guerra e paz em rousseau - sobre o projeto da paz perpétua

17
 Guerra e Paz em Rousseau - Sobre o Projeto da Paz Perpétua  Maria Victoria de M. Benevides (Faculdade de Educação da USP)  Democrata ou totalitário, revolucionário ou conservador, utópico ou realista - tais antinom ias marcam, com incômoda freqüência, a discussão sobre Rousseau e sua obra. Na verdade, o filósofo (pedagogo, romancista, músico, etnólogo, conselheiro político) franco-suíço tem sido mais julgado pelo uso que é feito de seu  pensamento do que propriamente pel o conteúdo de suas idéias. A Rousseau se atribui, entre outras inconveniências, a  paternidade inglória de a lguns dos "piores erros" dos séculos XVIII e XIX, do romantismo em Literatura ao autoritarismo em Política. Mais do que destemperos intelectuais ou justificativ as ideológicas, essas "provocações" revelam a dificuldade em se analisar, numa visão global, a obra de Rousseau e sua herança. Inútil insistir, portanto, não ser este nosso objetivo. O que se  pretende é situar, em rápidas notas apenas ind icativas, algum as concepções de Rousseau ao constatar - e profetizar - a  banalidade trágica da constante osc ilação dos Estados entre a guerra e a paz. Poucos são os escritos de Rousseau dedicados exclusivam ente às condições de paz na sociedade internacional, quer una ou

Upload: andre-marinho-marianetti

Post on 07-Oct-2015

213 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Benevides

TRANSCRIPT

  • Guerra e Paz em Rousseau -

    Sobre o Projeto da Paz Perptua

    Maria Victoria de M. Benevides (Faculdade de Educao da USP)

    Democrata ou totalitrio, revolucionrio ou conservador, utpico

    ou realista - tais antinomias marcam, com incmoda freqncia,

    a discusso sobre Rousseau e sua obra. Na verdade, o filsofo

    (pedagogo, romancista, msico, etnlogo, conselheiro poltico)

    franco-suo tem sido mais julgado pelo uso que feito de seu

    pensamento do que propriamente pelo contedo de suas idias.

    A Rousseau se atribui, entre outras inconvenincias, a

    paternidade inglria de alguns dos "piores erros" dos sculos

    XVIII e XIX, do romantismo em Literatura ao autoritarismo em

    Poltica.

    Mais do que destemperos intelectuais ou justificativas

    ideolgicas, essas "provocaes" revelam a dificuldade em se

    analisar, numa viso global, a obra de Rousseau e sua herana.

    Intil insistir, portanto, no ser este nosso objetivo. O que se

    pretende situar, em rpidas notas apenas indicativas, algumas

    concepes de Rousseau ao constatar - e profetizar - a

    banalidade trgica da constante oscilao dos Estados entre a

    guerra e a paz.

    Poucos so os escritos de Rousseau dedicados exclusivamente s

    condies de paz na sociedade internacional, quer una ou

  • fragmentada. O que desperta a ateno o entusiasmo quase

    ingnuo das proposies, paradoxalmente vizinho veemncia

    das crticas e ao pessimismo inabalvel de seus prognsticos.

    Destaque-se, pela especificidade, a exposio e o julgamento

    dos projetos de Abb de Saint-Pierre.

    De maneira difusa, tais idias tambm se encontram

    nos Discours sur l'Inegalit, nos textos sobre L'tat de Guerre e

    certamente no Contrato Social, sobretudo atravs das crticas s

    teses blicas de Grotius, Pufendorf e Hobbes.

    Em que pesem as visveis contradies (j se tornou comum

    apontar a "inconseqncia" no discurso rousseauniano, da teoria

    ao), o pensamento de Rousseau, no campo especfico das

    questes sobre o conflito mundial, revela momentos inequvocos

    de uma certa ideologia e de uma prtica possvel, ou pelo menos

    desejvel.

    bem verdade que o dizer e o fazer equilibram-se mal em

    termos de propostas concretas e factveis; estas se expressam,

    teoricamente, na linguagem que oscila da admirao moral -

    embora ctica e crtica - aos projetos de paz perptua de Saint-

    Pierre e Kant e a contestao, radical, da tese da "guerra de

    todos contra todos" de Hobbes. Mas a crtica freqente que

    aponta, de sada, as contradies e o idealismo das propostas

    polticas de Rousseau, embora pertinente, peca pelo imediatismo

    estril; destri a raiz das idias, empobrece a anlise.

  • Se o clssico desacordo entre moral e poltica assumido por

    Rousseau como mito ou verdade pouco importa. D-se curso

    discusso, leitura. H que surgir, incompletamente que seja, a

    passagem da teoria prtica, do ideal ttica. Com razo ou

    emoo, utopia romntica ou realismo pessimista, impe-se um

    certo fascnio nas propostas de Rousseau: simultaneamente

    sedutoras, pela defesa do homem pacfico na natureza, e

    inquietantes, pela acusao do homem blico na sociedade. H

    que perceber, numa anlise que foge aos limites destas notas, de

    que maneira - e se - coexistem no Rousseau daqueles textos o

    Direito das Gentes e um possvel embrio do Direito

    Internacional. Ou em que medida se d a passagem da vontade

    geral vontade universal, da circunstncia norma, da barbrie

    ao Direito.

    Rousseau e os projetos do Abb de Saint-Pierre

    A Paix Perptuelle do Abb de Saint-Pierre (1658-1743) foi

    originalmente publicada em 1712, ano da Paz de Utrecht, e

    seu Discours sur la Polysynodie em 1719, durante a Regncia

    aps a morte de Lus XIV. Re-escritos por Rousseau em 1756,

    sob a forma de Extraits, dele mereceram minuciosas crticas

    (os Jugements, publicados somente em 1782) sendo respeitados,

    no entanto, pela denncia, partilhada, do absurdo imoral das

    guerras e dos males de um Estado forte e centralizado. Os

    projetos de Saint-Pierre iluminariam, sem dvida, a teoria de

  • Rousseau sobre a Federao assim como a tese de Kant sobre a

    Liga Mundial para a paz.

    O projeto de paz perptua de Saint-Pierre parte de uma viso

    histrica bastante ctica quanto s possibilidade de

    "fraternidade" entre os povos europeus, apesar de reconhecer os

    laos profundos que os unem contra o exterior, a "barbrie".

    Essas ligaes seriam, na realidade, fonte de funestas divises; a

    poltica dos tratados (trguas passageiras!) sbia no papel,

    porm dura e cruel na prtica. Mas essa unio imperfeita ainda

    melhor do que a desunio tout court; as imperfeies do meio

    social trazem em si, dialeticamente, os grmens da perfeio.

    Trata-se, portanto, de transformar em paz perptua um estado de

    guerra latente. Inexistindo um Direito Pblico comum Europa,

    valer sempre o direito do mais forte. Para uma unio slida e

    duradoura Saint-Pierre prope a confederao dos prncipes

    europeus baseada na interdependncia de seus membros.

    Deslumbra-se Saint-Pierre com a imagem de uma fortaleza

    europia contra toda e qualquer cobia brbara; substitui, como

    uma projeo da tentao capitalista, a arte da guerra pela arte

    do comrcio. E, na sua viso ao mesmo tempo idealista e

    utilitria, a paz seria funo da "sabedoria decorrente da lgica

    dos interesses de todos".

  • A proposta concreta de Saint-Pierre prev a criao de

    Conselhos Deliberativos Permanentes - o Polisnodo - como a

    formao mais natural, justa e til para um governo pluralista

    com vistas paz perptua. O Rei precisa de ministros?

    Componha-se, ento, um governo misto, monrquico na deciso,

    republicano na deliberao. A virtude democrtica dos

    Conselhos estaria assegurada pela composio atravs do voto,

    do sistema de mrito, da rotatividade no comando.

    Revolucionrio para a poca, ou apenas ridculo para o cinismo

    dos poderosos, Saint-Pierre no considerava quimrico o seu

    projeto, mas essencialmente lgico, pois dependeria de uma feliz

    combinao entre a vontade do soberano e a conscincia de seus

    reais interesses. Assim, sua no-adoo revelaria a insensatez

    dos homens, e no a inviabilidade do projeto. Quase resignado,

    Saint-Pierre se compraz no aforismo de que uma espcie de

    loucura ser sensato entre os loucos.

    Implacvel ser a crtica de Rousseau, embora generosa s

    virtudes do sbio. Prevalece seu pessimismo radical ao insistir

    na tendncia natural das monarquias para as aristocracias e

    destas para os governos despticos e corruptos. A ambio - no

    necessariamente frtil, como supunha Saint-Pierre - dos

    soberanos ser sempre dupla: expandir sua fora externa ao

    mesmo tempo em que torna mais absoluta sua dominao

    interna.

    Quanto possvel vigncia de um Polisnodo, indaga Rousseau

    como subordinar, na prtica, o Executivo ao Legislativo, como

    supor, em todas as cabeas, a sabedoria que consolidaria o

  • consenso? Ressalta, igualmente, a precariedade dos benefcios

    advindos da "arte do comrcio", pois quando as vantagens

    tornam-se comuns a todos, a ningum se apresentam como reais.

    Conclui Rousseau que o Polisnodo seria o pior dos Ministrios,

    pois propiciaria abusos em nome do bem pblico: a fora de ser

    bom senador, torna-se mau cidado!(1) Parece evidente a

    denncia perspectiva do pr-burgus, aristocrtico,

    oligrquico.

    A leitura isolada de um e de outro pode oferece a imagem de

    projees igualmente idlicas (ou maniquestas) sobre o bem e o

    mal. Mas ao se aceitar a crtica de Rousseau a Saint-Pierre h

    que assinalar, tam-bm, uma diferena essencial entre ambos:

    Saint-Pierre situa a possibilidade de paz no plano das relaes

    internacionais, considerando os Estados como entidades

    abstratas, no sentido de independentes de sua estrutura interna;

    para Rousseau, ao contrrio, as relaes entre os Estados vo

    depender, sempre, da forma como o poder exercido dentro de

    cada Estado.

    Assim resgata Rousseau o conceito de soberania interna como

    condio sine qua non para a paz externa. Estaria a, talvez, a

    nota mais pessimista que prev a correspondncia de uma

    poltica de guerras e conquistas, no plano externo, ao progresso

    do despotismo, no plano interno. Comprove-se: ..."d'un cot la

    guerre et les conqutes, et de l'autre le progrs du despotisme,

    s'entraident mutuellement... les princes conqurants font autant

    la guerre leurs sujets qu' leurs ennemis..."(2). Expanso e

    tirania, eis a os dois processos em alimentao recproca, em

  • intensidades paralelas. Estaria a, tambm, a raiz da corrente

    jacobina da poltica externa, cujo maior representante ser

    Lenin: o imperialismo que denunciar apresenta-se como

    conseqncia da armadura interna do pas e, principalmente, da

    atuao de suas classes.

    Rousseau, Hobbes e Kant

    De maneira inequvoca situa-se Rousseau como anttese de

    Hobbes e do Estado absolutista. Observador de guerras civis,

    Hobbes percebe na criao de um Estado forte e centralizado o

    recurso extremo de proteo e defesa da sociedade contra a

    inexorvel catstrofe da guerra de todos contra todos.

    No modelo hobbesiano a luta competitiva a norma, num

    quadro de referncia que se queria de lei e de ordem, mas onde

    tudo deriva da concentrao de poderes. A igualdade de todos

    decorre, num paradoxo apenas aparente, da insegurana comum.

    O equilbrio dos poderes, defendido por Hume, substitudo

    pelo poder hegemnico que garante a estabilidade necessria

    paz. O perigo do despotismo, para Hobbes, ainda um mal

    infinitamente menor do que "o reino da fora e da fraude, do

    lobo e da serpente, que tornara insuportvel a vida do homem no

    estado da natureza"(3).

  • Para Rousseau, ao contrrio de Hobbes, a guerra no inerente

    natureza do homem, mas conseqncia da vida em sociedade,

    que agua a competio e conduz ao conflito. A criao de um

    Estado, portanto, no reduzir as tenses ou a violncia

    beligerante; um Estado forte ameaar a paz pela compulso da

    conquista, um fraco tornar-se- tentao para a cobia

    alheia...(4).

    Assim, o equilbrio no ser automtico, mas difcil, laborioso.

    A interdependncia econmica, supostamente garantia de paz,

    terminar por gerar mais tenses do que entendimentos. E das

    alianas, do excesso de proteo, no nascer a paz, mas a

    guerra.

    Na oposio Hobbes-Rousseau dois pontos merecem especial

    ateno:

    O primeiro diz respeito impotncia de uma "vontade geral"

    frente s desigualdades inevitveis entre sociedades diversas e a

    expanso ilimitada do Estado. Lembre-se que a vontade geral de

    Rousseau s geral, na realidade, para uma determinada

    sociedade, mas particular para as demais. A passagem da

    vontade geral - que no a soma das vontades individuais, no

    se confunde com a vontade coletiva - para uma vontade

    universal no pode deixar de levar em conta as desigualdades

    inerentes prpria desigualdade nos poderes, entre os Estados.

  • As alianas e os tratados, se no as aprofundam, pelo menos as

    perpetuam.

    Quanto ao segundo ponto, trata-se do problema da ausncia de

    auto-controle no interior dos Estados, e de seus princpios

    expansionistas. O Estado no um ser natural, com limites

    prprios e definidos, mas um ente artificialmente "construdo",

    que tende a aumentar e multiplicar seus controles e poderes (raiz

    da tentao totalitria?), tornando-se, efetivamente, o temvel

    Leviat. Essa tendncia gera, inevitavelmente, a rivalidade entre

    os Estados que, em nome da segurana e da conservao,

    crescero sem cessar, s custas, inclusive, dos Estados vizinhos.

    Rousseau contesta, portanto, "l'odieux tableau" pintado por

    Hobbes da guerra de todos contra todos; pois no existiria guerra

    entre indivduos, mas entre Estados, a guerra de potncia a

    potncia(5).

    Contra um certo "amoralismo poltico" de Hobbes erguem-se

    Rousseau e Kant, pois para ambos a guerra , acima de tudo,

    absurdamente imoral.

    Mas para Kant, ao contrrio de Rousseau, a luta entre o egosmo

    e a moral uma constante na prpria natureza do homem, e no

    uma conseqncia da vida em sociedade. Esta seria a salvao

    do homem, a condio de seu progresso moral, e no causa de

    sua queda. Assim, para Kant, de nada adiantaria construir uma

    sociedade "perfeita", um Estado "ideal", se o homem permanece

  • intrinsecamente egosta e ento, propenso ao conflito pela

    competio.

    No nvel intersocietal essa patologia poderia ser sanada pelas

    virtudes da interdependncia, que consolidaria a unio em torno

    de interesses comuns de proteo, defesa e, principalmente,

    comrcio.

    Kant recupera a "arte do comrcio", sugerida por Saint-Pierre

    em substituio arte guerreira e prope a criao de uma Liga

    Mundial, alicerada na interdependncia natural, necessria,

    benfica. Um governo mundial seria, portanto, um imperativo

    moral para os objetivos da paz perptua, de certo modo o

    "destino manifesto" da sociedade internacional.

    Rousseau renega esse trao burgus da perspectiva do

    comrcio como linguagem de paz(6), surpreendentemente

    presente nas propostas de Saint-Pierre a Kant. Considera a

    interdependncia econmica nefasta e sequer admite-a como um

    mal necessrio, como uma contingncia histrica, mas sempre

    como uma fatalidade. Isso porque interdependncia engendra

    dependncia e esta s agravar as tenses entre as sociedades ao

    destacar, inevitavelmente, as desigualdades de ordem natural e

    fsica (recursos) e de ordem moral e poltica (comandos, normas

    e valores). Rousseau duvida da inocncia de um governo

    mundial como a expresso de um ideal democrtico voltado para

    a paz.

  • Caso existisse, tal governo se tornaria, rapidamente, a

    manifestao insofismvel de uma vontade imposta

    obviamente a do mais forte. Numa projeo futurstica, como

    sugere Hoffmann, esta vontade seria, tambm, a vontade dos

    tecnocratas, os verdadeiros executivos numa situao de vazio

    poltico(7).

    interdependncia de Kant ope-se o isolamento de Rousseau.

    Ambas utpicas, a sociedade ideal para Rousseau seria fechada e

    para Kant to aberta quanto possvel. Uma supe a coexistncia

    no isolamento, outra a cooperao no engajamento. Em outros

    termos, seria a passagem da norma negativa de absteno

    norma positiva de participao. Mas Rousseau percebe, tambm,

    que a prpria constituio de uma sociedade atravs do contrato

    social engendrar, necessariamente, novas sociedades.

    Impossvel, pois, a absteno total, o isolamento romntico.

    a partir dessa constatao que se coloca a exigncia

    do consenso para consolidar um possvel Direito Internacional

    como garantia de paz. Esse consenso s seria vlido e til se

    decorrer da conscincia que cada Estado tiver da necessidade e

    convenincia em acatar normas comuns, referentes a interesses

    comuns. Este ponto remete diretamente s propostas concretas

    de Rousseau.

  • Rousseau e o ideal grego redivivo: a federao de pequenos

    Estados

    O polisnodo invivel, o Estado absolutista um monstro, a Liga

    Mundial uma utopia. O retorno ao estado perfeito da natureza,

    impossvel. E ento, diria Rousseau, j que o homem fadado a

    viver em sociedade, que o seja em sociedades pequenas e

    democrticas. Ou, pelo menos, to pequenas e democrticas

    quanto possvel. Essa medida do possvel seria dada, para cada

    sociedade, pela feliz combinao entre soberania frente s

    demais sociedades e legitimidade de comando, frente a seus

    prprios cidados.

    A proposta de Rousseau consiste na formao de uma federao

    de pequenos Estados com fins lucrativos, isto , uma unio de

    Estados cada qual soberano internamente, mas armado, em

    conjunto, contra a agresso externa.

    Trata-se, na realidade, de uma confederao, cujos laos so

    mais fracos que os de um Estado hobbesiano e mais fortes que

    um Tratado ou uma Aliana. Inspira-se Rousseau nos exemplos

    da Liga Aquia, na Unio de Cantes Suos da sua poca e na

    Amrica de Tocqueville. Insiste na soberania e no ideal grego da

    primazia poltica interna e prope a extenso, s diversas

    sociedades, dos direitos que o Contrato Social j legara ao

    indivduo, contra a tirania dos grandes Estados com tendncias

  • hegemnicas. O conflito no seria definitivamente aniquilado,

    mas as tenses sensivelmente reduzidas.

    O Estado ideal de Rousseau ser, portanto, pequeno (um

    territrio muito grande diminuiria as possibilidades de

    autonomia real) e governado por uma vontade geral,

    indivisvel(8). Este Estado definido, na linha de Montesquieu,

    como uma unio de foras e de vontade, que consolidaria a

    vontade geral, consensual. A submisso recproca entre os

    Estados se expressaria num pacto de associao, e no de

    sujeio. Vale lembrar, aqui, que to violento quanto o ataque a

    Hobbes a recusa de Rousseau em aceitar os postulados de

    Grotius sobre os direitos de paz e guerra. Alm da crtica feroz

    aos mtodos de trabalho de Grotius un sophiste pay

    Rousseau acusa a imoralidade na justificao do despotismo

    atravs dos pretensos direitos de conquista e de dominao.

    alegada legitimidade de um pacto de sujeio, anlogo

    alienao dos direitos individuais pela relao senhor-escravo,

    Rousseau ope o pacto social, este desejado e legtimo,

    do Contrato Social. Esta anlise sugere, ento, o surgimento da

    noo de reciprocidade, pela qual as partes descobrem o

    interesse em acatar uma determinada norma, comum a todos.

    No mais a obrigao, pela fora, mas a persuaso, pela

    convico e partilha dos mesmos valores. Da a passagem

    (possvel ou apenas utpica?) do Direito das Gentes para um

    Direito Internacional e aqui no seria mais um Direito

    Internacional de Coexistncia, mas o Direito Internacional de

    Cooperao, essencialmente baseado no consenso(9)

  • Diante desta modelar confederao impe-se a questo de saber

    como trancher entre dois direitos, ou seja, at onde se estendem

    os direitos da federao, em conjunto, sem infringir os direitos

    da soberania interna. Em caso de guerra civil, por exemplo, at

    que ponto a mediao exercida por outro Estado no engendraria

    funesta submisso, marcando uma inferioridade e um golpe fatal

    na soberania? Por outro lado, recusar a interveno, correndo o

    risco de submeter-se a um jogo interno ilegtimo, no seria a

    escolha absurda entre a tirania, porem domstica, e a justia,

    imposta de fora? Como sugere Vaughan, o ideal, na viso de

    Rousseau, seria a conjugao da potncia externa de uma grande

    nao com a poltica disciplinada e saudvel de um pequeno

    Estado: "tranquille au dedans, redoutable au dhors"!(10)

    O ideal dos pequenos Estados revelou-se uma causa perdida.

    Simplesmente no vingaram. No curso da Histria no

    sobreviveram, de qualquer modo, ao impacto da Revoluo

    Industrial, que levou expanso das fronteiras e

    interdependncia econmica, e ao fortalecimento dos

    nacionalismos que acirrou os conflitos externos. As antigas

    confederaes (germnica e sua) que, de certa forma, teriam

    realizado o ideal de Rousseau, transformaram-se em fortes

    Estados, assim como as naes expandiram-se em poderosos

    imprios. Os Estados ideais de Rousseau so ideais mesmo; se

    existissem no poderiam, manter a virt a no ser isolados. E o

    isolamento contraria a tendncia irreversvel do

    desenvolvimento econmico, do "vigor burgus".

  • De duas, uma: a proposta de Rousseau utpica porque percebe

    a possibilidade de paz apenas num mundo ideal, logo

    inexistente, no qual a norma geral no seria desejvel nem

    mesmo necessria, ou porque, ao situ-la num mundo real,

    constata a inexistncia de uma ordem justa que garanta as

    condies de paz duradoura. A experincia histrica mostra que

    as desigualdades entre as naes tendem a aumentar, e no a se

    dissolverem: a desigualdade estimula o conflito e o apetite

    hegemnico que se revigora, hipocritamente, nos preparativos

    para a paz. Da o aparente paradoxo de que a guerra nasce da

    paz.

    Uma considerao final: em relao a Grotius, Rousseau teria

    inovado ao situar o estado de guerra sempre entre Estados, e no

    entre indivduos. No entanto, como lembra Hoffmann, se o

    Estado a expresso da vontade geral - e no o brao armado do

    prncipe, do tirano - a guerra entre os Estados seria, tambm,

    uma guerra entre populaes, entre homens. Nesta mesma linha

    Rousseau ope-se aos "cosmopolitismos" admitindo a

    associao de governos, mas no de povos. Mantinha-se, porm,

    eqidistante no revide s teses cosmopolitas e nacionalistas,

    embora no seu papel de conselheiro poltico tenha enfatizado,

    para os Corsos e para os Poloneses, o "orgulho nacional" como o

    verdadeiro motor da vontade geral. A defendia, ao invs da

    potncia nacional agressiva, o culto s virtudes cvicas, a paidia

    patritica.

    Rousseau no chega, parece claro, a apontar solues concretas

    para a ordenao do "caos internacional". Suas proposies, na

  • realidade, revelam a inviabilidade de um meio internacional

    pacfico, pois predominar, sempre, a lei do mais forte, a lgica

    da fora. Permanece Rousseau dividido em sua dicotomia

    bsica: a f inabalvel na bondade natural do homem e o

    pessimismo radical quanto vigncia de uma sociedade justa.

    Mas o pessimismo diante da teia sufocante e insofismavelmente

    presente dos poderosos no esconde uma vocao totalitria. A

    leitura de Rousseau para fundamentar a impossibilidade de um

    regime democrtico, para ressaltar a fora contra o Direito,

    uma provocao recusada na fonte. Em nome do Rousseau do

    Contrato Social, do consenso, da legitimidade, da democracia.

    1. "Jugement sur la Polysynodie", in C. E. Vaughan (ed.): Jean

    Jacques Rousseau - The Political Writings, vol. I, p. 422.

    2. Rosseau - "Jugement sur la Paix Perptuelle", The Political

    Writings, vol. I, p. 390.

    3. Rousseau - "L'tat de Guerre", The Political Writings, vol. I,

    pp. 287-8. interessante lembrar que o ttulo original deste

    texto, escrito provavelmente entre 1753 e 1755, era "Que l'tat

    de guerre nait de l'tat social".

    4. Stanley Hoffmann - "Rousseau, la guerre et la paix",

    in Rousseau et la Philosophie Politique, vrios autores, Paris:

    PUF, pp. 206-08.

    5. Rousseau - "L'tat de Guerre", ed. cit. pp. 293-299.

  • 6. Lembre-se, no discurso do Kennedy round que deixou

    herdeiros, as propostas de consolidao da paz mundial atravs

    dos laos de dependncia comercial.

    7. Hoffmann, citada, pp. 235-8.

    8. Rousseau Ltat de Guerre, ed. citada, p. 299.

    9. Sobre Rousseau e Grotius ver, de Robert Derath: J.J.

    Rousseau et la Science Politique de son Temps. Paris: PUF,

    1950, pp. 71-78.

    10. C. E. Vaughan - citada, p. 100, n.p.p. n 2.