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A GUERRA COLONIAL PORTUGUESA VOL. IV P158339-66

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A GUERRA COLONIAL PORTUGUESA

VOL. IVP158339-66

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Guerra |é| s. f.1. Inimizade declarada e luta à mão armada entre nações ou partidos.2. [Por extensão] Inimizade e actos de hostilidade entre famílias ou pessoas; campanha.3. Arte militar.4. Profissão de militar.5. Negócios militares.6. [Figurado] Oposição; luta.7. Jogo de bilhar entre três jogadores.guerra aberta: guerra declarada; oposição constante.guerra fria: situação de hostilidade (ideológica, política, económica, tecnológica, militar) entre nações, que procuram sabotar o regime adversário sem recurso ao conflito armado directo, mediante jogos de influência, pressões económicas, propaganda, espionagem ou outras acções indirectas.estado de tensão entre adversários que evitam realizar confrontos violentos.

Colonialismo (colonial + -ismo) s. m.Doutrina ou atitude favorável à colonização.

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1961: O ano do início da Guerra no Ultramar

O dia ficou na história como feriado nacional em Angola: 4 de Janeiro de 1961. Milhares de agricultores da antiga Companhia Geral de Al-godão de Angola (Cotonang) teriam sido mortos - reclamam os angolanos - pelos militares por-tugueses, na Baixa do Cassange, distrito de Ma-lange, como resposta a manifestações exigindo melhores condições de trabalho e a abolição do trabalho forçado. O então segundo sargento miliciano José Moura, da 3ª Companhia de Ca-çadores Especiais, a única tropa portuguesa no terreno àquela data, conta: “Não houve mortos nenhuns feitos pela nossa Companhia até ao dia 2 de Fevereiro. Nesse dia, estávamos na Baixa do Cassange, mas não matámos ninguém. Quem lá estava também era a PIDE, a fazer interrogató-rios, e se mataram alguém... é possível.”

Já a 11 de Janeiro de 1961, estala a revolta - instigada por emissários da União dos Povos de Angola (UPA), vindos do ex-Congo Belga. A onda de rebelião varre toda a Baixa do Cassange, causando a morte de um capataz da Cotonang. No dia seguinte, um pelotão da 3ª Companhia de Caçadores Especiais, comandado pelo te-

nente Silva Santos, é rodeado por um grupo numeroso de revoltosos. O chefe deste grupo só se dispõe a falar ao tenente se as suas forças depusessem as armas. O que veio a acontecer. Silva Santos levou os líderes daquele grupo ao chefe de posto administrativo de Milando. E assim se acalmaram os ânimos. Os dias seguin-tes foram de tensão, mas não ficaram marcados por confrontos. Em Malange, no dia 1 de Feve-reiro à noite, os militares da 3ª Companhia são chamados ao quartel, quando alguns, entre eles José Moura, estavam no cinema a ver o filme ‘Orfeu Negro’. Um comerciante de Cunda Ria-Baza tinha estado reunido com o comandante da Companhia, contando-lhe da aproximação de uma invasão daquela localidade pela UPA. Era já uma da madrugada do dia 2 de Feverei-ro quando, debaixo de fortes chuvadas, partiu para Cunda Ria-Baza um ‘pelotão menos’ - com cerca de 20 homens - da 3ª Companhia de Ca-çadores Especiais. Ao amanhecer, os militares ouvem a ira popular: “Vai-te embora, branco.”

Por volta das 11h00, os Caçadores chega-ram à povoação. “Mandei instalar a metralha-dora no telhado de um prédio colonial de um comerciante” - recorda José Moura. O pelo-tão dividiu-se em dois sectores, presumindo a passagem dos revoltosos. Um dos grupos militares, comandado pelo segundo-sargento Moura, abrigou-se atrás do murete da varanda do mesmo edifício. “Veio um numeroso gru-po. Eu disparei para o ar, umas duas ou três vezes, a pistola-metralhadora FBP, dando si-nal para eles pararem. Mas não obedeceram. Faço então uma rajada para o meio do grupo, o que também não os impediu de avançar. Dei ordem a um soldado atirador especial, e ele disparou sobre o líder do grupo, que era uma espécie de feiticeiro. O tiro foi certeiro.” O grupo, que tinha sofrido 11 baixas, dispersou e não foram disparados mais tiros. “O fulano que ia catequizar aquele povo (o feiticeiro)

dizia para eles não temerem, que as balas dos brancos eram de água” - recorda. Ali perma-neceu aquele pelotão, aguardando pela chega-da da 4ª Companhia. No dia 3, chega a Malan-ge o major Rebocho Vaz, vindo de

Luanda, com um pelotão para formar o Ba-talhão Eventual. E já no dia 5 - depois do ataque à esquadra de Luanda, a 4 - é a vez de chegar a Malange a 4ª Companhia de Caçadores Es-peciais, que parte de imediato para Cunda Ria-Baza ao encontro daquele pelotão da 3ª Companhia. Pelo caminho, cruzam--se com um grupo rebelde que pretendia assaltar a po-voação de Quela. “As nossas tropas circunda-ram uma sanzala, e dois cabos da 4ª Companhia foram atingidos mortalmente por fogo amigo” - diz José Moura. “São as duas primeiras bai-xas da guerra”, defende. No meio de todos os acontecimentos, o centro de transmissões do Comando Militar de Angola envia uma men-sagem ao comando-chefe da Defesa Nacional, relatando os primeiros episódios na Baixa do Cassange: “Malange informou comercian-te branco digno de confiança saído Riobaza, comunicou força localidade teve actuar fogo abatendo 11 indígenas grupo 150 entre quais uma espécie de feiticeiro agitador já referen-ciado. (...) Nenhuma baixa nosso lado. Um indígena antes morrer declarou ter sido en-ganado vistas nossas armas dispararem balas e não água como propalavam(...).”

Os acontecimentos na Baixa do Cassange es-tenderam-se até Março. Nesta altura, a Força Aérea intervém. Logo a 6 de Fevereiro, um Lo-ckheed PV-2 Harpoon bombardeia a região. O número de mortos terá ultrapassado os sete mil.

Há 50 anos, o país embarcou na guerra colonial. O conflito sangrento, que se prolongou por 13 anos, começou em Angola. O ano de 1961 foi o pior do salazarismo. Em Janeiro, depois da constipação, a gripe atacou forte-mente o presidente de Conselho. A debilidade de saúde de Oliveira Salazar podia ser interpretada como mau presságio. E com razão de ser. O ano de-correu difícil na metrópole - com o lento início do fim do Estado Novo - e nas colónias, com o eclodir da guerra, onde morreram 8803 militares por-tugueses e 15 507 ficaram portadores de deficiência permanente. A guer-ra começou a desenhar-se em Angola. Ao massacre da Baixa do Cassange, sucede a 4 de Fevereiro o assalto às prisões e à esquadra da PSP na capital angolana. A 15 de Março, deflagraram sangrentos ataques no Norte.

PRIMEIRO MASSACRE

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José Dinis saiu de Luanda no dia 4 de Fe-vereiro às sete da manhã. Regressava ao Uíge, pela estradas dos Dembos, com a mulher e os dois filhos no carro. Àquela hora da manhã não se ouviam tiros.

Durante a madrugada, um grupo de patriotas angolanos - gente do MPLA e da UPA - desceu dos musseques com 200 homens de catanas e canhangulos em punho, atacando objectivos da estrutura colonial portuguesa como grito de revolta. Gritavam: “Viva Angola!” Tentaram sem êxito tomar de assalto a Casa de Reclusão Militar, o edifício dos Correios e ainda ocupar a Emissora Oficial de Angola. Em simultâneo, assaltaram a cadeia da PIDE no bairro de São Paulo, além da 7ª Esquadra da PSP - esta acção pretendia libertar presos políticos que, cons-tava, iriam ser transferidos para o Tarrafal, em Cabo Verde. Estes grupos queriam também chamar a atenção dos jornalistas estrangeiros que se encontravam em Luanda na cobertura do assalto ao paquete ‘Santa Maria’. José Vítor Sil-va, que hoje é advogado em Faro, com 56 anos, nasceu e foi criado em Vila Alice - um bairro de colonos europeus endinheirados, localizado a cerca de 500 metros da 7ª esquadra. Conta que, após o assalto ao ‘Santa Maria’, a 22 de Janeiro, em Luanda fervilhava o boato de que um ata-que estaria iminente. No dia 3 de Fevereiro, às 17h00, pressentindo o pior, o pai de José pega na mulher e nos dois filhos e leva-os para a casa de um familiar que morava mais perto ainda da PSP. Julgavam eles que seria a melhor maneira de se protegerem. “Recordo-me de ouvir tiros, que deveriam ser das pistolas-metralhadoras FBP dos polícias, como reacção ao assalto à esquadra. Ouvimos também tiros disparados por um português que vivia numa casa contí-gua à porta lateral, que dava acesso às cadeias da esquadra, por onde entraram os angolanos” - recorda José. Os acontecimentos instalaram o medo nas famílias de europeus, que represen-

tavam cerca de um terço dos 300 mil habitantes da capital. Manuel Fonseca (hoje com 57 anos) vivia num bairro cercado por musseques: “Não ouvimos nenhum tiroteio. Mas, no dia seguin-te, pairava o medo de que as populações dos musseques nos viessem atacar”, conta. Orga-nizaram-se em grupos para se refugiarem no centro de Luanda. “Imagino que tenham fi-cado cerca de 20 pessoas por apartamento. Os homens ocupavam uma sala e as mulheres e crianças ficavam nas outras. Estavam connos-co, ao todo, cerca de 60 a 70 pessoas” - conclui José.

As horas que se seguiram aos ataques foram de “caça ao homem”. Muitos revoltosos foram presos - em rusgas feitas por duas companhias de caçadores, polícias, elementos da PIDE e ci-piaios (polícias da administração portuguesa). A 22 de Março, foi detido - e depois deporta-do para Portugal - o cónego da Sé Catedral de Luanda, Manuel Mendes das Neves, de quem se dizia ter sido ele a dar ordem de revolta. Os ataques de 4 de Fevereiro resultaram num ele-vado número de feridos e quatro a cinco deze-nas de mortos entre os elementos

atacantes. Por parte dos portugueses, mor-reram sete polícias e um soldado. “Gerou-se o pânico. Enquanto decorriam as cerimónias fúnebres, eu vi um africano ser morto mesmo ao pé de mim. A polícia matou-o” - recorda José Vítor Silva. “Ouviam-se tiros... Havia um sentimento de represália a quem tivesse a cor negra.” A partir daí, as pessoas passaram a fa-zer sentinelas às casas e aos bairros.

O PÂNICOEM LUANDA

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Fernando Farinha (hoje com 70 anos) não lia jornais, porque, dada a distância a que se encontrava de Luanda, nem lhe passavam pe-las mãos. Tinha 19 anos e estudava na Escola de Regentes Agrícolas de Tchivinguiro, anti-ga Sá da Bandeira. Quando em Março viajou, de férias, para Luanda, foi surpreendido. O director do jornal ‘O Comércio’ - seu gran-de amigo - perguntou--lhe se queria ir para o aeroporto ouvir e fotografar as pessoas que chegavam do Norte. aterrorizadas. “Nem se-quer sabia fotografar” - diz. A 21 de Março, foi criada uma ponte aérea que transportou para Luanda mais de 3500 portugueses residentes no Norte. Como relata um cartaz de acção psi-cológica alusivo aos acontecimentos de 15 de Março, que se iniciaram na zona dos Dembos e da fronteira com o antigo Congo Belga: “Dia da chacina de milhares de portugueses de todas as cores e etnias não foi esquecido!” Este dia marcou para sempre o início da rebelião diri-gida pela UPA, no Norte de Angola - numa al-tura em que o MPLA se tentava afirmar - mobi-lizando os negros bacongos, de catanas na mão, para a chacina. Atacaram povoações, postos administrativos e fazendas. Mataram brancos e angolanos que trabalhavam nos cafezais. “Senti pena daquela gente que estava ali: a umas, ti-nha-lhes morrido o marido; os filhos; outros nem sabiam da família. Era uma grande catás-trofe” - conta Fernando Farinha, recordando-

se do aeroporto. Tornou-se repórter de guerra. E vai para o Caxito, onde estava estacionado o 1º Esquadrão de Cavalaria - os “Dragões de Silva Porto”. “O alferes Marinho Falcão aceitou levar-me com eles numa escolta a uma coluna de automóveis civis. Mais tarde, quando chego ao Úcua, apercebo-me de que estão a preparar uma grande operação militar: a recuperação de Nambuangongo”, conta o fotógrafo. Esta vila, a 200 quilómetros de Luanda, estava transfor-mada no quartelgeneral da UPA.

A Operação Viriato, que se iniciou a 10 de Julho, ficaria marcada como uma das mais emblemáticas do Exército, envolvendo cente-nas de militares, neste início de guerra. “No caminho Úcua-Nambuangongo, andámos sempre debaixo de fogo. Íamos pela estrada e de repente era uma chuva de tiros. Durante os ataques, se eu vi dois ou três guerrilheiros, foi muito. Eles eram rápidos e estavam bem es-condidos”, prossegue Fernando Farinha. No dia 9 de Agosto, o Batalhão de Caçadores 96 reconquistou Nambuangongo e, às 17h45, três soldadoshastearam a bandeira de Portugal na torre da igreja, bastante danificada. Foi o pri-meiro ponto estratégico a ser recuperado, mas ainda havia muita Guerra Colonial pela frente, que Fernando Farinha acompanhou até 1974. Este era apenas o início do fim.

FOTÓGRAFO DE GUERRA

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No dia 11 de Abril seguia-se a tentativa de golpe de Estado do ministro da Defesa, o ge-neral Botelho Moniz, que pretendia substituir Salazar por Marcelo Caetano e encontrar uma solução para a guerra em Angola, que prome-tia alastrar a Moçambique e Guiné. Antes da concretização do golpe, Salazar - que tardava a enviar tropas para o teatro de operações - fez uma remodelação governamental e assumiu ele próprio a pasta de Botelho.

Dia 14, na televisão, Salazar dirige-se ao País para dizer: “Para Angola, rapidamente e em força!” Passava um mês sobre os massacres no Norte de Angola. Desde 1960 que esta coló-nia portuguesa tinha apenas 5000 militares do recrutamento local e 1500 enviados por Lisboa.

Até ao final do ano, com a nova ordem de Sa-lazar, seriam 33 mil homens. Ao longo dos anos, ficou sempre por responder a pergunta de que se Salazar tivesse reagido antes, teriam ou não sido evitados os massacres de 15 de Março.

“PARA ANGOLA,RAPIDAMENTEE EM FORÇA!”

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Graves acontecimentos aconteceram nes-tes últimos meses. A paz portuguesa, que, na-ções menos felizes que nós, nos invejavam, foi perturbada pelo terrorismo que, fomen-tado no estrangeiro, assolou o Norte das por-tuguesíssimas terras de Angola. Tem corrido muito e generoso sangue português e o sacri-fício daqueles que tombaram, mais vinculou a Mãe-Pátria, apertando os laços duma unidade indissolúvel, todas as províncias ultramarinas. No assalto ao «Santa Maria», preludio dos acontecimentos posteriores” caiu o primeiro português a dar a vida pela Pátria nesta ofensiva quase que geral contra Portugal, pois e Portu-gal cristão, missionário e civilizador que visam com a sua aliança a maçonaria e o comunismo internacionais. E esse português que o destino quis que morresse no mar das Caraíbas dando a todos nós a lição sublime de como se cumpre o dever e para além de todos sacrifícios se tomba servindo, esse português era um antigo cama-rada nosso que na Escola da Mocidade apren-deu a viver com honra e a morrer com heroís-mo. Depois de Joao Jose de Nascimento Costa, já muitos antigos afiliados foram chamados a dar testemunho do seu portuguesismo, da sua lealdade, e nas mais longínquas paragens do Ultramar estão alerta, vigilantes e atentos. Quando tantas juventudes se gastam numa vida de prazeres mórbidos que enfraquecem o cor-po e aviltam a alma, eu sinto o maior orgulho ao ver o garbo, o entusiasmo e o aprumo com que os nossos rapazes, dando ao Mundo uma lição

que o Mundo forçosamente tem de respeitar, marcham para o combate traiçoeiro onde se emboscadas avultam, mas onde é mister ven-cer. A morte pode esperá-los, mas mais que a vida interessa a honra.

Páginas de heroísmo têm sido escritas em Angola tanto pelas forças do exército, como pelos bravos colonos que enraizados na terra, tão portuguesa, não arredam pé, não se atemo-rizam com os crimes dos bandoleiros a que nas horas difíceis de Maço tiveram que fazer frente quase só com os seus próprios recursos. É que nuns e noutros pulsa o mesmo coração, corre nas veias o mesmo sangue e une-os o mesmo amor de Deus e a mesma Pátria.

É impossível que entre as forças adversas que nos atacam e as que cometendo a traição do silêncio nos não defendem, se não sinta uma certa admiração pelo exemplo único que a ju-ventude de Portugal tentado com a sua atitude de sentinela vigilante em todas as fronteiras e a forma como em Angola têm enfrentado a gran-de vaga de terrorismo.

Estamos em guerra. Com a ajuda de Deus e venceremos, como vencemos tantas outras, para que a Pátria continue a sua missão histó-rica de povo envagelizador. Que todos tomem consciência dos perigos que correremos se não soubermos cerrar fileiras com um só pensa-mento na base de toda a acção - lutar e vencer.

É a hora de Portugal!

É A HORA DE PORTUGAL

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Em Aljubarrota, no dia 14 de Agosto, o senhor professor doutor Manuel Lopes de Almeida,Mi-nistro da Educação Nacional, falou à M.P.Da oração de Sua Excelência transcrevemos es-tes dois passos que pedimos aos nossos colegas para lerem e meditarem:“Como outrora no século XIV, quando nestes planos se desenvolvia a batalha real que con-solidou a nossa independência, também agora estamos em guerra para defender a unidade nacional, o vasto património material e moral que os nossos maiores entregaram ao nosso zelo e à nossa inteligência. Estamos em guerra provocados e ofendidos, preocupados sim, mas dispostos a todas as provas de sacrifício para que o mundo nos reconheça hoje como sem-pre fomos, nas horas duras e más. Estamos em guerra, torno a dize-lo, porque somos o escân-dalo do mundo na afirmação de princípios su-periores,nas clamorosa voz com que bradamos pelo direito, pela justiça, pela fraternidade verdadeira entre os homens, pela verdade nas relações internacionais, pela paz de Cristo que é a única sem restrições e o sumo bem.Os nossos soldados, jovens como muitos de vós, batem-se em Angola com heróica bravura, eles que são da mesma estirpe dos que saíram das vossas fileiras, e cara ao sol e regaram com san-gue ilustre e nobre pedaços de Portugal, Macial Chaves, Nascimento Costa, cujos nomes evoco com emoção e respeito, unindo-os no mesmo pensamento aos que já tombaram no comba-te insidioso da terra africana. Lá longe, creio e asseguro mesmo que os seus olhos se voltam para nós a ver que papel e figura cá fazemos, se cumprimos o nosso dever em todos os sectores da vida que ocupamos do mais elevado ao mais modesto.”“Eu não trago comigo outra palavra de ordem, porque já tomastes e escolhestes voluntaria-mente: “Deus e Pátria”, esse é o lema, invocação e preceito, que tendes para amar e servir. Hon-rai-o como jovens, vivaz e alegremente com é próprio da vossa idade.”

CHAMA Nº5 | P. 1,6,7

O MINISTRO DA EDUCAÇÃO NACIONAL FALOU À M.P.

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o nosso reino

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o milagre da dona tina foi abençoado com o regresso do carlos, o irmão do manuel que estava na guerra em angola. regressou com ar de homem, contou-nos muito em segredo que perdera a virgindade, que as pretas é que gos-tam de foder, vocês haviam de as ver de mamas à mostra. eu não aceitei que o manuel enten-desse o que o carlos dizia, achei que era porco e estava sujo na alma, ele, sim, viera louco da guerra, que a guerra fazia mal a cabeça das pes-soas, isso era o que se sabia perfeitamente. mas o manuel insistiu para que lhe déssemos uma oportunidade, haveríamos de salvar a sua alma também, e tinha razão, não que salvaríamos a sua alma, mas que para se ser santo havia de se estar com os pecadores, que os puros não pre-cisavam de mais nada. falou-nos, então, dos pretos e das pretas, e eu disse que havia uma senhora de moçambique a viver na vila. não me parecia gostar de nada que as outras senhoras não gostassem. de foder, dizia ele, com a boca cheia da palavra para nos impressionar. que raio havia de ser isso, foder. pensei num jogo muito secreta sem imaginar nenhuma regra. nunca ouviste falar do que fazem os teus pais a noite, não percebes como se beijam os homens e as mulheres, como ficam debaixo dos len-çóis com as mãos no corpo uns dos outros. eu sabia do que estava a falar, sabia dos gemidos da dona ermelinda no quarto do avo, de como ficavam uns minutos ali trancados. na chave, por dentro, um lenço pendurado para que não se vislumbrasse uma réstia do interior. mas eram as pretas diferentes, contava ele e isso queria eu entender. o que fariam, porque o fa-riam. eu juro que a dona darci me parecia uma senhora normal mas preta, como uma camisola normal, igual a uma camisola branca mas pre-ta. quando o carlos chegou a dona tina trou-xe-o a noitinha a visitar-nos. comadre, veja o meu filho que veio da guerra. quase veio para o meu funeral. a minha mãe estava muito feliz com a noticia, era madrinha do carlos e tinha

ficado com ele vezes sem conta, no tempo em que o compadre ia para lange trabalhar e ficava a casa da mercearia sozinha de homens cres-cidos. na sala estivemos todos em redor de umas fotografias gastas que ele trouxera da guerra, eram imagens da galhofa entre os mili-tares, imagens divertidas como se a guerra fosse divertida. em angola os bichos eram tantos que por vezes os soldados estavam a disparar e vinha uma boca dentada que lhes engolia uma perna. era um perigo, porque não eram só os soldados inimigos, era o mato que estava repleto de ameaças. em angola tudo podia acontecer, porque os lugares eram ermos, esquecidos de tudo e de todos e deus não devia saber sequer que eles existiam. eram como lugares onde as pessoas podiam nascer ao contrário, vir de velhas para novas, podiam os leões nascer nas árvores como frutos, as chu-vas abrirem do chão numa correria tresloucada para chegarem às nuvens, podiam os homens ter filhos, que muitos pretos só tinham pai, muitos só tinham mãe e outros nasciam dos bichos, a maior parte, até há uns anos, nascia dos macacos, e em angola tudo era possível por isso, porque deus não ordenava as coisas, por-que as coisas eram dominados por um caos que ninguém podia explicar e por isso pareciam magia, eu juro, havia mulheres que se aproxi-mavam de nós para fugir ao preto, e falavam de como deixavam os filhos com os pés plantados no chão para que a terra os fizesse crescer como plantas e falavam de casa no interior da terra onde se podia dormir em nuvens que ficaram presas nos invernos mais, quando o céu parecia desabar e juntar-se à terra. eu queria ter trazi-do uma pedra que se lamentava à noite, num murmúrio muito baixo, por ser disforme e feia. que havia pedras muito negras polidas pela aguas dos rios e mar que adquiriram o macio da pela. mas esta era uma pedra rude como muitas outras. à noite, se estivéssemos nas trincheiras

meios enterrados no chão, e se o inimigo sos-segasse por momentos, ouvíamos murmúrios as histórias de angola espantavam-me. ima-ginava os campos repletos de crianças plantas com os cabelos a ondularem ao vento. crianças sem escola, sob o sol intenso, a escurecer mais e mais a pele, e eu senti pena delas, a pensar como seriam belas e vulneráveis, e como era cruel que deus não conhecesse a sua invenção. mas eu compreendia, fazemos coisas sem sa-ber, e ao fazer a nossa vila deus pode ter feito angola sem saber, por isso a ignorava. talvez o que tínhamos de conseguir era mostrar-lha, e eu pensava que, se a dona darci fosse à igreja e falasse sobre moçambique, deus, que inventou a nossa vila, saberia que sem querer inventou áfrica, e poderia ir lá ver como as coisas eram e ordená-las, ajudá-las a seguir o melhor ca-minho, como se lhes ensinasse a viver. vários, e a terra chegava a mover-se com o esforço in-crível que as pedras faziam para serem ouvidas.

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Após algum tempo de namoro, cedo nos apercebemos de que gostaríamos de unir as nossas vidas e enfrentar o futuro juntos.

Os hábitos, nessa altura, eram totalmente di-ferentes dos de agora,só saíamos acompanhados e só convivíamos umas horas por semana visto eu estar em Torres Novas e ele em Santarém.

O amor que sentíamos era muito forte e de-sejávamos quanto antes estar sempre juntos.

No Ultramar entretanto começava a guerra e toda a tragédia que iria mudar profundamente os nossos planos.

Começaram a ser mobilizados os nossos jo-vens para , lá longe, defenderem os interesses da política de então e também as vidas dos co-lonos que estavam a ser vítimas das barbarida-des de alguns grupos.

Não era previsível que começassem por cha-mar os mais antigos e por isso continuámos a sonhar e a tentar realizar o que tanto ambicio-návamos. Encomendámos os móveis, escolhe-mos a casa e íamos sonhando, casaríamos em Fátima e iríamos passar a lua de mel ao Algarve.

Tudo parecia bem encaminhado. A casa onde íamos morar era no mesmo prédio que eu habitava e, portanto, era fácil por isso saber-mos onde iríamos colocar os móveis, qual seria a sala ,qual seria o quarto e vamos lá até o quar-tinho para os meninos que teríamos.

Éramos felizes antecipando a nossa felici-dade, até que um dia,precisamente no dia 30 de Abril de 1961 , dia de anos do avô ,um te-lefonema veio desmoronar todos estes planos.

Teríamos de deixar tudo para trás ,teríamos de desistir de tudo, pois o avô estava mobiliza-do para Angola.

É difícil explicar. que se sente num momen-to destes: tristeza, desespero, revolta, medo por saber os perigos que ia enfrentar.

Mas, apesar de toda esta angústia, havia ainda um raiozinho de esperança. Talvez, se a situação melhorasse eu pudesse ir até lá. Ao princípio era só uma ideia muito vaga, mas com o tempo e com as saudades que sentíamos, foi-se enraizando e acabámos por querer concre-tizá-la,mas para isso, teríamos que casar por procuração o que não nos agradava muito, mas era impensável proceder de outra maneira.

E assim chegou o dia 24 de Dezembro , dia em que a muitos quilómetros de distância uni-mos os nossos destinos sem a alegria e o ro-

Para Angola, Com Amor

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outras vezes sem ela. Essa angústia tornava-se maior quando, mais tarde, já arrastávamos nessas aventuras os nossos queridos filhos. Chegávamos aos diferentes destinos cansados, empoeirados, mas quase sempre felizes por mais uma aventura e por conseguirmos estar juntos. Mau era quando ele estava num local e nós tínhamos que ficar noutro ou ainda quando tivémos que enfrentar problemas de saúde.

O dia-a-dia nestas paragens desde que não houvesse nenhum percalço era agradável, pois o clima era bom, havia praias lindíssimas como em Luanda, Lourenço Marques (Maputo), ilha de Moçambique e, principalmente, Porto Amélia, um autêntico paraíso. Nos sítios havia fartura de tudo: bons frutos, peixe e marisco que era uma tentação . Noutros, como em Mon-tepuez, faltava quase tudo, chegámos a correr os muceques à procura de um ovo aqui outro ovo ali. Queria retribuir um lanche com que me tinham obsequiado e não tinha os condimen-tos necessários. Foi sempre amistosa a nossa convivência com os naturais de quaisquer das províncias . O último empregado que tivemos queria até quando regressámos vir connosco e chegámos mesmo a trocar correspondência.

Olhando para trás concluo que o facto de termos vivido todas estas aventuras nos tor-nou mais unidos e mais compreensivos e que a nossa família criou laços mais fortes com todos estes contratempos.

LÍGIA BARROSO

mantismo com que tínhamos sonhado.Finalmente podia ir ter com o avô. Foi um

dia muito grande e muito importante para mim. Tinha-me casado sem noivo e para ir ter com ele, tinha que dar alguns passos que mui-to me custaria. A separação dos meus pais e de tudo o que me era familiar.A primeira viagem de avião que encarava com muito receio.E ain-da a chegada a uma terra desconhecida, onde havia guerra e de onde estavam a regressar a maioria das mulheres e crianças. No avião em que fui só íamos duas mulheres .

Foi pois com grande emoção que, após 20 e tal horas de viagem, com escala em S. Tomé e na Guiné, cheguei por fim a Luanda. Era noi-te e ansiosamente os meus olhos corriam por todo o lado à procura do homem por quem ti-nha trocado tudo, mas que não conseguia des-cortinar. Entretanto ia abrindo as malas, nessa altura tudo revistavam, e a visão do vestido de noiva sem o noivo, deixou-me ainda mais atra-palhada perante os olhares irónicos dos fun-cionários. Que pensariam? Que juízos fariam?

Mas, eis que finalmente, através da parede rendada da sala, vejo uns olhos, uns olhos pelo quais eu tinha alterado tanto a minha vida, e foi através desses orifícios da parede que trocá-mos o primeiro beijo de casados.

Luanda deixou-me um pouco perplexa, pois a cidade, muito bonita, muito acolhedora e cheia de vida não evidenciava mostras das lutas que se travavam em certas zonas mais para o norte .

Pior foi quando ao fim de poucos meses, em Salazar, nos tivemos de separar novamente, tendo o avô ido para uma zona de intervenção, eu fiquei meio perdida pensando seriamente se esta guerra que se travava teria alguma razão de ser. Que estávamos ali a fazer? Faria sentido aquela luta? que tínhamos feito nós, portugue-ses, por aqueles povos? Tinham boas escolas? Boa assistência médica? Bons transportes? Ve-rifiquei até que grande parte da acção educativa e alguma assistência médica era exercida pelos missionários que se infiltravam pelo interior sem o mínimo de condições, com coragem e espírito de sacrifício.

Senti muitas vezes receio principalmente nas deslocações por caminhos intransitáveis em jipes militares, sem nenhuma segurança, umas vezes em colunas, seguindo os trilhos dos carros da frente, umas vezes com escolta

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Guardam feridas incicatrizáveis e memórias contundentes e revivem em pesadelo as ocorrências mais dramáticas de uma experiência que os vitimou para sempre. São exemplos de um sacríficio humano protagonizado por milhares de combatentes de combatente em treze anos de conflito.

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Conhece malanje? Estava à espera da ma-nhã para lhe falar de malanje, da irrealidade de crespúsculo polar que envolve os objectos e os rostos dessa espécie de halo transparen-te poisado nas copas dos pinhais da Beira, da manhã, do silêncio de mar suspenso, à escuta , a respirar de leve, da manhã. sabe como é, é hoje o monte de destroços e de ruínas em que a guerra a tornou, uma terra irreconhecível pela estúpida violência inútil das bombas, um campo raso de cadáveres, de costelas fume-gantes de casas, e de morte. Talvez que nesse tempo, quando passei por ela de regresso ao meu país, pudesse adivinhar os destroços e as ruínas sob o perfil intacto dos prédios, as árvores dos jardins, o café repleto de mulatos pretensiosos cujos enormes carros de luxo apoiavam no passeio os narizes de esqualo dos faróis. Talvez que pudesse prever, sob a saú-de aparente do sol, a sua morte próxima , tal como certos doentes nos revelam, por trás do sorriso alegre ou dos olhos carregados de uma falsa esperança, o esgar, não do medo nem do nojo, mas de vergonha, de agonia. A vergonha de estar deitado, a vergonha de não ter força, a vergonha de desaparecer em breve, da ago-nia, a vergonha perante os outros, os que dos pés da cama nos olham no horror aliviado dos sobreviventes, inventam palavras de um opti-mismo doloroso, conversam em voz baixa com a enfermeira nos cantos do quarto, que a ja-nela ilumina em diagonal de uma dia ilusório. Malanje, percebe, é hoje o monte de destroços e de ruínas em que a guerra a tornou, uma ci-dade devastada, desaparecida, um templo e diana de paredes escuras e de muros derru-bados, mas em 73, no início de 73, era a terra dos diamantes, dos que enriqueciam à custa do contrabando dos diamantes, à custa da camga, do comércio furtivo das pedras, todas as pes-soas traziam frasquinhos de reagentes na algi-beira, os negros, a população branca, a polícia,

a Pide, os administrativos, os professores, a tropa, e à noite, na cintura suja das sanzalas , comprava-se o minério a quem chegava do rio ou da fronteira com um citilação de vidro embrulhada pedaços de pano, protegido pelas facas atentas dos cúmplices. Sanzalas e casas de putas, sob os eucaliptos, colchas de chita, bonecas, mulheres envelhecidas de dentes de prata, gira-discos entoando aos berros os merengues cardíacos do Congo, e a felicidade por duzentos escudos numa súbita gargalhada de preta jovem, recebendo-nos dentro de si numa alegria de troça.

Malanje era o oficial pequeno, calvo, en-rugado, parado à porta do liceu para assistir à saída das meninas as aulas, molhando o papel dos cigarros de um desejo porco de velho, ou instalado a seguir ao jantar no passeio fron-teiro à varanda da messe, observando a vi-zinha impúbere, que levantava os pratos da mesa, com órbitas de animal empalado. Vi-o no Chiúme abrir a breguilha diante de uma prisioneira, obrigá-la a erguer uma das per-nas colocando-a sobre o bidé, e penetrá-la, de boina na cabeça, a soprar pelo nariz um asma repelente de bode. Entrei no quarto de banho dos sargentos, na pocilga eternamente inun-dada e nauseabunda a que se chamava quarto de banho dos sargentos, vi o oficial abraçado, numa espécie de desespero epiléptico, à pri-sioneira, criatura muda e tímida encostada aos azulejos, de pupilas ocas, e por cima da cabeça deles, através da janela, a chana abria-se num majestoso leque de verdes matizados, em que se adivinhava o brilho lento, ziguezaguean-te, quase metálicos do rio, e a grande paz de Angola no cacimbo, às cinco da tarde, refrac-tada por sucessivas camadas contradictórias de neblina. As nádegas do homem formavam um movimento de embolo que se apressava, a camisa pegava-se as costas em ilhas impre-cisas de suor, o queixo tremia como o dos re-

formados nos refeitórios dos asilos, as pupilas ocas da prisioneira miravam-me numa fixidez insuportável, e apeteceu-me, entende, tirar também a minha pila para fora e urinar sobre eles, urinar demoradamente sobre eles, como em pequeno mijava para os sapos do quintal, abrigados no meio de dois troncos numa afli-ção de pedras que respiram. ,

Mas não podíamos urinar sobre a guer-ra, sobre a vileza e a corrupção da guerra: era a guerra que urinava sobre nos os seus estir-lharços e os seus tiros, nos confinava a estrei-teza da angustia e nos tornava em tristes bi-chos rancorosos, violando mulheres contra o frio branco e luzidio dos azulejos, ou nos fazia masturbar a noite, na cama, a espera do ataque, pesados de resignação e de úisque, encolhidos nos lençóis, a laia de fetos espavorecidos, a es-cutar os dedos gasosos do vento nos eucaliptos, idênticos a falanges muito leves roncando por um piano de folhas emudecidas. Não temos arvores aqui: apenas o pó dos edifícios que se erguem, em torno deste; segundo o mesmo modelo deprimentemente igual para bancá-rios melancólicos, as luzes do Areeiro lá em cima, .azuladas e vagas como órbitas de cães cegos, a Avenida Almirante Reis as suas lojas fechadas sobre si próprias a maneira dos pu-nhos de uma criança que dorme: as pessoas acordam, afastam as cortinas da janela, es-preitam para fora, observam as ruas cinzentas, os automóveis cinzentos, as silhuetas cinzen-tas que cinzentamente se deslocam, sentem crescer dentro de si um desespero cinzento, e deitam-se de novo, conformadas, resmun-gando palavras cinzentas no seu sono que se espessa. Já reparou que moro numa Pompeia de prédios em construção, de paredes, de vi-gas, de escombros que crescem, de guindastes abandonados, de montes de areia, e de maqui-nas de cimento redondas como estômagos fer-rugentos? Daqui a algumas horas, operários de

Malanje

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capacete principiarão a martelar estas ruínas empoleirados em esboços de caixilhos, os ma-çaricos furarão o betão numa raiva teimosa, os canalizadores abrirão arbustos de artérias na carne inteiriçada das casas. Vivo num mundo morto, sem cheiros, de poeira e de pedra, onde o enfermeiro da policténica do primeiro an-dar passeia, de bata, a barba surpreendida de fauno, buscando ao seu redor, em vão, relvas fofas de margem. Vivo num mundo de poeira, de pedra e de lixo, principalmente de lixo, lixo das obras, lixo das barracas clandestinas, lixo de papeis que virevolteiam e se perseguem, ao longo dos tapumes, sarjetas fora, sopra-dos por um hálito que não ha, lixo de ciganos vestidos de preto, instalados nos desníveis da terra, numa espera imemorial de apóstolos sa-bidos. Queria falar-lhe de Malanje, agora que me portei mais ou menos, não e verdade, você gemeu mesmo, uma ou duas vezes, latidos de cadelinha contente, agitou- se numa espécie de espasmo de coreia ou de desmaio, 0 seu rosto, de olhos fechados e de boca aberta, as-semelhou-se por instantes ao das velhas que comungavam nas igrejas. da minha infância, velhas de dentadura salta, arfando, de língua de fora, pelo branco da hóstia. Eu, menino do coro, acompanhava o padre e contemplava, fascinado, o inacreditável comprimento das línguas das velhas que se empurravam e acoto-velavam, armadas de guarda-chuvas de cabo de osso e de grandes terços semelhantes a colares de actrizes, defronte do prior, de taça na mão, resmungando arrotos místicos pela ponta dos beiços. Queria falar-lhe de Malanje; da cida-de cercada de casas de putas e de eucaliptos, pátria da camanga repleta de aventureiros pa-lavrosos ou esquivos, tipos de pupilas cautelo-sas, obliquas, instalados de leve nas esplana-das dos cafés. Queria falar-lhe da miraculosa claridade de Malanje, da luz que se diria nascer do chão num jubilo impetuoso e violento, do

bunker da Pide e do quartel pretensioso em baixo, quartel de província, percebe, a chei-rar a desinteresse e a sargento. De Malanje a Luanda, quatrocentos quilómetros de estrada atravessavam os morros fantásticos de Sala-zar, aldeias a beira do alcatrão como verrugas no contorno de um beijo, o fluir majestoso do Dando em que se adivinha a presença do mar, na demora das suas ancas lentas •de mulher de Pavia; e nos pássaros brancos e pernaltas da baia de Luanda, a roçarem a agua com os cor-pos de esferovite fusiforme. Mas o importante, em Malanje, eram os minutos que precedem a aurora, os minutos irreais, pungentes, absur-dos que precedem a aurora, incolores e distor-cidos como os rostos da insónia ou do medo, a perspectiva deserta das ruas, o silencio

transido das arvores e os seus braços que parecem retrair-se, hesitantes, magoados por um paníco sem razão.

Antes da madrugada, sabe como e, todas as cidades se inquietam, se enrugam de descon-forto como as pálpebras de um homem que não dormiu, espiam a claridade, o nascer indeciso da luz, se arrepiam como pombos doentes num telhado, a estremecerem as penas nocturnas no receio frágil e oco dos ossos. 0 primeiro sol, pálido, cor de laranja, como que pintado a lápis no céu de prata desbotada, encontra, ao surgir devagar da confusão geométrica das casas, praças pregueadas, avenidas encolhidas, travessas sem espaço, sombras desprovidas de mistério refugiadas no interior das salas, en-tre o brilho dos copos e os sorrisos dos mortos nas molduras, de bigodes encurvados como as sobrancelhas sarcásticas dos professores de matemática, depois do enunciado de um pro-blema de torneiras difícil. Todas as cidades se inquietam mas Malanje, percebe, dobrava-se a estremecer sobre si própria como eu me de-bruço, na cama, para si, temeroso do dia que me aguarda, com o seu peso insuportável de

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pedra no rileu peito, e a cinza que se me acumula nas mâos e deixo nos restaurantes ao lava-las, antes do eterno bife sem gosto do almoço.

Queria pedir-lhe que não saísse daqui, me acompanhasse, ficasse comigo deitada aguar-dando não só a manhã mas a próxima noite, e a outra noite, e a noite seguinte, porque o isola-mento e a solidão se me enrolam nas tripas, no estômago, nos braços, na garganta, me impedem de me mover e de falar, me tornam num vegetal agoniado incapaz de um grito ou de um gesto, a espera do sono que não chega. Fique comigo ate que eu, finalmente, adormeça, me afaste de si numa dessas inexplicáveis reptações frouxas com que os afogados oscilam nas vazantes, me estenda de bruços, de boca na almofada, baban-do na barriga da fronha palavras indistintas, me afunde no poço pantanoso de uma espécie de morte, a ressonar o meu grosso coma de pasti-lhas e de álcool. Pique comigo agora que a manha de Malanje incha dentro de mim, vibra dentro de mim, invertida, agitações deformadas de re-flexo, e estou sozinho no asfalto da cidade, perto dos cafés e do jardim, possuído de um insólito desejo sem objecto, indefinido e veemente, a pensar em Lisboa, na Gija ou no mar, a pensar nas casas de putas sob os eucaliptos e nas suas camas repletas de bonecas e naperons. 0 medo de voltar ao meu pais comprime-me o esófa-go, porque, entende, deixei de ter lugar fosse .onde fosse, estive longe demais, tempo demais para tornar a pertencer aqui, a estes outonos de chuvas e de missas, estes demorados invernos despolidos como lâmpadas fundidas, estes ros-tos que reconheço mal sob as rugas desenhadas, que um caracterizador irónico inventou. Flutuo entre dois continentes que me repelem, nude raízes, em busca de um espaço branco onde an-corar, e que pode ser, por exemplo, a cordilheira estendida do seu corpo, um reconcavo, uma cova qualquer do seu corpo, para deitar, sabe como e, a minha esperança envergonhada.

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Fui para os fuzileiros porque onde eu vivia nao tinha saídas nenhumas. Lembrei-me de ir para a Marinha para ganhar alguns tostões. Fui formado lá e, com um certo espírito de aven-tura e parvoíce, assim que o curso de fuzileiros especiais acabou ofereci-me como voluntario para a Guiné. Como lá se ganhava mais, e eu tinha sido promovido, quando terminei a co-missão fui novamente para lá. Tinha vontade de fazer asneiras e fiquei na Marinha porque não tinha qualquer outra formação para trabalhar. Ate 1969, os fuzileiros estavam aquartelados em Bissau e faziam operações periódicas onde era necessário e quando os superiores o deter-minavam. Normalmente, as operações eram de oito em oito dias, ou de quinze em quinze dias. Íamos para o interior e andávamos por lá não sei quanto tempo. Em Angola era diferente, porque normalmente as operações eram de urn dia. Íamos ao objectivo, fazíamos o que tínha-mos a fazer e regressávamos. Quando o general Spínola chegou dizia-se, na conversa popular, sobre ele: «Agora, passamos à psico.» Criou-se a ideia de que Spínola queria transformar os métodos de actuação na Guiné. Mas a questão do aquartelamento dos fuzileiros nao depen-deu só de Spínola. Quando umas lanchas foram atacadas no rio Cacheu, houve necessidade de se colocar uma unidade de serviços especiais na zona. Então, os fuzileiros passaram a estar aquartelados também em Buba, em Ganturé, em Teixeira Pinto, fazendo operações por toda a Guiné. Sempre que havia qualquer coisa os helicópteros transportavam-nos para lá.

Aquilo limitava-se, às vezes, a espalhar lá uns panfletos. Uma vez mandaram imprimir uns impressos com a imitação de uma nota de mil escudos, que era o que o governo daria aos tipos por cada arma que encontrassem. Mas em termos de operações, quando lá cheguei, cada vez que seguíamos para uma operação no interior éramos flagelados uma, duas, três ou quatro vezes. Na segunda comissão já não foi assim. Penso que terá sido pela experiência que o PAIGC adquiriu, passando a aparecer-nos com maior segurança, sem se expor tanto. A partir de 1970, eles já não surgiam com tanta frequência. Fui ferido em Bissau, no dia 13 de Junho de 1971, quando caíram obuses junto à SACOR, por baixo das instalações dos fuzilei-ros. 0 meu destacamento estava aquartelado, na altura, em Porto Gole, numa situação tran-sitória, e foi chamado para perseguir o grupo que tinha flagelado Bissau. Fomos a Bissau, de onde partimos de helicóptero para a per-seguição. Estivemos uma noite inteira a andar e, cerca das treze horas, estávamos a descansar um pouco quando eles nos apareceram. Isto só confirmava que eles tinham adquirido mais experiência, porque só apareceram quando estávamos a descansar. Fui ferido com esti-lhaços, na barriga e na perna, eu e mais dois. O helicóptero foi-nos buscar e fomos para o hospital. Fui tratado em Bissau e depois fui fazer os últimos tratamentos às nossas insta-lações no aquartelamento de fuzileiros, por-que éramos melhor tratados aí. Em relação às reacções, quer minhas, quer de outras pessoas,

Guiné-Bissau

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não estou contra ninguém. Mas lembro-me de que, no dia em que cheguei com os outros dois fuzileiros ao hospital militar em Bissau, cerca das catorze horas, já Iá tinham dado entrada vinte e tal militares feridos. O general Spínola foi visitar o grupo todo e eu recordo-me de o ouvir dizer: «lsto, hoje, está a render.» Ainda hoje não sei o que é que ele queria dizer com aquilo, mas não gostei de ouvir. Fui tratado, es-tive lá dois ou três meses, e voltei para Ganturé, onde estava aquartelada a minha unidade. Não vim para Portugal antes do fim da comissão. Em Angola não tive grandes problemas porque estive sempre em zonas muito pacatas, no Sul.

Não sou uma pessoa muito sensível, mas ainda vivo com a guerra. Anteontem passei a noite toda na Guiné. Em méida, de três em três semanas, vivo na Guiné, com coisas que se pas-saram, e com outras que eu invento. Em relação aos pesadelos, já sonhei mais que uma vez com uma cena que se passou lá. Eu andava no rio Ca-cheu, dentro de um bote, com quatro homens, para impedir que se fizesse o transporte de ma-terial de guerra para a outra margem. Cada gru-po passava lá oito horas, de noite. Recordo-me que estava na minha hora de descanso, a tentar dormir quando, em sonhos, imagino que vejo na margem de rio um grupo de guerreilheiros, e que quero informar o meu grupo mas não consigo. Como não me consigo mexer nem fa-zer nada, fiquei numa aflição, a transpirar, até que me lembrei que estava a sonhar. Mas não conseguia acordar nem falar com nenhum. Isto aconteceu-me mais duas vezes, já cá em Por-

tugal. É uma coisa infernal. As coisas que me marcaram foram muitas, muitas, muitas. Hou-ve uma extremamemtne chocante, durante uma operação que fizemos. Ao amanhacer, chegámos ao objectivo: um poço onde os grupos de guerri-lheiros e as famílias se abasteciam de água. Em-bocámos junto ao poço, e deparámos com duas ou três mulheres e quatro ou cinco homens, alguns armados. Desencadeou-se o fogo, não morrendo nenhum homem, mas ficando uma mulher ferida, que trazia uma criança às cos-tas. A mulher ficou deitada meio de lado, com a criança a gritar. e Houve um colega meu, fuzi-leiro, que pegou num sabre - a mulher estava de pernas abertas - e espetou-lhe o sabre na vagi-na. Na altura, fiquei revoltado: “Porquê? O que é a guerra? A guerra é isto?”. Viemos embora e a criança ficou a chorar. Esta cena chocou-me muito, porque isto não era guerra. Outra his-tória foi quando capturámos um indivíduo. Ele não nos podia acompanhar, mas também não o podíamos largar para ele não denunciar a nossa posição. Então, o comandante deu ordem para o matar. Encheram-lhe a borra de trapos para não gritar e espetaram-lhe um sabre no pescoço. à primeira não entrou, mas entrou à segunda.

Fuzileiros Especiais

LUÍS MACHADO

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Angola

MÁRIO SANTOS SOBRAL

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Fui classificado para os comandos, tirei o curso de comandos em Angola e mantive-me operacional até ao ano em que fui ferido. Fazia operações constantemente. No dia 13 de Janei-ro, partimos para o Leste de Angola, para Teixei-ra de Sousa, depois para Gago Coutinho, Lum-bala, entrámos na Zâmbia. Estive uns três meses no Leste de Angola. Descansávamos dois ou três dias, no máximo cinco, e avançávamos outra vez para o mato. Tínhamos tambem operações relâmpago, quando íamos num dia e vínhamos no outro. Demos muitos tiros, fizemos muitas baixas ao inimigo, caçámos muitas armas, mas nunca sofremos qualquer baixa enquanto esti-vemos no Leste de Angola. Só no norte de An-gola é que sofremos uma baixa. Eu fui ferido na Maria Fernanda, na zona dos Dembos, no Norte. Aí sim, fomos muitas vezes atacados pelo MPLA. Uma noite fiquiei a emboscar um trilho por onde eles passavam e por onde acabaram por não passar porque nos pressentiram. Da vez que fui ferido, a minha equipa ia à frente, o mato era muito intenso, e demos com um acampamento. Nessa altura, as balas batiam mesmo junto a nós e fizemos a reacção. Eu fui atingido na coluna com um estilhaço, ou qualquer coisa, mas não fiquei logo paraplégico. Ainda fui para Luan-da no carro. Aguentei com muitas dores até ao outro dia, e ainda fui para o hospital pelos meus próprios pés. Só quando me fizeram a punção lombar no hospital é que eu deixei de sentir as pernas. Se fosse socorrido mais a tempo, talvez não tivesse ficado paraplégico. Depois, estive 23 dias nos cuidados intensivos de Luanda e fui evacuado para Portugal. Fiz tratamentos no hos-pital Militar, em Alcoitão. O que senti primei-ro, quando fui ferido, foi raiva aos pretos. Mas a maior raiva que eu tive foi quando chegar ao hospital, a berrar com dores, e o médico me dis-se: “Ou te calas (bsfkjfks) de dele para me fazer a punção lombar.

Curso de Comandos

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O meu amigo Sobral foi escolhido para os comandos, mas eu não. Eu fui a Mafra e apare-ceram uns fulanos dos comandos para escolhe-rem indivíduos. Eu não queria ir, e por isso fiz todas as minhas provas ao contrário. Qual não foi o meu espanto quando fui escolhido. Em Angola, fui a várias operações ao Leste, onde se conseguia sobreviver, com mais ou menos tiros, sem grandes problemas. Depois regres-sávamos a Luanda, onde se dava a finaçização do curso de comando e obínhamos o ambicio-nado crachat. Uma das operações que fizemos, próximo de Nambuangongo, foi a um aquarte-lamento onde se dizia que havia cerca de trinta mil turras, e onde o Exército já tinha feito uma grande operação. Aquilo sabia-se tudo: se nós estivéssemos a engraxar os sapatos em Luanda, o engraxador sabia que se ia fazer uma opera-ção num determinado sítio. O serviço de in-formações funcionava lindamente. Essa gran-de operação, em que esteve envolvida grande quantidade de tropas, fez com que os fulanos se deslocassem de um dado local para outro. Foi a Operação Nova Luz. A Nova Luz deslocou os problemas de um sítio para o outro. Foi nesse local, Canacassal, muito perto da Beira Baixa, que era uma fazenda de caf+e, que no dia 14 de Setembro de 1969 fomos fazer uma operação. Eles deixaram-nos entrar e destruímos uma lavra. No fim da operação, quando regressáva-mos, fomos emboscados. Foi nessa emboscada que fui ferido: levei um tiro na cabeça e outro na perna. Morreu um fulano. Aquela história demorou uns dez minutos, mas não me lembro porque fiquei inconsciente. Fui evacuado para Luanda, num Unimog 404, quando devia ter sido por via aérea. Foi comunicado o meu es-tado para o hospital, para estar uma ambulân-cia pronta para me levar, mas posteriormente vim a saber que quando cheguei ao Centro de Instrução de Comandos (CIC), ainda estive dez minutos à espera de transporte para o hospital.

Fui operado, tiraram-me a bala da cabeça. Tive a sorte de, na altura, estar lá o melhor neu-rocirurgião. Mas não me mexeram na perna. Estive três meses em coma, de tal maneira que mandaram um telegrama para os meus pais a dizerem que eu tinha morrido. Um primo meu, que era lá professor na Faculdade de Engenha-ria, é que se manteve em contacto permanente com os meus pais, mantendo-se também em

contacto com um colega que era ortopedista no hospital. Um dia, verificaram que eu tinha febre, motivada pelo facto de eu ser alérgico ao adesivo que me tinham posto na cabeça. Quan-do me punham o adesivo eu tirava, e de tanto mexer lá com as mãos, aquilo infectou. Mas as opiniões dividiam-se: uns médicos diziam que a febre era por causa da operação à cabe-ça, enquanto que outros pensaram que era por não ter sido operado à perna e, por isso, pensa-ram que se me cortassem a perna, eu deixaria de ter febre. Como o colega do meu primo era da opinião que a febre era resultante da cabeça, avisou o meu primo de que me queriam cortar a perna e disse-lhe: “Chegas lá e dizes que te responsabilizas por não lhe cortatem a perna.” O meu primo foi lá e, por isso, ainda cá tenho a perna: está torta mas é minha. Quando saí de coma, fiquei doze meses sem falar. Eu tinha que ser evacuado para a Metrópole, mas como era um doente difícil, porque tinha ficado sem controlo e fazia tudo na cama, a enfermeira pá-ra-quedista que foi lá negou-se a trazer-me. Fui depois evacuado através da TAP por ou-tro fulano, em Novembro. Fui para o Hospital Militar, onde me fizeram 23 ou 24 operações. Como na altura andava a tirar Direito, e como fiquei todo torto, optei pela continuação do serviço activo dispensado por invalidez, e neste momento sou um tenente-coronel na reforma. O que mais me custou foi o período hospitalar. Apesar da minha deficiência, depositaram-me num quarto. Não se imagina o que é fazer a vida sem falar. Só passados oito meses é que me meteram dentro de uma banheira – estive oito meses sem tomar banho! Esta experiência foi revoltante. Não tive o auxílio de ninguém.

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ANÓNIMO, CURSO DE COMANDOS, ANGOLA

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Estive como alferes miliciano em Tete, numa fase depois da Operação Nó Górdio, em que houve uma deslocação da guerrilha para sul. Em Tete, nessa altura, o contacto directo com os guerrilheiros da Frelimo não era mui-to usual. Era a fase das minas: as picadas e os trilhos estavam pulverizados de minas. A pri-meira acção da guerrilha foi a captação das po-pulações e a segunda foi a colocação de minas. A terceira acção era já de confronto directo, conjuntamente com minas. Eu estive na se-gunda fase de intervenção da guerrilha no ter-reno. Por exemplo, no mês de Agosto de 1971, na minha zona, tivemos trinta minas anticarro, fora as antipessoal. Fui ferido com uma mina antipessoal. Estava a fazer o estudo da mina – ainda não a estava a desmontar – e ela reben-tou, ainda hoje não sei porquê. Fiquei cego. Fui evacuado para o hospital de Tete, e dali para o hospital de Lourenço Marques, onde fui logo operado à vista, mas sem hipóteses de recu-peração. De lá fui para Lisboa. Eu tive uma ex-periência que fazia parte da estratégia militar em qualquer tipo de guerra de guerrilha, que era o aldeamento das populações. Para além de irmos a zonas onde estavam os guerrilheiros, nós tínhamos missões de aldear populações, isto é, de recolher as populações que estavam dispersas no mato e trazê-las para aldeamentos controlados pelas nossas tropas. Numa missão dessas, cheguei à dita aldeia bastante cedo, por volta das sete da manhã, e tentei falar com o chefe, que tinha fugido quando nos viu aproxi-mas. Perguntei onde é que estava o chefe e fui prendê-lo com uma secção reforçada. O resto do pelotão ficou na aldeia. Queria que o chefe desse ordens para a população abandonar o local. Falei com ele em português, sem intér-prete, porque ele percebia. Aliás, ele utilizava roupa europeia, tinha um casaco ocidental, mas não atendeu à ordem militar que eu dera e não disse nada à população.

ANÓNIMO, ALFERES MILICIANO DA INFANTARIA, MOÇAMBIQUE

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Ficámos à que ele resolvesse a situação. Mas eu tinha que me ir embora porque não podía-mos andar no mato a partir das horas. A partir dessa hora não havia evacuações. Quando che-gou ao limite da hora que eu podia esperar para irmos para o nosso acampamento, como não tinha havido qualquer movimentação da popu-lação para abandonar aquele local, fiz duas li-nhas de homens armados em situação de fogo, e uma linha atrás, com homens com archotes para queimarem as palhotas. Era a nossa mis-são: levar as populações e queimar as palhotas, para que não pudessem servir de abrido aos guerrilheiros. Ao ver isso, a população enten-deu que estávamos ali para cumprir a missão, e começou a sair da aldeia, as maes com os filhos, com coisas à cabeça, com tudo o que puderam apanhar. Passámos toda a linha da aldeia com a população à frente, e deitando fogo às palhotas. Não dei um tiro nesse dia mas podia ter dado muitos tiros se, na altura em que desencadeei a acção de desalojamento, eles tivessem reagido. Mas quando passámos a linha das palhotas e eu olhei para trás e vi a aldeia a arder, olhei para a frente e vi as mulheres, com os filhos ao colo e pela mão, a guerra nunca mais foi igual para mim. Só pensava “Que guerra é esta?” Tive uma tomada de consciência da monstruosidade que era a guerra. Eu sempre disse que devo estar no meu país nas horas boas e nas horas más. Aque-la, era uma hora má. Quando fui para a guerra, já tinha uma consciência política das coisas, de que a guerra colonial teria que ter uma solução política e não militar. Mas também nnca pen-sei em fugir. A minha geração, a geração de 60, um milhão e tal de homens, foi sacrificada à in-capacidade política dessa altura.

Após ter sido ferido, andei um ano e meio aparvalhado, tipo em estado de choque, so-nhava todos os dias com a guerra, acordava aos gritos e aos saltos, com pesadelos. Depois, fui estabilizando. E fiz a catarse de tudo isto. É ób-vio que as nossas tropas eram mal preparadas, que o material era fraco, e que tínhamos umas tropas especiais com uma instrução melhor. Mas a tropa de quadrícula, normalmente, es-tava mal preparada porque não tinha tido cá qualquer instrução que se parecesse com um acto de guerra real. E chegava-se a Angola, a Moçambique ou à Guiné, as pessoas saíam do barco, metiam-lhes uma espingarda na mão

e mandavam-nos para o mato. A pessoa só ia aprendendo a defender a sua pele ao longo dos meses em que lá estava. Na fase em que estive lá, o que eu notava, ao fazer muitas colunas e vi-sitar, companhias comandadas por milicianos, era que as pessoas não estavam lá movidas por ideais de defesa da Pátria, mas para defende-rem o seu corpo. As pessoas não tinham nada a ver com aquilo, estavam ali a ver se aquilo passava o mais rapidamente possível. Eu tive a ideia de que éramos carne para canhão. Quan-do vim para cá evacuado, encontrei-me no Hospital Militar, na medicina dos oficiais, com mais três pessoas cegas, uma com amputações dos membros superiores e outra dos membros inferiores, e não tive ninguém, nenhum técni-co, médico ou assistente social, que viesse ter comigo e me dissesse que a vida não tinha aca-bado. E a cegueira é uma deficiência pesadíssi-ma. E à noite, eu e os outros dois oficiais juntá-vamo-nos, e ao que não tinha mão, eu dava-lhe de fumar e de beber a cerveja à boca. Este era o apoio que nós tínhamos. Aqui se vê como éra-mos carne para canhão. Depois de termos de-fendido a Pátria, cada um com aquilo que pôde, no regresso devíamos ter tido um apoio que eu não tive. Estive num centro de reabilitação para cegos, para aprender a andar na rua, etc, mas não foi no hospital militar que me falaram do centro de reabilitação. Não havia uma estrutura para nos encaminhar para a reabilitação. Dis-to, eu falo com revolta. Na altura, eu nem sabia comer! E vinha uma enfermeira que punha a comida ao fundo da cama, como se eu fosse um cão! Passado um tempo, fui falar com o médico e disse-lhe: “Eu já estou cego, mas não quero ficar maluco. Eu vou-me embora. Mande-me para a prisão mas eu vou-me embora.” Estive um ano e tal sem aparecer no hospital. Quando lá voltei, a enfermeira veio ter comigo: “Ó se-nhor alferes, o senhor que ir fazer de oficial de dia para o D!” Eu, cego, ia fazer de oficial de dia para o D! Este era o controlo que eles tinham dos doentes. Compreendo que, num país como o nosso e com frentes de guerra tão grandes, eles não tivessem meios para a retaguarda. Mas então os políticos deveriam ter resolvido a situação rapidamente, sem massacrarem uma juventude como a nossa.

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Eu tinha entrado para a faculdade mas os meus pais não tinham dinheiro para me man-terem a estudar e tive que começar a trabalhar. Entrei para a tropa em Janeiro de 1972. Não ti-nha uma consciência nacional nem um senti-mento nacional, cumpri o serviço militar como todos tínhamos que cumprir. Como eu era al-feres miliciano, três dias depois de lá estar já era comandante de companhia. Fui mobilizado em rendição individual em 19 de Novembro de 1972 e parti em 9 de Janeiro de 1973 para Mo-çambique. Só conheci o meu pelotão no avião.ficámos oito dias de férias na Beira, depois fo-mos de avião para Porto Amélia, onde passámos mais oito dias de férias e seguimos na fragata Gago Coutinho para Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado. Quando cheguei, o comandante de companhia, que ainda lá estava, disse-me que, como eu tinha a melhor nota, iria substi-tuir a companhia anterior e levar três pelotões para fazer a segurança à ponte sobre o rio Nan-go, num acampamento no meio do amto. Lá fui. Passados três dias, recebi uma mensagem a dizer que eu era comandante de companhia, olhei para os outros oficiais, que eram todos alferes como eu, e meus amigos, e perguntei o que é que devia fazer. Eles disseram “fiquei três meses a comandar a companhia que tinha sede em Mocímboa. A minha companhia era adida ao batalhão e tinha trabalho operacional: fazia colunas, operações, protecção à construção da-quela ponte e de outra. Nos intervalos, os meus grupos de combate andavam em operações.

O pessoal miliciano, apesar dos poucos co-nhecimentos que possuía, tinha capacidade de

entrega, a generosidade própria da juventude, um desejo de conseguir superar a comissão de dois anos e de salvar o pessoal que tinha consi-go, de tal maneira qe tolevara todas as dificul-dades. O que nós não tolerávamos era ver um general ir ao campo de batalha e dizer que não tínhamos o bigode cortado ou que nos faltava um botão na farda. O que eu quero dizer é que a outra tropa que não era especial – e viam-se alferes a comandar companhias – não necessi-tava de cursos nenhuns para comandar compa-nhias. A parte teórica não era assim tão funda-mental. Na parte operacional, em alguns zonas tivemos uma guerra mais forte em termos de contacto directo, mas noutras zonas o proble-ma eram as minas. Nós estávamos mal prepa-rados para o combate em si. Aprendíamos lá. Eu fui para lá em rendição individual, cheguei e foram-me buscar ao aeroporto de Tete. Nin-guém me fez um enquadramento, a dizer qual era minha zona. Levaram-me para a compa-nhia, cheguei lá já ao anoitecer, e no outro dia de manhã o alferes que eu ia substituir foi-se embora. Só me apresentaram os homens do gajo. Eu só pensei: “E agora?” Fui com ele a um sítio, de jipe, estive a experimentar o material, e no outro dia fui para o mato fazer operações, com homens que eu desconhecia. Isto aconte-ceu comigo como aconteceu com muita gente.

O meu acidente deu-se em 13 de Setembro de 1973, às treze horas. Havia m pontão sobre o rio Nango, na picada que ligava Mocímboa da Praia a Nambude, a pior picada que havia na zona. Fez-se uma coluna de reabastecimento a Nambude, em 7 de Fevereiro, e nesse pon-

ANTÓNIO DOS SANTOS CARREIRA, ALFERES MILICIANO, MOÇAMBIQUE

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tão, que estava minado, morreram três e foram evacuados dezasseis. Depois disso, fomos lá fa-zer o pontão para se poder passar, para ver se se evitavam os acidentes e as minas. Fiz outra coluna – nesse ano fizeram-se três colunas a Nambude – mas não utilizei esse pontão por-que já estava partido. Rebentou-se uma viatra lá. Passados uns tempos, foi preciso fazer uma nova coluna e, por razões das circunstâncias, calhou-me a mim fazê-la novamente. Devo dizer que a minha companhia tinha um cuida-do extremo face às minas, de tal maneira que, passados dois meses, tínhamos um louvor por protecção e levantamento de minas. Quando cheegámos a esse pontão sobre o rio Nango, zona de minas indetectável por causa do ferro, do cimento e da dureza do terreno, tivemos um cidado extremo: pararam-se as viaturas antes do pontão e detectou-se tudo. Não havia mi-nas, mas também não se podia passar porque o pontão tinha sido destruído. Tentámos pas-sar o rio a vau mas uma viatura enterrou-se e foram precisas duas para a puxar para trás. Então, fomos cortar paus para fazer o pontão. Eu estava em cima do pontão, quando veio um soldado, o Fonseca, que era o homem mais pe-sado da companhia, nas viaturas até ao pontão. Quando ele chegou a meio do caminho, pisou uma antipessoal e ficou sem uma perna, cego de uma vista, ferido por todo o lado. Aí eu, que estava lá à frente no pelotão, pensei: “Bom, te-nho que ir evacuar o homem. Mas por onde é que eu vou?” Tínhamos detectado tudo muito bem, mas tinha acabado de rebentar mais uma mina. Pensei ir por fora, mas por fora havia um campo de minas, que nós tínhamos montado

para fazer protecção, qe tinham sido todas le-vantadas e mudadas de sítio. Fiquei ali uns se-gundos a analisar por onde é que ia, e decidi ir por fora. Cheguei lá, parei ao pé dele, mandei vir o enfermeiro, e disse para ficarem todos quietinhos nas viaturas sem fazerem disparate nenhum. Mas quando rodei o corpo, apanhei uma antipessoal com a ponta do pé direiro – eu estava mesmo parado em cima dela. Apanhei a mina na perna esquerda e no braço, fican-do com o pé direito desfeito, ou melhor, o pé direito desapareceu literalmente. Nem a bota ficou, e eram umas botas novas.

Voei uns três ou quatro metros. Quando abri os olhos, a única coisa que eu queria ter ali à mão era a espingarda e um preto à frente. Mas também tive logo a percepção de uma coisa – senti m certo baque no coração mas pensei: “Eu não morro disto.” Não entrei em pânico. En-tretanto, ninguém me queria ir buscar porque estavam todos com medo. Mas houve um sol-dado que resolveu encostar a G-3 às costas do enfermeiro e lhe disse: “Anda comigo buscar o nosso alferes, ou levas já um tiro.” E não tenho dúvidas que ele daria mesmo o tiro. Quando eles me foram buscar, é que eu tive medo por-que começaram a arrastar-me pelo chão. Refi-lei a eles lá me levaram para o pé das viaturas. Chamei o enfermeiro e o transmissor para jun-to de mim. Chamei também os furriéis, que só apareceram passado um grande bocado, a cho-rar, e mandei-os desaparecer da minha frente. Eu devia estar muito danado porque eles fa-ziam tudo o que eu dizia. Disse ao enfermeiro para tratar dos ferimentos e dar ma vitamina K a cada um, e disse para fazerem segurança ao

helicóptero. Mas os furriéis não faziam nada. Entretanto, não se conseguia comunicação di-recta com o helicóptero, por isso fiz um relai do meu posto para Mocímboa, de lá para Mue-da e de Mueda para o Helicóptero, ficando em permanente contacto até o helicóptero chegar ao pé de nós. Passado um bocadinho, já esta-va com imensas dores e mandei o enfermeiro dar outra vitamina K e morfina a cada um. Ele dizia que não, porque tinha que justificar as in-jecções. Fui evacuado de helicóptero e, quan-do nos íamos embora, disse para o piloto: “O senhor, se faz favor, põe-se às voltas, e não sai daqui enquanto o outro helicóptero não subir.” O piloto ficou sem fala, olhou para mim, meteu o helicóptero às voltas e, quando o outro estava a meia altura, perguntou-me se já podia seguir. Parti e considerei-me desligado do pelotão. A meio da viagem, disse à enfermeira que estava com frio e ela pôs-me o casaco por cima porque eu ia só em cuecas. Quando cheguei a Mueda, entrei para a enfermaria e estava à porta da sala de operações quando veio uma enfermei-ra perguntar-me o nome completo e o número mecanográfico. Quando ela disse isto, insultei-a e ralhei imenso com ela. Depois, fui para a sala de operações e só acordei no dia seguinte. Como eu tenho o corpo mais pequeno possível para uma prótese do joelho, se a operação não tivesse sido excepcionalmente bem feita, teria ficado a utilizar uma prótese por cima do joe-lho, o que é muito mais difícil.

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