e de extrema indignação contra eles e quanto à prosperidade de uma nação, atribuem-na à satisfação e ao prazer de Deus. Em relação a um estado de cólera contra eles, usam as palavras: saiu, baixou, 7'ugiu, trovejou, fe^ retum bara sua vo% etc., como também: man­dou, disse, operou, fe%, e outras que exporei. Algumas vezes os Profetas usam o termo Humanidade, em vez de um povo de um. determinado lugar, cuja destruição prevêem. Por exemplo, Isaías, ao falar da destruição de Israel, afirma: “E afastou YHVH o Homem” (Isaías 6:12), O Profeta Sofonias2 afirmou no mesmo sentido: “Exterminarei o Homem da face da Terra (...) e empunharei minha mão sobre Yehudá” (Sofonias 1:3-4). Saiba bem disso!

Depois de falar sobre a linguagem dos Profetas em geral, demons­trarei sua exatidão e comprovação, Quando Isaías (A paz esteja sobre ele!) recebeu a missão divina de profetizar a destruição do Império Babilônico e as mortes de Senaqueribe26 e de Nabucodonosor2, (que surgiu depois da queda de Senaqueribe), ele descreveu do seguinte modo a queda e o fim dos seus domínios, suas derrotas e todo o mal que atinge a quem, derrotado, vai ruindo pela espada do vencedor: “Pois os astros dos Céus e seus luzeiros não darão suas luzes; escure­cerá o Sol ao nascer e a Lua não fará brilhar sua luz” (Isaías 13:10). E novamente: “Aos Céus estremecerei, e tremerá a Terra desde o seu

25 Sofonias: em hebraico, Tsefánia. (NT).26 Senaqueribe: em hebraico, Sancheriv. (NT).27 Nabucodonosor :em hebraico, Nevuchadnétsar. (NT).

lugar - diante da indignação de YHVH dos Exércitos, e no dia do furor de sua ira” (Isaías 13:13). Não acredito que exista alguém tão estúpido, cego e preso ao sentido literal das metáforas e expressões retóricas a ponto de achar que, com a queda do Império da Babilônia, haveria uma mudança na natureza dos astros dos Céus ou na luz do Sol e da Lua, ou, ainda, que a Terra sairia do seu centro. Pois tudo isso é a descrição de uma nação que foi derrotada, seus habitantes sem dúvida alguma consideraram toda luz escurecida e todo doce, amargo. Toda a terra lhes pareceu por demais estreita e os Céus viraram-se sobre eles.

Do mesmo modo, ao começar sua descrição sobre a situação extre­ma de prostração e servidão a que Israel ficaria reduzido no tempo do malvado Senaqueribe, quando este se apoderaria “de todas as cidades fortificadas dejudá” (Isaías 36:1) e o povo ficaria cativo e derrotado, acumulando-se sobre este todos os desastres por obra de Senaqueribe, e toda a Terra de Israel pereceria sob sua mão, Isaías expressa-se assim:

Medo e cova, e rede sobre ti, habitante de Israel! E será daquele que ouvir da voz do medo que cairá na cova e aquele que subir do meio da cova se enredará na rede, porque cachoeiras se abrirão do alto e tre­merão os fundamentos de Israel! Pior, piorará Israel, em migalhas se esmigalhará a terra, desmoronará Israel; cambaleante, cambaleará a terra como um bêbado (...)2S (Isaías 24:17-20).

Ao final desta passagem, quando Isaías descreve como Deus puni­rá Senaqueribe, a destruição de seu domínio orgulhoso sobre Jerusa­lém e sua redução à desgraça, anuncia metaforicamente: “E se rubori­zará a Lua e se envergonhará o Sol, porque reinará YHVH dos Exércitos (...)”. Yonatán ben U ^ iê l (A paz esteja sobre ele!) interpretou estas pala­vras acertadamente: quando ocorrer a Senaqueribe o que lhe está re­servado em Jerusalém, saberão os idólatras dos astros que é obra de Deus, ficando atônitos e confusos. “Os adoradores da Lua” — afirma —

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28 Note-se nesta passagem bíblica, além do conteúdo do texto, sua forma na utilização de palavras com sonoridade próxima, possivelmente para reforçar a intensidade do que é dito e que buscou-se reproduzir em parte na tradução: “P áchad 'vz-pácbat va-fách alêicha, ioshêv há-Arets! Vê-haiá há-nás mi-kól há- p á ch a d ipól el há-páchat, vê-há-olê mitóch há-páchat ilachêd bapách, ki arubót mi- maróm niftachú, va-irashú mosdêi Arets! Roa hitroaá há-Arets,p ó r hitporerá érets, m ót hitmoietã Arets, nôa tanúa érets ka-shikór (...)” (NT).

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“se enrubescerào; os que se prostram diante do Sol se verão humilha­dos, porque o reino de Deus se revelará

Em seguida, quando Isaías descreve a tranqüilidade que Israel des­frutará a partir da morte de Senaqueribe, a fertilidade e o cultivo de suas terras, a prosperidade do reino sob Ezequias, afirma por metáfo­ras que a luz do Sol e da Lua ficarão mais fortes, porque assim como, para o vencido, a luz desapareceria, substituída pela escuridão, da mes­ma forma ela aumentaria para o vencedor. Sempre que sobrevem, a alguma pessoa, uma grande desgraça, seus olhos se obscurecem e de­saparece o brilho de sua vista, porque o espírito da visão, devido à abun­dância de vapores, ao mesmo tempo perturba-se, debilita-se e se reduz , pela grande angústia e tristeza da alma. Ao contrário, na alegria, ao dilatar-se a alma, o espírito torna-se mais claro, o homem parece sentir a luz mais luminosa do que antes. Depois de explicar “Porque o povo em Sion, morador dejerusalém, chorar não chorará (...)” (Isaías 30:19), acrescenta ao final da passagem: “E será a luz da Lua como a luz do Sol; e a luz do Sol será sétupla como a luz de sete dias, no dia em que fechará YH V H a ferida de seu povo e curará a chaga de seus açoites” (Isaías 30:19-26). A sua intenção é afirmar que levantará o povo de sua prostração, causada pelo malvado Senaqueribe. Quanto à expressão como a lu^ de sete dias, os comentaristas explicaram que significa a abun­dância, porque, entre os hebreus, o número sete denota multiplicidade. Na minha opinião, ele faz referência aos sete dias da dedicação ao Templo, realizada nos tempos de Salomão, pois nunca o país desfru­tou de tanta prosperidade e júbilo geral como naqueles dias. Por isso se diz que o auge e a felicidade de Israel serão como naqueles dias.

Quando descreve a ruína do maldoso Edom, declara: “Seus mortos ficarão abandonados, seus cadáveres exalarão um odor fétido; e derre­terão montanhas pelo sangue deles; e se dissolverão todas as milícias dos Céus; e os Céus serão enrolados como um livro; e todo o seu exército cairá como caem as folhas da videira e como as folhas da figueira. Porque se encharcou nos Céus a Minha espada, eis que desce­rá sobre Edom (...)” (Isaías 34:3-5).

Aqueles que têm olhos para ver devem reparar se há, nesses tex­tos, algo obscuro ou que induza a pensar que esteja descrevendo al­gum fenômeno que realmente acontecerá nos Céus, algo que não seja metáfora destinada a fazer entender que seu reino será aniquilado, que lhes será retirada a proteção divina e que a sua boa sorte e a dignidade de seus maiorais se desvanecerão com presteza e rapidez. É como se

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comparasse as pessoas aos astros que, por serem fixos, altos e afasta­dos das mudanças, cairão rapidamente, como cai a folha da videira, etc. Está muitíssimo claro e nem precisa se mencionar e muito menos se estender a respeito disso em um Tratado como este. Mas a necessidade nos compeliu a isso, porque o povo e até pessoas tão reputadas quanto eminentes explicam este versículo - sem refletir sobre o que o antece­de, sobre o que se segue a ele e nem sobre o seu contexto — como se fosse um relato por meio do qual a Bíblia quisesse nos anunciar os últimos dias dos Céus, assim como nos relatou as suas origens.

Deste modo, ao prenunciar Isaías a Israel a destruição de Senaqueri­be, dos povos e reis que com ele se relacionavam, como é sabido, e a vitória com o auxílio de Deus e de ninguém mais, declara metaforica­mente: “Veja como estes Céus se desvanecem e morrem aqueles que o habitam, mas vocês recebem ajuda”. E como se dissesse que aqueles que se espalharam por toda a Terra e que, hiperbolicamente, eram fir­mes como os Céus, perecerão rapidamente, diluir-se-ão como a fumaça e seus monumentos visíveis, tão fkmes quanto o solo, desaparecerão do mesmo modo que uma roupa gasta. No início desta passagem afir­mou: “Porque se compadecerá YHVH de Sion, se compadecerá de to­das as suas ruínas (...)”; “Prestem atenção em Mim, meu povo (...)”; “Próxima a Minha justiça se aproxima, saiu Minha salvação (...)”; “Le­vantem aos Céus vossos olhos e olhem para a terra embaixo! Porque os Céus se dissiparão como fumaça, a terra se consumirá como uma roupa gasta e seus habitantes como as moscas morrerão — e Minha salvação para todo o sempre será e Minha justiça não terá fim.” (Isaías 51:3-6).

Quando relata a restauração do Reino de Israel, sua estabilidade e permanência, afirma que Deus renovará Céus e Terra porque, em sua linguagem, refere-se sempre ao reino de um monarca, como se fosse um mundo especialmente dele, ou seja, Céus e Terra. E ao iniciar as conso­lações declarando: “Eu, Eu sou o Vosso Consolador” (Isaías 51:12), em seguida expressa-se assim: “Eu colocarei Minhas palavras em toa boca e à sombra de minha mão te esconderei, ao estender os Céus e fundar a Terra, e dizer a Sion: Tu és Meu povo!” (Isaías 51:16). Para fixar a perma­nência da realeza de Israel e seu afastamento dos famosos potentados, afirma: “Que os montes sejam retirados” (Isaías 54:10). Com respeito à perpetuidade do Reino do Messias e à indestrutibilidade da monarquia de Israel, acrescenta: “Não se porá mais o Teu Sol (...)” (Isaías 60:20). Em suma, para quem compreende o sentido destas palavras, Isaías emprega constantemente metáforas em sua linguagem. Do mesmo

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modo, ao descobrir as circunstâncias e pormenores do Exílio, bem como a restauração do poderio e o desaparecimento de toda dor, exprime-se por metáforas: “Eu criarei outros Céus e outra Terra; os amais cairão em. esquecimento e sua memória será apagada”. Depois explica, ao longo de sua fala: “Entendo por ‘Eu criarei’ a instauração, para vocês, de um esta­do de gozo e de alegria constantes, no lugar desta dor e aflição, e não se recordarão mais dos pesares anteriores”.

Ao abordar esta passagem, note a ordenação das idéias e compre­enda os versículos correspondentes: “Da misericórdia de YHVH lem­brarei, os louvores de YHVH (...)” (Isaías 63:7). Em seguida, primeiro descreve as bondades de Deus (Exaltado SejaS) para conosco, nestes termos: “E os resgatou e os apoiou por todos os dias da Antiguidade (..,)” (Isaías 63:9), e depois relata nossa rebelião: “Mas eles se rebela­ram e entristeceram seu Santo Espírito (.,.)” (Isaías 63:10). Mais adian­te, conta como o inimigo nos subjugou: “...nossos inimigos têm humi­lhado Teu Santuário (...)” (Isaías 63:18). A partir disto, intercede por nós pedindo: “Não te irrites, YHVH, demais (...)” (Isaías 64:8), Lem­bra-se logo como merecemos o acúmulo de males sobrevindos por não darmos ouvidos à verdade: “Deixei-me consultar pelos que não me interrogavam (...)” (Isaías 65:1) e, em seguida, Deus promete o perdão e misericórdia nestes termos: “Assim disse YHVH: Como quando há sumo em um cacho (...)” (Isaías 65:8).

A seguir, ameaça com o castigo àqueles que não foram oprimidos: “Eis aqui o que meus servos comerão, e vós tereis fome (...)” (Isaías 65:13). Acrescenta, finalmente, que as crenças desta nação se retifica­rão. Ela será objeto de bênção sobre a Terra e escapará das vicissitu- des passadas: “E para seus servos será chamado por outro nome: Todo aquele que abençoar na Terra, será abençoado por Deus — Amen;29 e o que jurar na Terra deverá jurar por Deus - Amen; pois serão esque­cidas as primeiras angústias, estas sumirão dos meus olhos; porque aqui vou criar novos Céus e uma nova Terra, e já não recordará o passado nem virá mais ao coração, senão que se regozijará ern gozo e alegria eterna do que Eu vou criar, porque é aqui que vou criar, para Jerusalém, alegria e para meu povo, gozo. E será Jerusalém minha alegria (...)” (Isaías 65:15-19).

29 Amem em tradução literal, significa “acreditarei” . Também é considerado um acrônimo da expressão hebraica JElMélech tieem án — E m Deus Acreditaremos (NT).

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Aqui você tem a elucidação de toda esta matéria, porque, logo em seguida, ele afirma: “E aqui que vou criar novos Céus e uma nova Terra; e esclarece imediatamente: Porque é aqui que vou criar, para Jerusalém, alegria e para meu povo, gozo”. Após este preâmbulo, acrescenta: as­sim como estas circunstâncias da fé e da alegria inerente, que prometi que se difundirão sobre a terra, subsistirão para sempre - porque a fé em Deus e a alegria que disto advém são duas circunstâncias que jamais cessam ou se alteram naqueles que a conseguiram — também a sua des­cendência e seu nome perdurarão. A determinação é a seguinte: “Por­que assim como os Céus novos e a Terra nova que Eu criarei permane­cerão diante de Mim — disse YHVH — assim permanecerão suas sementes e seus nomes” (Isaías 66:22). Porque ocorre, às vezes, que a estirpe continua, mas o nome se extingue. Assim, você encontra numerosos povos que indubitavelmente descendem da semente da Pérsia ou da Grécia e, todavia, não são conhecidos por um nome especial, pois foram absorvidos por outra nação. A meu ver, há aí uma alusão à perpetuida­de da Lei, graças à qual nós temos um nome especial.

Como estas metáforas são freqüentes em Isaías, tive que examinar todas, porém, elas ocorrem do mesmo modo nos textos de outros Profetas:

Jeremias, ao descrever a destruição de Jerusalém, por causa das pre­varicações de nossos antepassados, afirma: “Vi a Terra, e eis que era vazio e confusão (.,.)” (Jeremias 4:23).

E^equiel, narrando a ruína do reino do Egito e a queda do Faraó por obra de Nabucodonosor, declara: “Ao apagar tua luz, velarei os Céus e obscurecerei seus astros. Cobriremos o Sol com nuvens e a Lua não resplandecerá; todos os astros que brilham nos Céus, irei vesti-los de luto por ti, e cobrirei de trevas tua terra, disse o Senhor, YH VH ” (Ezequiel 32:7-8).

Joel, filho de Petuel' referindo-se à praga de gafanhotos que sobreveio em seu tempo, assim se expressa: “Diante deles tremerá a terra, trove- jarão os Céus. O Sol e a Lua se obscurecerão, e os astros extinguirão seu brilho!” (Joel 2:10).

Amós, em seu relato da destruição de Samária, afirma: “Trarei o Sol ao Meio-Dia, Escurecerei a Terra em pleno dia e Inverterei suas sole- nidades (...)” (Amós 8:9-10).

Miquéias, a propósito da destruição de Samária, recorre às conheci­das expressões retóricas: ‘Tois eis que YHVH sairá de seu lugar, descerá e caminhará sobre os cumes da Terra, e se fundirão os montes (...)” (Miquéias 1:3-4).

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Ageu declara, a respeito do aniquilamento do reino dos Persas e dos Medos: “Farei tremer os Céus e a terra e o mar e o seco, e estremecerei todas as nações (...)” (Ageu 2:6-7).

Os Salmos de David descrevem a expedição de Joáb contra Arám, a debilidade anterior e o rebaixamento desta nação, e, ainda, como os israelitas foram derrotados e postos em fuga. Para que agora saiam vitoriosos, ora nestes termos: “Fizeste estremecer a terra e a fendes- te; restaura esta brecha antes que desmorone” (Salmos 60:4). Analo­gamente, para nos avisar que não devemos temer quando os povos são destruídos até sua aniquilação, posto que nosso apoio está em Sua ajuda (Exaltado seja!), e não em nossa luta e em nossa força, afirma: “Povo salvo por YHVH” (Deuteronômio 33:29) e proclama: “Por isso nós temos que temer [a Deus], ainda que trema a terra, ainda que se movam os montes na enseada do mar” (Salmo 46:3). Na referência à submersão dos egípcios, encontramos: “Asa águas Te perceberam,, ó Deus, elas Te viram e tremeram. Até os abismos fremiram (...) Propagou-se o som do Teu trovão, relâmpagos ilumi­naram o mundo, abalou-se e estremeceu a terra” (Salmos 77:17-19); “Acaso, YHVH, acende-se Tua ira contra os rios?” (Habacuc 3:8); “de Suas narinas subiu uma fumaça (...)” (Salmos 18:9). Igualmente no cântico de Débora há a referência: “A terra tremeu (...)” (Juizes 5:4). Como estas, há muitas passagens. Compare aquelas de que não me lembrei com estas que recordei.

Com respeito às palavras de Joel: “E farei prodígios nos Céus e na Terra: sangue e fogo e colunas de fumaça! E o Sol se converterá em trevas e a Lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia de YHVH. E todo aquele que invocar o nome de YHVH será salvo; por­que no monte de Sion e emjerusalém será a Salvação (...)” (Joel 3:3-5), eu estaria inclinado a acreditar que se referem ao desastre de Sena­queribe diante de Jerusalém ou, se isto não lhe agrada, talvez à des­crição de Gog10 diante de Jerusalém, nos dias do Rei Messias, ainda que

30 Gog. nome de um suposto reino, ao lado de outro — M agog — mencionado muitas vezes nos capítulos 38 e 39 do Livro de Ezequiel. Segundo alguns escri­tores, Gog é uma designação geral utilizada por Ezequiel para designar os po­vos inim igos de Israel. Outros acreditam que Gog teria sido o rei de Lídia, chamado de Gig pelos gregos ou de Gu-gu em inscrições assírias (fonte: site http://www.newadvent.org/cathen/06628a.htm, em 13/11/2002).

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esta passagem cite unicamente a grande mortandade, a devastação do fogo e o eclipse de todos os astros. Talvez você questione por que se chama o dia do desastre de Senaqueribe de o grande e terrível dia de YHVH, segundo nossa explicação? Você sabe que qualquer dia em que aconte­ça uma vitória ou uma grande calamidade é chamado de o grande e terrível dia de YHVH. Assim, Joel, referindo-se ao dia em que os gafa­nhotos sobrevieram contra eles, declarou: “Grande é o dia de YHVH, sobremaneira terrível; quem poderá suportá-lo?” (Joel 2:11).

O nosso objetivo está claro. A destruição deste mundo ou a mu­dança do seu estado amai, ou de qualquer outro,, carece de fundamen­to nos textos proféticos ou dos Sábios, pois ainda que estes afirmem que o mundo durará seis mil anos e que será devastado durante um milênio, isso não significa que todo ser existente retornará ao nada, já que as palavras e durante um milênio ficará devastado indicam, por si mes­mas, que o tempo perdura. Além disso, trata-se de uma opinião individu­al e uma maneira pessoal de ver as coisas. O que você encontrará, constantemente, como o princípio básico de que todos os Sábios da M ishnát do Talmuddeduzem seus argumentos, é que a expressão: “Não se faz nada de novo sob o Sol” (Eclesiastes 1:9) significa que não será produzida renovação alguma, de qualquer tipo que seja, nem por causa alguma . Neste extremo, até quem tome as palavras Céus novos e Terra nova no sentido erroneamente admitido, reconhece, não obstante, que mesmo os Céus e a Terra que serão criados no futuro, j á estão lá e subsistem, pois está dito: subsistem diante de Mim. Não subsistirão, mas sim subsistem, e assim se deduz o argumento destas palavras: Não se fa% nada de novo sob o Sol. Não pense que isto contradiz o que expliquei. Ao contrário, pois é possível que se queira sugerir que o estado físico necessário para produzir as circunstâncias prometidas é subjacente aos Seis Dias da Criação, o que é verdade.

Se eu lhe disse que nada alterará sua natureza de maneira que per­dure neste estado, foi unicamente como precaução com relação aos milagres, pois ainda que a vara tenha se transformado em serpente, a água em sangue e a mão pura e honrada em esbranquiçada, sem inter­venção de causa natural, estes fenômenos e outros semelhantes não foram duradouros, nem implicaram outra natureza, mas sim que, como afirmam os Sábios (Benditas sejam suas memórias!): 0 Mundo anda como de costume. Esta é minha opinião e o que entendo como aquilo em que se deve acreditar. Certamente os Sábios exprimiram-se, no tocante aos milagres, em termos surpreendentes, em uma passagem que você

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poderá ler no Bereshit Rabá e no Midrásh Kohélet?x A idéia é de que os milagres se fundamentam, de certo modo, na natureza, pois afirmam que, quando Deus (Exaltado Seja!) criou este mundo e pôs nele estas disposições físicas, nelas imprimiu também a possibilidade de todos os milagres que ocorrerão no momento certo. A marca do Profeta con­siste, pois, em antecipar o que Deus lhe revelou quanto ao momento dos milagres, marcado em sua natureza desde as suas origens,.

Sendo assim, isso realmente demonstra a grandeza de visão do au­tor desta passagem, que achava difícil a possibilidade de se transfor­mar uma natureza física a partir da obra da Criação ou de advir outra aspiração, depois de estabelecida a natureza, com sua chancela particu­lar. Dir-se-ia que considerava, por exemplo, que na natureza da água se fundamentava a sua continuidade e fluidez, sempre de cima para bai­xo, exceto quando os egípcios foram submersos. Somente neste caso, então, a água deveria se dividir.

Já lhe adverti a respeito do verdadeiro sentido desta passagem, e que tudo isso é para evitar a necessidade de admitir a inovação de qualquer coisa. A passagem tem o seguinte teor: Rabi Yonatán disse: 0 Santíssimo, bendito seja, impôs condições ao mar para que se rendesse diante dos israelitas, conforme está escrito: “ao despontar o dia, o mar recobrou seu estado ordi­nário.” (Exodo 14:27). Rabi Jeremias, filho de Eleazar, afirmou:

O Santíssimo fixou condições, não somente ao mar, mas sim a tudo o que foi criado nos Seis Dias da Criação, segundo se indica: “Minhas mãos estenderam os Céus, e Eu mando em todo o seu exército (Isaías 45:12)”. Eu ordenei ao mar para se dividir; ao fogo para não causar danos a Ananias, Misael e Azarias; aos leões para não machucarem Daniel; ao peixe para vomitar Jonas”.

E analogamente nos demais casos.O assunto, pois, fica esclarecido e a doutrina elucidada, ou seja, con­

cordamos parcialmente com a teoria de Aristóteles, admitindo que o Universo é eterno e que perdurará com a natureza que Ele (Exaltado Seja!) queira, e nada se modificará de forma alguma, salvo em detalhes ou talvez por um milagre, ainda que Ele (Exaltado Seja!) tenha o poder de transformar totalmente o Universo, reduzi-lo a nada ou, ainda, de

31 M idrásh Kohélet-. Comentário de Eclesiastes (NT).

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eliminar algumas destas disposições naturais. No entanto, o universo teve um início e nada existia no Início, senão Deus. Sua Sabedoria exigiu que desse existência à Criação no momento de sua realização e que aquilo que foi criado não fosse aniquilado, nem sua natureza modifica­da, exceto nestes detalhes que a Ele cabe mudar, porém, outros porme­nores nos são desconhecidos e pertencem ao futuro. Esta é a nossa consideração e o princípio fundamental da nossa Lei. Aristóteles, por outro lado, estima que, assim como é permanente e imperecível, o Uni­verso é também eterno e não foi criado. Pois bem, já dissemos que isso somente pode ser classificado segundo a h e i da Necessidade e a necessi­dade implica uma heresia com relação a Deus, conforme expusemos.

Neste ponto de nossa consideração, inseriremos um capítulo com diversas observações atinentes aos textos do Maassê Bereshít (0 Relato da Criação), já que o primeiro objetivo do presente Tratado era esclare­cer o que fosse possível sobre o Relato da Criação e o Relato da Carruagem Divina. Mas anteciparemos duas proposições gerais.

Uma delas é a seguinte: tudo quanto é lembrado no Relato da Criação, na Torá, não deve ser interpretado em seu sentido literal, como o povo imagina, posto que, neste caso, os homens de ciência não seriam tão reservados a respeito, nem os Sábios teriam recomendado tanto sigilo e circunspeção diante do povo, já que estes textos, ao pé da letra, induzem a uma grande confusão de idéias e acarretam opiniões ruins sobre a Lei de Deus ou a clara negação e heresia acerca dos fundamen­tos da Lei. O certo é evitar examiná-los através da simples imaginação, vazia de ciência, e proceder como estes pobres predicadores e comen­taristas que pensam que a ciência consiste no conhecimento semântico das palavras, convencidos de que a perfeição se baseia na verbosidade e prolixidade da expressão. O certo é meditar com determinada inteli­gência, depois de se impor o estudo das ciências demonstrativas e a investigação dos mistérios proféticos. Não obstante, ninguém que te­nha alcançado esta matéria deve divulgá-la, como expus reiteradamen- te em meu Comentário àMishná. Proclama-se expressamente: “Desde o princípio do livro (Gênesis) até aqui, a honra de Deus encobrirá a co isd ’?2 Foi dito isso (no Midrásh) ao final do relato do Sexto Dia.

32 Alusão a Provérbios 25:2: “A Glória de Deus é encobrir as coisas, e a honra do rei, esquadrinhá-las”, que os antigos rabinos aplicam aos mistérios contidos no primeiro capítulo do Gênesis (Maeso).

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Fica, pois, esclarecido o que dissemos. Todavia, como o preceito divino obriga, necessariamente, àquele que tenha logrado alguma per­feição, a difundi-la entre os demais, como explanaremos nos capítulos referentes à Profecia, todo Sábio um tanto conhecedor destes mistéri­os, seja por sua própria especulação, seja pela doutrinação de algum mestre, deverá dizer algo a respeito. Mas, como está proibido de ser explícito, deve se limitar a meras alusões. Estas, assim como algumas observações e indicações, encontram-se nas ponderações de nossos Mestres (Benditas sejam suas memórias!), embora mescladas com as palavras de outros e com temas diferentes. Por este motivo, você per­ceberá que, em se tratando destes mistérios, sempre me limito ao que constitui o fundo básico da questão, reservando o resto àqueles que sejam dignos do que lhes seja ensinado.

A segunda proposição é: os Profetas, conforme temos indicado, ser­vem-se, em suas locuções, de termos com múltiplos significados e vocábulos que não correspondem, em sua intenção, a seu sentido pri­mário, mas são empregados por alguma relação semântica. Assim, por exemplo, a expressão M akêlShakêd (bastão de amêndoa/perseverante) dever ser interpretada com o sentido de perseverante, como se pode deduzir pela sua semelhança com Shokéd aní (sou perseverante) (...), conforme explicarei, nos capítulos referentes à Profecia, no Relato da Carruagem Divina, o termo Chashmál33 (Ezequiel 1:4); Reguei E gu el(pata de bezerro) (Ezequiel 1:7); a declaração de Zacarias (6:1): “Os montes eram de cobre”, e outras expressões similares.

Com base nessas duas proposições, segue o capítulo prometido.

33 Chashmál. em hebraico moderno, significa eletricidade (NT).

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CAPÍTULO 30INTERPRETAÇÃO FILOSÓFICA DE GÊNESIS 1-4

Você deve considerar a diferença existente entre os termos Techilá (o princípio) e Be-reshít (No.início). A expressão o início é empregada para designar sua função no ser ao qual se refere o conjuntamente com ele, ainda que não lhe preceda no tempo. Assim, por exemplo, afirma-se que o coração é o início do animal — o elemento é o iníáo daquilo que é a base. O termo o princípio também se aplica, às vezes, nesta acepção, em outras designa simplesmente a anterioridade no tempo, sem que se pressuponha que seja a causa do que vem depois. Dizemos, por exem­plo, que Fulano foi em princípio quem habitou tal casa e, depois, Ci- crano, mas não se diz que Fulano é a causa de Cicrano habitar a casa. O termo que, em hebraico, indica o princípio é Techilá, como em: “Em princípio (Techilái) fala de YHVH a Oséias” (Oséias 1:2); e o que desig­na o iníáo é Keshít, derivado de Rósh (cabeça), que é o iníáo do animal, por sua posição.

Pois bem, o Universo não foi criado por algo que o precedesse no tempo, dado que o tempo pertence ao conjunto das coisas criadas, por isso se afirmou: Be-Reshít (Gênesis 1:1), em que a partícula Be tem o sentido de no. A verdadeira tradução deste versículo é, portan­to: No início criou Deus os Superiores (Céus) e os Inferiores (Terra) cujo significado está de acordo com a Criação do Mundo. Quanto ao que

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você encontrará escrito, por certos Sábios, com relação à existência do tempo antes da Criação do Universo, verá que é extremamente obscu­ro, Esta seria, conforme já lhe expus, a opinião de Aristóteles, o qual pensa que não cabe conceber um início para o tempo, o que é incon­gruente. Sem dúvida, o que os induziu a professar essa teoria foi en­contrar, no texto bíblico, os termos Dia Primeiro (Gênesis 1:5) e Dia Segundo (Gênesis 1:8). Considerar dessa forma é ater-se ao sentido lite­ral, desprezando o fato de que, se ainda não existia esfera que girasse, nem Sol, com o que se poderia medir o Primeiro Dia? A Bíblia usa o termo Primeiro Dia, conclui-se então, diz Rabi Yehudá ben Shimón, que a divisão do tempo já existia anteriormente. Rabi Abahu deduz que Deus, Há-Kadósh Barúch Hú (O Santíssimo, bendito seja) havia criado e destruído mundos.34 Esta segunda opinião é, todavia, mais inaceitável do que a primeira. Você compreenderá que o difícil é conceber a exis­tência do tempo antes da existência do Sol, mas já lhe será esclarecida a solução daquilo que, para eles, era nebuloso, a menos que (por Deus!) quisessem sustentar que a divisão do tempo existiu antes da criação do Sol. Mas isso eqüivaleria a admitir a Eternidade do Universo, coisa a que todo aquele que respeita a Lei deve ser contra. Esta passagem é, na minha opinião, semelhante à de Rabi Eliezer: De onde foram criados os Céus (...)? Em suma, não se deve levar em conta opiniões particulares em tais referências. Já lhe ensinei que o princípio fundamental de toda a Bíblia é que Deus criou o Universo do nada; que o tempo não pree- xistiu, mas foi criado, pois depende do movimento da esfera celeste; e a própria esfera também foi criada.

Convém saber, deste modo, com respeito à partícula ét em é t há- Shamáim vê-ét há-Arets — “[com] os Céus e [com] a Terra” (Gênesis 1:1), que os Sábios, em numerosas passagens, declaram que tem a acepção de com, significando assim que Ele criou, junto e com os Céus, tudo o que neles há e com a Terra, tudo quanto está contido nela. Você já conhece a afirmação explícita de que os Céus e a Terra foram cria­dos ao mesmo tempo, conforme o texto: “Chamei-os, e logo aparece­ram” (Isaías 48:13). Assim, pois, tudo foi criado simultaneamente e, depois, as coisas foram se diferenciando gradualmente umas das outras.

34 Segundo alguns talmudistas (baseando-se em Bereshít Rabá 83), cada mundo tem uma duração de seis mil anos, seguidos de um sétimo milênio de Caos, depois do qual, cria-se um novo mundo (Maeso).

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Compararam-No ao lavrador que semeou a terra ao mesmo tempo com diversas sementes, das quais umas brotaram ao cabo de um dia; outras, de dois; e ainda outras, de três, apesar de se ter realizado a sementeira ao mesmo tempo. De acordo com esta concepção, indubi­tavelmente verdadeira, desvanece-se a dúvida que induziu o Rabi Yehudá ben Shimon à sua afirmação, já que lhe era difícil compreender como foram mensurados o Primeiro, o Segundo e o Terceiro Dias. Os Sá­bios formularam, no Bereshit Rabá, um juízo explícito acerca da L,u% criada no Primeiro Dia, segundo a Torá: “Os astros foram criados no Primeiro Dia, mas não foram suspensos até o Quarto Dia”. Fica, por­tanto, explicada a intenção desta explanação.

Entre outras coisas necessárias, deve-se saber que érets (terra) é um termo de múltiplos significados. Com sentido mais amplo, é emprega­do na forma A rets e, com sentido particular, na forma Erets. Aplica-se comumente A rets — Terra — a tudo o que há sob a esfera lunar, a saber: os quatro elementos, e, especialmente, o último deles, érets — terra. Demonstra-o este texto: “E a Terra {Arets) estava confusa e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, mas o espírito de Deus (...)” (Gênesis 1:2). Chama-se a tudo de Terra e, em seguida, acrescenta-se: “E ao seco chamou Deus terra {érets)” (Gênesis 1:10). Este, entre os segredos, é um grande segredo, pois sempre que você encontrar E Deus chamou a isto assim, o objetivo é separar determinada idéia de outra, geral, quan­do o termo é comum a ambas. Por isso interpretei o primeiro versículo como: No iníáo criou Deus os Superiores e os Inferiores, assim o vocábulo érets indica pela primeira vez o mundo inferior, ou seja, um dos quatro elementos. Tanto que ao afirmar: E ao seco Deus chamou terra, esta tena é somente terra. Isso fica, portanto, claro.

Daquilo que é necessário conhecer - os quatro elementos - afirma­mos que o termo érets é o primeiro mencionado depois dos Céus. Lem­brando: érets (terra), máim (água), rúach (sopro) e chóshech (trevas/fogo). Quanto a este último termo, designa o fogo fundamental, não se engane. Assim, depois de se declarar: “E do meio do fogo tens ouvido suas palavras” (Deuteronômio 4:36), acrescenta-se: “Quando ouvistes sua voz em meio às trevas” (Deuteronômio 5:20-23). E em outro lugar: “Toda sorte de trevas lhe está reservada, lhe devorará um fogo não aceso (pelo homem)” (Jó 20:26). A designação para fogo fundamental, utilizando-se este termo, refere-se ao que não é luminoso, mas simplesmente transpa­rente. Se fosse luminoso, veríamos todo o ar flamejando à noite.

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Sua enumeração corresponde às suas posições naturais: a terra, so­bre ela, a água; o ar, unido à água; e o fogo, por cima do ar, pois a locali­zação do ar “sobre a superfície das águas” (Gênesis 1:2) se dá porque as trevas, situadas sobre a fa ce do abismo (ibid.), colocam-se indubitavel­mente acima do ar. Quanto à razão da expressão Rúach Elohím (o So­pro/Espírito de Deus), é certo se afirmar: merachéfet(movimenta-se), e o movimento é sempre atribuído a Deus. Por isso: “Veio um sopro de YHVH” (Números 11:31); “Enviaste teu sopro” (Êxodo 15:10); “E YHVH fez dar volta ao sopro” (Êxodo 10:19); além de muitas outras passagens. A primeira vez em que se emprega a palavra chóshech para indicar escuridão (Gênesis 1:2) é diferente da segunda, o que se explica e se diferencia na afirmação: “E às trevas chamou noite” (Gênesis 1:5), conforme expusemos. Assim, isto também fica esclarecido.

Convém então saber que, nas palavras “separando águas de águas (...)” (Gênesis 1:7), não se diferença na localização, seja acima ou abai­xo, e a sua natureza é a mesma. No entanto, o significado é de que elas se dissociaram umas das outras por meio de uma diferenciação física, ou seja, pela forma. Daquilo que primeiramente havia sido designado com o nome de águas, fez-se uma coisa à parte, graças à forma física que a revestiu, e as outras águas foram dotadas de formas distintas, que são as águas autênticas, das quais o texto afirma: “E à agregação das águas chamou mares” (Gênesis 1:10). Assim, fica claro que as águas, primeiramente designadas pela expressão “sobre a superfície das águas” (Gênesis 1:2), não são as dos mares, mas sim a parte situada sob o ar, que se distinguiu por meio de determinada forma; e as outras são cha­madas de águas simples. Logo, a passagem “Estabeleceu separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento (...)” (Gênesis 1:7) é análoga à outra: “E Deus separou a luz das trevas” (Gênesis 1:4), em que se estabelece a distinção de forma.

O próprio firmamento foi formado de água, segundo dizem os Sábios: “a gota (ou grupo de gotas) do meio se consolidou”. A expres­são “Chamou Deus ao firmamento Céus”(Gênesis 1:8), conforme lhe expliquei, destaca o uso associado do nome, e não se trata dos mesmos Céus anteriormente citados na frase: “os Céus e a Terra” (Gênesis 1:1). Não é assim como nós denominamos, o que é corroborado pelas pala­vras “sob o firmamento dos Céus” (Gênesis 1:20), dando a entender que firmamento não se identifica com Céus. Por homonímia, os Céus também são chamados de firmamento, como em: “E os colocou no fir­mamento dos Céus” (Gênesis 1:17).

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Está claro, portanto, a partir desse versículo, que todos os astros, o Sol e a Lua não estão sobre a superfície das esferas, como acredita o povo, mas estão fixos dentro das esferas, e não há vazio no Universo, pois foi declarado: “no firmamento dos Céus”, e não “sobre o firma­mento dos Céus.

Portanto, está manifesto que, no início, existiu uma matéria comum chamada água, que posteriormente se distinguiu em suas três formas: uma constituiu os mares-, outra, o firmamento e a terceira se colocou sobre este, totalmente fora da Terra (os Céus). Neste assunto, então, seguiu-se um método diferente para indicar alguns segredos: designar pelo nome de água o situado sobre o firmamento, não sendo esta água defato, como disseram os Sábios (Benditas sejam suas memórias!): “Quatro entraram no Paraíso (...)”. Rabi Akiva afirmou: “Quando virem pedras de már­more puro não digam: Agua! Agua!, porque está escrito: Não habitará em minha casa o que cometa fraude’ (Salmo 101:7). Reflita, pois, se você é dos que pensam, o que se pode entender desta passagem, revelando todo o seu conteúdo, se a examinou com toda a exatidão e compreen­deu todo o demonstrado (por Aristóteles) no livro Sobre Meteorologia, e preste atenção em tudo o que foi dito sobre este assunto.

Você também deve saber e considerar a razão pela qual não se declarou, a respeito do Segundo Dia, que estava bom. Você já conhece a esse respeito o afirmado pelos Sábios (Benditas sejam suas memó­rias!), segundo o método interpretativo do Derásh. O mais provável é que a cnação das águas não havia sido concluída. Na minha opinião, tam­bém, a razão está perfeitamente clara: sempre que se menciona algu­ma das obras da Criação, cuja existência se prolonga, perpetua-se e chega ao seu estado definitivo, afirma-se “que estava bom. Mas o firmamento e o que se coloca acima dele, denominados de águas, es­tão, como você vê, envoltos em obscuridade. Com efeito, caso se tome ao pé da letra e de um modo superficial, é coisa inexistente, posto que não há nada entre nós e os Céus inferiores senão os elementos, nem água sobre o ar. Isto se aplica necessariamente a quem também imagi­na que este firmamento e o que há sobre ele estão por cima dos Céus, pois, neste caso, seria ainda mais impossível e inexeqüível. Por outro lado, o significado desta afirmação fica extremamente obscuro, caso se interprete em seu sentido esotérico e segundo o que realmente se quis expressar, porque a intenção era de que isto fosse parte dos segre­dos selados, inacessíveis ao povo. Como, pois, poderia se afirmar so­bre isso que estava bom? O sentido destas palavras é que o objeto em

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questão é de utilidade óbvia e evidente para a existência e prolonga­mento deste Universo. Mas se aquilo cujo sentido genuíno deve per­manecer encoberto e sua essência não se fazer visível tal como é, qual a utilidade de se contar aos homens? Só para poder declarar que está bom? Devo lhe dar ainda outra explicação: como isto constitui parte importante da Criação, não é com relação à subsistência do Universo que não se diz que estava bom, mas sim por uma necessidade compulsó­ria de que a terra ficasse descoberta. Entenda isso!

Preste atenção, pois, segundo a explicação formulada pelos Sábios, Deus só fez brotar da terra as ervas e as árvores depois de ter feito chover sobre ela, de maneira que a frase “E vapor aquoso que subiu da terra” (Gênesis 2:6) alude a uma circunstância anterior, que precedeu a ordem: “Faça brotar da terra erva verde” (Gênesis 1:11). Por este mo­tivo, a tradução de Onqelos “E um vapor havia surgido da terra” resul­ta do contexto: “E toda erva do campo, antes que tivesse na terra” (Gênesis 2:5). Está, portanto, bem explícito.

Você já sabe, leitor, que'as causas principais da geração e corrupção, depois das atividades das esferas celestes,35 são a luz e as trevas, devido ao calor e ao frio que provocam. Em virtude do movimento da esfera celeste, os elementos se mesclam e sua combinação varia por obra da luz e das trevas. A resultante disso consiste de duas exalações-, a primeira é a causa geradora de todos os fenômenos superiores, entre eles a chu­va e os minerais; e a segunda gera respectivamente a composição dos vegetais, dos animais e, finalmente, do ser humano. As trevas são pro­priedade natural de todos os seres da Terra, e a luz lhes vem como um acidente, de uma causa externa. Você não percebe que, quando falta a luz, tudo fica imobilizado? O texto bíblico, no relato da Criação, segue a mesma ordem, sem se afastar um ponto.

Outrossim, é preciso saber, como está escrito, que: Todas as obras da Criação foram criadas em seu tamanho próprio, foram criadas em sua inteligênáa,

foram criadas em sua bele^a^ ou seja, tudo isso foi concebido em sua perfeição quantitativa, com sua forma perfeita e suas mais belas quali­dades. E o que indica o termo lê-tsivionám (na beleza deles), da expres­são: “A mais bela de todas as terras” (Ezequiel 20:6). Fique bastante atento também a isso, porque é uma chave importante, já explicada.

35 Veja cap. 10 (Maeso).36 Em Talmud, Rosh Hashaná 11.

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Outra das coisas sobre as quais você deve meditar atentamente é que, após falar da Criação do Homem nos Seis Dias da Criação, afirman­do: “e os criou Macho e Fêmea” (Gênesis 1:27), o relato é finalizado nestes termos: “Assim foram acabados os Céus e a Terra e todo o seu cortejo” (Gênesis 2:1). Então, abre-se um novo capítulo sobre como Eva foi formada de Adão. Menciona-se a Êts Chaím (Arvore da Vida), a Êts Biná (Arvore do Conhecimento) e o episódio da serpente, apre­sentando tudo isso como acontecimentos posteriores à presença de Adão no Jardim do Éden. Todos os Sábios concordam que estes fatos aconteceram no Sexto Dia, e absolutamente nada mudou depois dos Seis Dias da Criação. Conseqüentemente não se pode ver nenhuma in­congruência nestas coisas, porque, como explicamos, não havia ainda uma natureza estável.

Além disso, os Sábios disseram outras coisas, tomadas de diversos lugares, que tenho que lhe expor, despertando sua atenção para elas da mesma forma como eles (Benditas sejam suas memórias!) desperta­ram a nossa. Leve em conta que as palavras subseqüentes dos ditos Sábios são de suma perfeição, de interpretação lúcida a seus destinatá­rios e de notável precisão. Por este motivo não me estenderei em sua exposição, nem serei prolixo em seu desenvolvimento, a fim de não descobrir um segredo?1 Para um homem como você, bastará citá-las com certa ordem e rápida indicação.

Assim, quanto a este assunto em particular, dizem que Adão e Eva foram criados juntos, unidos ombro a ombro e, ao dividir este ser, Deus tomou a metade (Eva) e deu-a à outra (Adão) como companhei­ra. As palavras achátmi-tsalotáiv (Gênesis 2:21) significam: “uma de suas costelas”; e o texto acrescenta: “no outro lado da morada (...)” (Êxodo 26:20), que o Targúnf^ traduz por “lado do Tabernáculo”. Assim, afir­mam os Sábios, é dessa forma que se deve interpretar a expressão uma de suas costelas. Veja como ficou claro que Adão e Eva eram dois em algumas coisas e, ao mesmo tempo, eram um, como foi dito: “Osso dos meus ossos e carne de minha carne” (Gênesis 2:23), confirmando deste modo sua união ao designá-los com um só nome: “Mulher (Isbk), porque do Homem (Isb) foi tomada” (Ibid.) e, para reforçar ainda mais sua união, foi declarado: “E se juntará à sua mulher, e virão a ser os

37 Referência a Provérbios 11:13: “Vem o mentiroso e descobre o segredo (...)” (NT).

38 Targúm - tradução para o aramaico (NT).

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dois uma só carne” (Gênesis 2:24-25). Quanta é a ignorância daqueles que não compreendem que, necessariamente, em tudo isto há uma idéia determinada! Aí você tem explicado.

Outra questão que você deve conhecer, e que foi esclarecida no Midrásh. a serpente, do tamanho de um camelo, era montada pelo ca­valeiro que seduziu Eva, cujo nome era Samael,39 nome aplicado a Satã. Você dirá que, em muitas passagens, afirmam que Satã pretendia tentar o Patriarca Abrahão para que não consentisse em sacrificar Isaac e, da mesma forma, a Isaac, para que não obedecesse a seu pai. Neste assunto, o Sacrifício de Isaac (Akedá), asseguram que Samael se dirigiu ao Patriarca Abrahão e lhe disse: “O quê! Vovô, está louco? (...)”.40 Não há dúvida, pois, que Samael é Satã. Este nome, assim como o de Nachásh (Serpente), tem um sentido. Ao contar como foi a sedução de Eva, afirma-se: “O cavaleiro ia sobre a serpente, e Deus — o Santíssimo, bendito seja — divertia-se com o camelo e seu cavaleiro”.

Você deve notar, deste modo, que a serpente não teve nenhuma rela­ção com Adão, nem falou com ele. Ela conversou e tratou unicamente com Eva e, por intermédio desta, sobreveio o dano a Adão, e a serpente o levou à perdição. A enorme inimizade surgiu tão somente entre a ser­pente e Eva e entre a descendência de uma e de outra — que é, sem dúvida, também a descendência do Homem. Todavia, mais surpreenden­te é a ligação entre a serpente e Eva — o destino de uma está na outra: são a cabeça e o calcanhar,41 de forma que Eva a domina pela cabeça e a serpente, por sua vez, domina Eva pelo calcanhar. Isto também está claro.

Outra das passagens surpreendentes, cujo sentido literal se torna ex­tremamente absurdo, mas cuja sábia metáfora e congruência com a reali­dade você irá admirar quando se aprofundar perfeitamente nos capítulos do presente Tratado, é a seguinte: Ao se aproximar a Serpente de Eva — dizem — contaminou-a. Ao comparecer o Povo de Israel ao Monte Sinai, a contaminação terminou; mas, às nações que estavam ausentes do Mon­te Sinai — a contaminação permaneceu.42 Reflita também sobre isso.

39 Em Capítulos de Rabi Elie\er (Maimônides).40 Em Bereshit Rabá (Maimônides).41 Em Gênesis 3:15 (Maimônides).42 O sentido desta passagem parece ser o seguinte: a faculdade imaginativa, ao

despertar as paixões, prejudica o Homem; os israelitas, ao receberem uma Lei moral que dominou suas paixões, ficaram protegidos; os povos que não têm uma lei moral continuariam sujeitos ao domínio das paixões (Munk).

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Outra passagem que você deve entender é a seguinte: ^4 Á rvore da Vida alcança quinhentos anos de idade, e todas as águas da Criação se derramam sobre ela,43 Esta idade, esclareceram, refere-se à grossura de seu tronco e não à extensão de suas folhagens. 0 objeto destas afirmações— explicam — não é sua folhagem, mas sim seu tronco, de quinhentos anos de idade. Por esse termo, entende-se seu madeiramento ereto, e esta expressão comple­mentar foi acrescentada para valorizar o sentido da explicação e lhe dar maior clareza. Fica, pois, totalmente explicitado.

Esta é outra questão, cujas explicações você deve conhecer: “Quanto à Arvore do Conhecimento, o Santíssimo não a revelou a ninguém, nem a revelará jamais”, 44 o que é verdade, pois a natureza do existente assim o requer.

Não menos digna de se conhecer é a seguinte passagem: “E YHVH Deus tomou o homem” — ou seja, elevou-o — “e o colocou no jardim do Éden” (Gênesis 2:15), ou seja, deu-lhe descanso. Não se entende, por este texto, que Ele lhe tomou de um lugar e situou-o em outro, mas sim que elevou a qualidade de seu ser, entre os seres que nascem e perecem, e situou-o em determinado estado.

Mais um ponto em que você deve refletir é o acerto com que foram designados Caim e A bel, porque foi Caim quem matou Abel no campo (Gênesis 4:8). Ambos pereceram, embora o agressor tenha sido trata­do com piedade, e somente a Set se outorgou uma existência longeva: “Deu-me YHVH outro descendente” (Gênesis 4:25). Tudo isto já ficou claramente demonstrado.45

Outrossim, a seguinte passagem merece sua atenção: “E chamou o Homem nomes (...)” (Gênesis 2:20), o que nos ensina que as línguas são convencionadas, e não naturais, como se pensava.

Finalmente, você deve meditar sobre os quatro termos empregados para a relação entre Deus e os Céus, a saber: Bará (criar); Assá (fazer);

43 Em Bereshit Rabá.44 Em Bereshit Rabá.45 “Veja nota explicativa de Munk, aqui resumida: O autor se lim ita a propor à

meditação do discípulo o sentido dos nomes de Caim, Abel e Set, e as alegori­as encerradas no texto bíblico. O silêncio que o autor guarda sobre seu verda­deiro pensamento tem dado lugar a diversas explicações: os comentaristas con­cordam geralmente em ver, nos três filhos de Adão nomeados no texto bíblico, os símbolos de diferentes faculdades da alma racional. Caim representa a fa­culdade das artes prá ticas; Abel, a reflexão e Set, a inteligência, único entre os men­cionados filhos de Adão que se assemelhava ao pai, “criado à imagem de Deus”, como adverte o autor na Primeira Parte, cap. 7". (Maeso).

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Kaná (possuir)46 e ÊL (Deus). Foi dito, por exemplo: “Deus criou os Céus e a Terra” (Gênesis 1:1); “(...) Ao tempo de fazer YHVH Deus a Terra e os Céus” (Gênesis 2:4); “(...) Possuidor de Céus e Terra” (Gê­nesis 14:19 e 22); “Deus do Universo” (Gênesis 21:33); “Deus dos Céus e Deus da Terra” (Gênesis 24:3). Quanto às expressões: “A Lua e os astros que Tu estabelecestes” (Salmo 8:4); “Minha destra estendeu os Céus” (Isaías 48:13); “Estendas os Céus” (Salmo 104:2), estão todas incluídas no verbo A ssá (fazer). Quanto ao verbo Yatsár (formar),47 não se apresenta esta acepção, por isso acredito que se aplica à estruturação e à configuração, ou a outros acidentes, dado que estes também são acidentes. Por isso se afirmou: “Ele queformou a l u porque esta é um acidente. “Ele que formou os montes” (Amós 4:13) significa que for­ma sua figura, o mesmo em “Modelou YHVH Deus (...)” (Gênesis 2:7-9). Mas, referindo-se a estas entidades que abarcam o conjunto do Uni­verso, a saber, os Céus e a Terra, emprega-se o verbo Bará (criar) que, na nossa opinião, significa produzir do nada. Também se usa A ssá (fazer) aplicado às formas específicas que lhe foram dadas, ou seja, a seus caracteres físicos. Caso os designe com o verbo Kaná (possuir), Ele (Exaltado Seja!) os domina, assim como o dono a seus servos. Por este motivo Lhe chamam de “O Dono de toda a Terra” (Josué 3:11-13) ou, simplesmente, Há-Adón, O Senhor (Êxodo 23:17; 34:23), Pois bem, dado que não há senhor sem que exista possessão, o que implicaria uma matéria preexistente, empregam-se os verbos Bará e Assá. Quando se afirma: Deus dos Céus e Senhor do Universo, é em relação à Sua perfeição (Exaltado seja!) e à destes elementos. Ele é Elohím (Deus), ou seja, o que governa, e eles — os Céus — os governados; não o são no sentido de domínio, pois esta é a significação de Konê (possuidor). Elohím se refere a Sua qualidade (Exaltado Seja!), em seu ser e em relação a eles, posto que Ele é Deus, e os Céus não o são. Entenda bem isso.

Estas lições, juntamente com o que já foi dito e o que se dirá sobre o tema, bastam para o propósito do presente Tratado e para quem se interessar por ele.

46 Bará: criar, Assá:fa%er, Kaná: adquirir. Os verbos em hebraico, citados no texto, correspondem às suas raízes. No infinitivo, os verbos são, respectivamente, 'Livro: criar; Laassóí:fa^ere. Liknót. possuir (NT).

47 Yatsár. formar. O verbo em hebraico citado no texto corresponde à sua raiz. No infinitivo é L/daisér (NT).

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CAPÍTULO 3 1A INSTITUIÇÃO DO SHABÁT SERVE PARA ENSINAR A TEORIA DA CRIAÇÃO E PARA PROMOVER O BEM-ESTAR DO HOMEM

Talvez você já conheça a razão por que a Lei do Shabát48 é tão severa, a ponto de sua transgressão ser punida com a morte por apedrejamento - até o Profeta dos Profetas (Moisés) matou por ela. A Lei do Shabát ocupa o terceiro lugar em importância, depois da existência de Deus e da negação do dualismo, pois a proibição à idolatria vem depois de assentada a Unicidade. Você já sabe, por minhas palavras, que as idéias não se fixam se não são acompanhadas de ações que as sustentem, divulguem e perpetuem, entre a multidão, para sempre. Por isto a Lei nos apresenta a exaltação desse dia, a fim de que o princípio da Criação do Mundo seja estabelecido e universalizado, com o descanso de todos os homens no mesmo dia; e se perguntassem a causa, a resposta seria: “Porque em seis dias fez Deus (...)” (Êxodo 20:11).

48 Shabát — Sábado: segundo a tradição judaica, o Sétimo Dia da Criação, dia em que Deus descansou da obra que realizou. Deriva do verbo hebraico Lashévet— sentar ou descansar. A Lei do Shabát refere-se às normas contidas no Talmúd quanto ao modo como se deve guardar este feriado semanal (NT).

1 9 4 O G U I A D O S P E R P L E X O S

Mas são dadas a estaM itsvám duas causas distintas,50 com duas con­seqüências diferentes. No primeiro Decálogo (Êxodo 20), assim se justifica a glorificação do Shabát (Sábado): “Porque em seis dias fez Deus (...)”, enquanto que no M ishnêTora’1 (Deuteronômio 5:15) adver­te-se: “Recorda-te de que escravo foste na Terra do Egito (...) e por isso YHVH Teu Deus te manda guardar o Shabát”. Isto é verdade! A conseqüência resultante do primeiro versículo é a honra e a exaltação deste dia, como está escrito: “Pois abençoou YHVH o dia do Shabát e o santificou” (Exodo 20:11); e a causa para isso é “porque em seis dias (...)” (Exodo 20:11). Mas, a imposição da Lei do Shabát, ordenando-nos que a observemos, é conseqüência de outra causa — a de que fom os escra­vos no Egito, onde não trabalhávamos por nossa vontade, nem na hora em que quiséssemos e nem podíamos descansar.

E nos foi ordenado o descanso e o repouso para unir ambas as coisas: primeiro, a crença em um conhecimento verdadeiro, qual seja, a Criação do Mundo, que, de imediato e pela mais elevada reflexão, ensina-nos sobre a existência de Deus; e segundo, recordar-nos de Sua benignidade, outorgando-nos o descanso “do sofrimento do Egi­to” (Exodo 6:6-7). De certo modo, é um favor que serve tanto para confirmar uma consideração especulativa, quanto para recuperar52 o bem-estar físico.

49 M itsvá: segundo a tradição judaica, preceito ou ordem divina, para ser cumpri­da pelas pessoas (NT).

50 A primeira versão do Decálogo encontra-se no livro do Exodo e a segunda, no Livro de Deuteronômio (NT).

51 M ishnê Torá: o Deuteronômio, quinto livro da Torá (Pentateuco) é conhecido também como a Segunda Torá ou a Outra Torá, por ser uma espécie de rememo- raçâo de todo o relato bíblico. O termo também é utilizado, como homônimo, para denominar o Talmud, e também é o nome de uma das principais obras de Maimônides, cujo propósito é justamente a organizar, de forma sistemática, o conteúdo do Talniúd (NT).

52 Recuperar: tradução contextualizada para a palavra Tikun— conserto (NT).

Sobre a Profecia

CAPÍTULO 32TRÊS TEORIAS A RESPEITO DA PROFECIA

As opiniões das pessoas sobre a Profecia se assemelham às considera­ções sobre a Eternidade ou a Criação do Universo. Quero dizer com isto que, assim como entre aqueles que acreditam firmemente na exis­tência de Deus há três teorias sobre a origem e a criação do Universo, como explicamos, do mesmo modo as opiniões que circulam com respeito à Profecia são três. Não me ocuparei da teoria de Epicuro,1 porque se não crê na existência de Deus, menos crédito ainda dará à Profecia. Meu propósito é somente me referir às posições sobre a Pro­fecia daqueles que acreditam em Deus.

Primeira Opinião: É pertinente àquelas pessoas pagãs que admitem a Profecia, o que coincide com a de certos setores dentro do povo de nossa religião. Deus (Exaltado Seja!), dizem, elege a quem lhe agrada entre os homens, faz dele Profeta e lhe confere uma missão. Não há

1 Epicuro (341-270 A.E.C.): filósofo grego nascido em Samos, favorável ao ato- mismo, doutrina desenvolvida originalmente por Leucipo e Demócrito. O de­sejo precisa ser controlado, para que a serenidade nos ajude a suportar a dor. A vida se torna agradável com o sábio raciocínio, que investiga a causa. Por ser um defensor do prazer, quiseram fazer de Epicuro e dos Epicuristas de­fensores da volúpia, mas o próprio se declara contra isso ao afirm ar que o prazer não é sensual (fonte: http://www.consciencia.org/antiga/epicuro.shtml,14 de novembro de 2002).

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diferença, segundo eles, se este é sábio ou ignorante, velho ou jovem. Todavia, é condição que seja homem de bem e de bons costumes, pois ninguém até agora afirmou, que Deus tenha outorgado o dom proféti­co a um homem perverso, a menos que, antes, o tenha transformado em um homem bom.

Segunda Opinião: E a dos filósofos.2 A Profecia implica certa perfei­ção na natureza da pessoa, mas nenhum homem pode alcançá-la senão por meio do estudo, transformando em ato o que está em potência ,3 salvo apareça um obstáculo proveniente do temperamento ou de alguma causa exterior — como ocorre em toda perfeição possível em determi­nada espécie, mas não de maneira uniforme para todos os indivíduos desta espécie, até sua conclusão e último grau. E se para que esta per­feição se realize é necessário algo que só pode ser produzido por um agente, logo este agente deve existir. De acordo com esta concepção, é impossível que um ignorante chegue a Profeta ou que um homem durma sem ser Profeta e acorde Profeta, como alguém que descobris­se algo. A realidade, então, é que se um homem íntegro, perfeito em suas qualidades racionais e proprietário de faculdade imaginativa em seu grau mais perfeito se preparar na forma que se lhe dirá, necessari­amente chegará a Profeta, por se tratar de uma perfeição que possuí­mos naturalmente. Segundo esta perspectiva, é impossível que um indi­víduo apto e devidamente preparado para a Profecia não consiga ser Profeta, assim como é impossível que um homem de temperamento saudável e nutrido de excelente alimento não gere um ser de sangue bom e características compatíveis com essas.

Terceira Opinião: Pertence à Nossa Lei e é fundamento de nossa reli­gião. É idêntica à opinião filosófica, exceto em um ponto: nós acredi­tamos que o indivíduo, ainda que seja apto e tenha se preparado para a Profecia, pode, todavia, não chegar a ser Profeta, pois isso depende da Vontade Divina. No meu parecer, é exatamente igual ao que acontece

2 “Neste caso, o autor se refere aos filósofos aristotélicos árabes, que conside­ram o dom de Profecia como o mais alto grau do desenvolvimento das facul­dades racionais e morais da alma, aonde o homem chega tanto pelo estudo como pela purificação espiritual, desligando-se completamente das coisas des­te mundo e preparando-se, assim, para a união mais íntima com o Intelecto Ativo, que faz passar ao ato as faculdades que nossa alma possui em potência.” (Munk, in Maeso).

3 Veja Primeira Parte, cap. 14, Segunda Causa (Maeso).

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em todos os milagres, e no mesmo grau. É natural que qualquer ho­mem apto e preparado, por sua educação e estudo, possa ser Profeta, se lhe for recusado, está, nesse caso, impossibilitado de mover sua mão, como ocorreu ao Rei Jeroboão (I Reis 13:4), ou ao exército do rei de Aram (Síria), em busca de Eliseu (II Reis 6:18),

Quanto ao nosso princípio fundamental — é preciso se preparar e se aperfeiçoar nas qualidades morais e racionais - , ele é expresso (pe­los Sábios) nestas palavras: “A Profecia somente se dá no homem sá­bio, corajoso e rico”. Já explanamos, em nossa obra Comentário à M ish­ná e em nosso grande compêndio Mishnê Torá, que os discípulos dos Profetas se ocupavam constantemente dessa preparação. Não obstan­te, pode ocorrer, a quem se preparou, não chegar a Profeta devido a algum impedimento, como pode ser comprovado no caso de Baruch ben Neria, seguidor de Jeremias, o qual lhe ensinou e preparou, contu­do, seu desejo de ser Profeta não lhe foi satisfeito, conforme ele mes­mo confessa: “Canso-me de gemer e não tenho repouso” (Jeremias 45:3). Então lhe foi respondido por intermédio daquele: “Assim lhe dirás: Isto disse YHVH (...) Tu pedes para ti grandes coisas. Não as solicites” (Jeremias 45:4-5). Certamente é possível se afirmar que a intenção foi declarar, com isto, que a Profecia era demasiada grandeza para Baruch, assim como na passagem: “E tampouco seus Profetas recebem visão de YHVH” (Lamentações 2:9), poderia ser entendido que a razão para isso era o fato de se encontrar no Exílio, como expli­caremos. Mas citamos muitos textos, tanto bíblicos quanto dos Sábios, em que unanimemente se insiste neste princípio fundamental: Deus faz Profeta a quem e quando quer, contanto que seja um homem deci­didamente íntegro e sábio. Aos ignorantes, parece uma coisa tão im­possível que Deus constitua algum deles Profeta quanto seria para um asno ou para uma rã. Este é o nosso princípio: o treinamento e o aperfeiçoamento são indispensáveis, e somente aí se fundamenta a p o s­sibilidade, desde que venha unida à Vontade Divina,

Que o seguinte texto não lhe induza a erro: “Antes que te formas­se no ventre te conheci, antes que tu saísses do seio materno te con­sagrei” (Jeremias 1:5), pois este é o caso de todo Profeta: o que o estimula é a necessidade advinda de uma predisposição natural, como será exposto. Quanto às palavras “Eu sou um jo vem (náar)” (Jeremias 1:6), você já sabe que José, o Tsadík (o Justo), que tinha trinta anos, é qualificado assim no texto hebraico. E o mesmo foi dito, inclusive, de Josué, beirando os sessenta anos - por ocasião do Bezerro de Ouro:

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“O jo vem \náai\ Josué, filho de Nun (Yehoshúa ben Nún) não se afastava da tenda” (Êxodo 33:11). Moisés tinha, na época, oitenta e um anos e chegou aos cento e vinte. Deduz-se, portanto, que a idade de Josué era então, ao menos, de cinqüenta e sete anos e, apesar disso, era chamado de Náarí

Tampouco você irá se deixar ofuscar pelo dito nas promessas divi­nas, por exemplo: “Derramarei meu espírito sobre toda carne, e profe­tizarão vossos filhos e vossas filhas” (Joel 2:28), pois isto se explica ao se revelar o caráter da Profecia, nestes termos: “Vossos anciãos terão sonhos, e vossos moços verão visões” (Ibid.). Com efeito, todo aquele que prediz algo secreto, ora através da magia ou da adivinhação, ora por um pensamento justo, é chamado de Profeta-, por este motivo eram chamados assim “os Profetas de Baál” e “os Profetas de Asherá”. Você não vê como Deus (Exaltado Seja!) disse: “Se alçará no meio de ti um Profeta ou um sonhador” (Deuteronômio 13:2)?

Quanto à cena do Monte Sinai, ainda que todos contemplaram, por meio de milagre, o Grande Fogo e ouviram os estrondos terríveis e re­tumbantes, não chegaram, todavia, à categoria de Profetas, senão aqueles que estavam em condições para isso e, mesmo assim, em graus dife­rentes. Isso já pode ser constatado na seguinte passagem: “Sobe a YHVH tu e Aarão, Nadáv e Avíhu, com setenta dos anciãos de Israel” (Êxodo 24:1). Ele (Moisés, a Paz esteja com ele!) ocupa o grau supremo, con­forme o declarado: “Somente Moisés se aproximará de YHVH, mas eles não se aproximarão” (Êxodo 24:2). Aarão segue abaixo dele; Na­dáv e Avíhu, abaixo deste; os setenta anciãos, abaixo deles e, em grau inferior a estes, os demais, conforme o seu nível de perfeição. Um texto dos Sábios afirma: “Moisés — uma parte em si mesmo; e Aarão - outra parte em si mesmo”.

Já que ocasionalmente falamos da cena do Monte Sinai, daremos, em capítulo à parte, os esclarecimentos que os textos bíblicos — bem examinados — e a exposição dos Sábios nos oferecem a respeito.

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CAPÍTULO 33A DIFERENÇA ENTRE MOISÉS E OS OUTROS ISRAELITAS COM RESPEITO À REVELAÇÃO NO MONTE SINAI

Para mim está claro que, na cena do Monte Sinai, nem tudo o que valia para Moisés valia para todo [o povo de] Israel, pois a Palavra se dirigiu unicamente a este. Por isso se emprega a segunda pessoa do singular no Decálogo, e ele (A Paz esteja com ele!) desceu ao pé da montanha para comunicar às pessoas o que havia ouvido. O texto da Torá diz: “Eu estava então entre YFIVH e vocês, para trazer-lhes a palavra de YHVH” (Deuteronômio 5:5). E deste modo: “Moisés falava, e YHVH lhe respondia através do trovão” (Êxodo 19:19). Na M echiltá4 se afir­ma expressamente que ele lhes repetiu cada mandamento tal como havia ouvido. Outra passagem da Torá esclarece: “Para que o povo veja que Eu falo contigo (...)” (Êxodo 19:9), o que demonstra que a locução se dirigia a ele, e as pessoas perceberam aquela voz, sem dis­tinguir as palavras. Dela se disse: “Quando ouvistes sua voz” (Deute­ronômio 5:20-23), e também: “E ouvistes bem uma voz de palavras, mas não vistes figura alguma, mas sim somente uma voz” (Deuteronô­mio 4:12), mas não se disse: “vocês ouviram as palavras”. Portanto,

4 Mechiltá de Êxodo: texto talmúdico (NT).

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sempre que há referência a palavras ouvidas, entende-se 4 Vo%, e quem as ouvia e transmitia era Moisés. Este é o sentido do texto bíblico e de muitas afirmações dos Sábios.

Todavia, há outra afirmativa formulada em numerosos lugares nas Midrashót e também no Talmud, a saber: “EU [Deus]” e “Não será para você”, “ouviram da boca da Onipotência”, que permitem inter­pretar que as palavras chegaram a eles da mesma forma como a M oshé Rabênu (A Paz esteja sobre ele!), e não foi este quem as transmitiu ao povo. Estes dois princípios — refiro-me à existência de Deus e Sua unicidade — são exeqüíveis à especulação humana e todo o cognoscí- vel por demonstração o é do mesmo modo ao Profeta ou a quem quer que seja, sem nenhuma preferência. Portanto, estes dois princí­pios não são conhecidos unicamente por meio da Profecia, de acor­do com o seguinte texto da Torá: “A ti se te fizeram ver para que conhecesses(...)” (Deuteronômio 4:35). Quanto aos mandamentos restantes, pertencem à categoria das opiniões prováveis e admitidas por tradição, não das inteligíveis,5

Seja como for, os textos bíblicos e as afirmações dos Sábios deixam entrever como inadmissível que todo Israel tenha ouvido aquela cena a não ser apenas como uma 1'/o% uma ve^ e esta é a Vo que atingiu Moi­sés e todo Israel: “EU (Deus)” e “Não será para você”, repetida por Moisés ao povo, em sua própria linguagem, pronunciando distinta­mente as palavras que escutaram. Os Sábios (Bendita seja sua memó­ria!) se basearam, ao afirmar isto, nas palavras: “Uma vez falou Deus e duas lições escutei” (Salmo 62:12) e no princípio do Midrásh Cha^ita em que se destaca que aqueles não ouviram outra fala emanada Dele (Exaltado Seja!), como afirmado, do mesmo modo, na Torá: “Com fala forte, e não acrescentou mais” (Deuteronômio 5:19 ou 22). Logo após ter ouvido a primeira fala, ocorreram, como se conta, o terror, o pânico e as suas exclamações: “E me dissestes: YHVH, Nosso Deus nos fez ver (...) Por que, pois, morrer? (...) Aproxima-te e escuta (...)”

5 “Os oito mandamentos restantes são concernentes a coisas que não são do domínio da inteligência, e não poderiam ser objeto de um silogismo demonstra­tivo. Refere-se às virtudes e aos vícios, o Bem e o Mal, que se encontram entre as opiniões prováveis e são, inclusive, coisas puramente tradicionais, como é, p. ex. o Quarto Mandamento, relativo ao Shabát [Sábado]” (Munk). “Note-se que o Quarto Mandamento do Decálogo hebreu-bíblico corresponde ao Terceiro Mandamento cristão (Maeso).

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(Deuteronômio 5:21-24 e 24-27). Então o mais ilustre dos mortais avançou pela segunda vez, recebeu os mandamentos restantes um a um, desceu ao pé da montanha e lhes retransmitiu, em meio àquele espetáculo grandioso. Eles contemplavam o fogo e ouviam as pala­vras, quero dizer, as denominadas fa la s e relâmpagos (Êxodo 19:16), que soavam como o trovão e o toque imponente da trombeta. E sempre que se faz referência às várias fa la s que se ouviam, por exemplo em Êxodo 20:15, trata-se do som da trombeta, do raio, etc. Mas a palavra do Eterno — quero dizer, a Fala C iiada6, através da qual foi comunica­da a Palavra Divina — somente foi percebida uma vez, como afirma textualmente a Torá e a exposição dos Sábios nos lugares que lhe indi­quei. A partir dela, Exalaram sua alma ao ouvi-la e, por sua mediação, entenderam os dois primeiros Mandamentos. Observe que o grau de percepção de Israel a respeito não era igual ao de M oshé Rabênu (A Paz esteja sobre ele!). Devo insistir com você sobre este segredo e lhe rei­terar que isto é tradicionalmente admitido em nossa nação e conheci­do de seus Sábios. Assim, em todas as passagens em que se encontra: “E YHVH Falou a Moisés dizendo”, Onqelos traduz (literalmente): YHJ^H Falou, e do mesmo modo: “E YHVH pronunciou todas estas palavras” (Êxodo 20:1). Por outro lado, as dirigidas pelos israelitas a Moisés: “E que não nos fale Deus” (Êxodo 20:16-19), ele as traduz assim: “Não se nos fale da parte de Deus”. Assim Onqelos (A Paz esteja sobre ele!) marcou a distinção que indicamos. Você já sabe que ele, como é dito expressamente, aprendeu todas estas coisas maravi­lhosas e notáveis da boca de Rabi Eliezer e Rabi Josué, Sábios de Israel por excelência.

Que todos saibam e lembrem-se! Porque é impossível se aprofun­dar na cena do Monte Sinai — um dos fundamentos da Bíblia — mais a fundo do que o exposto por eles. Esta percepção e suas circunstânci­as são reais, porque nem houve antes nem haverá no futuro nada comparável. Saibam!

6 Veja Primeira Parte, cap. 46 (Maeso).

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CAPÍTULO 34EX PLICAÇÃ O DE ÊXODO 2 3 :2 0

O sentido do texto da Torá, “Eis que Eu mandarei um anjo diante de d (...)” (Êxodo 23:20), é explicado no MishnêTorá [Deuteronômio] 23:18 quando Deus falou a Moisés na cena do Monte Sinai-, “Um Profeta levan­tarei para eles (...)”. Prova disso é o que se disse deste anjo: “Acata-lhe e ouça sua voz (...)” (Êxodo 23:21), ordem dirigida indubitavelmente à multidão. Porém, o anjo não se fez visível a esta, nem lhe fez alguma prescrição ou proibição direta, para que não se sentisse repreendida, de maneira a não se rebelar contra ele. Por conseguinte, o sentido deste texio é que Deus (Exaltado Seja!) preveniu ao povo de Israel que have­ria, entre eles, um Profeta, a quem um anjo se manifestaria e lhe falaria, comunicando-lhe ordens e interdições. Assim, Deus nos proíbe de desobedecer a este anjo, cuja palavra nos transmitirá o Profeta, como se afirma em Deuteronômio 18:15: “A ele ouvirás”; e também: “A quem não escutar as palavras que ele dirá em Meu Nome (...)” (Deute­ronômio 18:19), e se explica o motivo: “porque ele leva Meu Nome” (Êxodo 23:21).

Tudo isso foi som ente para lhes cham ar a atenção: este espetáculo

grand ioso que tem sido contem plado , a saber, a cena do M on te S ina i não

é a lgo que perdu rará entre vocês. N ão haverá nada sem elhante no

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futuro, nem fogo ou nuvem permanentes, como há agora sobre o Taber- náculo Eterno. Um anjo que Eu enviarei aos seus Profetas conquistará por vocês as suas cidades, tornará disponível a sua terra natal e lhes indicará o que é preciso empreender ou evitar.

Aí está também o princípio fundamental que insisto em lhe expli­car, a saber: a qualquer Profeta, exceto M oshé Rabênu, chegava-lhe a Profecia pelas mãos de um anjo. Saibam!

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CAPÍTULO 3 5

A DIFERENÇA ENTRE MOISÉS E OS OUTROS PROFETAS COM RESPEITO AOS MILAGRES PERPETRADOS POR ELES

Já esclareci a todas as pessoas as quatro diferenças entre a Profecia de Moisés e a dos demais Profetas, transmiti minha consideração e desco­bertas a respeito disso no Comentário à Mishná e no MishnéTorá. Não há necessidade de se voltar ao assunto nem interessa ao propósito deste Tratado.

Devo esclarecer que todo quanto tenho dito acerca da Profecia nos capítulos deste Tratado se refere unicamente à qualidade Profética de todos os Profetas anteriores e posteriores a Moisés. Quanto à Profecia de M oshé Rabênu, não direi uma só palavra, nem explicitamente nem por alusão. O motivo: para mim, o termo Profeta somente se refere a Moisés e aos outros por homonímia, o que se aplica também às suas maravilhas e às maravilhas dos outros, pois suas demonstrações não são da mesma categoria que as dos demais Profetas.

A prova, tomada da Lei, de que sua Profecia era diferente da de todos os seus predecessores, aparece nas seguintes palavras: “Eu me mostrei a Abrahão (...) e meu nome YHVH não fiz conhecido para eles” (Exodo 6:3). Essa passagem nos ensina que a percepção de Moi­sés não foi como a dos Patriarcas, mas sim maior. Ele superou a todos os que vieram antes. Com respeito à diferença entre sua Profecia e a de

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seus sucessores, está dito por parte àa.A.gadá.1 “Não há possibilidade de surgir, em Israel, Profeta semelhante a Moisés, que conheceu YHVH face a face” (Deuteronômio 34:10). Fica, portanto, patente que sua percepção diferia das de quantos haveriam de sucedê-lo em Israel, “Reino de Sacerdotes e Nação Santa” (Êxodo 19:6 e Números 16:3), “entre eles YHVH” (Números 16:3) e com maior motivo entre as de­mais nações. Quanto à diferença entre seus milagres e os de todos os Profetas em geral, perceba que todas as maravilhas realizadas por eles, ou para eles, eram contadas para uns poucos entre as pessoas, como as demonstrações dos Profetas Elias e Eliseu. Observe como o Rei de Israel inquire a respeito e solicita informação de Guiezi (Guecha^i, em hebraico) nestes termos: “Anda e conta-me todas estas grandes coisas que Eliseu reaüzou; e enquanto estava contando (...)” e Guiezi disse: “Meu Senhor Rei! Esta é a mulher e este é seu filho, que Eliseu ressus­citou” (II Reis 8:4-5). E assim são os prodígios dos demais Profetas, à exceção de M oshé Rabênu, de quem a Bíblia declara que jamais surgirá um Profeta que realize maravilhas publicamente, diante de admirado­res ou desconfiados, como as maravilhas que fez Moisés: “Não há possibilidade de surgir — foi dito — Profeta (...) nem quanto às maravi­lhas e portentos (...) aos olhos de todo Israel” (Deuteronômio 34:10- 12). Aqui se unem as duas coisas: que não aparecerá jamais quem al­cance a mesma percepção que ele, nem quem realize o mesmo que ele. Em seguida acrescentam-se os prodígios efetuados diante de seus ini­migos — “o Faraó, seus servidores e seu país” (Deuteronômio 34:10- 12) — como também na presença de todo o povo de Israel, seus adep­tos: “aos olhos de todo o Povo de Israel”, coisa que nunca havia ocorrido a qualquer Profeta anterior a ele. E então se confirma a história verda­deira, de que não haverá outro comparável a ele.

Não se equivoque quanto ao que foi dito para Josué a propósito da luz do Sol mantida naquelas horas: “E disse aos olhos de Israel” (Josué 10:12), posto que não diz “a todo Israel”, como no caso de Moisés. Veja também que o milagre de Elias no Monte Carmel foi testemunha­do por poucas pessoas. Quando afirmei, anteriormente, que o sol se

7 Agadá'. forma de interpretação que compõe o Talmud e tem como foco o texto bíblico. Busca extrair da Bíblia, de forma criativa e menos rigorosa que as regras da Halachá, uma história de moral, um consolo, uma lenda, uma fábula ou um provérbio que sirvam ao momento, ao contexto (NT).

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mantinha naquelas horas, explico a expressão ke-ióm tamím (um dia intei­ro), em Josué 10:13, como: “o dia mais longo possível”, dado que tamím quer dizer “completo”, e é como se dissesse que aquele dia em Guivón fora tão longo quanto são os dias de verão naquela região.

E preciso compreender a distinção das Profecias e milagres de Moisés e entender que a grandeza de sua percepção Profética era idên­tica à sua capacidade de produzir milagres. Se você então acreditar que somos incapazes de compreender totalmente a natureza de sua gran­deza, entenderá que quando eu falo, nos capítulos seguintes, sobre Pro­fecia e os diferentes níveis de Profecia, refiro-me aos Profetas que não atingiram o nível máximo, somente atingido por Moisés. Este era o propósito do presente capítulo.

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CAPÍTULO 3 6

SOBRE AS FACULDADES MENTAIS, FÍSICAS E MORAIS DOS PROFETAS

Saiba que, na realidade, a Profecia é uma emanação de Deus (Exaltado Seja!) através do Intelecto Ativo, de início sobre a faculdade racional e daí para a faculdade imaginativa. Ela se constitui no mais alto grau do homem e o ápice da percepção exeqüível à sua espécie, e este estado é a culminação da faculdade imaginativa, ao alcance de qualquer homem. Contudo, não é acessível pelo mero aperfeiçoamento na filosofia nem pela melhora na conduta, por mais perfeitas e belas que possam ser, sem que a elas se junte a máxima perfeição possível da faculdade ima­ginativa em sua formação inicial. Você já sabe que a excelência destas faculdades corporais — entre as quais figura a faculdade imaginativa — depende da melhor compleição possível do órgão em que se funda­menta esta faculdade, da excelência de sua proporção e maior pureza de sua matéria. É algo cuja perda torna-se irreparável e seu defeito é insubstituível mediante um regime. Com efeito, o órgão cuja complei­ção é originalmente defeituosa poderá, no máximo, ser conservado em um certo grau de sanidade pelo regime adequado, ainda que sem poder lhe reduzir à máxima constituição factível. Mas se esta deficiência pro­vém de sua desproporção, posição ou substância, quero dizer, da ma­téria de que é formado, não existe remédio viável. Você conhece tudo isso perfeitamente e não há por que insistir em explicações.

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Assim, saiba que as operações da faculdade imaginativa são as de conservar a lembrança das coisas sensíveis e combiná-las, conforme a característica específica de sua natureza: reproduzir. E sua mais alta e nobre atividade se realiza quando os sentidos cessam suas funções: então sobrevêm uma espécie de inspiração, conforme a sua disposição, que é a causa dos sonhos verdadeiros e da Profecia — entre os quais não há diferença específica, mas de intensidade somente, para mais ou para menos. Você conhece o que os Sábios afirmaram inúmeras vezes: “O sonho é 1/60 partes da Profecia” (TalmudBerachót 57). Sem dúvi­da, não cabe proporção entre duas coisas especificamente distintas, nem seria correto dizer, por exemplo, que a perfeição do homem é tantas ou quantas vezes a do cavalo. A mesma idéia foi sublinhada no BereshitRabá, nestes termos: O sonho é o fru to imaturo da Profecia, compa­ração excelente, dado que se trata do mesmo fruto, mas que caiu preco- cemente, antes de sua maturação. Do mesmo modo, a atividade da faculdade imaginativa durante o sono é idêntica à atividade no mo­mento da Profecia, exceto pela sua insuficiência e por não alcançar sua perfeição. Mas por que ensiná-lo com as palavras dos Sábios (Benditas sejam suas memórias!), deixando de lado os textos da Torá? Por exem­plo: “(...) Se houver profeta entre vós, Eu, o Eterno, em visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com ele” (Números 12:6). Aqui Deus nos conta qual é a verdadeira essência da Profecia: uma perfeição ad­quirida em um Sonho ou através de uma Visão. A faculdade imaginativa adquire uma tal eficiência em sua atividade que vê a coisa como se tivesse vindo de fora e a apreende como se fosse através dos órgãos dos sentidos físicos. Estas são as duas partes — a saber, Visão e Sonho — de todos os graus de Profecia, como será explicado.8 Sabe-se que aqui­lo do que o Homem se ocupa em estado de vigília, servindo-se de seus sentidos, e ao que tende o seu desejo, é o objeto da imaginação durante o sonho, quando o Intelecto Ativo se derrama sobre ela, de conformi­dade com sua preparação. Seria supérfluo acrescentar exemplos e in­sistir, dado que é Coisa notória, conhecida de todos, contra a qual nin­guém objeta, como no caso da percepção dos sentidos.

A partir destes preâmbulos, deve-se recordar que se trata aqui de um indivíduo humano, cuja substância cerebral, principalmente a ori­gem dela — pela pureza da sua matéria e da compleição particular de

8 Veja na Segunda Parte, cap. 41 (Maeso).

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cada uma de suas partes, em quantidade e posição — foi feita de forma sumamente bem proporcional, sem desajustes em sua compleição por obra de outro órgão. Por outro lado, este indivíduo teria adquirido conhecimento e sabedoria para passar da potência ao ato e estaria de posse de uma inteligência humana perfeita e cabal, assim como os costumes humanos puros e equânimes, e todas as suas inclinações ten­deriam ao conhecimento deste mundo e aprofundamento de seus mis­térios e causas. Precisaria, então, que seu pensamento se orientasse sempre para as coisas nobres, ocupado somente do conhecimento de Deus, da contemplação de Suas obras e do que se deve acreditar a esse respeito, e que seu pensamento e desejo estivessem desembaraçados de tudo o que é animal, a saber: a busca dos prazeres inerentes à comi­da, bebida, coabitação, em suma, o sentido do tato, do qual Aristóteles afirmou expressamente na Etica — e com muita razão — que este senti­do é uma desgraça para o Homem, dado que o possuímos unicamente em razão de nossa animalidade, assim como os irracionais, sem que haja nele nada de especificamente humano. Quanto aos demais praze­res sensuais — como o olfato, a audição, a visão — ainda que corporais, não deixa de haver neles, às vezes, um deleite para o ser humano como tal, segundo o mesmo Aristóteles expõe. Temos nos estendido com certa proüxidade à margem de nosso tema, mas era necessário, dado que, com freqüência, os Sábios se ocupam dos prazeres de um deter­minado sentido, logo se surpreendendo por não alcançarem o grau de Profetas, convencidos de que a Profecia é algo inerente à condição humana. Seria preciso, deste modo, que o pensamento e o desejo deste indivíduo estivessem desligados de ambições vãs — quero dizer, o de­sejo de Eternidade, do engrandecimento dele pelo povo e de ser hon­rado continuamente por ele e suas obras, sem outra finalidade. Mas veria as pessoas de acordo com seus respectivos interesses: uns certa­mente semelhantes às bestas do campo, outros, às feras, as quais o homem íntegro e retraído não presta atenção, qual não seja para se preservar de seu possível dano, se tiver algo a ver com elas, ou para obter eventuais proveitos que possam lhe conceder. Por conseguinte, se a um indivíduo, tal como descrito — com a imaginação em alto grau e em plena atividade, e derramando-se sobre ela o Intelecto Ativo, conforme a perfeição especulativa deste sujeito — fosse dado perceber coisas divinas, maravilhosas, não veria mais do que Deus e Seus anjos, e a ciência que lhe seria exeqüível somente se polarizaria em opiniões verdadeiras e normas de conduta, voltadas à melhora dos seres huma­nos nas relações uns com os outros.

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Descrevemos três tipos de perfeição: perfeição da faculdade racional por meio do estudo, da faculdade imaginativa em sua constituição natural e da faculdade moral derivada do banimento, no pensamento, de todos os prazeres corporais e do apaziguamento do desejo de grandezas vãs e ruins. Os homens sábios possuem estas qualidades, como se sabe, em diferentes níveis, e os níveis da faculdade Profética variam de acor­do com essas diferenças.

Você bem sabe que toda faculdade corpórea se enfraquece, debili­ta-se ou se deteriora em um dado momento, ou se fortalece em outro; e a faculdade imaginativa é sem dúvida uma faculdade corpórea. Por este motivo, perceberá que os Profetas, em momentos de tristeza, có­lera ou de outras paixões semelhantes, não conseguem profetizar. Des­te modo, entende-se o que os Sábios afirmam: “A Profecia não advém durante a tristeza e a depressão”, assim como o Patriarca Jacob se viu privado de Profecia durante seu luto, porque sua mente estava absorvi­da pela perda de seu filho José. O mesmo ocorreu a Moisés (A Paz esteja sobre ele) a quem a Profecia não veio como antes, depois do episódio dos espiões,9 até que morreu toda a Geração do Deserfo,10 por­que se encontrava envolvida pela enormidade de seus crimes. Ainda que, em seu caso, a faculdade imaginativa em nada interferia em sua Profecia, já que o Intelecto Ativo se derramava sobre ele sem interven­ção daquela, pois, como temos dito reiteradamente, Moisés não profe­tizava através de metáforas, ao modo dos demais Profetas — conforme se exporá, dado que este capítulo não é o lugar próprio para isso.

Do mesmo modo você observará que certos Profetas, após profe­tizarem durante algum tempo, perderam esta capacidade devido a al­gum acontecimento e não puderam continuar. Esta foi, sem dúvida, a

9 Quando o povo de Israel, após ter sido libertado por Moisés da escravidão no Egito, seguiu em sua caminhada pelo deserto, espiões — príncipes representan­tes das tribos que formavam o povo — foram enviados para verificar como era a Terra Prometida por Deus a Israel. Voltaram com uma boa notícia: que da­quela terra “emanava o leite e o mel”, mas também com uma notícia ruim: acovardaram-se perante os povos que lá viviam e atemorizaram o restante do povo (NT).

10 Geração do Deserto: refere-se aos integrantes do Povo de Israel que foram escra­vos no Egito. Segundo a Tradição, somente entraram em Israel aqueles nasci­dos no deserto, pois não carregavam a cultura e o medo adquiridos durante os anos de escravidão (NT).

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causa essencial e imediata do por quê cessou a Profecia no tempo do Exílio, posto que não há motivo maior de abatimento ou tristeza do que ser um servo comprado, escravizado por ignorantes pervertidos que misturam a fala verdadeira e corajosa a toda a devassidão das bes­tas, e nada poderfa^er contra isso. Esta ameaça pesa sobre nós, e é o que se quer dizer com: “Navegarão pedindo a palavra de YHVH e não encon­trarão” (Amós 8:12); como também: “Seu rei e seus ministros estão entre as nações; não há Lei, e seus Profetas não recebem visão de YHVH” (Lamentações 2:9). Isto é certo e manifesta é a causa, porque o instrumento da Profecia foi suspenso. E este é também o motivo da volta da Profecia para nós, segundo o costume: “Vinda do Messias — rapidamente se revelará!” — como nos foi prometido (Joel 3:1).

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CAPÍTULO 3 7

A EMANAÇÃO DIVINA SOBRE AS FACULDADES IMAGINATI­VAS E MENTAIS DO HOMEM ATRAVÉS DO INTELECTO ATIVO

Cumpre-me chamar sua atenção sobre a natureza essencial desta ema­nação divina projetada sobre nós, por meio da qual pensamos, e que marca a vantagem de nossas inteligências. Esta influência pode atingir uma pessoa em uma pequena medida, exatamente na mesma propor­ção que sua condição intelectual, enquanto pode atingir outra pessoa em tal medida que, além de aperfeiçoá-la, pode também significar o aperfeiçoamento para outros. O mesmo ocorre em relação a todos os seres, entre os quais alguns têm perfeição suficiente para governar ou­tros, enquanto há outros com capacidade somente para cuidarem de si próprios e não do próximo, como ficou demonstrado.

Portanto, saiba que se tal emanação do Intelecto Ativo se derrama unicamente sobre a faculdade racional, excluindo-se a imaginativa — seja por insuficiência da emanação, seja por defeito da faculdade ima­ginativa em sua formação inicial, que a incapacite para a recepção — esta é a casta dos sábios especulativos. Ao contrário, se esta emanação se difunde conjuntamente sobre ambas as faculdades, a racional e a imaginativa, como explicado por nós e também por alguns filósofos, e esta última foi criada originalmente em toda a sua perfeição, então é a casta dos Profetas. Enfim, se a emanação recai exclusivamente sobre a

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faculdade imaginativa, sem intervenção da racional, seja por razão de sua formação inicial ou por falta de estudo, teremos a casta dos gover­nantes, legisladores, adivinhos, agoureiros e donos de sonhos verda­deiros. Também os milagreiros, por meio de artifícios estranhos e ar­tes ocultas, todos incultos, pertencem a esta terceira casta.

Você deve verificar, assim, que alguns desta terceira casta, inclusive em estado de vigília, têm visões maravilhosas, sonhos e agitações se­melhantes às aparições Proféticas, ao extremo de acreditarem que são Profetas, regozijando-se muito de tais visões quiméricas, convencidos de que adquiriram conhecimento sem estudo, introduzindo grandes confusões em assuntos de ampla transcendência dentro da especula­ção, embaralhando de um modo surpreendente o verdadeiro com o ilusório. Tudo isso acontece devido ao predomínio da faculdade ima­ginativa, junto com o enfraquecimento da racional, carente de tudo, a qual, em outras palavras, não passou ao ato.

E notório que nestas três castas há numerosas gradações. Cada uma das duas primeiras se subdivide em duas partes, quais sejam: a daqueles que recebem a Influência apenas na medida da necessidade para o seu próprio aperfeiçoamento, e a daqueles que recebem a Influência em tal medida que é suficiente para o seu próprio aperfeiçoamento e para o de outros. Com respeito à primeira casta, a dos Sábios, há duas situações: aquilo que se derrama sobre a faculdade racional do sujeito é suficiente para fazer dele um homem estudioso e intelectual, dotado de conheci­mentos e critérios, porém, sem propensão a instruir aos demais nem a compor obras, carente de gosto e capacidade para isso; ou pode ser influenciado o bastante para se sentir estimulado, de modo positivo, a elaborar obras e ensinar. O mesmo ocorre com a segunda casta: é pos­sível que recebam da Profecia o que aperfeiçoe os Profetas e é possível que venha, daquela, algo que os obrigue a se interessar pelas pessoas, instruindo-os e emanando sobre eles sua própria perfeição.

É evidente que, sem esta perfeição a mais, os livros não seriam escritos, nem os Profetas teriam imbuído os homens do conhecimen­to da verdade. Porque o sábio não escreve nada para si mesmo com a finalidade de se doutrinar no que já sabe, mas sim porque, na natureza de seu intelecto, existe o ato de emanar continuamente e irradiar suces­sivamente esta emanação de um indivíduo a outro, até encontrar aque­le que pode se aperfeiçoar através desta 'Emanação, sem, no entanto, ser capaz de transmiti-la a outros, conforme explicamos em alguns capítu­los do presente Tratado (cap. 11).

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A natureza dessa matéria obriga, a quem recebeu esta emanação a mais, a comunicá-la necessariamente aos homens, aceitem estes ou não, inclusive com o risco de ser ferido por eles. Por isso, encontramos Profetas que pregaram aos homens até morrer, movidos por esta ins­piração divina que não lhes deixava descansar nem repousar, e até pas­saram por grandes males. E esse o motivo de Jeremias (A paz esteja sobre ele) proclamar que, como conseqüência do menosprezo por par­te dos rebeldes e incrédulos de seu tempo, sentia-se tentado a inter­romper sua missão Profética e não chamá-los à verdade, por eles re­chaçada, mas isto se mostrava impossível. E disse assim: “E todo o dia a palavra de YHVH é áspera e motivo de zombaria para mim. E eu disse: ‘Não me recordarei Dele, não voltarei a falar em Seu nome, é dentro de mim como fogo abrasador, encerrado dentro de meus os­sos, e me cansei de suportá-lo — mas não posso’” (Jeremias 20:8-9). O mesmo sentido encerra outro texto profético: “ O Senhor, YHVH, fa­lou — quem não profetizará?” (Amós 3:8). Conheça isso!

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CAPÍTULO 3 8

A CORAGEM E A INTUIÇÃO ATINGEM O GRAU MAIS ALTO DA PERFEIÇÃO NOS PROFETAS

É preciso saber que todo homem possui necessariamente a faculdade da coragem, sem a qual não se sentiria impulsionado mentalmente a evitar o que lhe possa prejudicar, e semelhante faculdade é, entre as forças da alma, o que a faculdade repulsiva é entre as forças naturais. A faculda­de da coragem varia em intensidade ou debilidade, assim como ocorre nas demais faculdades. Isso pode ser comprovado pelo fato de que há quem se lança contra um leão, enquanto outro foge de um rato; há quem irrompa contra um exército para lhe combater, ao passo que outro teme e treme quando uma mulher grita com ele. E necessário que, desde a formação inicial, exista certa predisposição na complei­ção, e que essa faculdade seja estimulada, segundo determinado crité­rio, de maneira que a força aflore; e diminuirá devido ao exercício escasso, caso siga um critério diferente. Lembramos da nossa própria juventude, que há diferentes níveis de energia entre os jovens.

Analogamente, a faculdade intuitiva se dá em todos os homens, mas varia para mais ou para menos, especialmente nas coisas às quais se dispende maior atenção e reflexão. Assim, você observará que Fulano falou e agiu de determinada maneira com respeito a Cicrano, numa dada situação. E encontrará, entre as pessoas, aquela em quem a imaginação e

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a intuição são muito fortes e certas, de forma que é até possível que imagine algo como real e isto ocorra conforme imaginou, ou perto disso. Suas causas são muitas, pois é produto de uma série de numero­sas circunstâncias: anteriores, posteriores e amais. Mas, em virtude desta faculdade de intuição, o intelecto recorre a todas estas circunstâncias e deduz as conclusões em tempo tão curto que parecem instantâneas. Por isso, certos homens prognosticam eventos futuros importantes.

Ambos os dotes — coragem e intuição — devem ser, necessariamen­te, muito fortes e, quando o intelecto ativo se derrama sobre eles, al­cançam uma pujança extraordinária, até aquele grau que você já co­nhece : quando um homem é capaz de se apresentar de forma corajosa, somente com seu cajado, diante de um grande rei, para libertar uma nação da escravidão por ele imposta, sem medo nem temor, somente por que se lhe havia dito: “Porque Estarei contigo” (Exodo 3:12), Este estado é variável entre esses homens, mas indispensável. Como se dis­se a Jeremias: “Não temas diante deles (...) eis que aqui te ponho, desde hoje, como cidade fortificada (...)” (Jeremias 1:8,17-18). E deste modo a Ezequiel: “Não os temas nem tenhas medo de suas palavras” (Eze­quiel 2:6). Assim, vê-se a todos (A paz esteja com eles!) dotados de grande coragem. Igualmente, em virtude do extraordinário desenvol­vimento de suas faculdades intuitivas, predizem sem demora o futuro, ainda que, também nisto, existam diferentes graus entre eles, como você sabe.

E preciso saber que os Profetas Autênticos concebem idéias que re­sultam de premissas que a razão humana, por si só, não poderia com­preender, como quando contam coisas que o homem, somente através da razão ou da simples imaginação, não é capaz de contar. Esta mesma inspiração — que se difunde sobre a imaginação e a aperfeiçoa até o ponto em que sua ação chega a predizer o futuro e percebê-lo como se fosse resultado dos sentidos, exeqüível à imaginação por intermédio destes — aquilata também a operação da faculdade racional, até chegar, por meio desta, a conhecer a realidade das coisas e lograr sua percep­ção, como se a houvesse alcançado através de proposições especulati­vas. Esta verdade deve ser admitida por todo aquele que aspira a um juízo imparcial, pois também as coisas atestam e provam umas às ou­tras. Isto se aplica forçosamente à faculdade racional, dado que, de fato, o Intelecto Ativo derrama-se verdadeiramente sobre ela e a conver­te em ato. Assim, pela faculdade racional a emanação advém à faculda­de imaginativa. Como, então, a faculdade imaginativa se aperfeiçoa até

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o ponto de representar coisas não percebidas anteriormente pelos sen­tidos, se o mesmo nível de perfeição é atingido pelo intelecto e este não pode compreender as coisas a não ser pelo modo convencional, ou seja, através de premissas, conclusão e inferência? Esta é a verda­deira característica da Profecia e das disciplinas às quais a Profecia deve estar totalmente voltada.

Se dissertei a respeito dos Profetas Autênticos foi para diferenciá-los das pessoas da terceira casta, que não possuem pensamento claro nem sabedoria, mas somente imaginação e pensamentos desconexos. Tal­vez o que atinja estas pessoas sejam vestígios de pensamentos que se tornaram quimeras, juntamente com todo o que há em sua imaginação. E à medida que esqueceram essas coisas imaginadas e esses sonhos, os vestígios de pensamentos desconexos que restaram lhes parecem um novo pensamento e algo vindo de fora. Eu as compararia a um ho­mem que, havendo tido em sua casa mil animais e tendo sido todos retirados, exceto um somente, aquele homem, em companhia apenas deste animal, acredita que acaba de entrar em casa com este animal — o que não é verdade! Ao contrário, este é aquele que não saiu.

Este é, entre todos, o terreno mais perigoso, e quantos aqui morre­ram, entre aqueles que se consideravam sábios! Por esse motivo, en­contram-se pessoas cujos pensamentos conceberam em seus sonhos, mas acredita que a visão acontecida durante o sono nada mais é do que a consideração que fizeram ou que ouviram no estado de vigília. Por isso, não se deve outorgar crédito àqueles que não tenham uma facul­dade racional perfeita ou que não tenham alcançado alto nível especu­lativo, pois somente quem a logrou é capaz de extrair conhecimentos ulteriores quando o Intelecto Divino se infunde sobre ele, e este é o Pro­feta autêntico. O que expressa o texto: “E venhamos11 a ter um cora­ção sábio” (Salmo 90:12), é que o verdadeiro Profeta é aquele que tem um coração sábio. Também isto você precisa e deve saber.

11 “E venhamos”: curiosamente, é utilizada a mesma palavra para este verbo que, em hebraico, é usada para se referir a “Profeta” — N aví(NT).

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CAPÍTULO 39M O ISÉ S FOI O PRO FETA M A IS A PRO PR IA D O P A R A RECEBER E

P R O M U LG A R A LEI IM U T Á V E L . OS PRO FE TA S QUE O SUCEDE­

R A M A PEN A S A E N SIN A R A M E E X PLIC A R A M

Após explicarmos o bastante sobre Profecia, conhecermos a sua ver­dade e demonstrarmos em que a Profecia de M oshé Kabênu se distin­gue da dos demais, afirmamos que esta percepção, por si só, obriga- nos ã leitura da Bíblia. Não houve, desde Adão até Moisés (A Paz esteja sobre ele!), algo semelhante em nenhum Profeta conhecido. Dessa forma, é princípio fundamental de nossa Lei que jamais haverá outro. Por isso, é nossa crença que nunca houve nem haverá alguma outra Lei senão a de Moisés. Eis aqui a explicação, conforme expresso nos Livros dos Profetas e transmitido pela Kabalá (Tradição).12 E um fato que, entre todos os Profetas que precederam a M oshé JLabênu, como os patriarcas Sem, Éver, Noé, Matusalém e Enoque, jamais al­gum disse a um grupo de homens: “Deus me enviou a vocês e orde­nou que lhes dissessem isso ou aquilo, proíbe-os de fazer tal ou qual coisa e os prescreve esta outra”. Isto é coisa que não se encontrará em

12 Kabalá-, aqui, no sentido estrito de tradição passada de geração em geração, e não no conhecido sentido esotérico (NT).

2 .2 .4 ° G U I A d o s p e r p l e x o s

qualquer escrito da Torá e não haverá sobre isso qualquer história ver­dadeira, ainda que, como explicamos, estes patriarcas receberam a Pro­fecia divina. E quem recebeu uma emanação maior, como Abrahão, reunia os homens e os dirigia pelo caminho do estudo e na direção reta à verdade por ele recebida. Assim, Abrahão ensinava as pessoas, de- monstrando-lhes, por meio de provas especulativas, que no mundo há somente um Deus e Ele criou tudo quanto existe fora dele; portanto, não se deve idolatrar as formas celestes, nem coisa alguma criada. In- culcava isto nos homens, atraindo-os com belas palavras e benevolên­cia, mas jamais lhes disse: “Deus me enviou até vocês e me mandou ou proibiu (isto ou aquilo)”. Quando lhe foi ordenada a circuncisão — a ele, a seus filhos e servos — circuncidou-os, mas não conclamou ou­tros, por meio de um apelo profético, a fazerem o mesmo. Fixe-se no texto bíblico: “Porque o conheci (...)” (Gênesis 18:19). Está claro que somente se cumpria uma mitsvá (mandamento): Isaac, Jacob, Levi, Kehát e Amram fazem um apelo semelhante aos homens. Do mesmo modo, nota-se que os Sábios, com relação aos Profetas anteriores a Moisés, referem-se a: “o tribunal de Ever”, “o [tribunal] de Matusalém”, “a Academia de Matusalém”, porque todos eram Profetas que instruíam as pessoas por meio de comentaristas, professores e guias, mas nunca se afirmava: “Disse-me YHVH: Fala aos descendentes de Fulano”.

Assim foi antes de Moisés. Quanto a este, já se sabe o que foi dito dele e o que o povo disse dele “(...) Neste dia vimos que Deus fala com o homem (...)” (Deuteronômio 5:21). Com respeito a todos os Profe­tas posteriores a Moisés, já se sabe como se expressam em todas as suas relações com os homens: apresentam-se como predicadores, con­vidando-os a observar a Lei de Moisés, ameaçando aqueles que se mostram rebeldes e formulando promessas aos que se esforcem em segui-la. Acreditamos que sempre será assim, conforme o afirmado: “Não está nos Céus (...)” (Deuteronômio 30:12); “(...) a nós e a nossos filhos, para sempre (...)” (Deuteronômio 29:28). E assim deve ser, por­que quando uma coisa se apresenta como a mais perfeita de sua espé­cie, qualquer outra da mesma espécie pode, quando muito, resultar inferior em perfeição — ora por excesso, ora por falta. Se uma mesma medida implica a máxima igualdade possível de uma espécie, qualquer outro ser dessa espécie que se desviasse dessa medida pecaria por ex­cesso ou por falta. O mesmo ocorre com esta Lei, declarada igual (eqüi- tativa, justa), ao se dizer: “estatutos e mandamentos justos” (Deutero­nômio 4:8), pois, como sabe, Tsadikim (Justos) significa iguais ou eqüitativos.

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São práticas (espirituais) em que não há carência nem excesso, como ocorre na prática dos ermitões nas montanhas, que se privam da carne e do vinho e de diversas necessidades do corpo, bem como do movi­mento prático. Também não há vício que conduza à voracidade ou à leviandade, que minam a perfeição do homem em sua conduta e nos estudos, como é o caso das prescrições dos povos andgos.

Quando nos referimos, neste Tratado, aos motivos passíveis de se alegar para as Mitsvót (Mandamentos), a sua igualdade e sabedoria tor- nar-se-ão totalmente claras para você, por isso: “A Lei de YHVH é perfeita” (Salmos 19:8). Porém, quem acredita que esta imponha car­gas grandes e pesadas, causadoras de angústias, incorre em um erro de julgamento. Eu demonstrarei que, para as pessoas íntegras, seus man­damentos são fáceis, na verdade. Daí a declaração: “Qual é a coisa que pede YHVH, teu Deus, de ti? (...)” (Deuteronômio 10:12); e também: “Porventura sou Eu para Israel um deserto? (...)” (Jeremias 2:31). Tudo isto se refere aos íntegros. Pois bem, quanto aos ímpios, violentos e despóticos, para estes, o mais difícil e nocivo é considerar que haja um juiz que evite o despotismo, assim como, para os dominados por pai­xões não nobres, o pior é a repressão à sua conduta de entrega desen­freada à lascívia, pois, agindo assim, atraem para si o castigo da Lei. Assim, todo homem vicioso considera uma carga pesada a restrição ao mal com que se compraz, como conseqüência de sua depravação mo­ral. Não se deve medir, portanto, a facilidade ou dificuldade da Lei com base na paixão do homem malvado, vil e de costumes corrompi­dos, mas deve-se, sim, avaliá-la conforme a conduta do homem ínte­gro, pois a finalidade da Lei é de que todos sejam como este. Denomi­nemos somente a esta Lei de Lei Divina. Todo o resto, externo a ela — como os governantes nacionais, as leis dos gregos e as loucuras dos Sabianos e seus semelhantes — é obra de políticos, não de Profetas, como já expliquei diversas vezes.

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CAPÍTULO 4 0

O TESTE DA PROFECIA VERDADEIRA

Proclama-se claramente que o ser humano é político13 por natureza, e esta condição lhe impõe viver em comunidade; não é como os demais animais, cuja reunião em comunidade não representa uma necessida­de. Devido à complexidade da nossa espécie — pois, como você sabe, é a última — seus indivíduos apresentam diferenças tão pronunciadas que não se encontrarão dois concordantes em um costume qualquer, como tampouco se vêem rostos iguais. A causa se fundamenta na exis­tência de diferentes seres complexos que origina uma distinção nas matérias, como também nos acidentes anexos à forma, pois cada uma das formas naturais tem seus acidentes peculiares que a acompanham, à parte da matéria. Uma variação tão grande entre indivíduos não ocorre em qualquer outra espécie animal — ao contrário, a diferença individual em cada uma delas é pouco definida, enquanto , na humana, é possível se encontrar duas pessoas tão distintas em qualidades morais que se diria que pertencem a espécies diferentes. Assim, poderia ocorrer o caso de um indivíduo tão impiedoso que degolasse seu filhinho no

13 Político: em hebraico, mediní. Nas versões respectivamente em língua inglesa e espanhola, foi traduzido como ser social (NT).

22.8 O G U I A D O S P E R P L E X O S

auge da cólera, enquanto outro, por sua sensibilidade delicada, se im­pressionaria diante da idéia de matar um mosquito ou um réptil, o mesmo se aplica à maioria das eventuais características.

Portanto, posto que a natureza humana implica esta variedade de indivíduos e a natureza política lhe é inerente, por sua própria índole, segue-se que é absolutamente impossível que a sociedade seja perfeita sem um guia que coordene os esforços individuais, suprindo o escasso e moderando o excessivo E que ele possa prescrever ações e normas éticas obrigatórias a todos, conforme um mesmo modelo, de modo que a variedade natural fique atenuada mediante uma grande harmonia convencionada e a sociedade se mantenha em ordem.

Por isso insisto que a Lei, ainda que não seja natural, não é total­mente estranha à questão natural. Ela vem da Sabedoria Divina que, para conservar a nossa espécie, cuja existência pré-ordenou, fez com que seus indivíduos tivessem uma faculdade de governar. Alguns foram inspirados com teorias de legislação, como os Profetas e os legisla­dores; outros possuem o poder de impor o cumprimento da lei pres­crita por eles, tornando-a realidade: são os reis que adotam as leis dos legisladores e legisladores cujo desejo é ser Profetas e aceitam total ou parcialmente os ensinamentos dos Profetas. Quando acei­tam uma parte e deixam a outra é porque lhes é mais conveniente, ou porque, por ambição, buscam convencer as pessoas de que recebe­ram estas coisas por meio de Revelação e não porque as tomaram de outro. Pois há pessoas que, aficcionadas por determinada perfeição que lhes pareça excelente, sentem prazer e se empenham para que as pessoas as imaginem dotadas da mesma, ainda que conscientes de que carecem totalmente dela — como quando se observa alguém se pavoneando com um poema alheio, cuja autoria atribui a si próprio; o que igualmente ocorre com algumas obras de sábios e obras de conhecimentos diversos, quando este indivíduo invejoso e preguiço­so, que arrebata algo inventado por outro, alega ser o autor de tais obras. O mesmo acontece com esta perfeição Profética: encontra­mos sujeitos pretensamente Profetas, que proclamaram haver rece­bido uma Profecia e declararam coisas que jamais foram profetiza­das, como é o caso de Tsidkiá.ben Keneána (I Reis 22:11-24). E há pessoas que presunçosamente se atribuíram a capacidade da Profecia e anunciaram coisas que, sem dúvida, foram ditas por Deus, ou seja, fruto de Inspiração Divina, mas não a eles, como é o caso de Chananía ben Azur (Jeremias 28:1-5).

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Eu lhe explicarei tudo isso, ainda que seja manifesto e bastante cla­ro, para que nada fique na penumbra, e que você tenha um critério para distinguir entre os regimes de leis convencionadas, os da Lei Divina e os emanados dos homens que usurpam as palavras dos Profetas, apro­priando-se delas com petulância. Quanto às leis cujos autores declara­ram expressamente como produtos de sua reflexão, não há necessidade de argumentação alguma, pois, se são resultados de reflexão, não neces­sitam de prova. Quero somente lhe informar acerca dos regimes alega­dos como proféticos, pois há os verdadeiramente proféticos, ou seja, divinos, há os parcialmente legislativos e parcialmente plagiados.

Conseqüentemente, caso ocorra o caso de um governo cuja única finalidade e propósito do autor que calculou seus efeitos não seja outra senão ordenar o Estado e seus assuntos, evitar a injustiça e a violência - sem insistir para nada em coisas teóricas, nem parar para pensar raci­onalmente, nem se preocupar com opiniões, sejam sãs ou mórbidas - senão que, pelo contrário, seu único objetivo seja quanto às relações dos homens entre si e a conseqüência de certa felicidade presumível, de acordo com o legislador — segundo este pressuposto, digo, você saberá que este governo é puramente legislativo, e seu autor pertence, como fica dito, à terceira casta, ou seja, à daqueles que têm somente a perfeição da faculdade imaginativa.

Caso se trate de um governo cujas disposições todas apontam para a melhora dos interesses materiais acima mencionados, assim como também da fé, ao dirigir suas intenções no sentido de inculcar princípi­os verdadeiros acerca da Divindade e dos Anjos, com o propósito de fazer o homem sábio, inteligente e cordial, para que conheça toda a realidade em sua condição autêntica, então você saberá que este é um governo que emana de Deus e que esta Lei é divina.

Ainda lhe faltará verificar se quem a proclama é um homem ínte­gro, a quem a verdade lhe foi revelada por Profecia, ou um sujeito que se vangloria destas revelações e roubou-as de outros. Como compro­vação se impõe um exame da sua integridade: pesquisar e conhecer suas atividades e observar sua conduta. O melhor critério será sua re­pulsa e desprezo aos prazeres físicos: é a primeira atitude nos homens de ciência, quanto mais dos Profetas! Particularmente com relação àqueles prazeres dos sentidos que, como lembrou Aristóteles, consti­tuem-se em vergonha para nós. Isso tudo Deus transmitiu através da Profecia, para esclarecer a verdade aos que a buscam: que não se desviem

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e não errem ,14 Faz bem ver Sedequias (Tsidquiá ben Maássêià) e Acab (Acháv ben Koláiã), que se outorgaram a Profecia e atraíram seguidores, procla­mando mensagens reveladas a outros, e se entregaram à lascívia a pon­to de cometerem adultério com as mulheres de seus amigos e partidá­rios, até que Deus os desmascarou e foram queimados pelo Rei da Babilônia, como explica claramente Jeremias: “E será motivada neles uma maldição sobre todo o Exílio de Judá na Babilônia, qual seja: Faça em seu nome YHVH o mesmo que com Sedequias e com Acab, aos quais o Rei da Babilônia queimou no fogo, porque fizeram iniqüida- des em Israel, cometeram adultério com as mulheres de seus próxi­mos e falaram palavras em Meu nome que eram mentiras, que não os ordenei dizer. Eu sei e o atesto — Oráculo de YHVH” (Jeremias 29:22-23). Estude isso com vontade!

14 Maimônides se utiliza de um jogo de palavras em hebraico, ao colocar lado a lado duas palavras foneticamente idênticas — Ló Itú [desviem], ve-ló Itú [errem] — cuja única diferença é a troca da letra hebraica Táv da primeira pela letra he­braica Têt na segunda (NT).

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CAPÍTULO 41O QUE SE ENTENDE POR VISÁO PROFÉTICA: OS QUATRO MO­DOS BÍBLICOS

Desnecessário explicar o que é o Sonho. Quanto à Visão, como em Números 12:6: “Eu me revelei a ele em Visão”, conhecida sob a deno­minação de M arêN eviá (Visão Profética), também chamada na Bíblia de Yad YHVH (Mão de Deus) e M acha^ê15 (Drama, Cena), a Visão é um estado de agitação e terror que se apodera do Profeta, como se afirma de Daniel nestas palavras: “E vi esta grande Visão. Minhas forças me deixaram, a cor do meu rosto fugiu, fiquei desmaiado e sem vigor.” E prossegue: “Caí com o rosto em terra, adormecido.” (Daniel 10:8-9). Depois, quando o anjo lhe fala e lhe faz levantar, é no estado de Visão Profética, em que os sentidos se paralisam e a emanação se derrama sobre a faculdade racional, e dela para a imaginativa, de tal maneira que esta se aperfeiçoa e entra em atividade. As vezes, a Profecia se inicia com uma visão Profética: há uma agitação e emoção intensas, devido a toda a atividade da faculdade imaginativa, e, depois disso, a Profecia segue adiante, como ocorreu a Abrão16 antes da Profecia:

15 Veja II Reis 3:15; Ezequiel 1:3 e 3:22; 37:1 e 40:1.16 Refere-se a Abrão, e não Abrahão, pois foi antes de ter se selado o pacto entre

ele e Deus, quando foi acrescentada uma letra Hê ao seu nome, transliterada como hã (NT).

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“(...) manifestou-se a palavra de YHVH a Abrão na visão (...) (Gênesis 15:1) e no final: “(...) um sono pesado caiu sobre Abrão (...)” (Gênesis 15:12) e: “E disse a Abrão (...)” (Gênesis 15:13).

Saiba que, quando os Profetas falam do fato de terem recebido uma Profecia, dizem que receberam-na de um anjo ou que Deus se comunicou com eles, embora tenha sido através de um anjo, sem dú­vida. Os Sábios também escreveram sobre isso nestes termos: “CE disse-lhe YHVH (...)’ (Gênesis 25:23) através de um anjo {(Talmud — Bereshit Rabá).” Perceba que todas as vezes que a Bíblia relata que Deus ou um anjo falou com uma pessoa, isto ocorreu em um Sonho ou em uma Visão Profética.

O relato sobre a missão que cabe aos Profetas, de acordo com o que é contado nos Livros dos Profetas, é feito de quatro modos:

Primeiro Modo: Quando o Profeta afirma taxativamente que a pala­vra veio de um anjo em Sonho ou em Visão.

Segundo Modo: Quando o Profeta narra as palavras do anjo, sem escla­recer se foi um Sonho ou Visão, pois ele confia no que já é conhecido — só há Profecia por uma destas duas maneiras: “Em Visão Eu me revelarei a ele, e por Sonho Lhe falarei.” (Números 12:6).

Terceiro Modo: Sem se referir de modo algum a um anjo, o Profeta atribui a palavra a Deus (Exaltado Seja!) que teria se dirigido a ele em Pessoa, mas menciona que esta palavra veio a ele em Visão ou Sonho.

Quarto Modo: Quando o Profeta assegura simplesmente que Deus lhe falou ou lhe ordenou: Faça isto ou Diga isto, sem esclarecer se foi por mediação de um anjo ou de um sonho, fiando-se no conhecido e esta­belecido: que nenhuma Profecia nem Revelação ocorre senão em So­nho ou Visão e por intermédio de um anjo.

Como exemplo do Primeiro Modo, mencionamos: “E disse-me um anjo de Deus no sonho (...)” (Gênesis 31:11); “E falou Deus a Israel em visões da noite (...)” (Gênesis 46:2); “ E veio Deus a Bilám (...)” (Números 22:9-12). Com respeito ao Segundo Modo, cabe citar os se­guintes exemplos: “E disse Deus a Jacob: ‘Levanta-te, sobe a Bet-El (...)” (Gênesis 35:1); “E disse-lhe Deus: Teu nome é Jacob (...).” (Gê­nesis 35:10); “E chamou-o Y H V H um anjo dos Céus e disse (...)” (Gênesis 22:11); “E chamou Y H V H um anjo dos Céus a Abrahão, pela segunda vez (...)” (Gênesis 22:15); “E falou Deus a Noé (...)” (Gênesis 8:15). Temos, como exemplo do Terceiro Modo, a seguinte passagem: “(...) manifestou-se a palavra de Y H V H a Abrão, na visão (...)” (Gênesis 15:1). Para o Ouarto Modo, encontramos as seguintes:

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“E disse YHVH a Abrão (...)” (Gênesis 12:1); “E disse YHVH a Ja- cob: Volta à terra de teus pais (...)” (Gênesis 31:3); “E disse YHVH a Josué” (Josué 3:7); “E disse YHVH a Gideão (Guidón) ” (Juizes 7:2). E assim geralmente se expressam os Profetas: “Disse-me YH VH ”

(Isaías 8:1); “Foi-me dirigida a palavra de YHVH, dizendo” (Ezequi- el 24:1); “A palavra de YHVH chegara” (II Samuel 24:11 e I Reis 18:1); “E lhe dirigiu YHVH a sua palavra” (I Reis 19:9); “Foi palavra de YH VH ” (Ezequiel 1:3); “Começou o falar YHVH a Oséias” (Oséi­as 1:2); “Foi sobre mim a Mão de YH VH ” (Ezequiel 37:1 e 40:1). Há muitos exemplos deste teor.

Tudo o que se apresenta em cada um destes quatro modos é Profe­cia, e quem a emite é um Profeta. Pois bem, quando se diz: “Deus veio a Fulano em sonho noturno”, neste caso não há Profecia em absoluto, nem esta pessoa é um Profeta; somente se indica que lhe chegou um aviso da parte de Deus, e nos adverte seguidamente que aconteceu por meio de um sonho. Com efeito, assim como Deus põe em movimento uma determinada pessoa para salvar a outra ou para destruí-la, do mesmo modo suscita, no sonho noturno, certas coisas que deseja rea­lizar. Não duvidamos que Labão ÇLaván), o Arameu, era um malvado completo, adorador de práticas gentias, e sobre Abiméleq (Avimêlech), apesar de ser um homem bom para o seu povo, o Patriarca Abrahão afirmou de sua cidade e seu reino: “(...) talvez não haja temor de Deus neste lugar (...)” (Gênesis 20:11). Contudo, de um e de outro, Labão e Abiméleq, se disse, respectivamente: “E veio (a palavra de) Deus a Abiméleq, no sonho da noite (...)” (Gênesis 20:3), e igualmente com respeito a Labão: “E veio Deus a Labão, o Arameu, no sonho da noite (...)” (Gênesis 31:24). Veja isso! Reflita sobre a diferença entre “Veio Deus” e “Falou Deus”, assim como entre as palavras “em um sonho noturno” e “em visão noturna”, pois se afirma de Jacob: “E falou Deus a Israel em visões da noite (...)” (Gênesis 46:2), e para Labão e Abiméleq: “Deus veio (...) em sonho da noite (...)” (Gênesis 20:3). Por isso, Onkelos traduz: “E veio palavra da parte de YHVH, e não falou para estes dois: E Deus se revelou”.

Também se afirmou: “YHVH falou a Fulano”. Este fulano não re­cebeu qualquer visão que não fosse por intermediação de um Profeta, como nesta passagem: “(...) E foi consultar a YHVH (...)” (Gênesis 25:22), e se esclarece: “na Academia de Ever”. E Deus lhe respondeu, conforme está escrito: “E disse-lhe YHVH (...)” (Gênesis 25:23). Con­sidere, portanto, estas possibilidades: caso seja verdade que Ever é o

2-34 ° g u i a d o s p e r p l e x o s

malách {anjo ou mensageiro), chamado tantas vezes de anjo pelo Profeta, como será explicado; se indica o anjo que veio a Éver naquela Profecia; ou talvez o objetivo seja esclarecer que, em qualquer lugar onde haja uma mensagem atribuída simplesmente a Deus, entenda-se através de um anjo, aplicável a todos os Profetas, como explicamos.

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CAPÍTULO 4 2

PROFETAS RECEBERAM COMUNICAÇÃO DIRETA APENAS EM SONHOS OU VISÕES

Como já explicamos, sempre que se menciona a aparição de um anjo e uma mensagem sua, trata-se de uma Visão ou de um Sonho Profético, tenha-se ou não declarado isto expressamente. Pouco importa se al­guém afirmou que notou que era um anjo imediatamente ou que este lhe pareceu primeiramente um ser humano e depois comprovou-se que se tratava de um anjo. Sempre, que, ao final, você averiguar que quem foi visto e falou era um anjo, acreditará por certo que, desde o princípio, era uma Visão ou Sonho. Em ambos os casos, ora o Profeta percebe Deus falando com ele, como veremos, e ora é um anjo, ou melhor: ele ouve sem ver quem lhe fala ou contempla um ser humano que lhe dirige a palavra, e depois verifica que este era um anjo.

Este é um princípio sumamente importante, professado pelos Sá­bios. O maior dos maiores, Rav Chiá Há-Gadol (Rabi Chiá, O Grande), ao interpretar a seguinte passagem da Torá: “ E apareceu-lhe YHVH junto a Elonê [planícies de] Mamrê (...)” (Gênesis 18:1), afirma que,inicialmente, informa-se de maneira sucinta que Deus apareceu a Abrão e então passa-se a explicar em qual forma Ele surgiu, esclare­cendo que Abrão primeiramente viu três pessoas, e correu. Eles lhe falaram e ele lhes respondeu. O autor desta interpretação assegura que

2 3 6 O G U I A D O S P E R P L E X O S

as palavras de Abrão: “ (...) Meu Senhor, se tenho achado graça em teus olhos, rogo-te que não passes longe de teu servo” (Gênesis 18:3) guardam uma referência ao que Abrão, em Visão Profética, disse a um dos homens, como pode se constatar na frase: “Falou ao maior entre eles”1'. E preciso compreender e se aprofundar nisto, porque é o se­gredo entre os segredos.

Ocorre-me, também que, na história de Jacob, quando se diz: “(...) e lutou um homem com ele (...)” (Gênesis 32:35), trata-se igualmente de uma Profecia, posto que, ao final (Gênesis 32:29 e ss.), afirma-se claramente que era um anjo. O mesmo ocorre na história de Abrahão, em que se declara no princípio, resumidamente, que “Deus lhe apare­ceu (...)” e, em seguida, explica-se como isto sucedeu. Do mesmo modo, com respeito ajacob, afirma-se: “(...) e encontraram-no anjos de Deus” (Gênesis 32:2), e narra-se o ocorrido desde então até que se encontra­ram,, conta-se que enviou mensageiros a Esaú e, depois de fazer isto e aquilo, “E ficou Jacob só (...)” (Gênesis 32:25), porque aí se trata des­tes mesmos anjos de Deus, de quem se disse em princípio: “saíram-lhe ao encontro anjos de Deus”. Esta luta e o diálogo se desenvolvem em Visão Profética. Analogamente, todo o ocorrido com Bilám no caminho (Números 22:22 e ss.), juntamente com o dito pela jumenta, foi em Visão Profética, posto que, ao final, afirma-se taxativamente (Números 22:32) que “E disse-lhe o anjo de YH VH (...)”. Igualmente, a propósito da visão de Josué: “Alçou os olhos e viu que estava um homem diante dele” (Josué 5:13), acredito que se trata de Visão Profética, dada a conti­nuação claramente especificada: “Sou um ministro do exército de Y H V H ” (Josué 5:14-15). Pois bem, com respeito a Juizes 2:1-4; “Subiu um anjo de YH VH do Guilgál (...) e quando o anjo de YH VH disse estas palavras a todos os filhos de Israel (...)” (Juizes 2:1-4), os Sábios afir­mam que o anjo de Deus em questão é Pinchas, nestes termos: “E Pinchas quem, ao descer sobre ele a Divina Majestade, assemelhava-se a um anjo de Deus”.

Já esclarecemos que o termo malách, como anjo, é polivalente, e que o Profeta também é chamado de anjo, como nos textos seguin­tes: “(...) e enviou um anjo e nos tirou do Egito” (Números 20:16); “Então Ageu, o anjo/enviado de Y H V H , falou a mando de Y H V H ”

(Ageu 1:13); “Mas eles fizeram escárnio dos anjos/mensageiros de

17 Talmud, Gênesis Rabá 128.

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Deus” (II Crônicas 36:16). Assim como quando Daniel disse: “E aquele homem, Gabriel, a quem antes vi na visão voando rapidamen­te, chegou a mim como a hora das orações vespertinas” (Daniel 9:21). Deste modo, tudo isso sucede em Visão Profética, segundo se depre­ende de Números 12:6: “(...) em visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com ele”. Das referências citadas, separe o que permanece do que não foi mencionado.

Do declarado anteriormente acerca da necessidade de preparação para a Profecia18 e sobre o uso multifacetado do termo malách, tenha claro que Hagár, a Egípcia, não era profetisa, nem Manué (Manôach) e sua mulher eram Profetas (Juizes 13:2 e ss.),19 pois a palavra que perce­beram ou que chegou a seu conhecimento era algo parecido com a Bát K ó l(Eco), de que falam os Sábios com freqüência, e designa uma situa­ção externa à pessoa. O que induz a erro a respeito disso é o múltiplo uso do termo, mas é precisamente esta multiplicidade de significados que resolve a maioria das dificuldades atinentes à Torá.

Perceba que o texto: “E achou-a o anjo de YHVH sobre a fonte (...)” (Gênesis 16:7) é similar àquele sobre José, em que se afirma: “E en- controu-o um homem, e eis que [José] estava perdido no campo (...)” (Gênesis 37:15). Segundo todas as Midrashót, trata-se de um anjo.

18 Veja supra, cap. 32, 3a opinião (Maeso).19 Veja Gênesis 17:7 e s. e 21:17. Idem, Juizes 12:3-11 (Maeso).

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CAPÍTULO 4 3

SOBRE AS PARÁBOLAS DOS PROFETAS

Já expusemos, em obras anteriores [em Misbnê Torá\, que os Profetas às vezes se expressam por parábolas, e a razão para isso é que há ocasiões em que o Profeta percebe uma coisa nesta forma, seguida da explicação desta mesma visão. E como alguém que tem um sonho, nele imagina que está acordado e relata um sonho a outro, o qual lhe explica o sentido — mas foi todo um sonho. E o que se denomina “um sonho interpretado dentro de um sonho”. Em outros casos aprendemos o significado do sonho depois de acordarmos do mes­mo. De modo semelhante, algumas parábolas Proféticas se esclare­cem na própria Visão Profética, como aparece claramente em Zacarias, após a apresentação de algumas parábolas: “O anjo que falava comi­go veio e me despertou como a um homem que desperta de seu sonho, e me disse: O que vês? (...)” (Zacarias 4:1-2). Então a parábola é explicada (Zacarias 4:6 e ss.).

O mesmo se encontra no livro de Daniel, quando “Daniel teve um sonho e viu visões de sua cabeça enquanto estava em sua cama” (Da­niel 7:1) e, após o relato de todas as parábolas e seu incômodo por ignorar o significado das mesmas, pergunta ao anjo, que lhe revela o sentido nesta mesma visão: “Aproximei-me de um dos assistentes e lhe pedi que me dissesse a verdade acerca de todo isso. Ele me falou e

2 .4 0 O G U I A D O S P E R P L E X O S

me declarou a interpretação” (Daniel 7:16). Depois de afirmar que havia sido um sonho, chamou a este de Visão porque, conforme ele assegurou, um anjo lhe explicou em sonho profético. Por isso acres­centa: “Eu, Daniel, tive uma Visão, depois daquela tida anteriormente” (Daniel 8:1). Isto está claro, porque Cha^ón deriva da raiz verbal Cha^á, como M arê de “Raá” (ver), de modo que não existe diferença entre Mará, Macha^ê e Cha^ón. Aqui não há um terceiro caminho, mas so­mente os dois caminhos indicados pela Torá: “(...) em visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com ele” (Números 12:6); embora haja graus, como será explicado. Não obstante, nas parábolas Proféti­cas há muitas cujo sentido não se explica na visão Profética, se bem que o Profeta reconheça a intenção ao despertar, como é o caso dos cajados que Zacarias tomou em Visão Profética (Zacarias 11:7 e ss.).

Deve-se saber que, assim como os Profetas vêem coisas que, para exemplificar certas idéias, aparecem-lhes como parábolas — como as luminárias (Zacarias 4:2), os cavalos e as montanhas de Zacarias (Zacarias 6:1-7); a M eguihr0 de Ezequiel (Ezequiel 2:9); o muro construído no nível, visto por Amós (Amós 7:7); os animais observados por Daniel (Daniel 7 e 8); a panela fervendo vista por Jeremias (1:13) e outras pará­bolas semelhantes —, do mesmo modo eles vêem coisas que tendem a explicar por uma palavra que lembra, por sua etimologia ou pelo uso polivalente do nome, a designação do objeto percebido, de modo que a ação da faculdade imaginativa consiste, até certo ponto, em apresen­tar uma coisa designada por um termo polivalente, em que uma das acepções leva a outra, o que é uma das características da parábola. Assim, quando Jeremias afirma ver M aquêl Shakêd, uma “vara de amên­doa”, sua intenção é uma dedução do uso múltiplo do termo Shakêd, já que acrescenta: “pois eu persistirei (shokêd) (...)” (Jeremias 1:11-12). Não se trata, portanto, de vara nem de amêndoa. Do mesmo modo, quando Amós vê Klúv Káits, um “cesto (de frutas) de verão”, é para deduzir a medida do tempo, porquanto afirma: “e veio o fim (k êts)” (Amós 8:2). Todavia, é mais surpreendente quando se presta atenção a um determinado termo cujas letras correspondem a outro, se a ordem das mesmas for alterada, ainda que não exista entre ambos nenhuma relação etimológica ou semântica em comum, como nas parábolas de

20 Meguilá (hebraico): livro formado por folhas de pergaminho, enroladas em vol­ta de um cilindro de madeira, que guarda um relato específico (NT).

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Zacarias, quando, em uma Visão Profética, ao empunhar os dois caja­dos para pastorear o gado, dando a um o nome de Nôam (Graça ou Favor) e a outro o de Chovlím (Destruidores). Nesta parábola insinua- se que a nação, no início, tinha a graça de Deus e era Ele quem a guiava e dirigia, e ela se regozijava e tinha prazer em Obedecê-lo. Deus a propiciava e a amava, segundo se declara: “A YHVH glorificaste hoje (...)” (Deuteronômio 26:17) “E YHVH te separou hoje para ser para Ele um povo amado (...)” (Deuteronômio 26:18), quando a nação era conduzida e regida por Moisés e os Profetas que o sucederam.Porém, depois ela mudou de atitude, até sentir aversão pela obediência a Deus, de tal modo que Ele também experimentou o mesmo com respeito a ela e trocou seus chefes para destruidores, tais como Jero- boão e Menashê. Este é o sentido etimológico, porque Chovlím se relaciona com Mechablím Kramím (Destruidores de Vinhas) (Cânticos 2:15). Depois se deduz, igualmente, com respeito a Chovlím, que eram renitentes à Lei e a Deus. Mas este sentido não pode ser derivado de Chovlím senão mediante a transposição das letras (da raiz da palavra) Chêt (Ch), Vêit (V) e Lámed (L), e, conseqüentemente, relaciona-se à idéia de aversão e de abominação que encerra a parábola: “Então tomei aversão ao rebanho, e também suas almas se enfastiaram ('b a ch a lá )21 de mim” (Zacarias 11:8).

Com este método descobrem-se coisas muito estranhas — que tam­bém são segredos — empregadas na M erkaváf1 com as palavras Nechó- shet (cobre), kelál (geral), réguel (pé ou pata), éguel (bezerro) e chashmál (eletricidade).23 Graças a esta advertência, de acordo com essa perspec­tiva, outras palavras de diversas passagens lhe parecerão cristalinas , se as examinar bem em cada lugar.

21 Em bacha lá , a letra Bêt (B) é a mesma que a denominada 1Vêt (V), com oacréscimo, na primeira, de um ponto no meio da letra (NT).

22 Merkavá: Maimônides se refere ao Relato da Carruagem, de característica esotéri­ca (NT).

23 Em Ezequiel 1.

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CAPÍTULO 4 4

SOBRE OS DIFERENTES MODOS ATRAVÉS DOS QUAIS OS PRO­FETAS RECEBEM MENSAGENS DIVINAS

A Profecia somente será por Visão ou Sonho, como já explicamos mui­tas vezes e nunca deixaremos de insistir. Diremos agora que, quando se sente inspirado, o Profeta percebe às vezes uma parábola, conforme explanado reiteradamente. Em certas ocasiões, ele acredita contemplar a Deus (Exaltado Seja!), como quando disse Isaías: “E ouvi a voz do Eterno, que dizia: A quem enviarei e quem irá de nossa parte?” (Isaías 6: 8). Outras vezes ouve um anjo lhe falar, caso muito comum, como nas seguintes passagens: “E disse-me um anjo de Deus (...)” (Gênesis 31:11); “E então me respondeu: Não sabes o que é isso? E o anjo que me falava contestou (...)” (Zacarias 4:5); “Então ouvi falar a um dos justos” (Daniel 8:13). Isto é tão freqüente que sobram exemplos. Há ocasiões em que o Profeta dirige-se a um ser humano que lhe fala, como em Ezequiel: “E um homem de aspecto como de cobre (...) disse-me aquele homem: Homem! (..,)” (Ezequiel 40:3-4), depois de, no início, dizer: “Esteve sobre mim a mão de YFIVH” (Ezequiel 40:1). Há também certos casos em que o Profeta não nota em sua Visão Profética figura alguma, mas somente ouve palavras, em Visão Profética, dirigidas a ele, como disse Daniel (Daniel 8:13): “Ouvi uma voz de homem que me gritava no meio de Ulai”, Elifaz: “E no silêncio ouvi

2 4 4 ° G U I A d o s p e r p l e x o s

uma voz” (Jó 4:16) e também Ezequiel: “E escutei o que me falava” (Ezequiel 2:2), pois não se trata de haver alcançado a Visão Profética [diretamente] por aquele que lhe falou, mas de haver testemunhado, segundo afirma, o estranho fenômeno, e iniciado sua Profecia da seguinte forma: “E escutei a quem me falava”.

Além da precedente exposição sobre a divisão, justificada pelos textos, demonstrarei que as palavras, ouvidas pelo Profeta em Visão Profética, são, ocasionalmente, por sua imaginação, apresentadas a ele em termos enérgicos, como aquele que sonha ter ouvido um forte trovão ou visto um terremoto ou um raio, pois se têm estes sonhos muitas vezes.

Há ocasiões em que as palavras apreendidas na Visão Profética se assemelham à fala corrente e familiar, de maneira que nada estranho se faz ostensivo. É possível comprovar isso claramente na história do Profeta Samuel, que, ao ser chamado por Deus (Exaltado Seja!) em um momento de Inspiração Profética, acreditou que quem o chamara por três vezes consecutivas fora EliHá-Cohên (o Sacerdote Eli). Depois, a Bíblia explica, e se esclarece a razão disso baseava-se no fato de que o Profeta Samuel ignorava que a palavra de Deus se manifestava aos Profetas desta forma, já que este segredo, todavia, não lhe fora revela­do. Assim é explicado: “Samuel não conhecia, todavia, a Y H V H , pois ainda não se lhe havia sido revelada a palavra de Y H V H ” (I Samuel 3:7). A intenção é indicar o desconhecimento do Profeta, pois não lhe fora revelado, do modo como se manifestava a palavra de Deus. Quan­do se afirma que não conhecia a Y H V H , significa que não tivera ante­riormente alguma inspiração Profética, posto que se diz de quem pro­fetiza: “(...) em visão, a ele Me faço conhecer (...)” (Números 12:6). A interpretação deste versículo, atendo-se ao sentido, é do seguinte teor: Samuel não havia profetizado anteriormente e também não sabia que assim era a Profecia. Conheça isso!

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CAPÍTULO 4 5

OS DIVERSOS TIPOS DE PROFETAS: ONZE GRAUS DE PROFECIA OU DE PERCEPÇÃO PROFÉTICA; SEU ESTUDO EM TRÊS GRUPOS

Esclarecido anteriormente o verdadeiro conceito da Profecia, con­forme a especulação exigida e o exposto em nossa Lei, procede enu­merar seus graus, em consonância com estes dois princípios. Ainda que eu os denomine graus da Proferia, isto não implica que quem ocupe um grau qualquer já seja um Profeta. Ao contrário, os dois primeiros não são mais do que passos até ela, e quem alcançou um não figura, por isso, entre os Profetas anteriormente mencionados. Se em certas ocasi­ões se lhe intitula Profeta, é somente devido à generalização e por se colocar muito próximo dos Profetas.

Não se engane a propósito destes graus. Caso você leia nos Livros dos Profetas que um Profeta recebeu inspiração conforme um dos graus citados, e depois se declara, com referência a ele, que lhe ocorreu uma revelação sob a forma de outro grau, é possível que este Profeta, após uma inspiração configurada segundo alguns dos graus que vou enumerar, tenha logo, em outro momento, uma inspiração distinta, de grau inferior ao da primeira. Com efeito, assim como o Profeta não exerce seu ministério durante toda a vida, sem interrupção — ao con­trário, após profetizar em determinado momento, a inspiração Proféti­ca o abandona em outros — também pode ocorrer que o faça em deter­minada circunstância conforme um grau superior e depois, em outra,

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de acordo com um grau inferior ao primeiro. É possível também que não alcance tal grau eminente mais do que uma única vez na sua vida e depois seja privado dele, como também pode se conservar em um grau inferior até cessar por completo sua inspiração, posto que o sopro profético necessariamente abandona todos os Profetas mais ou menos antes de sua morte. Como se disse de Jeremias, da seguinte forma: “Quando a palavra de YHVH foi cessada na boca de Jeremias (...)” (Esdras 1:1), e com respeito a David: “Estas são as últimas palavras de David” (II Samuel 23:1). Conclusão idêntica é aplicável a todos.

Após estas palavras iniciais, passo aos graus nestes termos:Vrimeiro Grau: O passo inicial para a Profecia é quando uma ajuda

divina acompanha o indivíduo, incitando-o e animando-o para uma ação boa, grande e relevante, por exemplo, libertar a sociedade dos malvados, salvar um grande homem virtuoso ou derramar o bem so­bre uma multidão de pessoas, de tal maneira que o sujeito sinta, dentro de si mesmo, algo que o impulsione e lhe convide a amar. È o que se chama “o Espírito de YHVH” e se diz, daquele que fica neste estado, que “o Espírito de YHVH tenha se apossado dele”, “o Espírito de YHVH o tenha revestido”, “o Espírito de YHVH descansa sobre ele” ou que “YHVH está com ele”, e outras expressões análogas. Este foi o grau alcançado por todos os Juizes de Israel, dos quais se afirmou, em termos gerais: “Quando YHVH lhe suscitava um juiz, estava com ele e o livrava da opressão” (Juizes 2:18), e assim foi com todos os Meshicbê Jsraêl (Grandes Líderes de Israel). Particularmente, é constatado em alguns Juizes e Reis: “O espírito de YHVH foi sobre Jefté (Juizes 11:29). De Sansão se disse: “Apoderou-se dele o espírito de YHVH” (Juizes 14:19). E ainda: “E apoderou-se o Espírito de YHVH de Saul quando este ouviu-lhe as palavras” (I Samuel 11:6). Igualmente de Amassá, movido pelo Santíssimo para ajudar David: “Então Amassá, que era o chefe dos trinta oficiais, se revestiu do Espírito de YHVH e exclamou: A ti David e a teu povo, filho de Ishái, shalom (aqui estamos)!(...)” (I Crô­nicas 12:18). Considere que este tipo de força jamais faltou a M oshé Kabênu, desde que alcançou a maturidade. Por isso se sentiu impulsio­nado a matar o egípcio e a rechaçar os dois adversários24, sem razão aparente. E essa força era tão pujante nele que mesmo quando fugiu,

24 Provavelmente os dois escravos hebreus que discutiam entre si quando Moisés se aproximou (NT).

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presa do temor, ao chegar a Midián, estrangeiro e amedrontado, teste­munhou uma injustiça, não pôde reprimir seu ímpeto, nem se sentiu capaz de sufocá-lo, conforme se afirmou: “(...) e levantou-se Moisés, salvou-as (...)” (Exodo 2:17). Igualmente, uma força semelhante se ra­dicava em David depois que f o i tintado com o óleo da unção, como está escrito: “E desde aquele momento, daí em diante, veio sobre David o Espírito de Y H V H ” (I Samuel 16:13), por isso se arrojou com valentia contra o Leão, o Urso e o Filisteu. O mesmo Espírito de YH VH jamais inspirou a alguma dessas pessoas, mencionadas acima, a falar sobre determinado assunto, mas tão somente encorajava a pessoa que o pos­suía a agir. Não o encorajava a fazer tudo, mas sim a socorrer o oprimi­do — quer fosse uma pessoa, uma comunidade ou alguém a ele condu­zido. Assim como nem todos aqueles que tiveram um sonho verdadeiro são, por isso, Profetas, tampouco poder-se-ia afirmar de qualquer um, assistido pelo auxílio divino para alcançar algum objetivo (como enri­quecer ou lograr um propósito pessoal), que o Espirito de YHVH o acompanha, que YHVH esteja com de ou que tenha conseguido seu in­tento em virtude da Presença Divina. Diz-se isso somente de quem realizou um bem enorme, ou o objetivo que se esperava dele, como o atingido por José na casa do egípcio,23 origem dos importantes suces­sos acontecidos em seguida, como é notório.

Segundo Grau: E aquele em que um indivíduo sente como se algo houvesse se infiltrado nele e houvesse uma força nova, que o impulsi­ona a falar de tal maneira que profira palavras de sabedoria, louvores divinos, conselhos edificantes ou discursos relativos ao regime político ou a questões divinas. Tudo isso em estado de vigília, quando os senti­dos funcionam como de costume. Diz-se, de tal homem, que fa la pelo Espírito do Santíssimo. Por obra deste, David compôs os Salmos e Salo­mão, os Provérbios, o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. Do mes­mo modo foram escritos os livros de Daniel, Jó, Crônicas e os restan­tes Chetuvím (Escritos ou Hagiógrafos), pela virtude do Espírito de Deus, razão pela qual são denominados Chetuvím, significando que são “Es­critos pelo Espírito do Santíssimo”. Afirma-se expressamente: 0 Eivro de Ester f o i ditado pelo Espírito do Santíssimo, e, referindo-se a este, disse

25 Refere-se ao episódio de josé na casa de Potifar — importante oficial na corte do Faraó e chefe dos tabachim (responsáveis pela cozinha) — quando passou de escravo a ministro da corte egípcia (NT).

2 .4 8 O G U I A D O S P E R P L E X O S

David: “O Espírito de YHVH fala por mim, e suas palavras estão sobre a minha língua” (II Samuel 23:2), o que significa que foi Ele quem o fez proferir estas palavras. Assim, o que aconteceu aos S etenta Anciãos é pertinente à mesma categoria. Deles se afirma: “E quando sobre eles pousou o Espírito [de YHVH], puseram-se a profetizar e não cessa­vam” (Números 11:25), e o mesmo de Eldál e Medád (Números 11:26). Igualmente, todo Sumo Sacerdote consultado mediante os Urím e Tumíffr6 pertence a este grau, ou seja, como afirmam os Sábios: “A Divina Majestade descansa sobre Ele, e Ele fala pelo Espírito do San­tíssimo”. Também aqui se inscreve Jahziel, filho de Zacarias, do qual se disse nas Crônicas: “Sobre ele veio o Espírito de YHVH no meio da Assembléia, e disse: Ouvi, Todo Judá, e vós, os moradores de Jerusa­lém, e tu, Josafát: Assim disse YHVH (...)” (II Crônicas 20:14-15), assim como Zacarias, filho de Choiadá, o Sacerdote, pois dele se disse: “O Espírito de YHVH desceu sobre Zacarias, filho do sacerdote Choiadá que, apresentando-se ante o povo, disse: Assim fala YHVH (...)” (II Crônicas 24:20). Além deste, Azarias, filho de Oded, do qual se conta: “Foi o Espírito de YHVH sobre Azarias, filho de Oded, e se apresen­tou diante de Gaza (...)” (II Crônicas 15:1-2). E assim, analogamente, de quantos se assinale. Quanto a Bilám, enquanto era bom, pertencia a esta categoria; é o indicam estas palavras: “E pôs YHVH a palavra na boca de Bilám (...)” (Números 23:5), equivalentes afa lava pelo Espírito de YHVH, e neste sentido ele proclama de si mesmo: “Oráculo daquele que ouve os ditos de YHVH (...)” (Números 24:4). E importante adver­tir que David, Salomão e Daniel pertencem a esta classe e não alcan­çam a de Isaías, Jeremias, o Profeta Natán, Ahias o Silonita (Achiá há- Shiloni) e seus amigos, pois aqueles — refiro-me aos primeiros — somente falavam e proferiam seus ditos por obra do Espírito de YHVH. Quanto às palavras de David, “ter falado o Deus de Jacob, a Rocha de Israel me tem dito” (II Samuel 23:3), deve-se entender no sentido de que Ele lhe fizera promessas por mediação de um Profeta, seja Natán ou outro, assim como nesta passagem: “E disse-lhe YHVH (...)” (Gênesis 25: 23), ou nesta outra: “E YHVH disse a Salomão: Pois que assim tens amado e fizeste rota Minha Aliança” (I Reis 11:11), que indubitavel­mente encerra uma ameaça dirigida por Ele, por mediação de Ahías o Silonita ou outro Profeta. Analogamente, quando se disse de Salomão:

26 Urím e Tumírn-, jogo de pedras oracular (NT).

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“YHVH se lhe apareceu em Guivón durante a noite, em sonhos, e lhe disse (...)” (I Reis 3:5), não é Profecia perfeita, não como: “(...) mani­festou-se a palavra de YHVH a Abrão, na visão, dizendo (...)” (Gênesis 15:1) ou: “Deus falou a Israel em Visão noturna” (I Reis 46:2), nem como nas Profecias de Isaías e Jeremias, porque ainda que, a cada um deles, a revelação acontecera por meio de um sonho, nela mesma ha­via a indicação de que se tratava de uma Profecia e de que lhes ocorre­ra uma revelação. Por outro lado, no relato concernente a Salomão, verifica-se ao final: “Despertou Salomão de seu sonho” (I Reis 3:15) e, no segundo relato, assim se disse: “Apareceu YHVH pela segunda vez a Salomão, como se lhe havia aparecido em Guivón” (I Reis 9:2), quan­do ficara claro de que se tratava de um sonho. E um grau inferior àquele designado por: “(...) no sonho falo com ele” (Números 12:6), porque aqueles que têm uma inspiração Profética em um Sonho, jamais o chamam de Sonho depois que a Profecia chegou a eles desta forma. Na verdade, eles não têm dúvidas de que se trata de uma Profecia, como expressou o Patriarca Jacob, que, ao despertar de seu sonho profético, não disse que foi um sonho, mas sim afirmou claramente: “Certamen­te YHVH está neste lugar (...)” (Gênesis 28:16). E disse Jacob a José: “Deus Todo-Poderoso apareceu-me em Luz, na terra de Canaã (...)” (Gênesis 48:3), declarando que se tratava de uma Profecia, enquanto que, a respeito de Salomão, a descrição é: “Despertou Salomão e era um sonho”. De modo semelhante, observa-se Daniel explicar que ti­vera sonhos e, apesar de neles haver visto um anjo — cujas palavras ouviu — chamou-os de sonhos, mesmo depois de receber as instruções que lhe foram confiadas: “Então o mistério foi revelado a Daniel em Visão noturna” (Daniel 2: 19). Depois se declara: “Em seguida escre­veu o sonho (...) Eu olhava durante a minha Visão noturna (...)” (Da­niel 7:1-2); “E as visões de minha mente me perturbaram” (Daniel 7:15); e desta forma se manifesta: “Estava assombrado pela visão, e não entendi nada” (Daniel 8:17). Indubitavelmente se trata de um grau inferior àqueles dos quais se afirmou: “(...) no sonho falo com ele” (Números 12:6). Por esse motivo, concordou-se, em nosso credo, in­cluir o Livro de Daniel entre os Escritos e não entre os Profetas. Por isso devo advertir que, mesmo nesta espécie de visão Profética de Daniel e Salomão, embora tenham visto um anjo no sonho, eles não a consideraram como Profecia de fato, mas um sonho que permitiria conhecer a verdade de certas coisas, o qual se inscreve na categoria dos que falam pelo Espírito de YHVH, e constitui o segundo grau. Assim,

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na classificação dos Chetuvím não se estabelece diferença entre Provér­bios, Eclesiastes, Daniel, Salmos e os livros de Ruth e de Ester, todos eles escritos pc r mediação do Espírito do Santíssimo e incluídos na deno­minação genérica de Profetas.

Terceiro Grair. É o dos que logo proclamam: Foi-me dirigida a palavra de YHVH ou se servem de expressões similares. É também quando o Profeta percebe uma parábola em sonho, com todas as condições já ditas para a autêntica Profecia e, neste mesmo sonho profético, é lhe explicado o sentido encerrado na parábola, como ocorre na maioria das Profeci­as de Zacarias.27

Quarto Grau: Nesta categoria são classificados os sonhos proféticos em que se percebem palavras claras e distintas, sem ver quem as profere, como sucedeu a Samuel em sua primeira Profecia, conforme especifi­camente explicado acima, neste Tratado.

Quinto Grau: Neste caso, uma pessoa lhe fala em sonho, segundo se afirma em uma das Profecias de Ezequiel: “Disse-me aquele homem: Homem (...)” (Ezequiel 40:4).

Sexto Grair. E quando um anjo lhe fala em sonho, caso mais freqüente nos Profetas, segundo se afirma: “E disse-me um anjo de Deus no sonho (...)” (Gênesis 31:11).

Sétimo Grau: Nesta categoria, está o sonho profético, em que parece, àquele que sonha, que Deus lhe fala, como em Isaías: “Vi Y H V H (...)” que dizia: “A quem enviarei? (...)” (Isaías 6:1-8), e no texto de Mi­quéias, filho de Imla (Micháiu ben Imlá): “Vi Y H V H ” (I Reis 22:19; II Crônicas 18:18).

Oitavo Grau: Neste caso, há uma revelação em visão Profética e se percebem parábolas. E o que acontece, por exemplo, com Abrahão na visão entre os animais destroçados (Gênesis 15), porque estas parábolas fo­ram Visões diurnas, conforme se explicou.

Nono Grair. Quando se ouvem as palavras em Visão, como relatado com respeito a Abrahão: “E eis que foi a palavra de Y H V H a ele, dizen­do: Este não será teu herdeiro (...)”” (Gênesis 15:4).

Décimo Grau: Acontece quando é vista, na Visão Profética, uma pessoa que lhe fala, como ocorreu a Abrahão na planície de Mamré e a Josué, em Jericó.

27 Veja supra, cap. 43 (Maeso).

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Décimo Primeiro Grau: Quando, em Visão Profética, percebe-se um anjo lhe falando, conforme aconteceu a Abrahão no momento do sa­crifício de Isaac. Julgo que este é o grau mais eminente alcançado pelos Profetas, segundo testemunho dos Livros Sagrados, desde que se desconte a perfeição das qualidades mentais do sujeito, conforme o estabelecido, e faça-se a devida exceção a M oshé Kabênu (A Paz esteja sobre ele!). Quanto à possibilidade de que, na Visão Profética, o Profeta escute a palavra de Deus, parece-me inverossímil, pois a potencialidade da faculdade imaginativa não alcança este ponto; não temos visto nada semelhante nos demais Profetas. Por isso a Torá esclarece: “(...) em Visão, a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com ele” (Números 12:6). Portanto, a palavra situa-se exclusivamente em Sonho e na Visão, a ação e a emanação do intelecto, o que se expressa por eláv etvadá (a ele Me faço conhecer) que é a forma reflexiva da raiz do verbo Yadá (conhecer), mas a expressão não indica que, na Visão, ouça-se a pala­vra de Deus.

Quando encontrei escritos proféticos a respeito disso e ficou claro que se referiam à Visão, indiquei, em uma nota, que provavelmente se tratava daquilo que fora ouvido em Sonho que, diferente da Visão, faz com que o Profeta imagine que é Deus mesmo quem lhe fala, em um sentido literal. Não obstante, poder-se-ia admitir que toda visão que se refere a palavras ouvidas não seria, efetivamente, uma Visão, pois depois passa a um torpor, transformando-se em um sonho, como expusemos a propósito do texto: “(...) um sono pesado caiu sobre Abrão (...)” (Gênesis 15:12), o qual, asseguram os Sábios, é o torpor da Profecia. Portanto, sempre que se ouviam palavras, quaisquer que fos­sem elas, tratava-se de um sonho, como na referência tão reiterada de Números 12:6, enquanto que, na Visão Profética, somente se percebi­am parábolas ou comunicações de ordem intelectual, com mensagens de coisas específicas, semelhantes às obtidas através da especulação, segundo expusemos. E é isto que o texto citado sugere. Assim, de acordo com esta interpretação, os graus de Profecia seriam oito. O supremo e mais perfeito grau, em termos gerais, é aquele em que o Profeta é inspirado por uma Visão, ainda que seja somente uma pessoa quem lhe fala, como esclarecemos.

Talvez você levante a seguinte objeção: “Você conta, entre os graus da Profecia, aquele em que o Profeta pode ouvir palavras dirigidas a ele por Deus, como é o caso de Isaías e Miquéias. Porém, como pode ser assim, se admitimos, em princípio, que todo Profeta somente ouve

2_52_ O G U I A D O S P E R P L E X O S

a palavra de Deus através de um anjo, à exceção de Moshé Rabênu (Que a Pa? esteja sobre ele!), do qual está escrito: ‘Boca a boca Falei com Ele (...)’ (Números 12:8)?” É preciso saber que efetivamente é assim, pois, neste caso, o que atuacomo intermediário é a faculdade imaginativa, posto que somente em sonho profético o Profeta ouve a pa­lavra de Deus que lhe fala, enquanto Moshé Rabênu a escutava sem a mediação da faculdade imaginativa, sobre a Kapóret (propiciatório),28 “entre os dois Querubins” (Exodo 25:22). Já explicamos em minha obra Mishnê Torá as diferenças desta Profecia, pontuando o sentido das expressões “boca a boca”, “(...) como fala um homem com seu com­panheiro (...)” (Exodo 33:11) e outras. Entenda isso! E não é necessá­rio repetir o que já foi dito.

28 Propiciatório: Lâmina de ouro com que os hebreus cobriam a Arca da Aliança.

S O B R E A P R O F E C I A 2 5 3

CAPÍTULO 46A S PA RÁ B O LA S DOS PPvOFETAS FAZEM PA RTE D A S V ISÕ ES

PRO FÉ TICA S

A partir de um único indivíduo é possível se ter uma idéia completa de toda uma espécie e conhecer as propriedades de cada indivíduo desta espécie. Com isto quero dizer que, a partir de uma só propriedade dos relatos dos Profetas, pode-se ter uma visão de todos os relatos do mesmo tipo.

A partir desta informação prévia, você entenderá que uma pessoa pode sonhar algumas vezes que viajou a tal país, casou-se e residiu lá, nasceu-lhe um filho, ao qual colocou tal nome e se encontrava em determinada situação ou circunstâncias. Do mesmo modo, nas pará­bolas Proféticas são vistos certos objetos, ações são realizadas — se o estilo da parábola pede isso — coisas são feitas pelo Profeta e nos inter­valos entre uma ação e outra determinadas viagens são feitas de um lugar a outro. Mas todas estas coisas fazem parte apenas do processo de uma Visão Profética, não são reais aos sentidos físicos. Algumas des­tas parábolas simplesmente relatam coisas (sem noção de que fazem parte de uma visão), como se sabe que ocorre nas Visões Proféticas, e é desnecessário repetir toda vez isso. Assim, o Profeta declara: “E YHVH me disse”, sem necessidade de mencionar que fora um sonho. No entanto, o povo pensa que tais ações, viagens, perguntas e respostas, tudo isso aconteceu através dos sentidos e não em Visão Profética.

254 ° g u i a d o s p e r p l e x o s

Lembro-lhe de um exemplo, sobre o qual não há equívoco, e acres­centarei outros da mesma espécie, dos quais você poderá deduzir ou­tros mais, não mencionados. Está claro e fora de todo erro possível o que disse Ezequiel: “Estava em minha casa, e estavam diante de mim os anciãos de Judá (...) O Espírito me levantou entre a terra e os Céus, e me levou a Jerusalém em Visões Divinas” (Ezequiel 8:13). Do mes­mo modo, quando afirmou: “Levantei-me e saí a campo” (Ezequiel 3:23), trata-se pura e simplesmente das Visões Divinas, como aconteceu a Abrão: “(...) e fê-lo sair (...)” (Gênesis 15:5), e foi em Visão. Na pas­sagem: “E descansei no meio da planície” (Ezequiel 37:1), também foi uma Visão Divina. E Ezequiel lembrou-se da Visão pela qual foi intro­duzido em Jerusalém, expressando-se assim: “E olhando, vi um bura­co no muro, e me disse: Homem, perfure o muro. Perfurei-o e apare­ceu uma porta” (Ezequiel 8:7-8). Assim como compreendeu, nas VisÕesDivinas, que se lhe ordenava perfurar o muro, a fim de penetrar por ele e con­templar o que ah se operava e, em seguida, — como ele próprio men­ciona nestas mesmas Visões Divinas — entrou pelo buraco e viu o que viu, tudo isso em Visão Profética, do mesmo modo, quando Deus lhe disse: “Toma uma barra de argila (...) feche-se depois sobre teu costa­do esquerdo (...) toma também trigo, cevada (...)” (Ezequiel 4:1.4.9), e também quando se lhe ordena: “E utilize-a como navalha de barbeiro para fazer-te cabelos e barba” (Ezequiel 5:1), todo isso em Visão Profé­tica, parecia-lhe que realizava atos que lhe foram ordenados. Nada mais distante de Deus do que fazer, dos Profetas, objeto de riso para os tolos, motivo de escárnio ou de serem acusados de realizar atos insa­nos. Até porque isso implicaria uma ordem de desobediência da Lei, pois, sendo sacerdote, se tornaria transgressor duplamente, por cada lado da barba e do cabelo. Mas todo isso se passou em Visão Profética. Do mesmo modo, quando se afirma: “Como andava Isaías, meu servo, desnudo e descalço” (Isaías 20:3), trata-se de Visões Proféticas. Somente os que têm uma mente débil acreditam que em todas estas passagens em que o Profeta conta que fora intimado a fazer tal coisa, ele real­mente a executara, se fosse assim, ele relataria que, apesar de se encon­trar na Babilônia, fora-lhe ordenado perfurar o muro, localizado no Monte do Templo, e acrescentaria que fizera efetivamente a perfuração, segundo consta. Na verdade, isso corrobora claramente a tese de que tudo se passou em Visões Divinas. O mesmo ocorre com Abrahão, nes­tes termos: “ (...) manifestou-se a palavra de YHVH a Abrão, na visão, dizendo (...)” (Gênesis 15:1), e na mesma visão Profética se imprime:

S O B R E A P R O F E C I A 2-55

“E fê-lo sair e disse: Olha para os Céus, e conta as estrelas (...)” (Gêne­sis 15:5), E evidente que na Visão Profética sentia-se transportado para fora donde se encontrava, até ver o céu, e então se lhe dizia: conta as estrelas. Este é o relato, como pode perceber. O mesmo digo da intima­ção a Jeremias, a de esconder o “cinturão” no Eufrates. Escondeu-o e, ao cabo de muito tempo, foi buscá-lo e o encontrou putrefato e desfei­to. Tudo isro são parábolas em Visão Profética, posto que Jeremias não saiu da Terra de Israel à Babilônia, nem vira o Eufrates. De forma análoga, o rexro de Oséias: “Toma por mulher uma prostituta e engen­dra filhos da prostituição” (Oséias 1:2), e todo o relato do nascimento dos filhos e os nomes Este e Este, que lhes foram impostos, tudo isso sucede em V isão Profética e, uma vez constatado que são simples pará­bolas, não há razão para pensar que qualquer detalhe se concretizou em realidade, a não ser que se nos aplique o seguinte: “E toda Revela­ção é para vós como palavras de livro selado” (Isaías 29:11). Outros- sim, parece-me que, no caso de Gideão, o relato do novelo de lã e outros foram em Visão Profética, seguramente. Contudo, eu não o cha­maria, de um modo absoluto, de Visão Profética, pelo fato de que, não havendo alcançado Gideão a categoria de Profeta, como poderia fazer milagres? Seu maior mérito foi figurar entre os juizes de Israel, mas situado entre os personagens de categoria inferior, como já expuse­mos, Tudo isso ocorreu em sonho, semelhante aos de Labão e de Abi- meieque, citados anteriormente. Desta forma, o que disse Zacarias: “Fiz-me, pois, pastor do rebanho da matança, certamente dos mais pobres, e tomei dois cajados” (Zacarias 11:7), e o que se segue, a saber: o salário reclamado com suavidade, a aceitação deste, o dinheiro con­tado, arrojado no tesouro (Zacarias 11:12-13); mdo isso lhe aparecia em Visão Profética, intimando-lhe a fazê-lo, e assim o fez, mas em Sonho Profético. Isto é algo indubitável, que ninguém pode ignorar, salvo quem confunda o possível com o impossível.

Do que deixo exposto, você poderá considerar algo não menciona­do: tudo pertence à mesma espécie e método, é Visão Profética. Conse­qüentemente, sempre que se afirma que, em tal Visão, ficou, olhou, saiu, entrou ou disse, foi-lhe dito, levantou-se, sentou-se, subiu, baixou, viajou, pergun­tou, foi interrogado, tudo Isso se sucede em Visão Profética. Inclusive no caso de ações descritas como de longa duração e que se refiram a determinadas épocas, certos indivíduos e lugares específicos. Se averi­guar que tal ação encaixa em uma parábola, pode estar certo de que esta se realizou em Visão Profética.

SOI SRE A P R O F E C I A 2-5 7

CAPÍTULO 4 7

SOBRE O ESTILO METAFÓRICO DOS ESCRITOS PROFÉTICOS

Fica patente e manifesto, sem sombra de dúvida, que a maioria dos Profetas se expressa por meio de parábolas, porque o instrumento para isto é a faculdade imaginativa. Deste modo, importa saber algo sobre as metáforas, hipérboles e alguns exageros, dado que às vezes elas apa­recem nos Livros dos Profetas. Se as tomasse literalmente, sem se dar conta de que se trata de uma hipérbole ou um exagero, ou se compre­endidas no sentido superficial das palavras, segundo sua acepção origi­nal, sem reparar que se trata de uma metáfora, isto daria lugar a absur­dos. Os Sábios já advertiram: ^4 Torá fa la uma linguagem aproximada, ou seja, utiliza a hipérbole, e, para demonstrar, eles destacam acertada- mente estas expressões: “(...) as cidades são grandes e fortificadas até os Céus (...)” (Deuteronômio 1:28). Na hipérbole se inscreve esta lo­cução: “Porque o pássaro dos Céus leva a notícia” (Eclesiastes 10:20). Igualmente se diz: “(...) cuja altura se iguala à dos cedros (...)” (Amós 2:9). Estilo semelhante se encontra com freqüência na linguagem de todos os Profetas, com expressões hiperbólicas e exageradas, em vez de contidas e exatas.

Sem dúvida, não pertence a este grupo o que a Torá afirma sobre Og: “(...) Eis que seu leito, um leito de ferro (...)” (Deuteronômio 3:11), porque o leito é a cama, assim como em Cântico dos Cânticos 1:16:

O G U I A D O S P E R P L E X O S

“Nossa cama está cheia de vitalidade”. Pois bem, não há cama que corresponda à medida de qualquer pessoa — porque não é uma roupa que a veste — mas a cama será sempre do tamanho do indivíduo que nela dorme: o costume conhecido é normalmente um terço a mais que a medida da sua altura. Por conseguinte, se o comprimento de uma cama é de nove codos,29 a estatura de quem se deita sobre ela, segundo a proporção habitual, será de uns seis codos ou pouco mais. A expres­são Os codos de um homem considera a medida cubital corrente — entre o comum dos mortais, e não segundo a de Og — já que normalmente todo indivíduo tem os membros proporcionais. Dizia-se que a estatura de Og era o dobro de uma pessoa normal e mais um pouco, o que, de qualquer forma, não deixa de ser absurdo.

Quanto ao que está escrito na Bíblia referente à idade de certas pessoas, afirmo que nenhum ser viveu tantos dias, a não ser a pessoa citada, enquanto as demais viveram a quantidade normal de dias natu­rais. Esta estranha característica de determinado indivíduo tinha moti­vos diversos: sua dieta ou seus hábitos, ou talvez fosse um milagre que guiou sua conduta. Não cabe outra explicação.

Igualmente se impõe uma grande atenção com respeito à metáfora. Algmas são claras e patentes, sem dificuldade de interpretação, por exemplo: “Montanhas e planícies irromperão em gritos de júbilo ante vós, e todas as árvores do campo baterão palmas” (Isaías 55:12), metá­fora evidente, como em: “Até os ciprestes se alegraram de ti (...)” (Isaías 14:18), interpretado da seguinte forma por Yonatán ben Uziel: A té os governantes se regozijaram p o r ti, os opulentos, expresso na forma de metáfo­ra, como também a expressão “manteiga das vacas e leite de ovelhas” (Deuteronômio 32:14). Estas metáforas são extremamente numerosas nos Livros dos Profetas: umas são óbvias até para o povo, mas outras não. Assim, nada colocará em dúvida que estas palavras: “Abrirá YHVH para ti Seu bom tesouro, os Céus, para dar a chuva á tua terra (...)” (Deuteronômio 28:12) encerram uma metáfora, dado que Deus não tem um tesouro que contenha a chuva. O mesmo se aplica para as seguintes: “Abriu as portas dos Céus, e choveu sobre eles o Maná” (Salmos 78:23-24), ninguém imaginará que haja portões e portas nos Céus, mas sim que a expressão é usada por meio de associação, sob o critério de semelhança, uma das modalidades da metáfora. Do mesmo

29 Codo: unidade de medida baseada em meio braço, da mão ao cotovelo (NT).

modo devem ser entendidos os seguintes textos: “Abriram-se os Céus” (Ezequiel 1:1); “ (...) e se não, risca-me, rogo, do Teu livro, que escre- veste!” (Êxodo 32:32); “(...) riscá-lo-ei do Meu livro” (Êxodo 32:33); “Sejam apagados do Livro da Vida” (Salmo 69:29). Tudo isso deve ser entendido pela aproximação por semelhança e não como se Deus ti­vesse um livro em que escrevesse e apagasse, como se cogita popular­mente, sem se notar que aí existe uma metáfora.

Tudo isso pertence à mesma categoria. Quanto ao que não foi cita­do, classifique conforme o descrito neste capítulo, separe e distinga detalhadamente as coisas, e compreenderá o que está relatado por pa­rábola, por metáfora, por hipérbole ou, ainda, aquilo que se deve in­terpretar exatamente segundo o teor da acepção literal. Assim, todas as Profecias se lhe mostrarão claras e patentes, suas crenças lhe parecerão razoáveis, bem ordenadas e gratas a Deus, pois somente a verdade é prazerosa a Ele (Exaltado Seja!), assim como a mentira Lhe é odiosa.Não se confundam idéias e pensamentos de maneira que admita opini­ões inaceitáveis, afastadas da verdade, que você tome por Lei. Os pre­ceitos da Lei são verdade cabal, se devidamente entendidos, conforme está dito: “Suas idéias são verdadeiras para sempre” (Salmo 119:144), e também: “Eu sou YHVH, que falo a Verdade” (Isaías 45:19). Por meio destas considerações, você descartará o conceito de algumas pessoas, de que Deus não criou, e certas idéias corrompidas, algumas das quais impelem à irreligião, a admitir em Deus uma deficiência, como são as circunstâncias de corporeidade, atributos e paixões, conforme explica­mos, ou então a considerar os discursos dos Profetas como mentira; pois a causa deste mal está justamente na ignorância do que explica­mos. Estas coisas pertencem, assim, aos mistérios da Lei e, embora tenhamos tratado disso de modo geral, será fácil conhecer seus por­menores depois do que já foi dito.

S O B R E A P R O F E C I A 2$g

S O B R E A P R O F E C I A

CAPÍTULO 4 8

A BÍBLIA CONFERE A DEUS, CO M O P R IM E IR A C A U SA DE TO ­

D A S A S C O ISA S, OS FENÔM ENOS D IR ETA M E N TE O RIG IN AD O S DE C A U SA S N A T U R A IS

E absolutamente evidente que toda coisa criada tem necessariamente uma causa próxima que a tenha provocado. Esta, por sua vez, tem outra, até chegar à Primeira Causa de todas as coisas, ou seja, a von­tade e escolha de Deus. Por esta razão, às vezes os Profetas omitem, em seus discursos, todas as causas intermediárias, atribuindo a força pessoal criadora a Deus, afirmando que Ele (Exaltado Seja!) a reali­zou. Tudo isto se sabe, pois já falamos sobre isto — assim como ou­tros entre os que buscam a verdade — e esta é a opinião de todos os nossos teólogos.

A partir dessa observação preliminar, ouça o que explanarei no pre­sente capítulo e perceba bem, além da atenção geral que se deve pres­tar aos capítulos deste Tratado. O assunto que abordarei é o seguinte:

Saiba que todas as causas próximas que originam o fato, sejam elas naturais, por acaso, por escolha — entendendo-se por escolha a causa que se renova: a escolha do Homem, ou até mesmo se a causa é pro­vocada pela vontade de um animal qualquer, todas estas causas são atribuídas a Deus nos Livros dos Profetas E, em seu estilo, afirma-se, deste fato, que a atividade de Deus o realizou, ordenou ou disse-o.

1Ô2. O G U I A D O S P E R P L E X O S

Para todas estas coisas são empregados os verbos di^er, falar, ordenar, chamar, enviar — e este é o ponto sobre o qual quis chamar sua atenção no presente capítulo. Com efeito, segundo o estabelecido, dado que foi Deus quem moveu o desejo de um determinado animal irracional, assim como foi Ele quem fez com que o animal racional fosse dotado de instinto, vontade e escolha, é obrigatório que se diga, de acordo com isso, o que provocou estas causas: a ordem de Deus de que assim fosse ou porque Ele disse que seria assim.

Citarei exemplos, a partir dos quais você assimilará aquilo que não foi explicitado. Falando de coisas naturais que constantemente seguem seu curso, como a neve, que se derrete quando o ar está quente, e as águas dos mares, agitadas quando o vento sopra, está escrito: “Manda Tua palavra e as derreta” (Salmos 147:18); “Ele mandou surgir um furacão e encrespou as ondas” (Salmos 107:25); e da chuva que cai: “E ainda mandarei às nuvens que não chovam sobre ela (...)” (Isaías 5:6).So­bre aquilo cuja causa se encontra nas escolhas do Homem — como a guerra que um povo promove contra outro ou um indivíduo que se dispõe a prejudicar outro, inclusive injuriando-o — citemos o declarado sobre o governo do maldoso Nabucodonosor e seus exércitos: “Eu ordenei o Meu exército consagrado, e também chamei os meus valen­tes para a Minha ira” (Isaías 13:3), e disse: “A uma nação impiedosa os enviarei” (Isaías 10:6). No episódio de Shimí ben Guerá, lê-se: “Pois YHVH lhe falou: Amaldiçoe David” (II Samuel 16:10). Sobre o José, o justo, libertado da prisão, declara-se: “Mandou o rei que o soltassem” (Salmos 105:20). Dos governos da Pérsia e dos Medos sobre os Cal- deus, afirma-se: “E mandarei contra Babel estrangeiros que se espa­lhem por lá” (Jeremias 51:2). Na história do Profeta Elias, quando Deus aconselha uma mulher para que o alimente, diz a ele: “Já ordenei a uma mulher viúva para que o mantenha” (I Reis 17:9). José, o justo, esclarece a seus irmãos: “(...) vós não me enviastes aqui, senão Deus” (Gênesis 45:8).

A propósito do que seria a causa da vontade dos animais e a moti­vação das suas necessidades, lemos: “Falou YHVH ao peixe” (Jonas 2:11). Significa que foi Deus quem nele provocou a vontade, não que fez, do peixe, Profeta ou lhe enviou a faculdade da Profecia. No episó­dio dos gafanhotos30 que apareceram nos dias de Joel (Yoêl ben Petuêl),

30 Arbk gafanhotos. Traduzido nas versões inglesa e espanhola por “lagostas” (NT).

S O B R E A P R O F E C I A 2 6 3

afirma-se também: “Pois é forte o executor de suas palavras” (Joel 2:11). Outrossim, em relação às feras que penetraram na Terra de Edom, quando esta foi devastada por Senaqueribe: “e Ele lhes lançou o desti­no, e a sua mão repartiu a terra com uma corda” (Isaías 34:17). Ainda que não se tenha empregado nenhum dos termos di^er, ordenar, enviar, o sentido é totalmente idêntico e claro.

E quanto aos fatos casuais, de total acaso, mencionemos o caso de Rebeca: “ (...) e seja a mulher do filho de teu senhor como falou Y H V H ” (Gênesis 24:51). Na história de David e Jônatas (Yonatán) foi dito: “Vai, porque Y H V H lhe enviou” (I Samuel 20:22); e na de José: “E mandou-me Deus adiante de vós (...)” (Gênesis 45:7). En­tão, que fique bem claro: de acordo com o relatado sobre a circuns­tância das causas — independente de como estas ocorreram, sejam causas reais, acidentais ou por vontade — todas se eqüivalem por meio das cinco expressões seguintes: ordenar; di^er,falar, enviar e chamar. Com base nesse conhecimento, aplique-o em todos os pontos do seu inte­resse e serão eliminados muitos absurdos. Assim, a verdade dos fatos aqui descritos, e dos quais se poderia crer que estivessem longe da verdade, ser-lhe-á esclarecida.

E esta é a conclusão do que pretendi abordar sobre a Profecia, suas parábolas e formas de expressão. Tudo o que concerne a este assunto deverá lhe ser transmitido neste Tratado. E passaremos para outros assuntos, com a ajuda de Deus.31

31 Com isso Maimônides dá por encerrada a Parte 2 de O Guia dos Perplexos e anuncia, ao que tudo indica, o início de novas reflexões sobre outros assuntos, na terceira e última parte deste livro. Sabe-se também que Maimônides havia iniciado outra obra voltada para o tema da Profecia - o Sefer há-Nevuá (O Livro da Profecia). Para Munk, ele estava se referindo a esta obra no final da Segunda Parte. Parece-me, no entanto, que ele aqui somente indica o encerramento das reflexões acerca da Profecia e da Criação do Universo em contraposição ao conceito aristotélico de Eternidade do Universo e do Tempo — com o objetivo de dar início a uma nova discussão na Parte 3 (NT).

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Pela primeira v ez o público leitor de línguaportuguesa tem acesso à tradução, do hebraico, de 0 Guia dos Perplexos (P arte 2 ) de Maimônides, um dos pilares do pensamento judaico em todos os tem­pos. Trata-se de um a tradução “ao mesmo tempo precisa e apaixonada”, que inaugura o projeto de publicação in tegral das três partes desta que é considerada um a das obras medievais que mais influenciaram o pensamento m undial, comparada em im portância à Suma T eológica de São Tomás de Aquino e à D ivina Comédia de Dante, cada um a em seu gênero. Escrita originalm ente em árabe, a transposição para o hebraico por Shmuêl ibn Tibon, autorizada pelo próprio Maimônides e considerada um calco do original, foi a base para a tradução, integral e inédita, de 0 Guia dos Perplexos (Parte 2 ), para o português.

N esta parte , M aim ônides teve por m eta esta­belecer um a relação inteligível entre a sabedoria judaica e a filosofia clássica grega através de um a espécie de diálogo entre os discursos dos Sábios de Israel, por um lado, e os de Aristóteles e dos Peri- patéticos, por outro.

Esta tradução traz um a introdução, um breve relato da vida e obra de M aimônides e um a apre­sentação da obra, o que certamente contribui para enriquecer a leitura desse grande clássico.

M A I M Ô N I D E S (1135-120 4 ),tam bém conhecido como Ram bám , nasceu na Espanha, viveu boa parte de sua vida no Egito e foi sepultado em Israel. Filósofo, teólogo, médico, escritor e líder da comunidade judaica no Egito — em todas estas atividades foi um verdadeiro mestre. Tal é o reconhecimento da sua im portância para o pensamento judaico em todos os tempos, que sobre ele costum a-se dizer: “De Moisés a Moisés, nunca houve outro como Moisés”. Em bora o M ishnè Torá tenha sido a sua obra de maior fôlego, Maimônides é mais conhecido por seu 0 Guia dos Perplexos, obra que, há 800 anos, vem influenciando gerações após gerações de teólogos, filósofos e pessoas interessadas na compreensão do papel do ser hum ano e de Deus no mundo.

muitos o maior e mais influente filósofo que o judaísmo já produziu, viveu na Espanha e no Egito há oito séculos. Desde a Idade Média até a atualidade, gerações após gerações jamais deixam de citar O Guia dos Perplexos. razão é simples: a obra, além de trazer mensagens de relevância atual, quando se refere aos Profetas, á ética e á integridade do homem,

pode inspirar um modelo de postura social que sirva de exemplo para os nossos dias. E um clássico que não envelhece. Como os discursos dos profetas,

fala direto ao coração do homem. Como a fala de Moisés, é íntegro, denso e envolvente. 1E confirma o antigo dito: de Moisés a Moisés, I nunca houve outro como Moisés.

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