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GUERRA DOS MASCATES (1710-1711): HISTORIOGRAFIAS E NARRATIVAS NOS LIVROS DIDÁTICOS Autor: Thiago Souto Maior Ferraz de Oliveira Universidade Federal de Pernambuco - UFPE [email protected] Orientação: Prof. Dr. Arnaldo Martin Szlachta Júnior Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Prof. Dr. George Félix Cabral de Souza Universidade Federal de Pernambuco - UFPE 1. Introdução O presente texto, derivado do Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso do autor, almeja estabelecer o nível de relação entre a historiografia sobre a Guerra dos Mascates (1710- 11) e as narrativas sobre ela encontradas em dois livros didáticos atuais do Ensino Básico brasileiro. Essa problemática se apresentou para nós a partir da observação de que diversos livros didáticos subestimam a relevância do conflito civil pernambucano: a maior parte lhe concedia cerca de meia página ou sequer o discutiam, citando-o apenas, preferindo pôr em destaque os conflitos do Ciclo do Ouro e as revoltas com caráter independentista. Em relação a nossa metodologia, primeiramente, procuramos consultar a historiografia disponível acerca do fato histórico, discorrendo sobre e analisando criticamente diferentes obras. Devido às limitações de espaço para esse artigo e nosso próprio recorte referencial, elencamos para nossa análise historiográfica os seguintes autores: Robert Southey, Francisco Adolfo de Varnhagen, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Evaldo Cabral de Mello. Seguindo, nos utilizamos de dois conceitos para caracterizar o que o Ensino de História (e os seus materiais didáticos) deveria objetivar em sua configuração escolar-formal: Consciência Histórica e Literacia Histórica, respectivamente concebidos por Jorn Rüsen e Peter Lee. Outrossim, pautamos nossa concepção de Livro Didático a partir de Kazumi Munakata e Circe Bittencourt, que tecem críticas tanto para sua confecção, aspectos e usos como para uma história da pesquisa sobre o mesmo.

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Page 1: GUERRA DOS MASCATES (1710-1711): HISTORIOGRAFIAS E

GUERRA DOS MASCATES (1710-1711): HISTORIOGRAFIAS E NARRATIVAS NOS

LIVROS DIDÁTICOS

Autor: Thiago Souto Maior Ferraz de Oliveira

Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

[email protected]

Orientação: Prof. Dr. Arnaldo Martin Szlachta Júnior

Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

Prof. Dr. George Félix Cabral de Souza

Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

1. Introdução

O presente texto, derivado do Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso do autor,

almeja estabelecer o nível de relação entre a historiografia sobre a Guerra dos Mascates (1710-

11) e as narrativas sobre ela encontradas em dois livros didáticos atuais do Ensino Básico

brasileiro. Essa problemática se apresentou para nós a partir da observação de que diversos

livros didáticos subestimam a relevância do conflito civil pernambucano: a maior parte lhe

concedia cerca de meia página ou sequer o discutiam, citando-o apenas, preferindo pôr em

destaque os conflitos do Ciclo do Ouro e as revoltas com caráter independentista.

Em relação a nossa metodologia, primeiramente, procuramos consultar a historiografia

disponível acerca do fato histórico, discorrendo sobre e analisando criticamente diferentes

obras. Devido às limitações de espaço para esse artigo e nosso próprio recorte referencial,

elencamos para nossa análise historiográfica os seguintes autores: Robert Southey, Francisco

Adolfo de Varnhagen, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Evaldo Cabral de Mello.

Seguindo, nos utilizamos de dois conceitos para caracterizar o que o Ensino de História

(e os seus materiais didáticos) deveria objetivar em sua configuração escolar-formal:

Consciência Histórica e Literacia Histórica, respectivamente concebidos por Jorn Rüsen e Peter

Lee. Outrossim, pautamos nossa concepção de Livro Didático a partir de Kazumi Munakata e

Circe Bittencourt, que tecem críticas tanto para sua confecção, aspectos e usos como para uma

história da pesquisa sobre o mesmo.

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Por fim, selecionamos duas obras didáticas aprovadas pelo último Programa Nacional

do Livro Didático (PNLD) para o Ensino Médio, válido para o triênio 2018-20. E, desse modo,

analisamos os trechos que tratavam da Guerra dos Mascates em cada uma delas, objetivando

enxergar justamente as linhas historiográficas que construíam as narrativas e como os discursos

estavam ou poderiam estar relacionados às nossas visões do Ensino de História e Livro

Didático.

Antes, contudo, pensamos ser prudente explanar brevemente sobre a Guerra dos

Mascates em si. Destarte, cabe dizer que sua ocorrência está em íntima relação com a Guerra

de Restauração dos luso-pernambucanos contra a Companhia das Índias Ocidentais e os

holandeses. Na segunda metade do século XVII, os senhores de engenho passaram a pleitear

muitos privilégios frente a Coroa, advogando que tinham reconquistado os domínios a El Rei

sem ajuda alguma da metrópole. Nesse contexto do post-bellum, Olinda, sede administrativa da

capitania de Pernambuco, estava sendo ofuscada pelo crescimento demográfico e econômico

do povoado do Recife, importante praça comercial e porto, mas que ainda era subordinado à

câmara olindense (MELLO, 2003, p. 141).

Recife havia atraído muitos migrantes da metrópole portuguesa, pessoas geralmente de

origem humilde e não-nobre (MELLO, 2003, p. 144) mas que encontraram no burgo

pernambucano uma forma de fazer riqueza (mascatear, comercializar) e reclamar para si certos

direitos. Os senhores de engenho, que monopolizavam a gestão municipal olindense, não viam

com bons olhos ceder tais direitos aos recifenses, com quem estavam em débito constante

devido à crise do açúcar, aos seus gastos ostentativos e suntuários e aos elevados juros cobrados.

Os mascates, na outra ponta, desejavam controlar os impostos municipais, arrematações e

cargos fiscalizantes. Os dois lados justificavam a briga política no esteio dos defeitos do Antigo

Regime: os nobres acusavam os mascates de possuírem defeito mecânico enquanto estes

acusavam aqueles de terem perdido a pureza de sangue na miscigenação com indígenas e negros

(MELLO, 2003, pp. 188-189).

Tendo isso em mente, uma das alternativas mascatais era separar-se do concelho

municipal de Olinda, erguendo câmara própria no Recife. Após muitas querelas, em 1709 a

Coroa portuguesa despachou ordem para se elevar o burgo portuário à condição de Vila com

termo próprio (MELLO, 2003, p. 244). Chegando a frota com o documento em 1710, o

governador Sebastião de Castro e Caldas fez levantar o pelourinho recifense, o qual gerou

insatisfação entre os nobres, que fizeram-no atentado falho e depois pegaram em armas e

puseram-no em debandada para a Bahia. Assim, discutiram quem deveria substituir o

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funcionário fugido: alguns cogitaram formar uma república aristocrática, separada de Portugal;

a maioria dos pró-homens decidiu, entretanto, dar o poder ao bispo, Manuel Álvares da Costa,

como estava na lei e se fazia de costume.

Alguns meses se passaram e em 1711 os mascates organizaram o seu levante tomando

algumas posições importantes no Recife (MELLO, 2003, pp. 377-380), que foi posto sob cerco

dos olindenses. Algumas escaramuças aconteceram no litoral sul da capitania, mas o conflito

só se resolveu com a chegada do novo governador apontado pela Coroa, Félix José Machado,

que, a priori, se mostrou imparcial, mas logo impôs devassas para condenar os revoltosos de

Olinda e elevou permanentemente Recife à condição de Vila (MELLO, 2003, p. 411). Desse

modo, a cidade duartina continuou ofuscada pelo desenvolvimento do Recife, mas este alçou à

capital de Pernambuco somente no século XIX.

2. O conflito e sua Historiografia

Destarte, podemos passar à análise de como cada uma das historiografias e suas

respectivas obras trataram o conflito civil-colonial de Pernambuco no alvorecer do século

XVIII. Primeiramente, Robert Southey, inglês pertencente a uma época ainda de

amadurecimento das ciências especializadas, publica seus extensos volumes da History of

Brazil durante a década de 1810, sob uma visão pessimista da América portuguesa.

De acordo com Southey (1819, pp. 85-86), os descendentes daqueles que haviam

recuperado Pernambuco dos holandeses e recebido mercês queriam reter para si tais méritos,

de tal forma que exigiam gratitude da Coroa e afirmavam que a soberania portuguesa ali era

derivada primeiro deles mesmos. Interessante notar que o brasilianista inglês (SOUTHEY,

1819, p. 86) achou justa a causa mascatal, mas também argumenta que a concessão da Coroa

em 1710 foi uma forma de inibir quaisquer animosidades de autonomia “feudal” - assim

caracterizadas por ele - por parte dos mascates.

Por outro lado, pondera que os que aderiram à causa olindense, que chama

frequentemente de pernambucanos, temiam perder autoridade e receita quando da divisão dos

termos entre duas localidades tão próximas. A partir do momento que explicita a possibilidade

de ter sido cogitada uma república diante da ausência do governador e afirmar que a tendência

ao republicanismo é geral a todas as colônias, Southey começa a denominar os mascates e seus

partidários de legalistas (loyalists, no inglês), inferindo que os olindenses em sua maioria

estavam contra a autoridade da Coroa. O inglês brasilianista também destaca o costume de

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violência e insubordinação que passou a existir em Pernambuco desde o domínio holandês,

análise porventura derivada do seu pessimismo.

Contudo, o historiador brasilianista mais consagrado do século XIX foi Francisco de

Adolfo de Varnhagen que, sob o paradigma historiográfico do positivismo, escreveu sua obra

História Geral do Brazil, publicada pela primeira vez na década de 1850. Em suas primeiras

páginas voltadas ao conflito colonial pernambucano, Varnhagen (1877, p. 822) comenta que o

crescimento demográfico do Recife, no post-bellum, servia como pretexto para que

governadores e autoridades reais escolhessem residir no bairro mascatal, ao contrário do que

mandava o costume, isto é, na freguesia sede do concelho, Olinda.

O autor também levanta o ressentimento olindense frente a vontade dos comerciantes

do Recife em alçar a cargos municipais para que pudessem melhor gerir os impostos que

recaíam sobre suas lojas. Nada comenta, porém, no que tange aos débitos que os senhores de

engenho - que geriam a coisa pública em Olinda – haviam angariado em grandes somas com os

mesmos comerciantes. Varnhagen argumenta que (1877, p. 823) a causa dos males que viriam

a acometer a Capitania derivou menos da elevação do Recife em si como vila que a questão

jurisdicional dos territórios de cada termo: os olindenses não aceitavam de jeito algum perder

as freguesias do Cabo, Ipojuca e Muribeca para o recém-instaurado município.

Varnhagen, ao contrário de Southey, omite em sua obra a tendência republicana cogitada

por alguns nobres da terra, em especial Bernardo Vieira de Melo. Verificamos ainda um

paradoxo em seus escritos, pois sendo ele um positivista preocupado com a verdade dos fatos

e a supressão das parcialidades, assume que preferiu omitir os nomes de alguns envolvidos no

conflito, nomes esses de avós e bisavós de alguns “cidadãos honestos” contemporâneos ao

autor. Ainda, relata que as fontes primárias disponíveis refletem bem as parcialidades latentes

de 1710 (é notória ainda a leve crítica feita a Southey):

Para a historia desta guerra civil quasi podemos dizer que nos sobram os documentos,

e as chronicas contemporâneas, onde ha que buscar a verdade, estreme das paixões de

partido. O P. Luiz Corrêa seguido por Southey, era parcial dos do Recife; Manuel do

Rego, por estes retido preso, não lhes podia ser favorável; e finalmente o P. Affonso

Broa da Fonceca quiz deixar aos vindouros um testemunho dos feitos do novo

Camarão. (VARNHAGEN, 1877, p. 826) Partindo agora para uma historiografia mais recente, surge Sérgio Buarque de Holanda,

modernista que, sob o referencial da sociologia weberiana e seus tipos ideais, comenta

brevemente em Raízes do Brasil sobre a ocupação colonial do tipo holandês e como ela viria a

causar uma rivalidade precoce nas décadas seguintes entre as “elites locais”:

População cosmopolita, instável, de caráter predominantemente urbano, essa gente

[migrantes francogermânicos, luso-portugueses, indígenas e africanos] ia apinhar-se

no Recife ou na nascente Mauritsstad, que começava a crescer na ilha de Antônio Vaz.

Estimulando, assim, de modo prematuro, a divisão clássica entre o engenho e a cidade,

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entre o senhor rural e o mascate, divisão que encheria, mais tarde, quase toda a história

pernambucana. (HOLANDA, 1995, p. 63) Já no manual de História do Brasil que dirigiu e escreveu junto a diversos intelectuais

brasileiros, História Geral da Civilização Brasileira, Holanda (2003, p. 431) dedica mais

algumas páginas à sedição pernambucana e a coloca como “[…] indício certo de que as

sociedades nortistas estavam assumindo uma consciência cada dia mais firme de como resolver

os seus problemas pelas próprias mãos”. Em nota de rodapé, o autor constata que essa

“consciência” pôde ser notada ainda em 1666 com a deposição do governador da capitania,

Jerônimo de Mendonça Furtado, levada a cabo pelos oficiais de Olinda e acatada pela Coroa.

O autor tenta embasar seu argumento do espírito nativista e/ou consciência de

autogoverno, por exemplo, pela possibilidade de que Bernardo Vieira de Melo e outros senhores

de engenho teriam sugerido tornar a capitania independente numa espécie de república

aristocrática ou colocá-la sob a suserania do reino da França (HOLANDA, et al., 2003, p. 433).

Também é associado a esse nativismo uma série de demandas que a nobreza terratenente fez ao

Bispo “governador interino” Manuel Álvares da Costa, como: que aqueles que eram mercadores

ou filhos de Portugal fossem proibidos de votar nas câmaras; e que se estabelecesse um porto

franco no qual duas naus estrangeiras pudessem aportar.

Ainda no fim, ao explicitar as punições dadas aos revoltosos, Holanda (2003, p. 437)

ressalta que “seqüestraram-se [sic] os bens dos indiciados, cujas figuras principais foram

mandadas para Lisboa, depois de denunciadas no Recife como réus de lesa-majestade e de

inconfidência.” E conclui que o nativismo da nobreza da terra no Pernambuco de 1710 não foi

exclusivo desse tempo e espaço, afirmando que houvera movimentos semelhantes pela América

portuguesa durante o Setecentos (HOLANDA, et al., 1997, p. 437).

Outro autor clássico dessa historiografia interpretativa do Brasil colonial é Caio Prado

Júnior que, sob uma perspectiva mais materialista/marxista, discorre acerca do sentido da

colonização portuguesa, da sociedade colonial e do mecanismo ibérico de dominação ao longo

dos séculos. Em Evolução Política do Brasil, Prado Jr. constrói uma análise mais abrangente da

rivalidade “senhor de engenho versus comerciante”, colocando-a como presente em toda a

América portuguesa a partir da segunda metade do século XVII, quando, em sua visão, a

economia colonial começara a se complexificar e se desenvolver:

A relativa simplicidade da estrutura social brasileira no primeiro século e meio do

descobrimento se complica na segunda metade do século XVII, com o aumento da

riqueza e desenvolvimento econômico do país, pela intromissão de novas formas

econômicas e sociais. Ao lado da economia agrícola que até então dominara,

desenvolve-se a mobiliária: o comércio e o crédito. E com ela surge uma rica

burguesia de negociantes, que, por seus haveres rapidamente acumulados, começa a

pôr em cheque a nobreza dos proprietários rurais, até então a única classe abastada e,

portanto, de prestígio na colônia. (PRADO JR., 1994, pp. 38-39)

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Em Formação do Brasil Contemporâneo, Prado Jr (2011, pp. 313-314) comenta que os

negociantes, apesar do preconceito de origem feudal, tiveram uma posição importante na

colônia, especialmente devido ao seu financiamento de outros grupos, disputando, assim, com

os senhores de engenho o poder político. Ainda, segundo ele:

Teremos aqui no Brasil uma réplica da tradicional rivalidade de nobres e burgueses

que enche a história da Europa. E se tornarão entre nós tanto mais vivas e acirradas

que trazem um cunho nacional, pois, como vimos, são nativos do reino aqueles

últimos, enquanto os outros vêm dos primeiros ocupantes e desbravadores da terra.

Com mais direitos, portanto, entenderão eles. (PRADO JR., 2011, p. 314) Não obstante, a mais recente obra monográfica que tratou da sublevação pernambucana

com rigor científico foi Fronda dos Mazombos, Nobres contra mascates, Pernambuco 1666-

1715, de autoria de Evaldo Cabral de Mello. Nela, o autor procura concatenar os fatos da dita

Guerra dos Mascates, que, em sua visão, foi um episódio cujas narrativas foram tomadas pela

literatura (em referência ao livro de José de Alencar) antes mesmo de terem sido postas como

objetos de rigoroso estudo científico. Além disso, como o título sugere, Mello objetivou

perceber e estabelecer antecedentes, a partir do fim da ocupação holandesa, que expliquem ou

ao menos deem indícios dos problemas que viriam a explodir no ano de 1710.

Na primeira parte da obra, o autor põe em evidência os preâmbulos do conflito,

destacando alguns eventos desde a deposição do governador José de Mendonça Furtado da

capitania em 1666, perpassando os litígios entre as ordens religiosas que instigavam e refletiam

a rivalidade estamental, até o governo do Marquês de Montebelo, marcado por uma espécie de

ensaio do conflito de 1710-11, as Alterações de Itamaracá (1792). Além disso, Mello trabalha

em um capítulo específico a dicotomia “loja versus engenho”, esmiuçando as generalidades e

exceções, ódios e alianças que envolviam os partidários. Indica ele, por exemplo, que:

[...] compondo-se a mascataria de uma nata de “mercadores de sobrado”, grandes

negociantes por atacado que se dedicavam a outras atividades lucrativas, e de uma

maioria de “mercadores de loja”, negociantes a varejo, o defeito do trabalho manual

não podia ser argüido contra os primeiros, os quais, embora também possuíssem

“lojas”, isto é, o andar térreo das suas residências, [...] operavam através de caixeiros,

não medindo nem pesando os gêneros com suas próprias mãos [...]. (MELLO, 2003,

p. 209) Já em sua segunda parte, Mello parte para a análise sincrônica da fronda, intitulando um

de seus capítulos como “O desgoverno de Castro e Caldas”, no qual discorre sobre as querelas

pessoais, políticas e religiosas nas quais o governador se imbricou desde 1707 até sua fuga em

1710. Destacamos a inimizade que o mesmo adquiriu tanto com os pró-homens “mazombos”

de Olinda, como os frades do mosteiro de São Bento de Olinda (originalmente partidários da

causa mascatal), o ouvidor José Inácio de Arouche e o juiz-de-fora Luís de Valençuela Ortiz -

funcionários régios. Por exemplo, Castro e Caldas (MELLO, 2003, p. 237) “[...] denunciou

irregularidades cometidas pelos vereadores com a conivência do ouvidor [Arouche], as quais

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teriam redundado em aumento de despesas e na consequënte [sic] diminuição da receita da

Coroa.”

Quando em 1710 parte da nobreza revoltosa arquitetava retirar o governador do poder,

ainda tinham na memória a deposição de 1666. Porém, a relativa popularidade do governador

no povoado recifense e a consolidação das guarnições militares mascatais fizeram com que o

momento se radicalizasse. Segundo Mello (2003, pp. 284-285):

O assassinato do governador não carecia de aval jurídico. No Reino, a jurisprudência

e a Teologia haviam justificado a Restauração Portuguesa (1640) em termos da

doutrina medieval de que os povos tinham direito a destituir o monarca tirânico,

podendo, como derradeiro recurso, assassiná-lo [...]. Mais à frente, o autor exerce uma importante análise historiográfica e documental, numa

tentativa de verificar de que forma o republicanismo secessionista e aristocrático foi

considerado como alternativa viável por uma parte significativa dos senhores de engenho. Para

o historiador pernambucano, as

[...] alegações oscilam dentro de uma faixa que vai da aspiração de autogoverno à

intenção precisa de estabelecê-lo sob forma republicana. É certo que elas procedem

de fontes recifenses ou simpáticas ao Recife, o que as teria desqualificado caso a

crítica histórica ainda se pautasse pelos critérios formas da historiografia positivista.

A favor desses depoimentos, pode-se, contrário senso, argumentar com o estranho e

completo mutismo das narrativas olindenses acerca da semana de 7 a 14 de novembro,

e, em particular, da demora em empossar o bispo. (MELLO, 2003, p. 321)) Conclui então que (MELLO, 2003, p. 329) “as fontes coevas atestam as veleidades

republicanas de uma minoria de pró-homens envolvidos na insurreição da nobreza”. Por último,

gostaríamos de destacar que, segundo Mello, a repressão vai silenciar, por cerca de um século,

quaisquer contestações da nobreza local. Com essa apatia do Norte agrário no restante do século

XVIII, a historiografia se ocupou mais intensamente com as inconfidências do fim do século;

porém, segundo o autor, foi a crise de início dos Setecentos que fez a metrópole lusitana

enxergar o seu domínio sobre a América portuguesa de forma pessimista, com a constatação da

insatisfação crescente dos colonos.

3. Perspectivas para o Ensino de História e problematizações sobre o Livro Didático

Antes de partirmos para uma tentativa de definição do Livro Didático, gostaríamos de

expor, em nosso entendimento, quais são os objetivos do Ensino de História, cujas

caracterizações podem ser formuladas mediante os conceitos da consciência histórica e a

literacia histórica. Jorn Rüsen (2001, p. 57) foi um filósofo e teórico da história que concebeu

a consciência histórica, definida como "[…] a suma das operações mentais com as quais os

homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de

forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo."

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É válido ressaltar que essa orientação a partir do passado para o presente e o futuro é

uma historicidade intrínseca à condição humana, ou seja, a consciência histórica seria universal

para e inerente aos seres humanos, enquanto seres sociais e coletivos. Parafraseando o filósofo

alemão, Cerri (2011, p. 30) afirma que “o que varia são as formas de apreensão dessa

historicidade, ou, nos termos de Rüsen, as perspectivas de atribuição de sentido à experiência

temporal.”

Por sua vez, literacia ou educação histórica (do inglês historical literacy) foi um

conceito desenvolvido por Peter Lee no intuito de pensar um processo de ensino-aprendizagem

de História fundamentado na própria epistemologia do conhecimento histórico. Nesse sentido,

para que a literacia da disciplina seja possível e desemboque em um ensino-aprendizagem

transformativo, Lee (2006, p. 145) aponta que “eles [os estudantes] devem estar equipados com

dois tipos de ferramentas: uma compreensão da disciplina de história e uma estrutura utilizável

do passado”. Compreender a disciplina significa desenvolver os conceitos de segunda ordem

(empatia, análise, evidência, mudança, etc.) com os quais se constroem e criticam as histórias;

enquanto que a estrutura utilizável consiste no conjunto dos conhecimentos substantivos, os

conteúdos históricos em si (como Revolução Industrial ou Escravidão Atlântica).

A relação que queremos destacar para esse breve trabalho é justamente aquela em que a

literacia histórica tem por finalidade fazer desenvolver a consciência histórica, isto é, permitir

que nos reorientemos criticamente no tempo e interliguemos passado, presente e futuro. Nas

palavras de Lee (2016, p. 139), que dialoga ativamente com Rüsen: “A história tem um lugar

na educação porque desenvolve a consciência histórica dos alunos, localizando-os no mundo,

de forma a incentivá-los a pensar sobre as relações temporais”. Outro detalhe importante é que,

para esses dois intelectuais, um entendimento íntegro da História enquanto ciência advém da

capacidade de colocar as múltiplas narrativas e historiografias em situação de dúvida; a crítica

recíproca e constante entre as parcialidades e referenciais, quando bem fundamentada, amplia,

supera e torna garantível o conhecimento histórico.

Tendo em mente essa perspectiva relacional entre consciência e literacia históricas,

podemos agora descrever e levantar apontamentos quanto ao Livro Didático e suas múltiplas

facetas. Apesar de ser facilmente identificável e diferenciá-lo de outros tipos de livro, para

Bittencourt (2008, p. 301), “[…] trata-se de um objeto cultural de difícil definição, por ser obra

bastante complexa”. Ainda, (BITTENCOURT, 2008, p. 302) “o processo de avaliação didática

promovido pelo MEC nos últimos anos exemplifica o alcance das polêmicas e do papel que a

literatura escolar desempenha na vida cultural e social brasileira […].”

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Desse modo, os livros didáticos possuem muitas interferências na sua elaboração,

confecção, distribuição e utilização, já que sua estrutura é marcada por diferentes aspectos: o

mercadológico, o curricular, o pedagógico e o ideológico. Em relação ao primeiro, Kazumi

(1997, pp. 53-54) afirma:

[…] O crescimento do PNLD, desde a sua criação e apesar de recuos, foi superior ao

aumento do seu público-alvo. Em outras palavras, aumentou a quantidade de livros

recebidos por cada aluno matriculado na escola pública de 1º grau – pelo menos em

tese. Para as editoras, esse público – cujo consumo de livros é maior do que o consumo

médio no Brasil –, representava, certamente, uma fatia do mercado não desprezível e

o Estado, comprador, um cliente preferencial. Ora, enquanto produto material passível de venda e retorno financeiro significante, o

livro didático esteve e está submetido aos interesses das editoras. Porém, o material também

precisa atender às demandas de seus clientes, ou seja, precisa satisfazer a maneira como o

Estado, professores, alunos – e a sociedade em geral – esperam que os conteúdos sejam ali

abordados. Assim, a partir dessa demanda é que o aspecto mercadológico encontra os outros

três, no sentido de qual(is) e como deve(m) ser escrita(s) a(s) História(s) em um livro didático.

Kazumi (2018, p. 274), em referência ao contexto histórico de redemocratização dos

anos 1980 e 1990 – mas que ainda tem forte presença em nossa democracia liberal atual -, diz

o seguinte:

Se a ventura sopra a favor das reivindicações democráticas, progressistas e até mesmo

esquerdistas; e se isso se traduz, na disciplina de História, na valorização de

abordagens que presumivelmente propiciem a ‘reflexão’, a ‘crítica’, a

‘conscientização’ e a ‘promoção da cidadania’, a empresa capitalista que produz livros

a esse respeito prefere atender a essa demanda do que permanecer fiel à sua suposta

‘ideologia’ [burguesa]. Nessa reflexão sobre os temas das pesquisas dos anos 1980 e 1990 sobre os livros

didáticos, Kazumi sugere que haja uma superação da crítica ideológica, dando-se melhor

atenção aos conteúdos e às didáticas. Ou seja, pouca atenção se deu ao aspecto que envolve o

processo de ensino-aprendizagem, a forma e linguagem como os conteúdos são apresentados e

abordados, os exercícios e atividades sugeridos e quais possibilidades o livro didático fecha ou

abre para o professor em sala de aula. Ainda, Bittencourt (2008, p. 316) complementa que “é

importante identificar se o autor da obra é o autor do conteúdo pedagógico, porque nem sempre

se trata da mesma pessoa ou grupo de pessoas.”

A deficiência de “métodos” de ensino modernos e centrados no aluno ou a ideologização

subjacente aparecem como críticas frequentes em pesquisas sobre os livros didáticos no Brasil.

Logo, o que se conclui é que o livro didático é considerado uma “mazela” significativa para a

educação básica brasileira, frequentemente adjetivada de “tradicional”. Porém, Bittencourt

(2008, p. 300) alerta que “o problema de tais análises reside na concepção de que seja possível

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existir um livro didático ideal, uma obra capaz de solucionar todos os problemas do ensino, um

substituto do trabalho do professor”.

Por sua vez, os conteúdos propriamente históricos e suas narrativas em um livro didático

se baseiam nos currículos oficiais ou propostas curriculares, que são os vínculos entre a variada

produção acadêmica historiográfica e o que as sociedades democráticas e seus governos

esperam que os alunos aprendam como História. Segundo Bittencourt (2008, p. 313),

Um problema considerado como dos mais graves em relação ao livro didático é a

forma pela qual apresenta os conteúdos históricos. O conhecimento produzido por ele

é categórico, característica perceptível pelo discurso unitário e simplificado que

reproduz, sem possibilidade de ser contestado, como afirmam vários de seus críticos.

Trata-se de textos que dificilmente são passíveis de contestação ou confronto, pois

expressam ‘uma verdade’ de maneira bastante impositiva. O Livro Didático é, à primeira vista, um depósito do conhecimento humano, o qual é

transpassado como universal e imutável, numa tentativa de facilitar o acesso ao conhecimento

para dois grupos tão numerosos e heterogêneos de “clientes”, professores e alunos. No esteio

dessa discussão das narrativas presentes nos livros didáticos, frequentemente traz-se à tona o

conceito de verdade dentro da própria ciência histórica. Numa perspectiva que tenha superado

certos paradigmas historiográficos, a História enquanto ciência não busca uma verdade

totalizante e definitiva, mas diversas tentativas de verdades, que dependem de múltiplas lentes

sociais e sistemas teóricos, não se esquecendo, contudo, do rigor científico.

Como que o Livro Didático poderia superar essa imposição de verdade única e

dogmática que ele mesmo geralmente expõe, pelo menos para o saber escolar da História? Uma

resposta possível, a nosso ver, seria, retomando Lee e Rüsen, demonstrar a multiplicidade de

perspectivas das quais as historiografias dependem, a partir de uma educação/literacia histórica

que permitisse angariar as competências estruturantes da disciplina. Em suma, o livro didático

deveria municiar os estudantes com mais de uma narrativa/historiografia, complementares e/ou

conflitantes, para que os ditos conceitos estruturantes da História pudessem ser bem utilizados,

resultando em uma relação significativa do passado para com o presente e, em última instância,

consolidando suas identidades numa perspectiva verdadeiramente transcultural e humana.

4. “História Global” e “Olhares da História: Brasil e mundo”

O primeiro volume sobre o qual se deteu foi “História Global 2” de autoria de Gilberto

Cotrim e publicado pela editora Saraiva (3ª edição) em 2016. Segundo o último PNLD trienal

para o Ensino Médio (2018-20), este é um dos livros aprovados pelo programa para ser

devidamente utilizado no Ensino Básico brasileiro, mais especificamente para o 2º ano. Antes,

é necessário localizar o texto que trata da Guerra dos Mascates dentro dos capítulos e unidades,

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para que entenda-se como o acontecimento e sua abordagem são tratados nos contextos maiores

e até para compreender a divisão didática escolhida pelos agentes produtores do livro.

“Guerra dos Mascates (1710)” apresenta-se no capítulo 5, denominado “Holandeses no

Brasil”, e este, por sua vez, está na unidade número 1, “Trabalho e sociedade”. Nota-se, somente

por essa localização, que o autor incluiu, a priori, o conflito dentro de uma duração maior,

porventura talvez querendo lhe imputar uma relação diacrônica com os eventos anteriores que

haviam ocorrido na América Portuguesa. Sua narrativa começa:

Devido à queda do preço do açúcar no mercado europeu, os senhores de engenho de

Olinda, principal cidade de Pernambuco na época, viram-se em dificuldades

financeiras. Começaram, então, a pedir empréstimos aos comerciantes do povoado do

Recife, que cobravam juros bastante elevados. (COTRIM, 2016, p. 65) Aqui percebe-se que o autor não comenta as outras consequências, sociais e políticas,

geradas pela ocupação e retirada holandesas em Pernambuco: a formação de um “orgulho”

nobiliárquico dos terratenentes de Olinda, que se viram, segundo eles, desamparados pela Coroa

na Guerra de Restauração; e a disparidade crescente entre o “pujante” povoado do Recife e a

sede municipal “decadente” de Olinda. Assim, prefere colocar somente a economia como objeto

de disputa entre as duas elites, não se atentando para outras causalidades e mudanças sociais

mais abrangentes que ocorriam pelos Novo e Velho Mundos.

Cotrim (2016, p. 65) segue em sua explicação: “Convencido de sua relevância social,

esse grupo [comerciantes do Recife] pediu ao rei de Portugal, D. João V, que seu povoado fosse

elevado à categoria de vila.” Mais à frente, no mesmo parágrafo, o autor põe os objetivos finais

dos comerciantes com esse pedido: impedir que os senhores de engenho fizessem ordens e

cobrassem impostos aqueles primeiros. Felizmente, não encontramos chavões clássicos como

nativismo ou consciência cívica, oriundos de historiografias mais clássicas.

Para além dos aspectos verbais do texto em “História Global 2”, é válido comentar a

presença de uma fotografia que, preliminarmente, aparenta servir apenas como ilustração das

duas cidades na contemporaneidade (talvez para mostrar os lugares a alunos de outras partes do

Brasil). Essa foto, localizada na página 65 e rente à narrativa, destaca as duas cidades a partir

de uma perspectiva do centro histórico de Olinda, constituído em suma por casebres

“coloniais”, com a cidade do Recife ao fundo, caracterizada por muitos arranha-céus e bem

mais densamente povoada.

A partir dessa descrição, afirmamos que a escolha da foto foi positiva, pois pode induzir

os usuários do livro a uma conclusão: a atual discrepância econômica e populacional entre os

dois centros urbanos talvez remonte historicamente ao período colonial. Ora, a imagem poderia

ter demonstrado melhor tal conclusão desde que no texto estivesse claro como os comerciantes

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do desenvolvido burgo do Recife, almejavam quebrar a exclusividade política da nobreza,

exercida em Olinda, sede municipal, mas subdesenvolvida. Dessa forma, as marcas do passado,

suas continuidades e rupturas seriam melhor explanadas e os alunos poderiam reorientar-se no

tempo, isto é, formar sua(s) identidade(s) com uma significação considerável de seu(s)

presente(s) através do(s) passado(s) (RÜSEN, 2001).

A segunda obra didática que se analisou foi “Olhares da História: Brasil e mundo 2”, de

Cláudio Vicentino e José Bruno Vicentino, cuja publicação foi feita pela editora Scipione em

2016 (1ª edição). Também como o primeiro livro, esse foi aprovado pelo último PNLD (2018-

20) para o Ensino Médio brasileiro e deve ser utilizado com turmas do 2º ano. Do mesmo modo

como fizemos com a primeira obra, faz-se essencial situar o trecho que aborda o evento

histórico com o qual estamos lidando dentro das divisões internas do livro didático. Neste

segundo volume, o texto intitulado “Guerra dos Mascates” se encontra no capítulo 9 “Sistema

colonial em movimento” que, por sua vez, está localizado na primeira unidade, “Europa como

centro do mundo”.

Esse capítulo 9 é dividido, em suma, em três seções: o Ciclo do Ouro, sociedade

mineradora e seu declínio; a crise do sistema colonial e as contramedidas tomadas por Portugal

(reformas pombalinas); e rebeliões coloniais que ocorreram sem objetivo de independência.

Talvez essa escolha não tenha sido a mais didática e cronologicamente sensata, pois a maior

parte das contestações dos colonos se deu anteriormente à temporalidade discutida pelas três

primeiras seções (segunda metade do século XVIII). Nosso fato histórico, os levantes

pernambucanos de 1710 a 1711, se encontra na última seção, explicada da seguinte maneira:

Os movimentos coloniais de revolta contra medidas metropolitanas, surgidos a partir

do século XVII, não reivindicavam a independência política. Eram manifestações

contra medidas isoladas e contrárias aos interesses dos colonos de certas regiões.

Serviram, contudo, para evidenciar a diferença, e mesmo o antagonismo, entre os

interesses de setores da população colonial e os da metrópole. (VICENTINO;

VICENTINO, 2016, p. 130) Corroborando essa caracterização, na subseção “Guerra dos Mascates”, os autores não

mencionam a cogitação que tiveram alguns dos revoltosos, nesse caso específico, em realizar

uma secessão da metrópole lusitana aos moldes de uma república aristocrática, logo seguindo

a historiografia de Varnhagen. No mais, a narrativa é bem curta e segue a mesma linha

consensual de uma historiografia clássica, ou seja, pondo em destaque a crise do preço do

açúcar e a ocupação holandesa como fatores que fizeram surgir as rivalidades entre os

estamentos e seus respectivos povoados, Recife e Olinda. Os autores destacam que o povoado

do Recife era submetido à Câmara de Olinda e que os nobres que a controlavam negavam aos

comerciantes reinóis direitos políticos. Afirmam:

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Enquanto Olinda predominava politicamente, Recife tornava-se o principal centro

econômico de Pernambuco, com intenso comércio praticado pelos portugueses,

apelidados de mascates. Os comerciantes, que obtinham grandes lucros com sua

atividade, passaram também a emprestar dinheiro a juros altos aos olindenses

empobrecidos. (VICENTINO; VICENTINO, 2016, p. 130) A tradição historiográfica materialista de explicar os fenômenos históricos a partir dos

fatores econômicos gera, por sua vez, uma ofuscação de outras possibilidades históricas de

conhecimento e argumentação. Em Fronda dos Mazombos, Evaldo, escrevendo numa

perspectiva mais recente e de acordo com os paradigmas e linhas de pesquisa da Nova História,

dá destaque a como cada estamento se utilizava de variados argumentos para justificar o

privilégio de poder concorrer aos cargos municipais e negar-lhes aos outros, como o defeito

mecânico, a origem étnico-racial e a origem religiosa familiar.

Caso houvesse uma melhor atualização historiográfica, o texto poderia elucidar ainda

mais para o aluno a forma de pensar, a mentalidade e o cotidiano presentes no período que se

convencionou chamar de Idade Moderna. Com elucidar queremos dizer auxiliar o professor em

sua literacia histórica, isto é, desenvolver a consciência histórica dos alunos a partir da

apreensão do conceito de empatia ou compreensão histórica, que é a tentativa de se colocar no

lugar do outro em seu respectivo tempo e espaço. Infelizmente, nem ilustrações nem seções de

exercícios nos ajudam nesse caso, só existindo aquelas voltadas para o Ciclo do Ouro,

escanteando outras temáticas do capítulo.

5. Considerações finais

Dessa maneira, verificamos que os dois livros didáticos analisados seguem um fio

explicativo comum: destacam os fatores econômicos e políticos que motivaram os dois

estamentos a se defrontarem mediante a sombra dos dois povoados, Recife e Olinda. Contudo,

não abordam fatores de cunho étnico-social, deixando de inserir os sujeitos históricos no seu

tempo e nas mentalidades desse tempo. Os autores também não comentam a tentativa de

secessão em forma republicana discutida por alguns senhores de engenho em 1710, cuja

ocorrência é ponto pacífico segundo a historiografia mais recente (MELLO, 2003).

Porém, pensamos ser positiva a ausência de caracterizações nativistas/nacionalistas e de

consciência cívica, já que podem ser consideradas termos de um paradigma historiográfico já

superado. Apesar disso, houve falhas nas consultas à bibliografia por parte dos autores dos dois

livros analisados, talvez por limitações editoriais e formativas, recortes historiográficos que

naturalmente acabam privilegiando outras obras, o simples desconhecimento ou a não-

importância dada deliberadamente ao conflito do Pernambuco Setecentista. Por fim,

ressaltamos que o Livro Didático é uma obra imperfeita, e é entendendo seus limites que todos

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os sujeitos que o confeccionam, distribuem e utilizam podem utilizá-lo para um ensino histórico

significativo e transformativo.

6. Referências bibliográficas

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