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1 ESTUDOS EM JORNALISMO Coordenação: Profa. Dra. Beatriz Dornelles ([email protected]) GRUPO 1 - Coordenadora: Beatriz Dornelles JORNAL COMUNITÁRIO E PERTENCIMENTO EM POPULAÇÕES RURAIS DO ACRE Autora: Priscila Viudes, graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2000), mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (2007), analista da Embrapa Acre, [email protected] Resumo: Este trabalho discorre sobre a elaboração de veículos impressos de comunicação comunitária em duas localidades do Acre. São apresentados os conceitos abordados com os participantes do curso Jovens Empreendedores, entre os quais se destaca a noção de pertencimento. Num contexto em que prevalece a comunicação oral, a edição de veículos impressos de comunicação comunitária surge como um poderoso instrumento de valorização da cultura local, como se pôde observar nos depoimentos coletados. Palavras-chave: pertencimento, jornal, comunicação comunitária. INTRODUÇÃO Este trabalho relata o processo de elaboração de veículos de comunicação comunitária em localidades do interior do Acre: Núcleo de Base (Associação) Wilson Pinheiro II, no Seringal Porvir, na Reserva Extrativista Chico Mendes, em Brasileia (AC), e Comunidade Alto Pentecostes, em Mâncio Lima (AC). São apresentados os conceitos abordados com os participantes do curso Jovens Empreendedores, na faixa etária de 30 anos, e como isso influenciou nos discursos dos participantes e na construção de três edições de jornais comunitários. As capacitações fizeram parte do projeto coordenado pela Embrapa Acre, que teve o objetivo de estimular a permanência do jovem no campo. Os temas abordados tinham foco na produção rural e foram escolhidos pelas comunidades. A etapa sobre

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ESTUDOS EM JORNALISMO Coordenação: Profa. Dra. Beatriz Dornelles ([email protected])

GRUPO 1 - Coordenadora: Beatriz Dornelles

JORNAL COMUNITÁRIO E PERTENCIMENTO EM

POPULAÇÕES RURAIS DO ACRE

Autora: Priscila Viudes, graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal

de Mato Grosso do Sul (2000), mestre em História pela Universidade Federal da Grande

Dourados (2007), analista da Embrapa Acre, [email protected]

Resumo:

Este trabalho discorre sobre a elaboração de veículos impressos de comunicação

comunitária em duas localidades do Acre. São apresentados os conceitos abordados com

os participantes do curso Jovens Empreendedores, entre os quais se destaca a noção de

pertencimento. Num contexto em que prevalece a comunicação oral, a edição de

veículos impressos de comunicação comunitária surge como um poderoso instrumento

de valorização da cultura local, como se pôde observar nos depoimentos coletados.

Palavras-chave: pertencimento, jornal, comunicação comunitária.

INTRODUÇÃO

Este trabalho relata o processo de elaboração de veículos de comunicação

comunitária em localidades do interior do Acre: Núcleo de Base (Associação) Wilson

Pinheiro II, no Seringal Porvir, na Reserva Extrativista Chico Mendes, em Brasileia

(AC), e Comunidade Alto Pentecostes, em Mâncio Lima (AC). São apresentados os

conceitos abordados com os participantes do curso Jovens Empreendedores, na faixa

etária de 30 anos, e como isso influenciou nos discursos dos participantes e na

construção de três edições de jornais comunitários.

As capacitações fizeram parte do projeto coordenado pela Embrapa Acre, que

teve o objetivo de estimular a permanência do jovem no campo. Os temas abordados

tinham foco na produção rural e foram escolhidos pelas comunidades. A etapa sobre

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comunicação comunitária visou estimular, dentre os participantes, a noção de

pertencimento. Os agricultores deixaram transparecer essa noção em suas manifestações

durante o curso, como será demonstrado neste artigo.

CONTEXTO RURAL NO ACRE

A história do Acre está diretamente relacionada ao movimento seringueiro. Dois

momentos da forma de ocupação do campo são fundamentais para compreensão do

contexto atual, quando foram ministrados os cursos. O governo federal incentivou, no

final do século XXI, a migração de nordestinos para extração de borracha no Acre, e

depois, em 1970, sob o lema de “Integrar para não entregar”, a adoção de atividades

agropecuárias, principalmente a pecuária.

A extração da borracha passou por dois ciclos distintos, segundo Ranzi et al

(2008). O primeiro teve seu auge por volta de 1900, para suprir a demanda de

pneumáticos do mercado internacional. Motivados pela seca e pelo declínio da

produção de algodão, os nordestinos migraram para a região Norte para extrair o látex.

Nessa fase, denominada de “período áureo”, o Brasil detinha a liderança mundial da

produção de borracha, extraída, principalmente, no Território do Acre e comercializada

pelos portos de Manaus e Belém.

Na primeira década do século XX, a Malásia começou a produzir látex com

preços mais competitivos e a produção amazônica entrou em declínio, levando à

diversificação produtiva dos seringueiros. Em 1942, durante a guerra mundial, surgiu o

segundo ciclo da borracha Acre, quando o fornecimento e látex da Malásia foi

interrompido pelos japoneses, que ocuparam a região. Nesse contexto, houve um novo

fluxo migratório do Nordeste brasileiro, os chamados “soldados da borracha”.

Novamente os preços decaem e, em 1970, o governo federal adota a política de

ocupação da Amazônia para agricultura:

A “saga” dos seringueiros está irremediavelmente ligada a estes dois

momentos. No período de incentivo para exploração gumífera, milhares de

nordestinos migraram para a Amazônia por meio de programas estatais,

como mão de obra nos seringais nativos. No segundo momento, cujo

interesse principal era o desenvolvimento da agropecuária, esses mesmos

nordestinos ou seus descendentes, agora convertidos em seringueiros,

estavam sendo expulsos dos seringais em função da incompatibilidade entre a

sua permanência na terra e o destino que se queria dar a ela. Dessa forma, e

tendo como palco a expressiva expulsão do território, que teve lugar com o

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viés de expansão agropecuária assumido pelas políticas públicas da década de

1970, os seringueiros, articulados nos sindicatos dos trabalhadores rurais,

protagonizaram um movimento que questionaria as bases de um modelo de

desenvolvimento que estava sendo implantado e que os desconsiderava. A

capacidade de desenvolver amplas alianças (em nível local, regional,

internacional), com diferentes mediadores (pesquisadores, igreja, sindicato,

universidades, ambientalistas, políticos) que em diferentes momentos e

situações estiveram junto ao/com o Movimento em suas ações ou

reivindicações, tornou-se uma das principais características do Movimento

Seringueiro, e contribuiu para a consolidação de sua conquista mais

consistente, as Reservas Extrativistas (Resex). (CUNHA, p. 38, 2009)

Além das reservas extrativistas, pode-se dizer que esse contexto influenciou

também outra região do Acre, a do Vale do Juruá, onde houve extração de borracha e há

um canal de ligação com Manaus, pelo rio Juruá. Nessa região está a Comunidade Alto

Pentecostes, em Mâncio Lima, extremo oeste da Amazônia e no ponto mais ocidental

do País. 52% da área do município é o Parque Nacional da Serra do Divisor, criado em

16 de junho de 1989 pelo Decreto Federal nº 97.839 (PREFEITURA DE MANCIO

LIMA, 2015).

Assim como o Parque, a Reserva Extrativista Chico Mendes, criada em 1990,

também é uma Unidade de Conservação (UC). Possuí 970.550 hectares e é a segunda

maior reserva extrativista em extensão territorial do Brasil, onde vivem 2000 mil

famílias (WWF-BRASIL, 2014), organizadas em associações e núcleos de base.

Mâncio Lima possui 13 mil habitantes e está na área do Território da Cidadania

do Vale Juruá. A população total do território é de 131.396 habitantes, dos quais

42,42% vivem na área rural. Possui 5.922 agricultores familiares, 6.505 famílias

assentadas e 11 terras indígenas. (SISTEMA DE INFORMAÇÕES TERRITORIAIS,

2015).

CONCEITOS APRESENTADOS

É importante compreender esse contexto histórico e social das duas localidades

para que se possa denominá-las como “comunidades”, um conceito complexo e com

diversos significados.

Os dois grupos sociais em questão, do núcleo de base Wilson Pinheiro II e do

Alto Pentecostes, realizam atividades organizadas de caráter cooperativo e

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compartilham o sentimento de pertencimento àqueles locais, portanto, se configuram

como “comunidades”. Nesse sentido, Miani (2011) pontua:

Quando um determinado grupo social se articula e age politicamente para se

constituir como comunidade, o que se vislumbra é a possibilidade de

“construção” de uma “sociabilidade possível” e compatível com as

características específicas desse grupo, desde que procurando romper com as

condições de alienação impostas pela lógica mercantilista e massificadora

que impera na forma como as relações sociais se configuram numa sociedade

capitalista. (MIANI, 2011, p. 226)

Nessas comunidades, os meios de comunicação de massa mais acessados são o

rádio e a TV. Uma consulta informal com os interlocutores da capacitação apontou que

as emissoras mais ouvidas são FM’s comerciais. O sinal de TV é recebido por meio de

antenas parabólicas, portanto as comunidades não veem os programas das emissoras

locais, que se aproximariam mais das suas realidades. A Reserva Extrativista ainda tem

o agravante de não ter, até o momento, luz elétrica, o que torna o ato de assistir televisão

uma atividade coletiva. O jornal, a telenovela, ambos após o jantar, e o futebol, são

programas compartilhados entre vizinhos e diferentes gerações. Esses veículos de

comunicação foram apontados, durante as capacitações, como meios de comunicação

empresariais.

Frente a essa realidade e como forma de se contrapor a esses veículos, foi

bastante apropriado apresentar as ferramentas de comunicação comunitária para os

participantes da capacitação, cujo conceito baseou-se em Peruzzo (2006):

A comunicação popular e comunitária pode ser entendida de várias maneiras,

mas sempre denota uma comunicação que tem o “povo” (as iniciativas

coletivas ou os movimentos e organizações populares) como protagonista

principal e como destinatário, desde a literatura de cordel até a comunicação

comunitária. (PERUZZO, 2006, p. 9)

Como exemplos de meios de comunicação comunitários foram mostrados

cordéis, duas edições do jornal No Ena, produzido por jovens do projeto de

assentamento Ena, de Feliz Natal (MT), cartazes produzidos pelos indígenas Kaxinawá

do Rio Gregório, de Tarauacá (AC), dentre outros.

Os veículos de comunicação comunitária apresentados conduziram para a

discussão sobre o papel do ator social para produção dos mesmos e sobre o conceito de

cultura, já que todos valorizavam elementos culturais das comunidades das quais se

inseriam. A definição de Laplatine (2007) norteou os debates:

Conjunto de comportamentos, saberes e saber fazer característicos de grupo

humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através

de um processo de aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus

membros. (LAPLANTINE, 2007, P. 120)

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Esse conceito, dentre os inúmeros bons exemplos que tentam definir a cultura,

foi selecionado por enfocar os saberes e o saber fazer, já que as comunidades são

estritamente ligadas à atividade agrária. Foi-lhes perguntado se viam seus saberes

representados na televisão, e eles disseram que raramente, o que contraria as previsões

da Constituição Federal sobre direito à informação e sobre rádios e televisões:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a

informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer

restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão

atenderão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção

independente que objetive sua divulgação;

III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme

percentuais estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão,

permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e

imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado,

público e estatal. (BRASIL, 1998, p. 126 e 127)

Também foram apresentados alguns conceitos básicos de técnicas de entrevista,

quando os interlocutores puderam gravar áudios, simulando uma rádio. Essa foi a

atividade mais apreciada pelos dois grupos, e uma explicação possível para essa

preferência é a tradição oral dos moradores. O principal meio de comunicação

comunitária nas duas localidades continua sendo a prosa, a conversa. A maioria possui

motocicletas, o que facilita o trânsito e a troca de informações. É assim que são

marcadas reuniões, partidas de futebol e outros eventos sociais.

Para finalizar e prepará-los para a edição dos veículos de comunicação

comunitária houve uma discussão sobre a definição de notícia e sobre os critérios para

que uma notícia seja considerada relevante para uma comunidade e para os meios de

comunicação nela inseridos. Além disso, houve práticas com o lide jornalístico e sobre a

estrutura da notícia.

PERCEPÇÃO DE PERTENCIMENTO

O momento mais apropriado para a manifestação da noção de pertencimento

ocorreu quando foi solicitado que os interlocutores apontassem quais elementos da

cultura brasileira, mais especificamente, da cultura local, devem ser valorizados. A

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turma da Reserva Extrativista Chico Mendes listou, em primeiro lugar, o modo de

coletar castanha. As atividades de torra da farinha de mandioca e de coleta do açaí

foram as seguintes. Também foram citados pelos moradores os temas meio ambiente,

lazer e esporte. A equipe de Mâncio Lima apontou, em primeiro lugar, o saber fazer da

farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul (produto de notória qualidade). Na sequência,

foram mencionados o jeito de falar e de receber dos membros da comunidade, com um

café e uma prosa, e as características do ambiente local.

Nota-se pelas respostas listadas que o conceito de cultura já havia sido

devidamente apropriado e que as duas comunidades tendem a valorizar aspectos

específicos, como a coleta da castanha-do-brasil e o saber fazer da farinha de mandioca.

O ambiente também é lembrado como algo peculiar. Essas respostas são indícios da

noção de pertencimento partilhada nas duas comunidades, conforme defendido por

Barth: “As características que são levadas em consideração não são a soma das

diferenças ‘objetivas’, mas somente aquelas que os próprios atores considerarem

importantes.” (BARTH, 1998, p. 194).

Nas duas comunidades rurais acreanas, devido a todo o processo histórico que

vivenciaram, a noção de pertencimento está relacionada com os principais alimentos

produzidos: a castanha-do-brasil e a farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul, que são

produtos valorizados pela sociedade. A borracha, que deu notoriedade ao Acre no

passado, não foi lembrada pelos extrativistas e agricultores do curso, pois o mercado

não paga o preço adequado e o sudeste brasileiro se tornou o principal produtor, com

plantios lá implantados.

Um outro contexto que propiciou menções ao sentimento de pertencimento

ocorreu quando foram escolhidos os nomes dos jornais. Em Brasileia, os interlocutores

optaram por um jornal-mural batizado de “Comunidade em Ação” e em Mâncio Lima, o

fanzine “A Comunidade”.

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Figura 1 – Jornal-mural produzido na Reserva Extrativista Chico Mendes pelos extrativistas do

Núcleo de base Wilson Pinheiro II.

Figura 2 – Fanzine produzido pelos agricultores da comunidade Alto Pentecostes.

De acordo com a reunião de pauta, a manchete que teria maior ênfase seria sobre a

capacitação. No entanto, a notícia que teve mais destaque no jornal-mural, durante a

montagem, foi sobre uma visita à exposição fotográfica em comemoração aos 24 anos

de criação da Reserva Extrativista, realizada em Rio Branco, pelo Instituto Chico

Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A exposição retratava o dia-a-dia

na Reserva e alguns moradores foram personagens das imagens.

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Figuras 3 e 4 – Dona Rizoneide e seu Silva, líderes comunitários da Reserva Extrativista Chico Mendes.

Fotos: Leonardo Milano

Figura 5 – Visita à exposição fotográfica em comemoração aos 24 anos da Reserva Extrativista. Foto:

Arquivo pessoal

Essa notícia traz diversos símbolos que caracterizam o grupo e por isso recebeu

mais atenção dos participantes. A oportunidade de se verem na exposição fotográfica

reforçou a noção de pertencerem à comunidade e isso transpareceu no empenho dado a

produção dessa notícia e nas declarações colhidas durante as entrevistas, que foram

trechos do texto “Moradores participam de exposição de fotografia”:

“A presença de um fotógrafo na comunidade nos deu a satisfação de viajar

para Rio Branco e ver como a reserva e suas riquezas são importantes, não só

para a comunidade, mas para o mundo”, afirmou a moradora Maria de Jesus.

“Foi super legal ver a minha realidade e fotos da nossa comunidade e suas

riquezas”, disse o estudante e morador da Comunidade Wilson Pinheiro II,

Rivanilson da Silva Brito.

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As fotografias impressas em tamanho menor foram encaminhadas para os

personagens. O líder comunitário Severino da Silva Brito, o “seu Silva”, mostrou-as

orgulhoso, durante uma conversa em sua casa. São indícios que demonstram o

sentimento de pertencer, caracterizado pelos signos compartilhados que os moradores

selecionam como prioritários. Uma outra notícia que salienta o aspecto comunitário é a

seguinte:

Comunidade reivindica transporte escolar

A comunidade Wilson Pinheiro II está se mobilizando para elaborar um

abaixo-assinado que fala sobre transporte escolar. No dia 29 de maio, os

produtores rurais Luciana, Aldilene e Cleiton participaram de reunião no

Seringal Porongaba na qual foi informado que se fizesse um abaixo assinado

ou uma ata pela comunidade para reivindicar o transporte para levar os

alunos para a cidade.

O abaixo assinado será discutido na reunião da comunidade no dia 13 de

junho. Participe!

Nela pode-se observar a mobilização do grupo para sanar o principal problema,

segundo os interlocutores: a precariedade das vias de acesso. Mesmo assim, Seu Silva

repete, várias vezes: “Aqui é um lugar bom de se viver, porque tudo que a gente produz,

vende na Cobija”, numa referência a cidade boliviana na fronteira com o Brasil. Ou

seja, ele sabe das limitações, mas enfatiza o aspecto positivo da rotina coletiva na

Reserva. Na comunidade Alto Pentecostes, onde o curso acontecia há mais tempo, os

participantes seguiram a pauta de falar sobre as atividades realizadas no âmbito da

capacitação, nenhum assunto relacionado a outro tema foi apontado e foi produzida

apenas uma edição do informativo.

Em Brasileia, foram duas edições do jornal-mural e, na segunda, uma das

participantes propôs que os textos fossem manuscritos, e não digitados, e impressos

“Para ficar mais a nossa cara”, argumentou. Para produção do jornal-mural era levado

um gerador de energia, notebook e uma pequena impressora, equipamentos que não

condiziam com a realidade da comunidade.

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Figura 5 – Jornal-mural produzido de forma manuscrita pelos moradores da Reserva Extrativista

Chico Mendes. Foto: Fernando Pretti.

Durante conversas informais, seu Silva disse que pretende colocar um computador

à disposição da comunidade. “Foi importante eles mexerem no computador porque eu

quero botar um aqui. Vou mudar a sede da associação para mais perto da minha casa,

pra não correr risco de roubo, colocar gerador e computador”, disse. No entanto, os mais

jovens preferiram o modo manuscrito para o informativo, que se contrapunha ao modo

proposto e ao mais comum na cidade, ambiente que para eles é diferente, o que

demonstra a valorização da identidade do grupo, cujas manifestações são melhor

observadas nas fronteiras interétnicas, segundo Barth (1998, p. 185). É a diferença, a

noção do “outro”, que constrói a identidade do grupo, e tal constraste se manifestou na

opção pela produção do informativo de maneira manuscrita.

CONCLUSÃO

Em um contexto rural, onde prevalece a comunicação oral, a sistematização das

mensagens em veículos informais de comunicação comunitária surge como instrumento

de valorização da cultura local. Sem a presença dos facilitadores, os agricultores e

extrativistas não deram continuidade à produção dos jornais, mas o fato de terem

elaborado os informativos, com suas próprias habilidades, mostrou-lhes que há

alternativas aos meios de comunicação de massa e que o conhecimento tradicional deve

ser cada vez mais valorizado. Depoimentos como o do seu Silva: “É muito importante o

pessoal ver que com coisas (ferramentas) simples, eles podem até fazer um

jornalzinho”, corroboram o mencionado.

Nas entrelinhas dos informativos produzidos, pode-se notar o forte sentimento de

identidade. Os aspectos valorizados pelos moradores durante a capacitação são

representações dos elementos que caracterizam o sujeito, signos de natureza tanto

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abstrata quanto concreta. Pode-se notar que as duas comunidades valorizam os saberes,

o que é produzido e o modo de viver naquele determinado ambiente, mesmo que esses

elementos tenham se ressignificado com o tempo em virtude das interações sociais e do

contexto histórico.

BIBLIOGRAFIA

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Acesso em 25 de out. 2015

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Reflexões sobre os conceitos de valor-notícia de proximidade e de

espacialidade para análise de jornais fronteiriços

Heleno Rocha Nazário1

Resumo: Este artigo apresenta reflexões iniciais acerca do critério de proximidade, uma

das categorias substantivas da noticiabilidade, e de conceitos de espacialidade. O

objetivo é traçar relações entre os termos para aumentar o poder explicativo da

proximidade e dar conta do ambiente complexo da fronteira. As reflexões abordam

registros das relações entre Brasil e Argentina e da vivência da fronteira em textos

veiculados nos jornais Folha de São Borja (Brasil) e Santo Tomé (Argentina).

Palavras-chave: Jornalismo. Newsmaking. Fronteira

A imprensa fronteiriça entre o Brasil e a Argentina, a exemplo de qualquer outra

estrutura midiática em área limítrofe entre países, traz em sua constituição os reflexos

dessa conformação político-territorial, ao mesmo tempo em que, potencialmente, pode

manifestar atitudes e decisões editoriais que vêm do contexto espaço-temporal próprio

de cada cidade. É possível esperar encontrar evidências de que marcas das formas de

convivência entre os povoamentos vizinhos surjam nas respectivas mídias, uma vez que

os fatos noticiados ocorrem em algum lugar, afetam o cotidiano em algum lugar e

podem interessar a pessoas de lugares diferentes.

As reflexões iniciais neste artigo referem-se a pesquisa em andamento sobre

como a fronteira, em sua espacialidade e historicidade, e as relações entre o Brasil e a

Argentina, se tornaram notícia nos jornais fronteiriços Folha de São Borja, criado em

1970 na cidade gaúcha de mesmo nome, e Unión, jornal lançado em 1977 e fechado em

2010, quando da aposentadoria de seu dono e editor. O objetivo é traçar conexões entre

conceitos de espaço – especificamente, as noções advindas do campo da Geografia e da

confluência desta área com a História – com o valor-notícia de proximidade, constante

nas formulações da hipótese do Newsmaking, O contexto fronteiriço de interesse neste

artigo também será esclarecido.

Os jornais e o contexto fronteiriço

São Borja e Santo Tomé, na margem argentina do rio Uruguai, integram uma

extensa linha fronteiriça entre o Brasil e a Argentina que possui com mais de 1.263

quilômetros de extensão, a maior parte dela no Rio Grande do Sul2 com as províncias

1 Jornalista, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-RS.

2 293 km no Paraná, 246 km em Santa Catarina e 724 km no Rio Grande do Sul, conforme dados do

Ministério da Integração Nacional: A faixa de fronteira está estabelecida pela Lei Federal 6.634/79:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6634.htm.

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argentinas de Misiones e de Corrientes. Conectadas desde 1997 pela Ponte Internacional

da Integração, suas origens integram a etapa histórica de definição de limites dos

territórios nacionais.

Fundada por jesuítas em 1683, a redução de Santo Tomé dará origem à redução

de São Francisco de Borja em 1690, pela migração de parte de seus habitantes para a

outra margem do rio Uruguai. A expulsão posterior dos jesuítas não apagou o núcleo de

povoamento, que subsistiu para tornar-se a cidade gaúcha de São Borja. O processo de

definição dos contornos político-administrativos dos dois países resultou, de fato, na

barreira física do rio Uruguai como linha delimitadora dos territórios nacionais.

Ao contrário do que se verifica na fronteira Santana do Livramento-Rivera, cujo

limite está em uma avenida que conecta os dois centros urbanos – na verdade, unidos

como se fossem apenas um município – a fronteira São Borja e Santo Tomé se

caracteriza como semi-conurbada (MÜLLER, 2007), com seus centros urbanos distintos

e unidos por uma ponte internacional, aproximando-se, neste aspecto e no encontro das

nacionalidades argentina e brasileira, à fronteira Uruguaiana - Paso de los Libres.

A fronteira, para Müller (2001), requer um pensamento capaz de apreender a

complexidade dessa área e a rapidez das mudanças nas relações entre os povos que ali

habitam. Ao falar das fronteiras Uruguaiana-Paso de los Libres e Santana do

Livramento-Rivera, a pesquisadora afirma que as cidades fronteiriças são espaços

permeáveis e possuem em comum a distância em relação aos centros de decisão

nacional (MÜLLER, 2001, p.4).

Essa situação de distanciamento frente aos respectivos centros nacionais, com as

dificuldades que isso gera, e de cercania do povo, da cultura, do idioma e da economia

do país vizinho faz com que as pessoas dessas zonas de fronteira criem um modo

especial de conviver com os habitantes de outra nação. Das opções musicais à mesa, as

trocas culturais, econômicas e sociais formam uma cultura fronteiriça específica em

relação às culturas nacionais, como sugere Müller (2001, p.14).

Os meios de comunicação que existem nesses pontos de contato, explicam

Müller e Raddatz (2007, p. 299) incorporam o cotidiano, as práticas diárias e ampliam a

sedimentação dessas relações fronteiriças pela sua capacidade de disseminar

informações. A imprensa situada nas bordas do país está em contato potencial com um

país vizinho, outra cultura, outro idioma, outro sistema administrativo. Müller (2015, p.

119) indica que os jornais de fronteira em geral são organizações de pequeno porte, com

mão-de-obra não especializada, sujeitas às restrições impostas às fronteiras no Brasil, e

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por isso distantes de centros de fornecimento de insumos e serviços para a impressão.

Müller (2015, p. 121) inclui a imprensa local no grupo de organizações locais que

“influenciam e reforçam comportamentos e atitudes que, no caso específico,

correspondem à cultura(s) e identidade(s) fronteiriças” devido aos seus modos e

estratégias de operação.

Nesse cenário, dois atores midiáticos interessam. O mais antigo, e ainda

circulante, é o jornal Folha de São Borja, fundado em 1970 por José Grizólia e depois

adquirido pelos irmãos Renato e Roque Andres. O jornal bissemanal se constituiu desde

seu início como uma empresa jornalística estruturada para o trabalho coletivo. Hoje o

jornal conta com um site na Web e integra o grupo empresarial formado ainda pelas

emissoras radiofônicas Fronteira FM e Cultura AM. Um fato relevante para a pesquisa é

a conservação das edições antigas, todas encadernadas com capa dura e acomodadas em

uma sala específica para a consulta ao acervo.

O segundo é o quinzenal Unión, fundado em 1977 por Carlos Zapata. Unión

circulou até 2010, quando o proprietário se aposentou. O jornal santotomenho

apresentava estrutura produtiva reduzida, com Zapata exercendo as funções de diretor e

editor. O jornal não chegou a gerar uma contraparte na Web; entretanto, possui seu

acervo disposto em dois suportes: o impresso, com tomos encadernados, e a versão

digitalizada do mesmo acervo.

Fazer notícia

Surgida no âmbito da Communication Research e tributária dos estudos sobre o

gatekeeping, a hipótese do Newsmaking, conforme Hohlfeldt (2001, p.188), liga-se aos

estudos da sociologia das profissões e centra sua atenção ao processo produtivo das

notícias a partir dos acontecimentos cotidianos. Foco especial recai sobre o jornalista

como emissor e intermediário entre o acontecimento e a notícia, a conformação

noticiosa, as fases da produção informativa. Hohlfeldt (2001, p.189) reforça que se trata

de uma hipótese, pois se trata de um sistema aberto, em construção, experimentação e

teste de sua capacidade de traduzir a realidade percebida e gerar, com ela, conhecimento

válido. Nisso difere da teoria, que é um modelo explicativo infenso a complementações.

A hipótese do Newsmaking traz a cultura profissional dos jornalistas e as rotinas

produtivas na redação para o campo de estudo, englobando nessa visada os processos

produtivos à luz de retóricas, estereótipos e normatizações que regulam a identidade

profissional. O Jornalismo, em uma perspectiva cultural e sociológica, compreende

componentes éticos, atitudinais e operacionais que formam um conceito comum de “ser

16

jornalista” (TRAQUINA, 2005). Atender a esses requisitos faz com que o profissional

se integre à redação pela conduta, com valores partilhados sobre o "fazer a notícia".

Nesse contexto, e dentre outras definições, a noticiabilidade é descrita como

sendo “o conjunto de critérios que operacionalizam instrumentos segundo os quais os

meios de comunicação de massa escolhem, dentre múltiplos fatos, aqueles que

adquirirão o status da noticiabilidade”, na definição oferecida por Hohlfeldt (2001).

Noticiar é, nessa visão, um trabalho organizado que descontextualiza e recontextualiza o

fato ao transformá-lo em narrativa jornalística. Para essa tarefa, emprega-se uma lista

virtualmente infinita de valores-notícia, que são elementos e princípios usados para

medir a potencialidade de geração de resultados e novos eventos de um fato caso seja

transformado em notícia. As listas de valores-notícia variam em número de elementos,

ordem e aprofundamento das definições conforme as sistematizações propostas por

diferentes autores, como indicam as leituras de Santos e Castro (2013), Grimberg

(2014) e, principalmente, Traquina (2005).

Mauro Wolf fala em caráter dinâmico dos valores-notícia, que “mudam no

tempo” e que não são sempre os mesmos, apesar da relevante homogeneidade que

apresentam dentro da cultura jornalística (1999, p. 198); além disso, o conjunto de

valores-notícia de um veículo tende a se ajustar à estrutura do corpo editorial desse

veículo de imprensa; conforme uma editoria se consolida, determinados critérios são

ajustados em função dessa especialização temática (1999, p. 199). Traquina (2005, p.

67) aponta para a valorização das ocorrências policiais como base para artigos em estilo

humorístico, uma iniciativa do jornal New York Sun, como marca de um novo jeito de

fazer jornalismo, que dava espaço “às notícias locais, às histórias de interesse humano

[...]”. É um indício do que mais tarde pode ser entendido como proximidade, no sentido

da proximidade geográfica.

Traquina (2005, p. 80) posiciona a proximidade, desta vez com as modulações

da localização geográfica e da identificação cultural, entre os critérios substantivos, que

são as características dos fatos que fazem deles candidatos à transformação em notícia.

Os critérios tendem a ser empregados em múltiplas combinações no cotidiano

jornalístico, agindo em todas as fases da produção noticiosa (TRAQUINA, 2005;

WOLF, 1999). Porém, neste artigo o intuito é refletir sobre um critério em específico, o

de proximidade, e as conexões possíveis com alguns conceitos de “espaço” que

interessam pelo poder explicativo.

17

Próximo, local

De forma mais ampla e complementar ao processo interno de uma redação, há

que se considerar que um veículo de imprensa está inserido, física e

comunicacionalmente, em uma determinada confluência de tempo e localização. Cada

veículo de imprensa delimita sua área de abrangência de acordo com sua capacidade de

investimento em jornalismo.

Nota-se que o jornalismo praticado pelos veículos interioranos no Rio Grande do

Sul é voltado para as demandas locais, pretendendo por isso se designar como sendo

comunitário; circula em uma área circunscrita a município ou a regiões (DORNELLES,

2004). Pode-se, assim, falar em localismo como uma característica marcante do jornal

interiorano que está produzindo notícias e outras informações para as pessoas de uma

comunidade delimitada geograficamente, com a qual o convívio é intenso a ponto de

poder usar uma linguagem mais “familiar” (DORNELLES, 2010). Estes aspectos

podem ser notados nos jornais Folha de São Borja e Unión, de Santo Tomé, Corrientes.

O localismo é um conceito que Dornelles conecta ao valor-notícia de

proximidade, um dos itens das categorias substantivas da noticiabilidade, neste caso um

fator de avaliação da importância do acontecimento, segundo Hohlfeldt (2001, p. 209).

A proximidade, para Dornelles (2010), é a cercania do jornal para com a sua

comunidade em termos geográficos, físicos e temáticos, agindo em prol da coesão social

sem esquecer os preceitos éticos de respeito à diversidade, tolerância, a dignidade e os

direitos das pessoas. O território, o lugar geográfico, é um aspecto-chave para entender

a imprensa interiorana, mas não é o único, pois a proximidade do “jornalismo

microscópico” se expressa em função de espaços e identidades (DORNELLES, 2010).

É também ligado ao momento atual, em que a aceleração do tempo e da circulação de

notícias e informações torna o mundo mais similar no aspecto global, sem apagar as

diferenças locais; a imprensa local constrói sua força na localização geográfica e na

territorialização de seu conteúdo, afirma Dornelles (2010, p. 239).

Espaço e proximidade

O espaço, tradicionalmente um termo ligado à Geografia, em Grimberg (2014)

encontra-se na função de gênero de recorte, do qual local, regional, nacional e global

são espécies, delimitações espaciais. Palavra tão polissêmica quanto "fronteira", o termo

“espaço” pode delimitar uma área de interesse ou de controle efetivo em vários

domínios do saber.

18

A História, hoje definida como "o estudo do ser humano no tempo e no espaço",

possui forte conexão com a Geografia, a Literatura, a Psicanálise e a Semiótica

(BARROS, 2005, p. 97) – e também com o Jornalismo, como Grimberg (2014) propôs.

Afinal, a vida cotidiana, os fatos se passam em um lugar, e a imprensa local trabalha

com essa base territorial e temática.

O espaço indica, na Geografia, “uma área indeterminada que existe previamente

na materialidade física”, conforme Barros (2005, p. 98). É a partir dessa noção que

outros conceitos como “espaço imaginário”, “espaço social” e outros são construídos. A

progressiva conexão entre as noções de tempo e espaço, pela ligação entre a História e a

Geografia, dá à espacialidade outros sentidos, como explica Barros (2005, p. 97): “[...]

como lugar que se estabelece na materialidade física, como campo que é gerado através

das relações sociais, ou como realidade que se vê estabelecida imaginariamente em

resposta aos dois fatores anteriores”.

O critério da proximidade, além de evocar a cercania geográfica e a

identificação temática entre o jornal e seu público, pode ser também conectado ao

conceito de “espaço” proposto por Michel de Certeau (2009, p.195). Ao analisar as

táticas pelas quais o indivíduo atua criativamente dentro dos limites impostos

estrategicamente pelo poder, Certeau distingue duas dimensões do cenário onde ocorre a

invenção das soluções do dia-a-dia. “Lugar” corresponde à localização física, material,

geométrica, enquanto “espaço” é o “lugar praticado”, indicando a apropriação dos

lugares pelas ações humanas. Como exemplo, a ponte internacional entre São Borja e

Santo Tomé comporta o dinamismo dos que trabalham e dos que atravessam os limites

nacionais.

Assim, espacialidade em Certeau indica o sentido existencial que resulta das

ações de sujeitos históricos sobre os lugares, sentido esse firmado em relatos e práticas.

Lugares tornam-se espaços: ruas percorridas por pedestres, salas preenchidas pelas

discussões da aula. Espaços tornam-se, também, lugares: a cena de crime que se torna

altar de culto popular. Relatar e praticar o espaço é operar essas transmutações; relatos

são “feituras de espaço” (2009, p.189). Notícias relatam, entre outros efeitos; e ao

relatar os fatos que se passam em uma localidade, contribuem para a geração de uma

espacialidade.

Com isso, entende-se que as áreas de fronteiras nacionais – e, certamente,

mesmo as que ocorrem entre diferentes estados de um país – constituem, também pelos

relatos produzidos, diferentes visões sobre as espacialidades. As notícias no jornal local

19

narram e ajudam a formar os relatos que conformam o espaço, que dão conta do que o

compõe e de como existe uma dada espacialidade. Cada fronteira é especial porque é

espacial; e só é espacial por ter sido vivida e construída de uma ou outra forma ao longo

da duração do tempo, processo sócio-histórico para o qual as notícias sobre esse espaço

oferecem contribuições.

Essas ligações importam porque, no caso dos jornais Folha de São Borja e

Unión, será preciso considerar como as relações fronteiriças aparecem nas notícias a

partir de escolhas sobre os recortes temporais. Percebe-se os itens em análise como

produções noticiosas que circularam em um espaço e em um tempo e que construíram

relatos sobre como o real foi percebido naquele espaço e naquele tempo; espaço esse

visto como as práticas humanas em um lugar ou entre-lugares em um dado momento, ou

ao longo de um período.

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21

GRUPO 2

Coordenador: Prof. Jacques Weinberg

O Jornalismo, a reportagem, a história em movimento e a memória

Margareth de Oliveira Michel - Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, RS3

Jerusa de Oliveira MICHEL- Universidade de Federal de Pelotas, Pelotas, RS4

Resumo O trabalho analisa a partir de diferentes campos do conhecimento:

antropologia, etnografia, etnicidade, território, história e memória em suas diversas

abordagens, e o gênero jornalístico reportagem, a perspectiva de construção de

conhecimento interdisciplinar, identificando os pontos de convergência entre os

campos. Utiliza metodologia etnográfica/interdisciplinar, focando o trabalho da

jornalista Eliane Brum à luz do referencial teórico construído.

Palavras-chave: Jornalismo; gênero reportagem; memória.

Introdução

Este trabalho aborda a participação do jornalismo, por meio de reportagens, e a

preservação da memória social. O interesse pelo tema se deve ao fato de que ao atuar na

área de comunicação, e mais especificamente ao produzir reportagens jornalísticas

ocorreu a percepção de que o profissional ao registrar fatos, contar histórias, de certa

forma, contribui para a perpetuação daquilo que registrou.

É histórica a constatação de que existe no ser humano e nos grupos sociais o

desejo de manter vivas as lembranças de acontecimentos marcantes e até mesmo de

fatos cotidianos. Em função disso, desde os tempos primitivos, técnicas de comunicação

foram desenvolvidas com a finalidade de contribuir com a perpetuação do tempo e junto

com técnicas capazes de desenvolver a memória, desenvolveu-se também a linguagem

como instrumento de propagação das lembranças, representações e histórias, que

propiciou ao homem a possibilidade de construir e registrar sua trajetória. (SAPIR,

1971)

Halbwacks (1990) chama a atenção para a maneira pela qual a escrita foi

encarada pelo homem: maneira única de se conservar lembranças porque "as palavras e

3 Professora do curso de Comunicação Social da UCPEL, Pelotas/RS, Mestre em Desenvolvimento Econômico e Social e Mestre em Lingüística Aplicada pela UCPEL, email: [email protected]. 4 Doutoranda em Memoria Social e Patrimônio Cultural. Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPEL. Relações Públicas da Universidade Federal de Pelotas, email: [email protected].

22

os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem" (HALBWACHS, 1990, p. 80).

A partir da importância da narrativa escrita na construção da história de uma sociedade,

o valor do jornalismo impresso como documento histórico, desde o surgimento da

imprensa, no século XVIII, não pode ser ignorado, mesclando-se com o cotidiano dos

grupos sociais. Desde então tornou-se marcante a necessidade das pessoas de

registrarem a vida cotidiana como uma das formas de manutenção da memória. Nesse

contexto, a memória jornalística marca "a entrada em cena da opinião pública [...] que

constrói também a sua própria história" (LE GOFF, 1994, p. 461).

O jornalismo transforma a realidade apreensível em relato, tornando-se peça

fundamental no registro de acontecimentos e isso lhe confere função histórica na

sociedade. Na visão de Traquina (1999), o jornalismo é entendido como uma prática

social, que estabelece relações com o mundo material e com o mundo simbólico dos

indivíduos, que acontecem enquanto história e linguagem. História porque são relações

constituídas a partir das exterioridades do jornalismo, que se encontra inserido dentro do

processo de produção, transformação e manutenção da sociedade. Linguagem porque

são relações constituídas também a partir do modo de quem faz.

Essa mescla entre a produção jornalística com a história e a memória, num

processo imbricado com a prática e o cotidiano dos grupos sociais, lidando com o

material concreto e simbólico dos indivíduos e grupos sociais, como já dito, é o objeto

de estudo desse trabalho e para a melhor compreensão da proposta serão abordados

tópicos referentes ao jornalismo, com atenção especial ao gênero reportagem,

finalizando com o estudo de caso da reportagem “A floresta das parteiras” da jornalista

e escritora Eliane Brum.

Sobre o Jornalismo e o Gênero Reportagem

O campo jornalístico começou a ganhar forma nas sociedades ocidentais,

durante o séc. XIX, com o desenvolvimento do capitalismo e, ao mesmo tempo, de

outros processos que incluem a industrialização, a educação em massa, o processo

tecnológico e a emergência da imprensa. O jornalismo que conhecemos hoje tem suas

raízes no século XIX, e de acordo com Traquina (2005), foi durante este período que se

verificou o desenvolvimento da imprensa. Foi então que “As trocas de informações

atingiram intensidade e amplitude antes difíceis de imaginar. E a notícia, antes restrita e

controlada pelo estado e pela Igreja, tornou-se bem de consumo essencial” (LAGE,

23

1999, p 8). Além disso, a expansão dos jornais permitiu a criação de novos empregos e

um número crescente de pessoas passou a dedicar-se a uma atividade.

Este novo paradigma será a luz que viu nascer valores que ainda hoje são

identificados no jornalismo: as notícias, a procura da verdade, a

independência dos jornalistas, a exatidão, e a noção do jornalismo como um

serviço ao público – uma constelação de ideias que dão forma ao emergente

“polo ideológico” do campos jornalístico (TRAQUINA, 2005, p.34).

Assim, o jornalismo pode ser entendido como tendo um “papel socialmente

legitimado para produzir construções da realidade que são publicamente relevantes”

(ALSINA, 1996, p. 18), ou seja, ao jornalista é delegada a competência para recolher os

acontecimentos e temas importantes e atribuir-lhes sentido, firmando, com a sociedade,

um “acordo de cavalheiros”, “contrato fiduciário” social e historicamente definido

(TRAQUINA, 1999, p. 168).

No jornalismo, os fatos são retratados por diversos olhares e através de diferentes

gêneros, em que o jornalista, ao transmitir o fato para o público interessado, o descreve

de acordo como o viu e ouviu, procurando atingir, por meio da clareza e da escolha das

palavras, a melhor estrutura morfológica, sintática, e principalmente, buscando a

objetividade. Com relação aos gêneros jornalísticos existem várias classificações. Aqui

será utilizada a classificação feita por Beltrão, por atender a critérios funcionais, de

acordo com as funções que os textos desempenham em relação ao leitor, que seriam

informar, explicar ou orientar. A partir dessas informações, ele propõe três categorias

básicas: jornalismo informativo (notícia, reportagem), jornalismo interpretativo

(reportagem em profundidade), e jornalismo opinativo (editorial, artigo, crônica,

opinião ilustrada, opinião do leitor).

O jornalismo interpretativo é uma forma de fazer jornalístico extremamente rico

na abordagem informativa, pois, “ao inquirir sobre as causas e origens dos fatos, busca

também a ligação entre elas e oferece a explicação da sua ocorrência” (DINES, 2009, p.

110). A reportagem é um gênero jornalístico privilegiado. Para Noblat (2004), “notícia é

o relato mais curto de um fato. Reportagem é o relato mais circunstanciado”. A história

é contada de acordo com a subjetividade de cada um, porém na hora de se escrever a

história, os valores básicos como a veracidade e a objetividade dos fatos deverão ser

mantidos.

Sodré e Ferrari (1986) identificam as principais características de uma

reportagem: predominância da forma narrativa, humanização do relato, texto de

24

natureza impressionista e objetividade dos fatos narrados. Os autores destacam que

conforme o assunto ou o objeto em torno do qual gira a reportagem, alguma dessas

características poderão aparecer com maior destaque, mas é sempre necessária a

presença da forma narrativa.

A reportagem é, portanto, um gênero que precisa ser bem preparado, que necessita

de um grande preparo, físico e emocional, porque geralmente toma tempo na seleção

das melhores fontes, leitura de documentos, conversa com os diferentes protagonistas e

personagens envolvidos na história, exigindo que seja captado o ambiente onde ocorrem

ou ocorreram os acontecimentos.

A questão da memória

Memória é um tema que está presente em várias áreas de estudo no mundo

contemporâneo e é vista a partir de diferentes olhares. Do ponto de vista biológico,

memória refere-se a tudo que envolve os processos mentais e as muitas informações no

cérebro, tais como ideias, imagens e diferentes dados, tudo que por diferentes motivos

se destaque entre os registros de acontecimentos passados. “Sem memória não há vida.

É possível, inclusive, dizer que a vida é uma sequência de memórias”. A memória é

importante para a vida de grupos sociais porque é o armazenamento e lembrança

daquilo que é adquirido por meio da experiência, dessa forma a aquisição de memórias

é aprendizado (IZQUIERDO, 1989).

Se por um lado é reconhecida a importância da existência da memória

relacionada à vida, por outro, há quase um consenso de que a sociedade contemporânea

é ‘uma sociedade sem memória’ seja por conta dos aparatos tecnológicos ou em função

das muitas e rápidas mudanças que ocorrem, gerando um movimento contínuo e fluído

(BAUMAN, 2011) onde pelo excesso de informações há uma necessidade cada vez

maior de dispositivos de armazenamento de informações (NORA, 2000).

Fazendo um contraponto com a sociedade moderna, “tão líquida”, as parteiras do

Amapá fazem parte de uma comunidade que traz consigo memórias e experiências de

vida – muitas alegres, muitas sofridas – de uma das atividades mais tradicionais do

Brasil, a que se ocupa de trazer os seres humanos ao mundo por meio do nascimento,

uma atividade baseada na simplicidade, onde as próprias parteiras desenvolvem suas

artes e seus instrumentos de trabalho criando uma cultura e uma identidade própria.

25

Para entender melhor esta questão, é importante contextualizarmos o

jornalismo e sua relação com a temática, esclarecendo que no processo de construção

das identidades sociais, no fluxo das interações, o jornalismo como um todo ocupa um

papel central. Pierre Nora fala do papel dos meios de comunicação de massa na

produção dos acontecimentos históricos, afirmando que “Imprensa, rádio, imagens não

agem apenas como meios dos quais os acontecimentos seriam relativamente

independentes, mas como a própria condição de sua existência” (Nora, 1988, p. 181). A

partir da proposição do autor, que a memória constitui uma dimensão primordial na

constituição das identidades, envolvendo práticas narrativas e administração do real por

meio das práticas discursivas, compreende-se que o jornalismo é um elemento

importante desse processo. De acordo com Letícia Cantarela Matheus:

As marcas do tempo são especialmente sensíveis nos jornais,

localizando o leitor num “lugar” na duração. O consumo diário

das narrativas jornalísticas fornece um forte parâmetro espaço-

temporal. [...] A marcação do tempo foi se tornando função

essencial dos jornais, a ponto de lhes ser dada credibilidade

para datá-lo (Matheus 2010, p.2-3).

Identidade, memória e jornalismo são, a partir dessa perspectiva, concepções

tomadas como possuidoras de uma relação direta, isso porque o jornalismo mantém

relações claras com a História, caracterizando-se como ferramenta de compreensão e

recuperação do passado. Em nenhuma outra época, a produção de conhecimentos foi tão

intensa como nos dias de hoje registrando os fatos, o cotidiano, a própria história e nem

sua aplicação assumiu papel tão importante na produção jornalística, seja na

especificidade da notícia ou da reportagem enquanto um “documento” histórico,

referência necessária para a compreensão da relação que se estabelece entre a “memória

jornalística” e a “memória social”.

É por meio do jornalismo que são registrados fatos, testemunhos e padrões de

comportamento, os quais podem caracterizar diferentes épocas e momentos da história,

desta forma, os jornalistas podem ser considerados como “Agentes de Memória” que

muitas vezes não são reconhecidos por eles próprios nem pelos estudiosos da

memória.Em seu artigo, “Why memory's work on journalism does not reflect

journalism's work on memory” 5, Zelizer explica que o trabalho jornalístico permite

5 Tradução da autora: "Por que o trabalho de memória no jornalismo não reflete o trabalho de jornalismo

na memória"

26

apresentar o passado, oferecendo ao mesmo tempo, pontos de comparação e

oportunidades de fazer analogias, ao mesmo tempo em que dá nova roupagem a eventos

anteriores. Ao incluírem o passado nas suas narrativas, os jornalistas apresentam

claramente a importância do passado na produção de sentido do presente, e por isso eles

se tornaram “Agentes de Memória” (ZELIZER, 2008).

Por intermédio da informação jornalística ocorre o vínculo com o passado e

que permite à memória encontrar associações que auxiliam na compreensão dos

acontecimentos do presente em seu contexto, com suas interligações, coerentes com os

acontecimentos de ontem, e que tornam o jornalismo legítimo (BERKOWITZ, 2011).

O Objeto, a reportagem “A Floresta das Parteiras”e sua Análise

Este estudo utiliza como metodologia o estudo de caso, e caracteriza-se pela sua

inter-relação com diferentes campos sociais e pela interdisciplinaridade ao abordar as

questões relativas ao jornalismo/reportagem, identidade, e memória contidos na

reportagem “A Floresta das Parteiras”, de Eliane Brum. Além dos conceitos já

abordados, em sua análise levará também em conta o pensamento relativo à cultura do

grupo no qual se encaixam as parteiras da floresta, na Amazônia.Voltamo-nos então

para a figura da parteira, mãe de pegação, na maioria dos casos, negra ou índia e pobre.

Eliane Brum, em “As Parteiras da Floresta”, vem nos falar exatamente destas mulheres.

Ela as descreve como mulheres extremamente sábias sem que para isso, seja preciso

conhecer as letras do alfabeto.

Caco Barcelos, escreve a apresentação do livro de Eliane Brum – O Olho da Rua.

A posição dele acerca da escrita e dos métodos de Brum é importante pela visão que

possui acerca da prática profissional da jornalista: "A imprensa simboliza a liberdade,

não é só uma atividade profissional. O jornalista, o repórter tem o dever de contar os

episódios na medida em que eles forem acontecendo", ele disse em entrevista à Amilton

Pinheiro, do Portal de Comunicação da UOL6.

Sobre Brum (2008) e sua metodologia de construção da reportagem Barcelos

(2008) afirma:

Para Eliane Brum, é muito mais do que ouvir. [...] ela exercita com esmero o

seu dom de ouvinte, que abrange por ofício a captação do tom e do ritmo das

palavras e do silêncio. É o seu jeito de aproveitar ao máximo o privilégio dos

repórteres: o de ver primeiro, o de entrar nas casas, o de ouvir narrativas de

vidas, do parto à vivência da morte, para depois transmitir aos outros.

(BARCELOS, 2008, p. 11)

6http://portaldacomunicacao.uol.com.br/graficas-livros/69/artigo300344-1.asp.Acesso em 05/01/2015.

27

Sobre si mesma, Brum (2008, p.11), comenta “Como repórter e como gente eu

sempre achei que mais importante do que saber perguntar era saber ouvir. Eu não

arranco nada. Só me comprometo a ouvir, a escutar de verdade, sem preconceitos” E

continua, afirmando:

Ser repórter é algo profundo, definitivo, do que sou. Todo meu olhar sobre o

mundo é mediado por um amor desmedido pelo infinito absurdo da

realidade. E pela capacidade de cada pessoa de reinventar a si mesma, dar

sentido ao que não tem nenhum. [...] Em cada rua do mundo, seja de floresta

ou de concreto, busco aquilo que faz tantos brasileiros andarem pelo mapa,

às vezes descalços. Aquilo que move tantos de nós a ancorar no dia seguinte

– e um dia depois do outro. Meu ofício é encontrar o que torna a vida

possível apesar de tudo, a delicadeza na brutalidade do cotidiano, a vida na

morte. (BRUM, 2008, p.13-14)

Assim, as mãos dessas mulheres fazem do estado do Amapá a região com o maior

número de partos normais no Brasil das cesarianas. Ofício repassado entre gerações,

onde muitas mulheres de uma mesma família abraça o ofício de parteira, ou como elas

mesmas se autodenominam, mãe de pegação, a maioria, segundo dados de organizações

que apoiam essas parteiras, está na região norte e nordeste, onde os níveis de pobreza

são maiores. A estimativa é de que 60 mil mulheres atuem como parteiras no Brasil,

concentrando-se no interior do país, comunidades quilombolas e indígenas.

Para estas parteiras é praticamente impossível entender como uma mulher escolhe

arrancar seu filho a força, através de uma cesariana, com data e horário agendado.

Segundo dados do Ministério da Saúde, 24% dos 2,6 milhões de partos que acontecem

no Brasil são cirúrgicos quando apenas 5% a 10% destes partos necessitam de cirurgia.

Nadando contra esta corrente, o Amapá traz quase 90% de sua população ao mundo

através das mãos de aproximadamente 752 “pegadoras de menino”, sendo considerado o

estado brasileiro recordista em partos normais. Transcrevo abaixo, algumas passagens

do texto “Parteiras da Floresta” de Eliane Brum, onde ela descreve de forma quase

poética a vida destas parteiras.

Ao descrever as parteiras, Brum identifica nas parteiras e em seus relatos

identidades e representações sociais, cujos significados individuais e coletivos, não só

organizam sua prática cultural, mas estão presentes na memória do grupo. A memória,

para Le Goff (2003), é expressa de forma tanto individual quanto coletiva. Cada sujeito

revela uma subjetividade, manifestada tanto em alguma coisa representativa do passado

e quanto a partir do momento que suas lembranças e experiências são compartilhadas

pelos diferentes grupos sociais, quando a memória se torna coletiva. É então que a

28

memória contribui para sejam apropriados saberes estabelecidos por experiências de

grupos sociais, permitindo que se forme um elo entre memória e narrativa.

Ao abordar o relato do passado em sua reportagem, Brum apresenta sua

importância na produção de sentido do presente por meio de testemunhos e padrões de

comportamento, e conforme o refencial teórico ao caracterizar diferentes momentos da

história, pode ser considerada como ‘agente de memória’. Também são encontrados na

reportagem de Brum os elementos que estão presentes no sentimento de identidade e

que servem de apoio à memória: os acontecimentos vividos, as pessoas e os lugares, e

que envolvem sentimento de pertença à memória coletiva em decorrência das

interações e dos grupos sociais.

Considerações Finais

Nestes trechos do texto da jornalista fica clara a origem destas mulheres quando as

descreve como “a índia Dorica, a cabocla Jovelina e a quilombola Rossilda”. Fala ainda

das “parteiras indígenas do Oiapoque”. Seguindo através do texto de Brum, ela nos

fornece a descrição da cabocla Jovelina, que aos 77 anos é a parteira mais afamada de

Ponta Grossa do Piriri no Amapá e relata seu estado de pobreza ao relatar que a parteira

mora em um casebre, fala também da “negra, negríssima” Rossilda, mulher quilombola,

ressaltando a questão da sua cor, o que pode nos dar uma ideia de que sua vida jamais

foi fácil, percebe-se aqui a construção da identidade e da cultura dessas mulheres,

conforme os parâmetros dos autores do referencial teórico.

Construir uma reportagem é contar uma história, é ter o privilégio de conviver

com pessoas que são diferentes de nós, de ver primeiro, de entrar em suas casas, de

ouvir seus relatos, sua história, e depois transmiti-los aos outros. O texto em questão

está repleto das falas destas mulheres, e é através destas falas que a jornalista o constrói,

respeitando linguagem utilizada pelas parteiras. Ser jornalista é muito mais do que

simplesmente narrar os fatos de forma objetiva e neutra, apurando os fatos do dia para

que sejam entregues a sociedade o mais rápido possível. É possível que se faça um

jornalismo onde o mais importante seja ouvir não aquilo que se quer perguntar, mas sim

aquilo que a pessoa quer nos dizer.

Olhando o jornalismo e a construção das reportagens a partir desta perspectiva,

pode-se afirmar que o jornalismo como prática pode ser aliado das ciências sociais,

utilizando suas técnicas e metodologias para apurar os fatos e averiguar as verdades,

29

registrando sua história, e que pode sim se constituir de valioso instrumento de

construção de história e memória social.

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31

GRUPO 1

Coordenadora: Beatriz Dornelles

XIII Seminário Internacional de Comunicação Janelas para o mundo: telas do imaginário PPGCOM – FAMECOS/PUCRS Porto Alegre (RS), 17 a 19 de novembro de 2015

Diversificação de funções no jornalismo multimídia da Folha de S. Paulo Autor: Alexandre Lenzi Titulação: Doutorando e Mestre em Jornalismo pelo Programa de Pós-Gradução (POSJOR), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) E-mail: [email protected] Resumo: Por meio da análise das cinco primeiras edições da série Tudo Sobre, da Folha de S. Paulo, e seus respectivos expedientes, propõe-se um debate sobre a diversificação das funções e o trabalho em equipe na prática do jornalismo multimídia. Diferentemente da produção factual, onde a elaboração de conteúdos em formatos distintos pode sobrecarregar um único profissional, a grande reportagem surge como o espaço onde equipes integradas garantem um real aproveitamento das possibilidades narrativas da internet. Palavras-chave: jornalismo multimídia; reportagem; convergência.

Quando a proposta é produzir conteúdo jornalístico multimídia, é preciso

investir em equipe, tanto em quantidade de profissionais quanto na diversificação

das funções desempenhadas pelo grupo. Ao estudar os cinco especiais multimídia

da série Tudo Sobre 7, da Folha de S. Paulo, publicados entre dezembro de 2013 e

agosto de 2015, busca-se demonstrar a diversificação e a integração de funções

necessárias para a prática do jornalismo multimídia.

As grandes reportagens multimídia, ou especiais multimídia, são produzidos

em um ambiente de convergência da redação, onde o princípio básico é o de

manter uma equipe capacitada e integrada para informar em diferentes formatos a

serem divulgados em distintas plataformas. Em um mesmo grupo, jornalistas

7 Especiais Tudo Sobre, publicados pela Folha de S. Paulo, entre dezembro de 2013 e agosto de 2015.

Disponíveis em: <http://arte.folha.uol.com.br/especiais/2013/12/16/belo-monte/>.

<http://arte.folha.uol.com.br/especiais/2014/03/23/o-golpe-e-a-ditadura-militar/>.

<http://arte.folha.uol.com.br/ambiente/2014/09/15/crise-da-agua/>.

<http://arte.folha.uol.com.br/mercado/2015/03/12/crime-sem-castigo/>. <http://arte.folha.uol.com.br/tudo-sobre/rio-em-transformacao/>. Visitados em agosto de 2015.

32

produzem conteúdos em textos, fotos, áudios, vídeos e infográficos que

alimentarão sites de notícias e empresas de segmentos tradicionais (impresso,

rádio ou TV, ou até mesmo ambos) 8. Modelos de organização que tentam viabilizar

isso na prática são testados em empresas de comunicação com resultados diversos

e ainda não se atingiu um padrão de referência livre de críticas. O principal alerta é

para o risco de transformar a convergência em uma justificativa para cortes de

gastos e redução de pessoal, afetando a qualidade do material final.

É preciso ressaltar, também, que novas demandas profissionais não podem

eliminar o que já se exigia de um jornalista profissional antes da revolução

proporcionada pela internet. Manter o padrão da qualidade do que era feito em um

único meio torna-se ainda mais difícil quando se exige do jornalista atuação em

mais de uma frente. Lourival Sant’Anna (2008) defende que uma sobrecarga de

tarefas e de preocupações com aspectos técnicos, por mais simplificadas que sejam

as operações dos novos aparelhos digitais, pode afetar a qualidade no exercício da

apuração jornalística. Diante deste quadro, a alternativa não é desistir de uma

produção multimídia, mas investir na formação de um novo perfil de jornalistas, no

qual o individualismo e o protagonismo cederiam algum espaço para o trabalho em

equipe. “O trabalho de apuração da reportagem, como empreitada solitária,

fortemente marcada por talentos pessoais que funcionam como marcas distintivas

aliadas ao nome de um profissional, perderia parte de seu papel” (SANT’ANNA,

2008, p. 23).

Se na produção factual do jornalismo on-line é real o risco de um único

profissional ser sobrecarregado com responsabilidade de apurar e gerar conteúdo

em formatos distintos, é na grande reportagem multimídia que o planejamento, o

maior tempo disponível e uma integração da equipe no sentido de

complementariedade de funções permitem um real aproveitamento das

possibilidades narrativas da internet. As grandes reportagens multimídia vêm

ganhando cada vez mais destaque como apostas dos jornais on-line. Estes novos

formatos buscam uma real imersão do leitor na experiência de consumo de

informação jornalística na plataforma da internet. Um divisor de águas no contexto

8 Os impactos técnicos, éticos e legais da produção multimídia nas relações de trabalho das redações convergentes estão sendo estudados pelo autor em pesquisa de doutorado em andamento.

33

mais recente foi a reportagem Snow Fall 9, publicada pelo The New York Times em

2012. Com vídeos, áudios, animações e infográficos, a produção sobre uma

avalanche nos EUA estabeleceu um novo patamar e recebeu vários prêmios,

inclusive um Pulitzer.

O formato vai contra as características de superficialidade e imprecisão,

comumente associadas ao jornalismo on-line. A Pesquisa Brasileira de Mídia 2015

traz elementos que reforçam essa preocupação. É alarmante a baixa confiança que

os brasileiros têm no jornalismo produzido para a internet: a maioria dos

entrevistados afirmou confiar pouco ou nada nas notícias veiculadas em redes

sociais (71%), nos blogs (69%) e nos sites (67%). Em relação aos jornais

impressos, o índice dos leitores que confiam pouco ou nada nas notícias reduz para

40%.

No Brasil, a Folha de S. Paulo largou na frente ao trabalhar o formato com o

lançamento da série Tudo Sobre em dezembro de 2013. Na edição de estreia da

seção, Tudo Sobre Belo Monte, que abordou a construção da usina hidrelétrica no

Pará, a reportagem multimídia foi dividida em cinco capítulos, com textos,

fotografias, vídeos e infográficos (sendo um game). Conforme o expediente da

publicação, o trabalho envolveu 19 pessoas na produção, sendo três repórteres de

texto, um repórter fotográfico e um de vídeo, dois outros profissionais que fizeram

imagens complementares em fotografias e vídeos, uma equipe de 10 pessoas na

produção das infografias e na montagem do site, uma pessoa na elaboração da

linha do tempo (histórico de Belo Monte desde os anos 1980) e outra na tradução

do texto para o inglês. Nas edições seguintes, foi mantido e até ampliado o modelo

multidisciplinar com divisões de funções por áreas específicas.

No especial Tudo Sobre A Ditadura Militar, além dos três editores, atuaram

nove profissionais na produção de textos, entrevistas e pesquisa; cinco no design e

desenvolvimento do site; dois na pesquisa de imagens; cinco no tratamento de

imagens; um na edição de vídeo; e cinco nos infográficos animados. São, pelo

menos, 28 profissionais envolvidos diretamente – um mesmo jornalista aparece

com créditos na edição e na reportagem e outro profissional está tanto no grupo de

desenvolvimento do site quanto no dos infográficos.

9 Snow Fall. Publicado pelo The New York Times em 2012. Disponível em: <http://www.nytimes.

com/projects/2012/snow-fall/#/?part=tunnel-creek>. Visitado em junho de 2014.

34

No Tudo Sobre A Crise da Água, o expediente aponta seis jornalistas no

trabalho de reportagem; um na produção de fotos e vídeos; dois no projeto gráfico

e desenvolvimento; quatro na produção de infografias, ilustrações e animações; e

dois no tratamento de fotos, além dos editores de texto, de imagens e de arte. No

Tudo sobre O Contrabando no Brasil (Crime sem castigo), 12 repórteres

produziram os textos; dois as fotografias; cinco trabalharam nos vídeos; e seis nas

infografias.

Até aqui, funções como desenvolvimento do site e de infografias animadas,

além de produção e edição de vídeos são os exemplos mais comum de

incorporação da profissionais em relação ao trabalho produzindo para uma versão

impressa. Mas a edição mais recente, publicada em agosto de 2015, Tudo Sobre O

Rio em transformação, que trata da preparação da cidade para os Jogos Olímpicos

de 2016, demonstra uma diversificação ainda maior de atividades. De acordo com

o expediente do especial, foi mobilizada uma equipe de 12 repórteres (sendo que

dois destes coordenaram o trabalho e também participaram do processo de edição

final); um revisor, dois fotógrafos; 10 profissionais na área de vídeos (sendo que

destes 10, um é também um dos fotógrafos da reportagem e dois são também

repórteres de texto); nove profissionais nas áreas de infografia, desenvolvimento

do site e criação de um game; e um na narração. Considerando apenas estas

funções, são pelo menos 32 pessoas envolvidas diretamente (cada profissional que

aparece em mais de uma área é contabilizado apenas uma vez).

Mas o especial traz, ainda, conteúdos como uma HQ, onde o trabalho de

pesquisa de uma das repórteres é transformado em roteiro e em desenhos por

outros dois profissionais não citados no expediente. Ainda existem convidados

especiais, com o colunista Ruy Castro, que seleciona 50 canções que celebraram o

jeito carioca de viver; cinco chargistas da Folha mostram suas visões da

transformação do Rio com a Olimpíada de 2016; e um vídeo com o comediante

Gregorio Duvivier, que também é colunista da Folha. E o game, que “leva” o

internauta para um passeio de asa delta pelo Rio de Janeiro, creditado no

expediente por dois profissionais da Folha, foi feito em parceria com a IPN-

Incubadora – Associação para o Desenvolvimento de Actividades de Incubação de

Ideias e Empresas, uma instituição sem fins lucrativos criada em 2002 por

iniciativa do Instituto Pedro Nunes (IPN) e da Universidade de Coimbra, em

35

Portugal. Demonstração prática de que a produção multimídia das grandes

reportagens vai bem além das tradicionais funções do jornalismo.

Nas diferentes edições do Tudo Sobre, percebe-se a multimidialidade

trabalhada no contexto defendido por Salaverría (in CANAVILHAS, 2014), que

chama a atenção para a importância da integração eficiente entre os diferentes

elementos: o texto, o som, as imagens e o vídeo, assim como outros elementos que

possam surgir no futuro. O autor espanhol indica alguns critérios que facilitam a

coordenação de elementos multimídia na composição do material informativo. São

eles: 1) compatibilidade (usar elementos cujo seguimento simultâneo possa ser

realizado sem esforço para o público em geral, sem que exista uma competição

pela atenção do internauta que acabe dispersando-o), 2) complementaridade

(união de elementos que se enriqueçam mutuamente), 3) ausência de redundância

(um certo grau de repetição é aceitável e até desejável, mas a excessiva

redundância aborrece o público), 4) hierarquização (determinar qual é a

linguagem que melhor se adequa à transmissão de cada peça do conteúdo), 5)

ponderação (para limitações, como tempo, espaço, velocidade da internet, entre

outras) e 6) adaptação (respeito básico à plataforma on-line, com uso de

tipografias, cores e dimensões espaciais próprias do meio).

Salaverría já havia abordado a questão da prática multimídia em pesquisa ao

lado de Samuel Negredo (2009), quando alerta que a convergência não pode ser

apenas uma maquiagem digital para perpetuar o velho jornalismo e nem uma

desculpa para as redações trabalharem com equipes menores. Pelo contrário, os

autores sugerem o investimento em treinamento do pessoal para lidar com as

diferentes ferramentas que passam a ser incorporadas à rotina. E treinamento

exige inovações técnicas e mudanças de mentalidade. A ideia do jornalista

multimídia como um mesmo profissional que, aparentemente, pode realizar

qualquer tipo de tarefa no contexto da convergência das redações é vista como um

mito. Os pesquisadores argumentam que os profissionais multitarefas são

avaliados mais pelo número de funções que realizam e pela quantidade de

conteúdo que geram, do que por suas qualidades jornalísticas, o que acarreta em

pesadas consequências:

“Este modelo destrói a especialização técnica e gera produtos textuais e audiovisuais que são essencialmente medíocres. Pau para

36

toda obra, mestre em nada. Por outro lado, os trabalhadores multitarefa não têm o luxo de se concentrar em apenas um pedaço de informação. Em consequência, esse modelo de jornalista não aproveita a especialização temática e o conhecimento aprofundado do assunto. Como consequência, a maior vítima desta tendência do jornalista multitarefa – além dos próprios jornalistas – é a qualidade da informação, que aparece medíocre, tanto no aspecto técnico, como em conteúdo. Qualquer empresa de mídia que deseja permanecer no negócio corre grande risco no curto e longo prazo se adere a estas práticas” (NEGREDO; SALAVERRÍA, 2009, p. 63, tradução livre). 10

Como alternativas para minimizar os atritos resultantes da convergência, os

autores recomendam ações como formar jornalistas para que dominem as novas

tecnologias digitais; promover a troca de funções entre profissionais do impresso e

do on-line para que se habituem às diferentes plataformas; resolver as

disparidades salariais entre os diversos meios; colocar em posições de chefia os

profissionais que tenham experiência jornalística, capacidade de mando e

conhecimento do mundo digital; e planejar a integração para reforçar a imagem da

marca em todos os suportes apostando na colaboração franca entre os jornalistas.

Considerações finais

Com a transformação dos formatos de apresentação de materiais

jornalísticos e dos processos de produção, é natural que ocorram mudanças

também no perfil dos profissionais das redações convergentes e que novas funções

apareçam. É uma mudança que vai além de um domínio técnico das novas

ferramentas, que acompanha tantas outras profissões diante dos avanços

tecnológicos. No jornalismo, o papel de contar histórias na linguagem da internet

exige uma nova forma de pensar, de apurar e de trabalhar em equipe. A

experimentação e o método tentativa e erro podem até fazer parte do novo

cenário, mas é com investimento em planejamento, treinamento e equipe que

10 “This model destroys technical specialization and generates textual and audiovisual products that are

essentially mediocre. Jack of all trades, master of none. On the other hand, multitasking workers do not

have the luxury of concentrating on only one piece of information. In consequence, this model of

journalist does not enjoy theme specialization and in depth knowledge of the subject. As a consequence,

the greatest victim of this tendency of the multitask journalist – besides the journalists himself – is the

quality of the information, that comes out as mediocre both in the technical aspect as well as content-

wise. Any media company that wishes to stay in business runs great risk in the short and long term if it

sticks to these practices” (texto original).

37

aumentam as chances de bons resultados. As grandes reportagens multimídia, a

exemplo dos especiais Tudo Sobre, têm demonstrado isso.

Assim como Negredo e Salaverría (2009) e Sant’Anna (2008), pesquisadores

como Mick (2015), Figaro (2013) e Áviles (2006) também defendem que a

convergência das redações não pode ser uma desculpa para reduzir pessoal. A

convergência das redações deve, sim, consolidar a passagem do jornalismo de

justaposição, onde mídias diferentes são diagramadas em conjunto mas sem

estarem realmente integradas; para a reportagem como uma experiência de

imersão proporcionada por peças que se complementam e formam uma nova

unidade multimídia. Para consolidação como um futuro promissor, o atual

processo de convergência das redações precisa ir muito além de mantras como

“todo mundo faz tudo” ou “produzir mais com menos”. É preciso investir em

equipe, em qualificação e diversificação profissional. A preocupação com a

qualidade do material final não pode desaparecer diante de uma necessidade de

economia financeira.

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39

Sensacionalismo e jornalismo ambiental: alguns apontamentos

Eutalita Bezerra da Silva11

Filipe Peixoto12

Laira Campos13

Mariana Oselame14

Resumo:

Vender o produto "notícia” demanda estratégias. Dentre estas, destacamos a

busca pelo sensacional, que se reinventa ao longo dos anos. O jornalismo ambiental,

que nasceu com um cunho catastrófico, tem construído uma ruptura com o olhar

fantasioso e espetacular, a fim de mobilizar o leitor/espectador. Neste estudo,

discutimos esta aproximação/afastamento, por meio de revisão bibliográfica.

Palavras-chave: História do jornalismo; Indústria Cultural; Jornalismo Ambiental;

Sensacionalismo

Introdução

“Os jornais são organismos político-financeiros e não se propõem divulgar as

belas-letras em suas colunas, a não ser que estas belas-letras aumentem a receita”.

Gramsci (2002b, p. 40), em seus apontamentos, já propunha que a imprensa é um

negócio como qualquer outro, e como tal, dentro de um sistema capitalista, trabalha à

vista de lucro e se envolve com causas que rendam dividendos. No afã de aproximar-se

de um número maior de consumidores do produto “notícia” e assim aumentar seus

ganhos, o jornalismo se vale, desde os tempos mais remotos, de estratégias várias,

dentre as quais o sensacionalismo, por meio do qual busca que o leitor/espectador se

envolva emocionalmente com a narrativa. O gosto pela catástrofe, a emoção, o show, a

aproximação do público com o evento e a supervalorização de aspectos referentes a ele

fazem parte desta construção.

11 Mestranda em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante

dos grupos de pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS) e Televisão e Audiência – GPTV

(CNPq/UFRGS/PUCRS). e-mail: [email protected] 12 Mestrando em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante

do grupo de pesquisa Televisão e Audiência – GPTV (CNPq/UFRGS/PUCRS). e-mail:

[email protected] 13 Mestranda em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integrante

do grupo de pesquisa Televisão e Audiência – GPTV (CNPq/UFRGS/PUCRS). e-mail:

[email protected] 14 Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Integrante

do grupo de pesquisa Televisão e Audiência – GPTV (CNPq/UFRGS/PUCRS). e-mail:

[email protected]

40

Neste artigo, buscamos refletir por meio de revisão bibliográfica sobre a

proximidade permanente do jornalismo com o aspecto sensacional, atentando para uma

de suas especialidades, o jornalismo de meio ambiente, que surgiu cobrindo catástrofes

- e ainda hoje tem nelas um de seus pontos fortes, ja que atua diretamente com o risco -

mas que no decorrer dos anos busca exatamente um distanciamento das coberturas que

têm este viés. Isto porque, se em algumas especialidades jornalísticas esta narrativa é

apenas considerada popular ou coloquial, no que concerne ao jornalismo de meio

ambiente – que se pretende mobilizador e pedagógico - se tem uma posição de repulsa

ao sensacionalismo, já que, conforme estudos anteriores (VICTOR, 2009), ele promove

a inércia da população, ao afirmar que nada se pode fazer para conter a fúria da

natureza.

Para tanto, nos deteremos especialmente nos teóricos da comunicação Adorno e

Horkheimer, que conceituaram a Indústria Cultural, acionaremos conceitos de Guy

Debord (2003), que discorreu em seus estudos sobre a sociedade do espetáculo, além de

autores do jornalismo ambiental tais como Bueno (2007), Belmonte (2004) e Girardi

(2010).

A indústria cultural e o comércio de notícias

Surgido no final da década de 40, o termo “indústria cultural”, criado pelos

pensadores frankfurtianos Theodor W. Adorno e Max Horkheimer,visava a dar conta de

uma forma de mercantilização da cultura surgida com o desenvolvimento de novas

tecnologias. Segundo os autores, a indústria cultural se ocupava de produzir e

comercializar cultura, retirando desta seu caráter criativo e espontâneo, e a

transformando em mercadoria. O conceito, conforme Rüdiger (2001, p. 138), não se

refere às empresas de comunicação nem às técnicas utilizadas, mas a “uma prática

social, através da qual a produção cultural e intelectual passa a ser orientada em função

de sua possibilidade de consumo no mercado”.

Referindo-se especialmente às artes, dentre as quais a música (no rádio) e o filme

(no cinema), Adorno e Horkheimer problematizaram a produção destes bens para o

consumo massificado e para o seu rápido descarte, “como latas de conserva”. Eles

apontaram que, dentro desta indústria e de sua lógica capitalista, necessidades são

criadas e por ela mesma supridas, como numa auto-alienação. Para oferecer

determinado produto ao público, então, a indústria imporia métodos de reprodução e

41

estes satisfariam necessidades iguais, em locais diferentes, com produtos

estandardizados.

Ainda sobre o assunto, os autores apontam que há uma regulação do consumo,

ao ponto de se afastar o risco do não experimentado e se buscar sempre o já sabido, o

jargão (p. 172). Conforme suas leituras, “os cineastas afastam com suspeita todo

manuscrito atrás do qual não encontrem um tranquilizante best-seller”. A indústria

cultural também se utiliza do trágico, registrando e planificando a dor de quem passa

por uma tragédia, conforme Adorno e Horkheimer. “O trágico torna interessante o tédio

da felicidade consagrada e torna o interessante acessível a todos” (p.188)

Quando aplicamos o conceito de indústria cultural ao jornalismo praticado

atualmente, percebemos que em muito se tocam. Nelson Traquina (2012, p. 22), ao

discorrer sobre o que é o jornalismo, já pontuava que este não é apenas o domínio

técnico da linguagem e seus formatos, mas “uma atividade criativa, plenamente

demonstrada, de forma periódica, pela invenção de novas palavras e pela construção do

mundo em notícias, embora seja uma criatividade restringida pela tirania do tempo, dos

formatos e das hierarquias superiores, possivelmente do próprio dono da empresa”.

Sabemos que, com o tempo, os conglomerados midiáticos se apossaram do monopólio

da produção cultural, seja esta para o entretenimento ou a informação. Neste sentido, o

jornalismo dialoga diretamente com o formato de mercantilização descrito pela indústria

cultural que, no seu caso, é a venda do produto “notícia”.

No jornalismo, as pessoas não compram diretamente a informação, mas são

levadas a consumir a publicidade que se espalha em suas páginas e por meio da qual ele

se sustenta. É notório que, no contexto da informação como negócio, e aqui tomando

como exemplo clássico o jornalismo impresso, as notícias preenchem o espaço deixado

pela publicidade, cujas cotas são responsáveis pela receita que mantém o veículo. Não é

diferente na televisão, onde os intervalos comerciais dos horários mais assistidos são

responsáveis por boa parte do faturamento dessas mídias. Não à toa - afinal dependem

desta para a sobrevivência – o jornalismo padece de uma pressão destas empresas para

que adéqüe sua produção ao que é interessante (novamente do ponto de vista

mercadológico) para elas. Lippmann, por sua vez, reflete que a imprensa não é um

negócio puro e simples, porque é vendido abaixo de custo e sobre ele repousa um dever

ético do qual nenhuma outra atividade de negócios é cobrada.

Assim, pode-se questionar: como o jornalismo busca os consumidores? Quem

está disposto a pagar e pelo quê? Neste sentido, podemos retomar Adorno e

42

Horkheimer, quando, em seus escritos, apontam que “A impudência da pergunta

retórica “Que é que a gente quer?” consiste em se dirigir às pessoas fingindo tratá-las

como sujeitos pensantes, quando seu fito na verdade é o de desabituá-las ao contato com

a subjetividade” (p. 182). Refletindo acerca, temos que o jornalismo, dentro deste

contexto de indústria cultural, não está verdadeiramente preocupado em oferecer aquilo

que, de fato, o público quer (possivelmente nem se conheça o que é), mas em formar

públicos interessados naquilo que o jornalismo pretende oferecer-lhes. Sobre isto,

voltemos à indústria cultural e sua capacidade de gerar demandas. Entendemos que é

disto que o jornalismo se ocupa: em seu esforço de recriar a realidade, ele se pauta por

uma audiência presumida, isto é, por um público médio, que ele mesmo ajudou a criar, e

fornece a estas pessoas as notícias que ele acredita que lhes farão comprar o jornal (e,

porque não, as mercadorias – além da notícia - vendidas nele).

A notícia sensacionalista

“Na leitura da notícia excepcional, grotesca, erótica, violenta, o leitor libera

afisionomia própria dos seus sonhos, desejos, temores e horrores. A projeção no sósia,

personagem do fato, permite a expulsão fora de si dos sentimentos de medo, mal,

fatalidade, violação de tabus e leis, que estão obscuros em si”. De acordo com Pedroso

(2001, p. 51), existe no público uma espécie de catarse ao consumir notícias

sensacionalistas. Antes dele, Debord (2003), já apontava que as modernas condições de

produção deram origem à sociedade do espetáculo, que se interessa pelo grandioso,

positivo, indiscutível e inacessível. Ainda em seus apontamentos, ele afirma que “a raiz

do espetáculo está no terreno da economia que se tornou abundante”. No jornalismo, o

espetáculo é um dos pontos que são, de certa maneira, consensuais dentro daquilo que

se acredita (ou se quer fazer) interessar ao público. No seu fazer diário, a

espetacularização toma forma por meio de notícias sensacionalistas, que são pouco

aprofundadas, porém apresentam supervalorização de aspectos nefastos, trágicos ou

cômicos, por exemplo.

Em dissertação sobre o sensacionalismo nos jornais policiais, Romão (2013) aponta

que existe uma estrutura estereotipada na construção das notícias, semelhante à

apresentação de conteúdos inerentes à indústria cultural. Segundo ele, os repetitivos

apelos a determinados assuntos e à dramatização, sempre realizadas dentro de um

modelo pré-determinado, mostram que não é preocupação do jornalismo produzir algo

novo, mas travestir a informação repetida como um material único e inédito.

43

Apresentando informações desta maneira, o jornalismo busca se certificar de que

terá compradores para as suas notícias. Sejam estas positivas ou negativas, o que vale é

que tenham apelo junto ao público. Para dar conta deste show, montado diariamente, o

jornalismo se vale de muitas imagens, dramatizações, figuras de linguagem e pouca

discussão, afinal, fazendo uma nova digressão para o discurso de Adorno e Horkheimer

ao conceituar a indústria cultural, é preciso que a vida se assemelhe ao filme, mas que se

evite um pensamento crítico que ultrapasse o esperado, o conhecido. Não se quer um

final que não seja de best-seller. Para isso,“Eles (os produtos) são feitos de modo que a

sua apreensão adequada se exige, por um lado, rapidez de percepção, capacidade de

observação e competência específica, por outro lado é feita de modo a vetar, de fato, a

atividade mental do espectador”(p. 165), romantizando as situações e o conduzindo à

inércia.

O público, que recebe esta informação e entende o jornalismo como autoridade

desinteressada e imparcial, já que não há um pagamento direto pelos seus serviços

(LIPPMANN, 2010, p. 197), pode assumir o que é dito com mais facilidade, tornando-

se, de fato, passivo, frente ao que é mostrado, postura que será problematizada a seguir.

Percebe-se, com isto, que espetacularizar é, também, afastar o leitor/espectador de seu

posicionamento político, algo que rompe com o próprio dever ser da profissão, em que

se preconiza a informação para a formação de indivíduos cônscios de seus direitos e

deveres.

·2 As catástrofes no jornalismo ambiental

Já caminhamos pela indústria cultural, sua padronização de interesses e criação de

demandas, como também pela facilidade que ela encontra em se desenvolver numa

sociedade que prima pelo espetáculo, pelo sensacional. No contexto específico do

jornalismo, como dito, a venda de notícias com este tom é um atrativo para o público e,

consequentemente, reverte-se em renda para o veículo e seus anunciantes. Propomos,

agora, direcionar a observação para uma das áreas do jornalismo que mais padecem das

dramatizações e catastrofismo típicos do show fornecido pela indústria cultural: a

cobertura sobre meio ambiente.

O jornalismo ambiental nasceu na década de 60 cobrindo tragédias e suas implicações

sociais e denunciando o modelo de desenvolvimento econômico da época, considerado

insustentável (VICTOR, 2009). Ancorado nas crescentes discussões sobre as questões

climáticas, esta especialização do jornalismo foi ganhando espaço a partir da

44

Conferência de Estocolmo, realizada em 1972 na Suécia, mas foi a partir da metade da

década de 1980 que as investigações acerca do jornalismo ambientalcomeçaram a ser

publicadas, ainda de forma esparsa. Mas foi a década de 90, com ECO-92, que contou

com a cobertura de aproximadamente 9 mil jornalistas de todo o mundo que a pauta

ambiental passou a figurar de fato na mídia, e os estudos sobre o assunto se tornaram

mais amplos. Outros momentos de grande produção de reportagens e pesquisasdentro

do jornalismo ambiental ocorreu com a assinatura do Protocolo de Kyoto(1997) e com a

divulgação dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas

(2007).

Baccheta (2000) conceitua o jornalismo ambiental como o tratamento concedido

pelos meios de comunicação de massa aos temas relacionados ao meio ambiente. Ainda

segundo ele, se considerarmos o meio ambiente como um conjunto de sistemas naturais

e sociais nos quais habita o homem e demais seres vivos, teremos um dos gêneros mais

amplos e complexos, embora seja um fenômeno recente. Conforme Girardi et al (2013),

o jornalismo ambiental busca a inclusão de uma visão holística e sua conexão com o

todo, por meio do qual se produz notícias mais contextualizadas e menos fragmentadas.

Segundo os autores, o jornalismo ambiental parte de uma nova concepção teórica-

prática centrada no agir e no pensar o jornalismo, a partir da ótica da sustentabilidade do

planeta, buscando a ampliação do número de fontes da área a serem consultadas, o

aprofundamento do conteúdo e a abordagem qualificada das notícias de meio

ambiente.” (p.74)

É notório que o meio ambiente ocupa um espaço ainda pequeno na imprensa e

boa parte daquilo que a esta cobertura é despendido na mídia hegemônica está pautado

pela supervalorização dos aspectos trágicos ou curiosos sobre o assunto, se

assemelhando aos primórdios deste gênero. Previsões de fim do mundo se mesclam às

discussões sobre a fúria da natureza, num show de horrores, mas ao mesmo tempo, de

magia e emoção. Retomando o dito na indústria cultural, o trágico, neste caso, serve

para colocar o indivíduo em posição de aceitação, à medida que ele somente acompanha

o que acontece. “Ela (a cultura industrializada) ensina e difunde a condição de que a

vida desumana pode ser tolerada. O indivíduo deve utilizar o seu desgosto geral como

impulso para abandonar-se ao poder coletivo do qual está cansado” (ADORNO;

HORKHEIMER, 2002, p.190)

Conforme Tautz (2004), existe um modelo de notícia insustentável, “centrado na

sucessão veloz das imagens e informações espetaculares e não no debate da origem e da

45

superação dos problemas que atingem comunidades locais”. Ainda segundo ele, esse

modelo de notícia baseia-se na exploração do superficial, da aparência, da sensação

rápida, em um emaranhado de sentimentos que estimula a vontade consumista, mas

pouco subsidia a formação de opinião acerca de determinado assunto. Para o autor (p.

170), “só um grande conglomerado consegue colocar em prática e sustentar a

alimentação infinita de sensações causadas pela notícia-espetáculo”.

Um dos problemas principais nesta espetacularização da notícia é o pouco

aprofundamento dado. Conforme Belmonte (2004, p. 18), o que predomina no noticiário

sobre meio ambiente, por exemplo, é a cobertura pontual, com destaque para os

momentos de crise, especialmente as grandes desgraças, e pouco espaço para análises,

investigações, interpretações e apresentação de novos caminhos. Ainda segundo ele, “o

tema ambiental vai e vem ao sabor das tragédias” (p. 22). Desta forma, apesar de

promover um envolvimento do público com o tema, este ainda fica muito distante de

sua realidade local. Isto é, fala-se, por exemplo, sobre as mortes causadas pelas chuvas

nos morros do Rio de Janeiro. As chamadas são enfáticas, emocionantes, ruidosas e

tentam manifestar a emoção das pessoas acerca do que aconteceu, mas não se relaciona

o fato, por exemplo, com as construções aprovadas pelo governo em locais de

escoamento ou ainda sobre o padrão de consumo que leva à alta produção de lixo e

entupimento de galerias com estes dejetos. Do mesmo modo, o apelo ao sensacional

também aparece no culto ao belo, na natureza como mãe, sagrada e nascedouro de todas

as coisas. A separação entre cidade, homem e natureza, nestes casos, é latente. O verde

é uma ocupação constante, pois por meio dele pode-se supervalorizar as emoções.

Se tomarmos a questão climática como exemplo, teremos visões distintas sobre

o futuro do planeta sendo discutidos ad infinitum na imprensa. Se para alguns,

ancorados em determinada corrente teórica, trata-se de situação cíclica e que não há o

que se possa fazer, para outros, apoiados em outra corrente, a ação antrópica de fato

interfere no aquecimento global. De forma que, se o jornalismo encara apenas um

desses lados – e pelo seu interesse no consumo, possivelmente o ideal econômico seria

não refreá-lo – a população pode ficar inerte e evitar sequer tentar uma mudança no seu

modo de vida.

Como visto, apesar de ainda muito preso aos ditames da mídia

hegemônica e à mercantilização das notícias dentro da indústria cultural, o jornalismo

ambiental busca prosseguir nas discussões, deixando para trás este caráter catastrófico,

que leva o público à inércia. Sobre o assunto, Belmonte (2004, p.29) ainda aponta que

46

“Não basta descrever a crise gerando pânico e medo. É preciso continuar a pauta,

manter no noticiário o debate indo além do alarme ajudando a encontrar as saídas”.

Por um efeito de conclusão

A indústria cultural, conforme Adorno e Horkheimer, oferece como paraíso a

mesma vida cotidiana. Referindo-se à arte, os autores apontam que é por meio do

divertimento, do amusement, que o público se resigna da vida real e busca esquecer as

suas mazelas. Quando este comportamento perpassa o entretenimento e chega à

informação, temos uma problemática importante: se nos ativermos ao excepcional, ao

fantástico, como poderemos nos apropriar do local como ele é? Consequentemente, que

prejuízos terão as práticas cotidianas se estivermos desconectados da realidade (ainda

que recontada pelo jornalismo), por nos atermos ao espetáculo?

Entendemos o jornalismo como atividade política, sendo os atuantes nesta área,

como preconiza o próprio código deontológico da profissão, responsáveis por relatar

fatos com rigor e exatidão. É do mesmo código o artigo em que se aponta o dever do

jornalista de combater a censura e o sensacionalismo. Assim, submeter-se aos ditames

da imprensa hegemônica, oferecendo um produto estandardizado e espetacularizado, é ir

contra o próprio dever ser do jornalismo. Ademais, no que tange especialmente ao

jornalismo ambiental, com o qual temos trabalhado, não é possível fazê-lo sem uma

imersão nas pautas, sem um olhar holístico e atento aos espaços, tanto locais, quanto

globais, evitando o alarme, embora estando este trabalho intimamente ligado à noção de

risco.

Desta maneira, entendemos que a inércia causada pelo alarmismo descontrolado e

gigantismo cego proposto pela inserção na indústria cultural não colaboram no

desenvolvimento de uma consciência e reflexão críticas acerca das questões ambientais,

o que inviabiliza a cobrança de políticas públicas capazes de refrear a degradação do

meio, mantendo à porta, diariamente, riscos que poderiam ser dispensáveis, face à

mudança de hábitos . Como ator político, o jornalista que se pauta no sensacionalismo e

na venda de notícias como único fim do seu trabalho retira de si e do seu público a

possibilidade de revisão de seus paradigmas.

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47

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Web analytics no jornalismo digital: o que sabemos sobre o assunto?

49

Paulo Serpa Antunes15

Resumo: É chamado de web analytics o processo de coletar, medir e analisar a

audiência de websites. Este trabalho busca reunir e sistematizar o que já foi dito sobre a

questão da mensuração de audiência no jornalismo digital no campo da pesquisa em

Comunicação no Brasil, organizando informações a respeito para futuras pesquisas.

Neste momento, justifica-se esta opção pelo levantamento de informações, dado que o

senso comum sugere que o uso de ferramentas de medição de audiência tem levado os

sites jornalísticos a apostar em conteúdo sensacionalista e apelativo, buscando maior

audiência e maiores receitas publicitárias. Contudo, verificamos que poucas pesquisas

foram feitas no país para confirmar ou derrubar esta tese.

Palavras-chave: Comunicação Social. Jornalismo Digital. Web Analytics. Métricas.

Audiência. Monetização.

Introdução

“Pageviews will lead to nothing but cats, and crap”16. O aforismo polêmico foi

dito pelo professor Jeff Jarvis, da CUNY Graduate School of Journalism, em palestra no

67º World News Media Congress, realizado em junho de 2015 em Washington, D.C.. A

declaração é um alerta os veículos de imprensa sobre os riscos de perseguir a qualquer

custo elevados índices de audiência para os seus websites, buscando assim maior

retorno financeiro com publicidade.

Jarvis fala em pageviews, a métrica mais usada para medir a audiência de um

site, o contador que registra o número de vezes que determinada página foi vista17. E

fala ainda em gatos e lixo, sintetizando assim aquele tipo de conteúdo que não tem

nenhum valor jornalístico, mas costuma gerar muitos pageviews.

A declaração de Jarvis converge para algo que costumamos comentar ao

observar as chamadas de capa dos grandes portais e dos sites de notícias: uma

valorização de fait divers, reportagens sobre crimes, fofocas de celebridades, fotos de

paparazzi, reprodução de memes e conteúdo de variedades organizado em listas, no

1 Jornalista especialista em jornalismo digital, mestrando em Comunicação Social na PUCRS. E-mail:

[email protected] 16 “Pageviews não nos levarão a nada, a não ser a gatos, ou lixo”, em uma tradução livre. A declaração foi

registrada em reportagem de Edge (2015). 17 Adaptado da definição da Digital Analytics Association, disponível em

<http://www.digitalanalyticsassociation.org/Files/PDF_standards/WebAnalyticsDefinitions.pdf>.

50

modelo popularizado pelo site de entretenimento BuzzFeed. Deduzimos que os sites de

notícia apostam em conteúdo apelativo e sensacionalista para atrair mais audiência e

assim garantir maiores receitas publicitárias. Mas, aparentemente, parece que pouco se

estudou na área da Comunicação Social sobre a adoção e o uso por veículos de

comunicação do web analytics, como é chamado o processo de coleta, medição e

análise de comportamento da audiência18.

Afinal, os veículos de comunicação na internet estão fazendo tudo por

audiência? Acreditamos que este é um tema que precisa ser aprofundado e buscamos,

neste artigo, reunir referências bibliográficas para uma melhor compreensão da questão.

O tema vem sendo problematizado por pesquisadores de outros países há algum tempo

– podemos destacar a própria obra de Jarvis (2014) – e é parte importante (quando não o

objeto central) em pesquisas etnográficas como as de Tandoc Jr. (2014), Boyer (2013) e

outros.

Pra uma primeira abordagem ao assunto, optamos por pesquisar como o web

analytics e seus usos pelos jornalistas aparecem nas pesquisas em Comunicação no

Brasil.

A medição de audiência e a atividade jornalística

Nosso levantamento em bases de dados e periódicos brasileiros na área de

Comunicação não encontrou pesquisas que tratassem diretamente sobre a adoção e uso

de ferramentas de mensuração de audiência por sites e portais de notícias. O tema, no

entanto, é referenciado em diversas pesquisas sobre jornalismo digital, em trabalhos

focados em outros temas.

Um destes temas é a convergência no jornalismo. Saad Corrêa (2008) propôs

uma metodologia para pesquisas sobre a convergência nas empresas de comunicação,

observando que a convergência nas empresas envolve múltiplas áreas e diversos

processos. Em termos de organização e gestão, uma destas etapas se dá através da

reconfiguração das redações especializadas – o que acostumamos a chamar de

integração. Corrêa descreve assim uma redação integrada:

...a integração tem como ponto em comum o meio online e o uso de

um formato físico radial a partir de um superdesk central; os processos

de integração vêm acompanhados por uma preocupação com a

movimentação de audiência, seja pelo monitoramento do tráfego via

18 A definição é da Digital Analytics Association e está disponível em

<http://www.digitalanalyticsassociation.org/Files/PDF_standards/WebAnalyticsDefinitions.pdf>.

Tradução nossa.

51

paredes digitais instaladas na redação, seja pela oferta de espaço,

ferramentas e voz para os usuários (SAAD CORRÊA, 2008, p. 43)

Da imagem que a pesquisadora constrói da redação integrada, chama a atenção a

descrição do monitoramento ostensivo do tráfego dos websites. Esta configuração foi

observada por Vieira (2014) em pesquisa junto às redações de O Globo e Zero Hora:

Nas entrevistas presenciais, foi muito interessante perceber como se

estruturam as redações atualmente. Em O Globo e na Zero Hora,

chamou atenção a imagem do Google Analytics projetada nas grandes

TVs. Isso quer dizer que todos podem acompanhar, em tempo real, as

notícias mais lidas (e as menos lidas também), o número de acessos ao

site, entre outras métricas. Trata-se de algo impensável há pouco mais

de uma década. Mas o que era para ser uma revolução acaba por

causar estranheza: quais são as consequências de uma quase devoção a

esses números? Será que eles precisam mesmo ficar projetados, não

seria isso uma pressão um pouco cruel? (VIEIRA, 2014, p. 213-214)

A relação dos jornalistas com estas ferramentas de medição de audiência

aparecem também em alguns estudos de caso. Em uma pesquisa sobre os processos de

produção de conteúdo digital em sites do Grupo RBS e Record no Rio Grande do Sul,

Dorneles e Froemming (2014), percebem nos veículos dos dois grupos uma “maior

preocupação em agradar o leitor, ver o que rende audiência”. Profissionais entrevistados

dos dois grupos de comunicação também foram convidados a apontar os recursos

tecnológicos que marcaram seus processos de produção e trouxeram mudanças

impactantes em seu modo de trabalhar. Eles citaram como marcos tecnológicos

instrumentos como a máquina de escrever, o telefone, o computador e o e-mail, em uma

longa lista que termina justamente com o item “análise de audiência em tempo real”.

Um dos entrevistados pela pesquisa, que atua na gestão e produção do site de

uma destas empresas, identificado com as iniciais T.S., afirma:

“A interação do leitor pode mudar completamente uma matéria, ‘virar’

a matéria. A análise de audiência em tempo real mudou o jornalismo.

A gente se baseia muito pela audiência, mudamos capas, sobe, desce

matéria. A grande diferença do papel e internet é esta, ficamos

sabendo na hora que o leitor quer As redes sociais são um teste,

termômetro, se tiver bem nas redes, sobe na área quente do site. A

reação das pessoas é instantânea, tu tens um retorno e começa a

acertar”. (DORNELES; FROEMMING, 2014, p. 15)

O webjornalismo, ainda sem o amparo de um modelo de negócios consolidado e

apoiado neste poderoso aparato de monitoramento da audiência capaz de gerar dados da

performance do conteúdo gerado por cada repórter, parece mesmo provocar importantes

mudanças na prática do jornalismo, porque torna o trabalho quantificável. Vamos

52

encontrar então poucas referências diretas ao web analytics, mas muitas referências ao

jornalista focado em gerar audiência, ou mesmo em gerar retorno financeiro à empresa.

É o que sugere a entrevista que Marocco (2012) conduziu com Liana Pithan, na época

chefe de reportagem do portal Terra:

Liana: (...) o repórter de on-line tem muita noção do que ele custa para

a empresa. São redações menores e temos que dar uma resposta de

audiência, de retorno. Em jornal, se pensa assim: isto é um problema

comercial, eu estou aqui, estou fazendo jornalismo, uma coisa nobre, o

comercial que se vire para catar anunciante. Não se pensa que o

anunciante só vai vir se o teu produto tiver leitor. O teu produto terá

leitor se o jornalismo que ele entregar for bom. No on-line tens muito

presente que, se tens a audiência, vais ter patrocinador, que é o que

paga o nosso salário, mas isso só vai acontecer se fizermos um bom

jornalismo e um jornalismo rápido. (MAROCCO, 2012, p, 190).

A chefe de reportagem cria a imagem de jornalista consciente da necessidade de

“dar uma resposta de audiência” (MAROCCO, 2012, p, 190). Nesta mesta linha, tese de

Agnez (2011), que aborda a adoção dos processos de convergência nos jornais Tribuna

do Norte e Extra, relata a pressão sobre os jornalistas que antes apenas escreviam para

que passem a produzir conteúdo multimídia. Um dos profissionais entrevistados reduz

esta exigência editorial a uma necessidade comercial: “Vídeo para que? Pra me dar mais

audiência” (AGNEZ, 2011, p.128).

Barsotti (2012), em dissertação que aborda a reconfiguração das funções dos

jornalistas, observa que a audiência “pode ser cirurgicamente medida por meio de

sistemas de métricas próprios da web” (p. 164). Na pesquisa, observou o trabalho e

conduziu entrevistas com as editoras de capa dos sites dos jornais O Globo e Extra. O

trabalho não cita diretamente o uso de nenhuma ferramenta de web analytics, mas

mostra uma grande preocupação dos editores em interpretar outra ferramenta de

mensuração de audiência: a caixa que mostra os textos mais lidos e comentados dos

sites. A pesquisa faz uma exaustiva análise do conteúdo que ganha destaque nos sites e

levanta dados que corroboram a frase de Jarvis que abre este artigo. Sobre o Extra,

Barsotti observa: “o enorme destaque dado ao noticiário de celebridades é estratégico

para alavancar a audiência do site” (2012, p. 152).

A preocupação com a audiência nos sites jornalísticos ultrapassa a questão dos

critérios de seleção da notícia para definir os destaques de capa dos portais. Ela já se faz

presente em outras fases do trabalho do jornalista que produz conteúdo para a web. Na

prática da redação, a audiência provoca a redefinição de um dos principais elementos

textuais da notícia: o título. O objetivo do título não se restringe mais a atrair a atenção

53

do leitor, mas a ganhar uma posição de destaque nos resultados das ferramentas de

busca na Internet, como o Google. Bertolini (2015, p. 5) descreve que através de

técnicas de SEO (search engine optimization, ou, traduzindo, ferramenta para

otimização de busca), a audiência do site pode ser potencializada: “Estar bem

posicionado nos buscadores é fundamental para a audiência porque, com alguma

variação para mais ou para menos, 50% dos acessos vêm por esses canais - o leitor

parece preferir escrever palavras-chave em buscadores a digitar o endereço do site”.

Técnicas de SEO tendem, portanto, a serem adotadas nas redações, “convertendo

audiência em rendimentos” (SILVA; TONUS, 2014). O título pensado para a indexação

da matéria é chamado por Bertolini (2015, p. 5) de “título motorizado” e é descrito

como caracterizado pela repetição das palavras-chave usadas em determinada cobertura

jornalística.

A preocupação com os números de audiência já faz parte da prática do

jornalismo digital e se verifica também em pesquisas que buscam traçar um perfil

atualizado deste profissional. A pesquisa de Träsel (2014), sobre profissionais que

trabalham com jornalismo guiado por dados, traça um detalhado perfil, a partir de

pesquisa bibliográfica, do jornalista no cenário atual, de crise na identidade profissional

e de forte impacto da tecnologia. O trecho abaixo sintetiza esta problemática:

Um bom jornalista, neste contexto, era aquele capaz de prever as

construções de manchetes e títulos que mais atrairiam audiência, fosse

via cliques diretos na capa do webjornal, fosse através de boas práticas

de SEO que posicionassem as matérias favoravelmente em resultados

de ferramentas de busca. Embora essa situação possa ser interpretada

como uma vitória do maquinismo, da automatização sobre o intelecto

humano, isto é, o juízo jornalístico, os profissionais entendiam os

números de audiência como um instrumento de aperfeiçoamento

praxiológico. Alguns inclusive pareciam ver nas métricas uma forma

de interação em tempo real com uma audiência nacional, que lhes

permitia melhor atender ao interesse público ao delinear um retrato

mais preciso da audiência. O uso de métricas no juízo jornalístico

causava tensão na cultura profissional, entretanto, pois alguns de seus

membros se mostravam ansiosos com uma possível dissolução da

esfera pública num agregado de interesses privados, uma vez que o

comportamento de cada um dos leitores pode ser acompanhado

individualmente, hoje. O resultado dessa atomização da audiência

imaginada das redações questiona a autoridade epistêmica dos

jornalistas como intérpretes do interesse público e nesse ponto

encontrava resistência. (TRÄSEL, 2014, p. 85)

Encontramos referência ao web analytics ainda em outras pesquisas, em

diferentes contextos. Silva (2010) propõe que as ferramentas de medição de audiência,

54

usadas em conjunto com outros instrumentos, poderiam auxiliar em pesquisas sobre a

hipótese de agenda-setting na web. O web analytics também se prestaria ainda para

estudos de recepção centrados em um determinado site (NATANSOHN, 2007).

Se o web analytics é um marco tecnológico do jornalismo, é esperado que a

aprendizagem do uso deste tipo de software seja estimulada nas universidades. E, de

fato, o Manual de laboratório de jornalismo na Internet, de Palácios e Ribas (2007, p.

22) inclui um exercício estimulando aos estudantes, após criarem seus weblogs, a

instalar um serviço gratuito de medição de audiência e gerar relatórios regularmente.

Conclusões

Este levantamento bibliográfico partiu de um pressuposto: de que pouco se

debruçou nas pesquisas sobre o jornalismo digital no Brasil sobre a adoção e o uso por

parte dos jornalistas das ferramentas mensuração da audiência de sites e portais e seus

impactos. De fato, o assunto se faz presente em diferentes tipos de trabalhos, mas nunca

como objeto central da pesquisa.

Verificou-se que o web analytics (ou indiretamente, a preocupação com a

audiência), se faz presente no dia-a-dia da profissão: exposto em telões na redação de O

Globo e Zero Hora, influenciando a decisão de editores dos sites da RBS, Record e

Globo (e provavelmente de todos os outros veículos na internet) e mudando elementos

da notícia, como os títulos das matérias. Ele se faz presente em estudos sobre

convergência (CORRÊA, 2008), newsmaking (AGNEZ, 2011), gatekeeping e

gatewatching (BARSOTTI, 2012), agenda-setting (SILVA, 2010) e no delineamento

das atuais competências do jornalista (TRÄSEL, 2014).

Ao longo deste levantamento bibliográfico levantamos observações que parecem

convergir para a declaração de Jarvis de que o uso do web analytics tende a empobrecer

o jornalismo – ainda que algumas referências percebam um certo grau de satisfação e

entusiasmo dos webjornalistas em ter o feedback em tempo real de qual o conteúdo que

está caindo no gosto do leitor. Mas até aonde vai a influência da audiência? Será que os

veículos correm mesmo o risco de radicalizar em busca de audiência e abandonar seus

valores-notícia e seus critérios editoriais? O noticiário corre mesmo o risco de ser

dominado por gatos e lixo em geral?

Se faz necessário mais estudos sobre este tema, especialmente através de pesquisas

empíricas, para entender os usos do web analytics no jornalismo digital e o tamanho

exato de sua influência nos critérios de seleção da notícia dos sites no Brasil.

55

Referências

AGNEZ, L. F. A Convergência digital na produção da notícia - Reconfigurações na

rotina produtiva dos jornais Tribuna do Norte e Extra. 2011. 156 f. Dissertação

(Mestrado em Estudos da Mídia) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Norte, 2011.

BARSOTTI, Adriana. Transformações contemporâneas nas práticas jornalísticas :

o jornalista on-line como mobilizador de audiência. 2012. 272 f. Dissertação

(Mestrado em Comunicação Social) - Departamento de Comunicação Social do Centro

de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,

2012.

BERTOLINI, Jeferson. O Novo Título Jornalístico: Dez Categorias do Ambiente

Digital. Ação Midiática, n. 9, 2015. Disponível em: <

http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/acaomidiatica/article/view/37438/25738>. Acesso

em 19 nov. 2015.

CORRÊA, Elizabeth Saad. Convergência de mídias: metodologias de pesquisa e

delineamento do campo brasileiro. In: NOCI, Javier Díaz; PALÁCIOS, Marcos (Org.).

Metodologias para o Estudo dos Cibermeios – Estado da Arte & Perspectivas.

Salvador: Edufba, 2008. p. 29-50.

DORNELES, Felipe Rigon; FROEMMING, Lurdes M. S. As tecnologias e os processos

de produção em grupos de comunicação. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE

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MAROCCO, Beatriz. O jornalista e a prática. São Leopoldo: Unisinos, 2012.

NATANSOHN, L. Graciela. O que há e o que falta nos estudos sobre recepção e leitura

na web? Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em

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http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/view/191/192>. Acesso em:

19 nov. 2015.

PALACIOS, Marcos; RIBAS, Beatriz. Manual de laboratório de jornalismo na

internet. Salvador: Edufba, 2007. Disponível em <

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Disponível em: <http://www.ciberjor.ufms.br/ciberjor5/files/2014/07/mirna.pdf>.

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SILVA, J. A. B. E. Agenda-setting assente em bases de dados e algoritmos: bases

conceituais e metodológicas para operacionalizar a relevância de temas,

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Comunicação) - Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador,

2010. Disponível em < https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/5113/1/Jan_Alyne.pdf>.

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TANDOC JR., E. C. Journalism is twerking? How web analytics is changing the

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Disponível em: <http://nms.sagepub.com/content/16/4/559.abstract>. Acesso em 19

nov. 2015

TRÄSEL, Marcelo. Entrevistando planilhas: estudo das crenças e do ethos de um

grupo de profissionais de jornalismo guiado por dados no Brasil. 2014. 314 f. Tese

(Doutorado em Comunicação Social) - Faculdade de Comunicação Social, Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2014.

VIEIRA, Lívia de Souza. Parâmetros éticos para uma política de correção de erros

no jornalismo online. 2014. 259 f. Dissertação (Mestrado em Jornalismo) - Programa

de Pós- Graduação em Jornalismo, Universidade Federal de Santa Catarina,

Florianópolis, 2014.

GRUPO 1

Coordenadora: Beatriz Dornelles

57

OS MANUAIS DE FOTOGRAFIA DO BRASIL NO SÉC. XX

Um Inventário Crítico

Cassiano Cavalheiro Del Ré*

Desde o seu advento, a fotografia tem revolucionado o mundo, mostrado

através das imagens cenas cotidianas e diferentes culturas. Juntamente com a nova

técnica de capturar imagens e fixá-las em uma superfície fotossensível, surgiram os

manuais de fotografia.

A proposta do presente trabalho é fazer um estudo dos manuais de

fotografia produzidos por brasileiros e difundidos no Brasil.

Pretende-se fazer um estudo descritivo interpretativo do conhecimento

publicado nos manuais de fotografia produzidos por brasileiros e difundidos no Brasil,

resgatando aquele que parece ser o primeiro manual publicado sobre fotografia

“CARVALHAL, Alberto Pereira do. Manual do Photographo.” que data de 1908, e

apesar de não ter sido produzido no Brasil assume uma importância singular por ter

sido, provavelmente o primeiro manual difundido no Brasil sobre fotografia, até as mais

recentes publicações.

A reconstrução da trajetória do conhecimento dos manuais de fotografia

brasileira será feita a partir dos produtos cognitivos presentes na Biblioteca Nacional

do Rio de Janeiro – os textos que foram escritos em forma de manual, divulgando a

arte fotográfica e o seu uso no jornalismo, ou transmitindo conhecimento técnico

sobre ela.

Os manuais e seus conteúdos

A primeira evolução importante que se evidencia observando o “Manual do

Photographo” de Alberto Pereira do Carvalhal de 1908 e o “Compendio de fotografia

para amadores de Dr. B. dos Santos Leitão de 1926, é que existe do primeiro para o

segundo uma “especialização” de funções em fotografia”. Como já salientamos na

descrição da obra de Carvalhal, existe uma preocupação, compreensível pela época em

que se produziu tal obra, em pormenorizar as explicações nomeando materiais para a

construção de equipamentos e formulas bem como formas de utiliza-las. Já na obra de

Santos Leitão se percebe certa especialização de funções onde o fotógrafo amador não

58

tem que conhecer até de retoques, quando precisar de retoque procure algum

profissional especialista que o faça, como o próprio autor aconselha.

Uma primeira novidade tecnológica que percebemos na obra de Santos

Leitão é a descrição de um “focador” que segundo a conceituação do próprio autor é um

“pequeno instrumento ótico que cabe na algibeira do colete e com o qual, mesmo que a

luz circundante não seja bem vedada pelo pano preto ou pelo fole de focagem, permite

verificar a focagem com rigor”.

Outra novidade que pudemos constatar é a presença de uma tabela de

equivalências de números representativos de sensibilidades de chapas. De acordo com o

fabricante a escala que se utilizava era diferente, tornando-se necessário uma tabela de

equivalências. Este fato demonstra uma natural industrialização do material de

fotografia que vai se tornando mais evidente através dos anos.

“No final do século passado a prática da fotografia seguiu a lógica do

desenvolvimento capitalista. A industrialização foi o dado novo que

modificou profundamente a qualidade da imagem, sua difusão e o

papel social do fotógrafo.”(Costa, Helouise & Rodrigues, Renato

1995, p. 27)

É importante lembrar que foi nas primeiras décadas do século onde a

fotografia começou a democratizar-se, começaram a surgir os primeiros foto clubes. E a

primeira iniciativa, o Photo Club do Rio de Janeiro, foi fundado em 1910, apesar de sua

efemeridade demonstrou os primeiros anseios da época. Mais tarde em 1923 é que de

maneira consistente foi fundado o Photo Club Brasileiro. Em São Paulo a Sociedade

Paulista de Fotografia, fundada em 1926 durou três anos e até 1930 não se encontrou

registros de outra tentativa neste sentido. Segundo Juarez Bahia, no Brasil os leitores

brasileiros tomam contato pela primeira vez com a fotogravura por volta de 1929 e

1930.

“O impacto da fotografia no jornalismo – dando-lhe uma dimensão

informativa além da ilustração de uso comum – se situa entre as

mudanças decisivas no processo de impressão, como a máquina

linotipo de Ottmar Mergenthaler; as técnicas de offset e foto

impressão; e a revolução da informática, comandada pelo

computador.” (Juarez Bahia, 1990)

A revolução de 30 abre novas perspectivas ao jornalismo Nacional no

campo da técnica: fotografias diárias, impressão a cores, introdução de rotativas de

maior capacidade do que a então costumeira Marinoni, como a Hoe, norte americana, e

a Man, alemã.

59

“Em 1952, no diário de Porto Alegre, “Correio do Povo” divulga a

primeira telefoto: Perón discursando na casa rosada, após uma

abortada tentativa de rebelião contra a ditadura justicialista. E cabe ao

Estado de São Paulo a primazia na impressão de telefotos a cores

quando, em 1953, publica a fotografia da rainha Elisabeth II nos

suntuosos trajos da Coroação “(Luiz Beltrão, 1969, p. 402)

Atraída pelo jornalismo, a fotografia encontra nele ambiente natural. Não

abandona sua produção anterior, a postura laboratorial pela luz do público, do

questionamento social. Nesta atmosfera de mudança a fotografia assume papel

fundamental no jornalismo e com ela a necessidade de cursos que formassem

profissionais aptos a fotografar. (1939)

Gomes de Carvalho em seu informativo intitulado “Institutos de foto técnica

para a imprensa ilustrada”, no momento em que franqueava ao público a escola de

repórter fotográfico, vinculada ao Foto Clube Brasileiro, já procurava tornar realidade a

Associação de Imprensa Ilustrada com a respectiva Federação. Neste informativo o

autor expõe as razões da criação do Instituto justificando e expondo a resistência da

época e a necessidade da criação de uma associação de imprensa ilustrada.

Francisco Gomes de Carvalho Junior, era sócio, ex-presidente e atual

membro da diretoria, professor dos cursos técnicos, ex-engenheiro chefe de serviços

federais de engenharia civil, fundador e ex-diretor da escola de engenharia do estado de

Alagoas e sócio do ilustre Foto Clube da cidade do Rosário, na República Argentina.

(Gomes de Carvalho, 1939, p. 4)

No início do seu informativo o autor estabelece uma terminologia

diferenciando os termos fotografia e foto técnica e fotográfica. Após esta breve

introdução o autor faz uma justificativa da importância deste instituto. Fala da origem e

das consequências do Foto Clube Brasileiro, faz sugestões de matérias para a profissão,

da organização didática e cultural, propõe uma grade de disciplinas para o curso geral e

fundamental e da importância de se criar Associação de Imprensa Ilustrada com sua

respectiva Federação prevendo ainda as associações locais e regionais.

“Para acusar tão grande falta (de um ensino de qualidade da foto

técnica) fizemos a presente memória, na qual pretendemos

sugerir o estudo da fotografia e da foto técnica em sua

conjunção para formar ciências, artes e ofícios de características

próprias com as quais formam novas profissões necessárias, de

vida perfeitamente definida” (Gomes de Carvalho 1939, p. 14)

60

Além das inovações mencionadas anteriormente o autor apresenta uma

tabela de velocidades de obturação para algumas situações práticas tais como: peões em

movimento, animais pastando, peões em movimento de marcha, carros de cavalo em

andamento normal, cavalos a trote e movimentos semelhantes, vapores com grande

velocidade etc.

Faz-se necessário salientar que neste período ocorre a mudança de

perspectiva. Deixa-se o enfoque técnico-científico, onde os manuais de fotografia

continham informações detalhadíssimas de materiais e procedimentos, para uma etapa

onde se valorizam as questões estético-artísticas, ou seja, devido ao forte processo de

industrialização da época as informações que eram possibilitadas pelos manuais até

mesmo de material para a construção de câmaras, para um estagio onde as câmaras

eram vendidas em lojas, os fotoquímicos eram vendidos semi-prontos etc. e a

preocupação era com a beleza da imagem produzida.

“No final dos anos 30 surgiu um clube que logo se tornou o centro do

movimento foto clubista em São Paulo e mais tarde alcançou destaque

nacional como polo agenciador da produção fotográfica moderna

brasileira. Tratava-se do Foto Clube Bandeirante, primeira tentativa

bem sucedida de organização de um clube fotográfico em São Paulo.

... Inaugurado em 1939, o Foto Clube Bandeirante, formou ao longa

da década de 1940 uma sólida estrutura material e atingiu um alto

nível de organização interna.” (Costa, Helouise & Rodrigues, Renato

1995 p. 43)

Já na obra de Freudenfeld “Manual fotográfico para principiantes” de 1942

percebe-se mais claramente que o apelo é da fotografia vista como arte e como registro

memorial para posterior apreciação, mas sempre com um ensejo estético e artístico

muito forte.

A inovação que detectamos neste manual é o uso do pára-sol. Atribuímos

este fato à quebra dos paradigmas estético-fotográficos tradicionais onde se fotografava

somente com o sol as costas do fotógrafo. Estas inovações demonstram uma

inventividade artística condizente com a mentalidade fotoclubistica existentes na época.

O manual da editora Brasport ltda intitulado “Fotografar – Arte e Técnica”

reforça ainda melhor este contexto de valorização artística e estética da época, no

primeiro capítulo “A máquina e o prazer de fotografar” a visão romântica que fez parte

da atmosfera durante todo o período “áureo” dos foto clubes, de 1939 até 1955 segundo

Helouise Costa e Renato Rodrigues, se confirma.

61

“O fotógrafo possui da vida uma visão mais completa e mais rica do

que aquele que ainda desconhece esta espécie de elevado prazer

intelectual.” ...”assim, que fotografa, salva suas lembranças do

esquecimento, e as páginas do seu álbum fazem-lhe viver os belos

momentos fugidios do passado”. (O autor)

“De caráter elitista o foto clubismo visava fazer da fotografia uma

atividade artística. A condição do fotógrafo clubista, em termos gerais,

era a do profissional liberal que, dono de uma situação financeira

privilegiada, podia se dedicar à fotografia em suas horas vagas. Para

essa classe média em ascensão, carente de símbolos que a

identificassem socialmente, o foto clubismo veio bem a calhar,

criando-lhe uma forte identidade cultural. O pequeno burguês agora é

um artista.” (Costa, Helouise & Rodrigues, Renato, 1995, p. 28)

A obra de Jean Anderson intitulada “Manual do fotógrafo” de 1949 obedece

à mesma caracterização dos manuais da fase estético-artística. Observamos estas

características quando o autor trata no último capítulo do tema como preparar papéis

sensíveis e como realizar cópias em pano. Além disso o autor é um professor de

português e latim que dedica suas horas vagas à fotografia.

Um aspecto um tanto inovador que encontramos foi a referência feita no

último capítulo “De tudo um pouco”, sobre modernos obturadores que fotografam

instantaneamente, em frações de segundos.

O manual de título “É fácil fotografar – a fotografia em 24 lições” publicado

pela editora Íris, pelas características do conteúdo nos faz crer que foi publicada na

década de 50 onde ocorreu certo declínio na fotografia dos foto clubes e houve o auge

do fotojornalismo. O conteúdo valoriza as questões estéticas e as técnicas aplicadas ao

fotojornalismo como por exemplo a fotografia de movimento,

“A experiência moderna do Foto cine Clube Bandeirante mostra sinais

que apontam a sua diluição paulatina a partir do final da década de

1950. Nesta fase, que se inicia por volta de 1957, a modernidade

apresentou três desdobramentos distintos. O primeiro foi um

continuidade direta da Escola Paulista e, mesmo trilhando caminhos já

percorridos, produziu trabalhos de qualidade; outro teve como base

avançar as propostas desta escola, redefinindo ou rumos da

modernidade a partir de um novo figurativismo; paralelamente

identificamos também uma academização do vocabulário

moderno”.(Costa, Helouise & Rodrigues, Renato, 1995, p. 73)

A partir do final dos anos 50, com a expansão das revistas ilustradas, uma

realidade externa aos foto clubes veio alterar os padrões estéticos vigentes.

62

“A consolidação de um fotojornalismo modernizado e atuante nas revistas

ilustradas colocou novos questionamentos para a prática fotográfica como um todo, ditando

novos padrões”.(Costa, Helouise & Rodrigues, Renato, 1995, p. 74)

O manual de fotografia de João Koranyi, “É fácil fotografar”, dedica-se

inteiramente a fotografia colorida pelo processo AGFACOLOR e baseia-se em

informações vindas da Alemanha onde esta empresa é sediada. Este é o primeiro manual

produzido nacionalmente a tratar exclusivamente da fotografia colorida. A fotografia só

aparece neste manual de 1958, enquanto já era conhecida desde 1907 quando os irmãos

Lumiére comercializam o primeiro processo a cores denominado autochrome.

A obra “Tudo para o principiante” de George Fleuret, 6 edição, de 1963

possui as caracterizações de obras produzidas na fase estético-artística , fato

perfeitamente explicável. A primeira edição aconteceu em 1950 e apesar de a obra ter

sofrido atualizações com relação a equipamentos mais modernos, como fica claro no

prefácio da sexta edição, o “livrinho”, como o próprio autor chama, não sofreu

alterações na sua estrutura geral. O ensejo estético e artístico fica bastante claro no

prefácio da segunda edição quando Fleuret se refere aos problemas de câmbio que

fazem com que o preço dos equipamentos fique tão altos que a fotografia não se torne

tão popular quanto mereça, ”em virtude das inúmeras qualidades intrínsecas que a

recomendam como passatempo e ocupação de todos quantos quiserem dedicar-se, em

suas horas de folga, a um “esporte” realmente elevado, talvez o mais elevado de

todos.”.(p. 8) A visão romântica contida nos conselhos do último capítulo também são

fatores que caracterizam este manual da forma como mencionamos acima.

Um fator interessante que já mencionamos na descrição da obra é o

conselho do autor para a aquisição de um aparelho de filme em rolo, enquanto os

demais anteriores aconselhavam sempre um aparelho de chapas por motivo da

qualidade obtida.

A obra de Francisco Jehovah de Paula “Manual básico de fotografia” de

1963 manifesta pela primeira vez, de maneira muito clara a necessidade da

especialização e profissionalização da fotografia, diz Ele:

“Isto aqui não é prefácio, é um capítulo especial para o esclarecimento

de alguns pontos. Já que o nosso prazer é ensinar fotografia, devemos

dizer que o campo no Brasil está virgem. Não queira ser retratista. O

homem do jardim também o é. Ganha a vida é verdade. Mas quilo não

é vida”. Diz Jehovah.(p. 28)

63

Esta afirmativa Dele demonstra claramente o seu posicionamento antes da

sua célebre publicação intitulada “Fundamentos do Jornalismo fotográfico de 1965, que

inaugurou a terceira fase dos manuais de fotografia, a “técnico-profissional”“. Fica

evidente a posição a favor da profissionalização do fotógrafo, da defesa da fotografia

como uma fonte de renda digna de uma profissão instituída.

Comparando as obras já mencionadas anteriormente com a obra de F.

Jehovah, de 1965, percebemos que a “especialização” que já nos referimos

anteriormente se acentua no presente trabalho. Especialização não somente no sentido

da função técnica de especialista em determinada fase do processamento técnico da

fotografia, mas especialização no sentido de o fotógrafo, agora receber status de

profissional tornando-se o Repórter Fotográfico. “Ele passa de retratista à repórter

fotográfico e substitui a encomenda pela espontaneidade, a obrigação pela liberdade, a

rotina pela criatividade, a contemplação pela acuidade criativa”.(Juarez Bahia, 1990).

Essa transformação provavelmente aconteça pela evolução das emulsões e

equipamentos fotográficos que permitem, pela elevada sensibilidade dos filmes, o

flagrante fotográfico, e pela necessidade crescente dos jornais de publicarem fotografias

em suas páginas.

Segundo Juarez Bahia (1990 p.133), foi na década de 60 que ocorreu a

profissionalização do repórter fotográfico. “A fotografia acentua e consolida a tendência

anterior para exprimir nos meios de comunicação a sua própria linguagem”. É

perfeitamente entendível que este manual que trata pela primeira vez de questões

relacionadas ao fotógrafo de jornal, pois esta é a década do auge desta, até então função,

e a partir de agora, profissão.

É nesta obra que aparece pela primeira vez referências ao processo de

“radiofoto”, ou seja, a transmissão sem fio de fotografias através de ondas de radio. Este

processo, também chamado de “belinógrafo, ou telefoto, ou foto-telégrafo” tem sua

origem em 1921 pelas mãos do francês Edouard Bélin, aparecendo, portanto, 44 anos

mais tarde em um manual de fotografia produzido no Brasil.

Outras inovações importantes que figuram nesta obra é o aparecimento das

câmaras de 35 mm como a Leica e a Contax, até então a referência nos manuais de

fotografia era das câmaras de médio e grande formato que utilizavam filmes em chapas.

Provavelmente a preferência pelas câmaras de negativo maior acontecia pela melhor

qualidade da imagem. Além da câmara de 35 mm outro acessório importante que

64

mereceu a atenção do autor foi o motor, que para a fotografia de reportagem

(principalmente a esportiva) dá um avanço significativo pela possibilidade de vários

disparos do obturador, em sequência sem a necessidade do manejo da alavanca de

tração do filme.

Outro avanço detectado foi a utilização de filtros para películas

pancromáticas e ortocromáticas. O autor faz longa explicação sobre as utilizações,

efeitos produzidos em cada um dos tipos de filme, compensação e quais as situações

mais indicada para a utilização de cada tipo de filtro.

Em laboratório a inovação apresentada é o temporizador para ampliador

fotográfico que permite uma exposição por um tempo preciso. O temporizador ou

“timer” permite uma exposição do papel fotográfico à ação da luz por um tempo que se

desejar, enquanto que, anteriormente se fazia a contagem nos ponteiros do próprio

relógio do laboratorista ou mentalmente, o que nem sempre ocorria de maneira precisa.

Nos manuais anteriores não havia referência sobre este tipo de equipamento.

O derradeiro aspecto que nos chamou muito a atenção é o fato de o autor

sugerir uma simulação no caso de o repórter fotográfico chegar atrasado à cena da

ocorrência e não haver mais nada lá que caracterize esta ocorrência. Jehovah cita um

exemplo:

“Certa feita chegamos atrasados ao local de um desastre onde uma

jovem havia sido expelida de um carro e esmagada de encontro a um

poste. O cadáver havia sido retirado e o lugar estava limpo.

Praticamente não havia nada a fazer, a não ser enfrentar a carranca do

secretário do jornal. Resolvemos o problema da seguinte forma:

despejamos uma garrafa de vinho num poste, arranjamos um par de

sapatos e uma bolsa de pessoas curiosas que ainda aglomeravam por

perto, e fotografamos o quadro. Os presentes acharam muita graça da

nossa brincadeira, mas milhares de leitores folhearam o jornal e

“viram” o poste ensanguentado e os pertences da vítima.

Evidentemente foi um truque mas não fugiu a verdade. O desastre

houve, e se tivéssemos chegado logo depois, o aspecto do local seria o

mesmo do que simulamos, com a diferença do cadáver.”

No princípio a fotografia foi utilizada, até pelas limitações de ordem técnica,

tão-somente para ilustrar os textos escritos, dos quais era mero auxiliar. Os

equipamentos utilizados eram pesados, de pouca mobilidade e de difícil manejo, desta

forma os fotógrafos se viam incapazes de adequar sua atuação à velocidade dos

acontecimentos. Para fotografar em recintos fechados, eram obrigados a usar os flashes

65

de queima de magnésio, os quais cegavam momentaneamente as pessoas e deixavam

por alguns minutos uma nuvem de fumaça no ar, o que levava os fotógrafos a realizar

no máximo duas poses dependendo do local. O resultado disso eram poses calculadas e

rostos chispados pela luz dos flashes.

Talvez essa tenha sido uma herança legada dos primeiros anos de

fotojornalismo. Para os primeiros fotógrafos de imprensa o mais importante era

documentar os fatos da forma mais objetiva possível. Eles, normalmente eram das

camadas mais populares da sociedade, incultos, gozavam de total desprestígio social e

recebiam péssima remuneração. Durante aproximadamente 40 anos essa foi a realidade

da fotografia de imprensa no Brasil. A situação só mudou a partir da década de 1940

com a reformulação da revista O Cruzeiro, o que modificou definitivamente o estatuto

social do fotógrafo de reportagem.

“(...) O Cruzeiro passou a ser a etapa final do jornalismo

no Brasil, o sonho dourado das pessoas. Um fotógrafo da

revista era tão famoso quanto é hoje um galã da Globo.

Aonde íamos tinha gente esperando para nos badalar.

Cheguei até a dar autógrafos na rua.” (José Medeiros – 50

anos de fotografia P. 15 in Helouise Costa & Renato

Rodrigues, 1995, 9. 120)

Ao primeiro time de fotógrafos de O Cruzeiro coube a tarefa de

reformulação da fotografia de reportagem, sob a orientação de alguns estrangeiros. Jean

Manzon deu início as modificações. Em 1952 explodem as vendagens da revista

chegando a 700 mil exemplares vendidos, recorde até hoje não superado

proporcionalmente.

A partir da atuação singular e pioneira de O Cruzeiro e do número crescente

de novas publicações que surgiram estabeleceu-se um mercado de trabalho em expansão

para o fotógrafo de imprensa. Em busca de mão de obra especializada, este mercado

precisou recorrer aos únicos cursos de fotografia até então existentes no Brasil, ou seja,

aqueles organizados pelos foto clubes. Somente em 1962 a escola de jornalismo da

Fundação Casper Líbero, da cidade de São Paulo introduziu em seu currículo o curso de

fotografia que era ministrado pelo Foto Cine Clube Bandeirante em sua própria sede.

Em 1966 tentou-se articular dois cursos de fotografia no âmbito universitário, uma na

Universidade de São Paulo e outro na Universidade de Brasília, onde novamente

solicitaram a consultoria do Foto Clube Bandeirante. (Helouise Costa & Renato

Rodrigues, 1995, p. 125)

66

Os manuais que se seguem, Curso de fotografia do SENAC, em forma de

apostila, apesar de conter espaços em branco para o preenchimento e o conteúdo

expresso em forma de itens, conseguimos identificar um conteúdo que trata dos

aspectos relacionados a fotografia com bastante minúcia. A primeira vista, parece uma

retomada à fase técnico-científica do manual de Alberto Pereira do Carvalhal pelo

detalhamento no estudo dos conteúdos. Na verdade com a profissionalização das

atividade de fotografia no jornalismo ou na publicidade, fez-se necessário um

entendimento cada vez maior dos conteúdos que dizem respeito a essas respectivas

áreas da fotografia.

Os manuais que se seguem, de José Romero Rodrigues e Antônio Ribeiro de

Oliveira Junior, por serem manuais de fotografia da área de propaganda, permitem o

mesmo raciocínio que no caso anterior, ou seja, o mercado profissional de fotografia

exige profissionais com cada vez conhecimentos mais completos de todos os elementos

físicos, químicos e mecânicos que envolve a fotografia.

A obra de Carlos Henrique de Andrada Gomide, de 1979, é um dos manuais

mais completos que se encontrou. Além de tratar de todos os aspectos físico-químicos

de uma maneira geral trata também da fotografia colorida e dos mesmos aspectos

relacionados a ela. Não foi por acaso que este manual foi tão premiado.

A produção de manuais cada vez mais didáticos também é uma tendência

que verificamos de forma cada vez mais constante e evidente.

O manual de Pedro Vasquez, “A fotografia sem mistérios”, de 1980

demonstra não foge a tendência até agora verificada da especialização. Trazendo

técnicas de fotografia aplicadas ao jornalismo, como por ex. a distância hiperfocal, que

facilitará a vida do fotógrafo na hora de colher um flagrante, a obra segue na tendência

da especialização própria da fase técnico-profissional dos manuais de fotografia.

A obra de Pedro Vasquez, Como fazer fotografia, foge um pouco do estilo

dos manuais que analisamos até agora. Este manual diferencia-se dos demais já

analisados em seu conteúdo, enquanto que os anteriores dedicavam-se a questões

técnicas e tecnológicas ou procedimentos voltados à prática da fotografia, este se parece

mais com um manual de sobrevivência do fotógrafo brasileiro.

É inaugurada neste manual um estilo de manual que até então não se tinha

observado que são os aspectos legais e jurídicos que envolvem a fotografia tais como os

67

direitos autorais e leis de regulamentação profissional. Uma tendência perfeitamente

compreensível. Com a profissionalização a necessidade de regulamentação e as

implicações legais surgem naturalmente

Outro aspecto que julgamos importante é o fato da preocupação teórica que

envolveu o autor em determinada etapa do livro, quando sugeriu leituras históricas e

filosóficas como aquelas que descrevemos no capítulo anterior.

Na obra de João Musa e Raul Garcez Pereira, intitulada “Interpretação da

Luz. O controle de tons da fotografia preto e branco” em primeira análise, nos leva a

crer que a obra se trata de uma nova volta aos manuais técnicos, mas na verdade a raiz

deste livro não está no campo técnico, como poderia parecer, mas naquilo que todo o

profissional de fotografia busca como alma do seu trabalho, a expressão, ou seja, a

interpretação da luz.

Embora o livro não possua suas raízes na técnica fotográfica, não podemos

deixar de enxergar que se trata de uma evolução enorme no campo técnico, que consiste

na controle de todas as variáveis no intuito de suprimir quaisquer efeitos não desejado

pelo fotógrafo.

No final da década de 1960 e início da década de 1970 o movimento foto

clubista entrou definitivamente em declínio, não mais se recuperando. O fotojornalismo

e a foto publicidade estavam provocando a redefinição de todas as práticas fotográficas.

Na medida em que se expandia o mercado, aumentava o nível de especialização que se

exigia do profissional de fotografia e a necessidade de profissionalização se acentuava.

“A decadência do movimento foto clubista deveu-se, principalmente,

à mudança do papel social do fotógrafo. Além disso, o rigor dos novos

tempos marcados pela ditadura militar, que jogou a cultura brasileira

numa das piores trevas da sua história, e o aumento da complexidade

da nossa estrutura social no período do milagre econômico, não

favoreceram o foto clubismo com seu viés romântico.” (Helouise

Costa & Renato Rodrigues, 1995, p. 128)

Segundo Juarez Bahia (1990, p. 133) nas décadas de 1970 e 1980 a grande

influência da televisão, reduz-se o alcance que a fotografia havia adquirido nos anos

anteriores. Dos anos oitenta em diante, a fotografia permanece conotada às perdas

visuais sofridas desde os anos setenta, que se mesclam as perdas do próprio jornalismo

impresso em termos de penetração e verbas publicitárias, frente a televisão.

Proposta trifásica do conhecimento fotográfico dos manuais:

68

Na análise dos manuais de fotografia pudemos responder plenamente

algumas das questões a que nos propusemos no início deste trabalho, outras não tão

completamente, identificamos as variações de enfoque que cada período abordou

consonantemente com a sua conjuntura histórica e social. Pela divisão dos manuais em

três fases distintas; a fase técnico-científica; a fase estético-artística; e a fase técnico-

profissional obtivemos a sistematização do conhecimento dos manuais. As fases

distintas que nos referimos acima e os períodos que a compreendem são os seguintes:

1) Fase técnico-científica: nesta fase, que vai de 1908 com o primeiro

manual até 1926, o conteúdo é excessivamente voltado para a técnica fotográfica e

aplicações científicas de conceitos da química e física. Existem desde descrições de

material para a construção da câmara escura até procedimentos para a contagem do

tempo nas ampliações, sem a utilização de um relógio.

2) Especialização e profissionalização: de 1926 até 1955-60: nesta fase é

onde começa a ocorrer a especialização nas funções técnicas de processamento

fotográfico e com a evolução dos filmes e equipamentos fotográficos um enfoque da

fotografia como arte. É justamente até 1960, aproximadamente que ocorre o auge dos

Foto clubes onde até então existiam os cursos técnicos de fotografia. Ocorre também no

final desta fase a profissionalização do repórter fotográfico. O fotojornalismo surge

como uma especialização da fotografia. O enfoque da fotografia muda, deixa de ser

meramente artístico para ganhar as páginas dos jornais.

3) Fase técnico-profissional: de 1960 em diante. É onde ocorre a

consolidação profissional com o auge do fotojornalismo brasileiro. Os foto clubes

entram em declínio. O fotojornalismo e a fotopuclicidade provocam redefinições em

todas as práticas fotográficas. Nesta fase ocorrem as tentativas de regulamentação da

profissão e um ritmo de produção de manuais que num primeiro momento parece ser

uma retomada a fase técnico-científica, mas na realidade diz respeito a especialização

da fotografia para as suas diferentes aplicações, ou seja, estudos realmente

aprofundados de todos os elementos que fazem parte da fotografia a fim de formar um

profissional cada vez mais capacitado

Com relação a origem do conhecimento fotográfico expresso nos manuais

podemos dizer com relativa segurança que no período técnico-científico, até meados do

período estético-artístico, onde os foto clubes começam a organizar cursos técnicos, a

69

produção é basicamente de profissionais liberais que dedicam suas horas de folga a

fotografia. Da segunda metade do período estético-artístico, até a sedimentação das

primeiras cadeiras de fotografia nas universidades no início da terceira fase, a produção

dos manuais continua vinculada a profissionais liberais que tinham vínculo com o foto

clube, e inicia-se uma produção por parte de algumas editoras. Já no período técnico-

profissional a produção fica por parte dos cursos técnicos e por parte dos próprios

profissionais oriundos da academia ou do mercado de trabalho.

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72

JORNALISMO E A VISIBILIDADE DA VIOLÊNCIA NAS

IMAGENS DO

11 DE SETEMBRO19

Cândida de Oliveira (UFSC)20

19 Trabalho apresentado no GT Estudo em Jornalismo do XIII Seminário Internacional da Comunicação,

realizado de 17 a 19 de novembro de 2015, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

(PUC-RS). 20 Graduada em Comunicação Social, Habilitação Jornalismo. Mestre em Jornalismo. Doutoranda no

Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail:

[email protected]

73

“A força da imagem é proporcional à potência das vozes que a habitam.”

(M.-J. Mondzain)

Resumo: A partir da abordagem filosófica de Mondzain (2009; 2015), propõe-se pensar

a imagem, no contexto do jornalismo, em termos de estratégias e mecanismos de

visibilidade que operam relacionados à violência. Para tanto, discute-se as imagens

produzidas no/pelo jornalismo sobre o 11 de Setembro, a partir de análises e estudos já

desenvolvidos por autores e pesquisadores sobre esse acontecimento. A imagem é

percebida como um dispositivo constitutivo do imaginário e dos modos de pensar a

sociedade.

Palavras-chave: jornalismo; imagem; violência; visibilidade; 11 de setembro;

Introdução

Com o objetivo de pensar a imagem no contexto jornalístico, o artigo aborda a

relação entre jornalismo, imagem e violência a partir do pensamento filosófico de M.-J.

Mondzain (2009, 2014). Essa autora propõe uma aproximação com a imagem não pelo

que ela é constituída e controlada, em termos de conteúdo narrativo, mas pelo contexto

histórico, social, político e cultural no qual ela é produzida, e pelo que a imagem oferece

ao olhar, isto é, em termos de estratégias ou mecanismos de visibilidade que nela

operam. Recorre-se também à perspectiva filosófica de Benjamin (1993) e Didi-

Huberman (2010) para discutir teoricamente a produção de significações e sentidos na

relação que se estabelece entre imagem e olhar.

O interesse em pesquisar a imagem no jornalismo nasce da preocupação de

como o jornalismo contribuiu para a construção de “mapas mentais” (LIPPMANN,

2008) que ajudam a compreender a realidade na qual vivemos, situando-nos em

ambientes e levando-nos a sentir emoções e desenvolver determinadas ações. A esse

respeito, escreveu Lippmann (2008, p. 29) que “o único sentimento que alguém pode ter

acerca de um evento que ele não vivenciou, é o sentimento provocado por sua imagem

mental daquele evento”.

Busca-se, de modo específico, discutir como esses mecanismos operam nas

imagens produzidas no/pelo jornalismo sobre o atentado terrorista às torres gêmeas do

World Trade Center, em New York, em 11 de setembro de 2001, e que podem ser

relacionados à violência. Leva-se em conta, neste exercício, análises e estudos sobre

esse acontecimento, desenvolvidos por pesquisadores e estudiosos, principalmente por

Mondzain (2009), no texto intitulado “A imagem pode matar?”.

74

Observa-se que, além de temas relacionados à segurança pública e

criminalidade, às tragédias e catástrofes, o terrorismo figura como um dos que

estimulam, por meio de narrativas maniqueístas, espetaculares e homogeneizantes, a

produção de um “medo midiático” (MATHEUS, 2011) que alimenta e faz reverberar a

ideia de violência, de terror, de desconfiança e insegurança generalizadas. Conforme

Wainberg, (2005), a mídia possui um poder em estabelecer uma pauta pública e criar

um clima para a opinião pública sobre temas sociais, criando um “círculo do medo”.

A imagem na perspectiva filosófica

Considerando que a imagem fora a causa de muitas guerras, destruições, crimes

e de mortes de pessoas em busca de tomadas de poder, Mondzain (2014, 2015),

investiga a história do pensamento ocidental sobre a imagem e as questões que à ela

foram sendo atribuídas desde a antiguidade, passando pelo período bizantino, à Idade

Média, até chegar à contemporaneidade. A autora mostra como, ao longo dos séculos,

perdura uma concepção de imagem instituída pelo monoteísmo iconoclasta, sobretudo

pelo cristianismo, que fez da imagem “o emblema do seu poder e o instrumento de

todas as suas conquistas” (MONDZAIN, 2009, p. 5). O cristianismo é responsável,

segundo a autora, por instaurar o “reino da imagem”, onde impera o visível e o

espetáculo.

Na abordagem benjaminiana, a imagem figura como uma categoria central,

desenvolvida em sua obra atrelada à noção de história e memória. O filósofo procurou

olhar a história pela perspectiva materialista, vendo na concretude da linguagem, por

meio de objetos que representam a cultura de uma sociedade, uma prática de escrita que

contém imagens do vivido e que põem em movimento presente, passado e futuro. Tais

imagens, entretanto, ao serem lidas/interpretadas em determinada época, em um

contexto social e histórico específico, provocam estranhamento. O olhar ao passado,

entente Benjamin, é sempre anacrônico, é sempre o olhar do presente.

No pensamento de Benjamin, o tempo e o histórico só podem ser fixados, no

sentido de perdurar, tornar-se legível, a partir de um intenso exercício da memória. Na

superfície material da imagem, irrompem rastros ou pistas que permitem apreender

fragmentos da história. Logo, a história não é linear, tampouco uma totalidade que pode

ser apreendida, ou ainda ser recuperada quando se quer. Ela é fragmento que vem à tona

por meio dos rastros que aparecem na materialidade da linguagem, irrompendo na

superfície do dizível, da imagem. Para Benjamin (1993), o visível possui relação direta

75

com a memória que temos da realidade, de modo que a imagem torna-se então as

condições de possibilidades de leituras, isto é, mostra-se como pluralidade.

Fazendo uma crítica à homogeneidade dos sentidos nas imagens, Didi-Huberman

(2010) afirma que algumas coisas (imagens) impõem-se diante de nós, num regime

único de visibilidade; elas nos convidam a olhá-las, e nos interpelam de tal forma que é

como se elas nos alcançassem, nos tocassem. Escreve o autor: “O que vemos só vale –

só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 29). O

olhar desempenha um papel tátil não no sentido do palpável, mas de experimentação e

constituição do sujeito: “devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos

remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos

constitui.” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31, grifos do autor). Se algo nos toca, também

nos transforma.

Todavia, para Didi-Huberman (2010), a tirania do visível faz com que o sujeito

fique preso à primeira dimensão do ver, à materialidade do objeto/imagem. O teórico

explica que o visual é a dimensão que permite o jogo entre a interioridade e

exterioridade da imagem: a imagem se torna interioridade do espectador ao mesmo

tempo em que o espectador se torna exterioridade da imagem. Logo, o que é visível nem

sempre é visual.

Assim, na esteira desses autores, a imagem não é compreendida como

reprodução documental dos fatos e acontecimentos, nem como mera visualidade, como

simples suporte iconográfico e/ou encerrada na lógica do deciframento e da

significação; mas a imagem pode ser pensada como pensamento e linguagem; como um

“espaço” material ou mental, interior e exterior de produção de sentidos. Nessa

perspectiva, a imagem é compreendida como um dispositivo constitutivo do imaginário

e dos modos de pensar a sociedade, produzido em determinado período social e cultural,

portanto, carregada de sua dimensão histórica e detentora de uma força própria que

transcende seus contextos produtivo e de linguagem (gênero).

Mega-acontecimento e o terrorismo na pauta jornalística

As imagens dos ataques de 11 de Setembro de 2001 repercutiram amplamente na

imprensa mundial, caracterizando um acontecimento global, inaugurador de uma

experiência e de uma emoção global midiatizada em torno de algo inesperado e único,

denominado pela imprensa, dentre outras expressões, como o “maior ataque da

76

história”21 sofrido pelos EUA. O representante emblemático daquilo que pesquisadores

do campo da Comunicação e do Jornalismo tem denominado como “mega-

acontecimento” (TRAQUINA, 2005; BERGER & TAVARES, 2010), propriamente

midiático, mas com uma importância potencializada pelo complexidade com que opera

inúmeros aspectos dentro de uma imprevisibilidade que, ao mesmo tempo, é

programada, planejada, arquitetada.

O 11 de Setembro de 2001 marca efetivamente o início do século XXI. Trata-se

de um acontecimento simbólico de imensa importância, “um ato fundador do novo

século”, nas palavras de Baudrillard (2003). Não há dúvidas, conforme escreve Paiero

(2012), que os atentados, para além de ataques a alvos físicos, foram ataque simbólicos

a um poder, a um status e domínio. “Os atentados de 11 de Setembro evidenciaram uma

tendência dos atos terroristas de nossa época: o terror que visa à criação de grandes

espetáculos midiáticos, montados para a produção de fatos geradores de notícias.”

(PAIERO, 2012, p. 2).

Observando o papel ocupado pela mídia na formação de um repertório e

analisando a cobertura brasileira acerca do atentado, Paiero (2012) conclui que a relação

entre mídia e terrorismo é muito estreita: “(...) por um lado, um oferece os materiais

com os quais os jornalistas trabalham a partir da criação de eventos com alto teor

noticioso, por outro, ao noticiar tais fatos de forma espetacular, dentro da lógica do

jornalismo contemporâneo, o jornalismo dá ao terrorismo a visibilidade de que ele

precisa.” (PAIERO, 2012, p. 241). A construção da imagem de terrorismo na mídia – e

para a mídia –, conforme Paiero (2012), passa pela construção de uma imagem do

inimigo, do desejo de vingança, pela disseminação da possibilidade do caos.

Nesta perspectiva, o terrorismo como pauta de investigação e produção de

materiais jornalísticos acaba por legitimar o discurso do terrorismo. Um terrorismo

contemporâneo que encontra raízes na formação de uma cultura humana alicerçada pela

obsessão à ordem e eterno medo do caos, e alimenta guerras sustentadas por políticas

imperiais que visam perseguição e eliminação de qualquer forma de negatividade e

singularidade adversa ao poder homogeneizante e dissolvente do império.

Para Baudrillard (2003), o que consagra o atentado como um acontecimento de

tamanha importância é a consagração deste como um ato simbólico contra o império do

21 Esta expressão, por exemplo foi utilizada na capa do jornal Folha de São Paulo, em 12 de setembro de

2001. Outras podem ser verificadas o portal UOL Notícias, que produziu um infográfico com as capas de

jornais do mundo todo no dia seguinte ao atentado de 11 de Setembro. Disponível em:

<http://noticias.uol.com.br/album/110830capas_11set_album.htm#fotoNav=1>.

77

ocidente e sua banalidade. É o desabamento das torres, mais do que o choque dos aviões

contra elas, que dão ao atentado o status de acontecimento. Na análise do autor, as

torres gêmeas do World Trade Center eram a efígie do sistema capitalista, construída

sob um grafismo arquitetônico que se sobrepunha à paisagem vertical composta pelos

demais edifícios de Manhattan. À imagem do sistema, as torres compunham o modelo

informático e financeiro das redes de monopólio que buscam capitanear o mundo. A

condição de gêmeas suscitaria ainda o fascínio que provoca a tensão de quebrá-las,

destruí-las como forma de contestação a uma forma de violência que elas representam:

o crime contra a forma, e nela a instauração de um poder global que quer impor um

pensamento único e dominante às sociedades e culturas singulares.

Guerra de imagens: uma crise no império do visível

Mondzain (2009) é quem esclarece sobre o poder simbólico que é engendrado

nos ataques terroristas às torres gêmeas do World Trace Center, em 11 de Setembro de

2001. Para ele, esse acontecimento configura um dos maiores golpes desferidos contra o

“império do visível” instituído pelo monoteísmo cristão. Trata-se do “primeiro

espetáculo histórico da morte da imagem na imagem da morte” (MONDZAIN, 2009, p.

6) capaz de instaurar uma crise no império do visível. Subjaz, portanto, nesse jogo de

perseguição e vingança, uma outra guerra que é secular: a guerra da imagem.

A autora observa que tratou-se de um crime com vítimas de carne e sangue, ao

nível dos maiores assassinatos cometidos pelas ditaduras, violências que atingem “ao

mesmo tempo a vida real das vítimas e a vida imaginária dos vivos.” (MONDZAIN,

2009, p. 70).

No entanto, desde o momento que ocorre, o assunto foi tratado em termos

visuais, misturando “o visível e o invisível, a realidade e a ficção, o luto real e a

invencibilidade dos símbolos.” (MONDZAIN, 2009, p. 6). Não havia corpos nas

imagens: recorreu-se a uma espécie de higienização das imagens para que a imagem da

superpotência fosse mantida. Conforme escreve Mondzain (2009, pp. 6-7): “O

imprevisível juntou-se ao infigurável e foi preciso enterrar os cadáveres com toda a

rapidez e manter o discurso do triunfo e da ressurreição”.

Na tentativa de manter-se como nação invencível, autoridades dos EUA

decretam um “jejum das imagens: nada de mortes no ecrã” (MONDZAIN, 2009, p. 7).

Na ordem de divulgação das imagens, o ataque às torres gêmeas foi apresentado ao

mundo como uma afronta aos Estados Unidos. Na astúcia do agressor proveniente de

78

uma cultura anicónica, a oferta de um espetáculo ao inimigo ocidental: “o da sua

vulnerabilidade, por via dos seus símbolos”, e a obrigação deste a recompor a sua

imagem numa nova distribuição de poderes.

A violência na/da imagem

Para Mondzain (2014, n.p.), a imagem se estabelece como construção a partir do

olhar humano. Só se pode pensar em definir a imagem a partir das “operações do olhar a

ela dirigido por um sujeito”. Há diferentes formas de se relacionar com a imagem. E

nessa relação, um modo de presença é instaurado pelo olhar.

Assim, Mondzain nos permite pensar que a força da imagem não reside apenas

no que ela mostra, mas justamente na produção de visibilidades – o que ela dá a ver e

leva os homens a amar ou odiar. No final das contas, é disso mesmo que se trata: as

paixões que os atormentam e o poder dos gestos políticos que movem os homens.

Assim, a autora pensa e permite refletir sobre a imagem não em termos de conteúdo,

mas como um dispositivo que opera estratégias e mecanismos de visibilidade.

O império visual a que estamos submetidos, nos apresenta a violência nessa

relação tensa entre o pensamento da encarnação (que propõe olhar a imagem na relação

do visível e invisível: é dar carne; operar a ausência das coisas; dar carnação e

visibilidade a uma ausência) e estratégias de corporificação (quando se incorpora ao

visível uma transfiguração do olhar, dando corpo a algo de modo que seja possível seu

consumo, o que leva, consequentemente, a coisificação do próprio sujeito).

De acordo com Mondzain (2009), as imagens são objetos que podemos

examinar, e que são suscetíveis de provocar um discurso e de serem sustentadas por um

saber. Elas “surgem como uma realidade sensível, oferecida simultaneamente ao olhar e

ao conhecimento.” (MONDZAIN, 2009, p, 15). A violência, por sua vez, não é objeto

mas uma manifestação abusiva de uma força. Ela designa um excesso, que gera efeitos

negativos sob a vida e a liberdade de cada um. Nesse sentido, a violência implica

sempre a existência de sujeitos.

Pensando o excesso de carga informativa operado pelos meios de comunicação

na atualidade, observa-se que as imagens disponibilizadas pelo discurso jornalismo

podem exercer mecanismos de visibilidade relacionados à violência. A proliferação de

visibilidades pela banalização do trágico, pela ideia de ter sempre que “comparecer”, de

tudo dever ser exposto ao público, pode levar não apenas a superexposição de

79

acontecimentos, mas a sobreposição, invisibilidade, diluição das singularidades dos

sujeitos, levando-os a compor apenas estatísticas, massa etc.

Nesse sentido, a imagem não deve ser pensada apenas enquanto vestígio do real,

do passado mas como relação atual do ver. Assinala Mondzain (2009, p. 30): “A

imagem não produz nenhuma evidência, nenhuma verdade, e só pode mostrar o que é

produzido pelo olhar que lhe dirigimos. A imagem alcança a sua visibilidade na relação

que se estabelece entre aqueles que a produzem e aqueles que a olham. Enquanto

imagem ela nada revela.”

Por isso, uma das estratégias de visibilidade que subjazem na imagem é a

mediação pela palavra. Mondzain destaca que “a manifestação da verdade implica a

encarnação da palavra na carne das imagens. (...) O invisível, na imagem, é da ordem da

palavra.” (MONDZAIN, 2009, p. 30). O que torna uma imagem violenta, portanto, na

esteira de Mondzain, não é o conteúdo ou sua relação com o referente, mas os

mecanismos de visibilidade que ela aciona, o que afeta os sujeitos e os atravessa,

materializando-se pela palavra nos ditos, interditos e silêncios.

Verifica-se, deste modo, que as imagens midiáticas do 11 de Setembro carregam

uma potência de violência que está não no caráter acontecimental do atentado mas,

sobretudo, nos engendramentos de sentidos, de certo modo “eternizados” a partir das

operações de encarnação e corporificação. Mondzain (2009) observa que se trata mesmo

da personificação das torres como símbolo do poder econômico e político dos EUA,

estratégia essa operada antes mesmo do atentado, tanto pelos estadunidenses quanto

pelos autores do ato terrorista, e pela mídia. Conforme escreve Mondzain (2009, p. 70):

“As torres personificam a própria América e, nela, a humanidade interna vítima de uma

carnificina invisível.”

Nas imagens que ajudam a cristalizar o imaginário sobre o 11 de Setembro de

2001, também divulgadas pelo jornalismo, essa humanidade, de cuja morte não se fala,

tem sua voz abafada pela voz dissolvente e uníssona da nação potência, estabelecida

como estratégia de governo. A visibilidade da violência da imagem, nesse caso, não está

no visível ou invisível que se supõe compor toda imagem; a violência está no espaço

intervalar, nas lacunas e vazios que constituem essas imagens que reforçam a tirania do

visível sobre as mentes e corações humanos, eternizando a lógica que coloca o islã

contra a cristandade, o Oriente contra o Ocidente, levando sempre ao desejo de morte e

aniquilação do outro.

80

REFERÊNCIAS

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Paulus, 2005

Crônicas da Copa: a combinação de gêneros em Zero Hora

Marcel Neves Martins22

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

RESUMO

22 Doutorando no PPGCom da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS – Porto Alegre

(RS). Bolsista Capes/Prosup. E-mail: [email protected].

81

No contexto da realização de tese sobre a comunicação e a construção do sentido

popular da Copa do Mundo de 2014 pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS),

refletimos sobre a presença de gêneros jornalísticos no discurso do diário. A partir da

amostra da pesquisa, verificamos que matérias de ZH nem sempre se apresentam na

forma de um gênero específico. Os textos assinados a respeito do resultado dos jogos

podem ser considerados crônicas e também lugar onde localizamos a combinação de

informação e opinião.

Palavras-chave: Comunicação Social. Crônica. Folkjornalismo.

Introdução

O estudo da comunicação, construção e endereçamento do sentido popular da

Copa do Mundo de 2014, no Brasil, pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS), nos

encaminhou para o trabalho com a teoria da folkcomunicação, de Luiz Beltrão. Beltrão

(2001, p. 258) postula que a folkcomunicação jornalística difere do jornalismo

convencional porque “a interpretação dos fatos, restrita aos moldes convencionais, não é

válida para o folkjornalista”. Conforme o autor, há uma tentativa de sensibilizar o

público que faz com que o profissional da comunicação trabalhe com mais subjetividade

a informação, carregando nas tintas e agindo sobre o acontecimento. Os jornalistas não

ficam presos à mecânica tradicional de tratar dos fatos com isenção, neutralidade e

imparcialidade, em que a objetividade é seu marco. Pelo contrário, as tomadas de

posição ficam nítidas e há todo um trabalho subjetivo nas matérias.

Na exploração do material de pesquisa, percebemos que as crônicas do Jornal da

Copa (caderno especial de Zero Hora criado para a cobertura da Copa do Mundo de

2014) sobre os jogos se caracterizam por ser um formato típico do folkjornalismo ao

mesclar informação e opinião, relato e comentário, dos acontecimentos de dentro de

campo. Assim, a crônica esportiva se localizaria na fronteira entre os gêneros

informativo e opinativo, de modo a não estar presa a nenhum desses gêneros

jornalísticos e podendo ser compreendida pela sua ambivalência.

No livro ‘Gêneros jornalísticos no Brasil’, a crônica aparece vinculada,

principalmente, ao jornalismo opinativo, mas mesmo quando é definida a partir desse

gênero apresenta marcas do gênero informativo pelo seu potencial de relatar algo.

Marques de Melo (2002) apresenta a crônica como gênero informativo no jornalismo

hispano-americano e como gênero tipicamente opinativo no jornalismo luso-brasileiro.

Em pesquisa a artigos apresentados na Sociedade Brasileira de Estudos

Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), vimos que a crônica é objeto de

82

reflexões e, de modo algum, aparece como gênero fechado, mas desponta pela sua

versatilidade, se localizando entre o jornalismo e a literatura.

Nesse contexto, este artigo se organiza a partir de uma reflexão teórica sobre a

crônica, com a apresentação das características da crônica em relação às escolas

hispano-americana e luso-brasileira e a exibição de ideias de pesquisadores que se

debruçaram em reflexões sobre o gênero. Em um segundo movimento, analisamos uma

crônica de Diogo Olivier e uma crônica de David Coimbra, ambos jornalistas de Zero

Hora e que participaram da cobertura da Copa do Mundo de 2014, buscando apreender

de forma transversal os elementos que caracterizam a combinação dos gêneros

informativo e opinativo nessas crônicas sobre os jogos.

Crônica: das definições às incertezas

Pero Vaz de Caminha (1450-1500) é visto por Sá (1985) como um cronista por

excelência, na medida em que seus escritos cumpriam à risca essa característica

fundamental da crônica e que está vinculada a sua etimologia: a narração em uma

sequência temporal. Esse fator temporal aparece no próprio significado do termo

crônica: do grego chronós, que remete a tempo, e do latim chrónica, relativo ao relato

de um acontecimento em uma ordem temporal, isto é, cronológica. A pretensa

perenidade dos seus escritos pode ser considerada uma marca da aproximação da

crônica com a história, o que, segundo Marques (2010), se deu por volta do século XII,

fazendo surgir a crônica histórica.

A emergência do caráter literário da crônica está vinculado ao período do

Renascimento (entre fins do século XIV e início do século XVII), momento em que as

informações são veiculadas nas narrativas junto a elementos ficcionais. A proximidade

com a literatura está relacionada ainda à inscrição da crônica nos folhetins, seções

literárias dos jornais localizadas no rodapé das publicações. A divulgação de crônicas

em jornais remonta ao início do século XIX, na França, e é a partir de 1850, no Brasil,

que os espaços para a crônica nos jornais aumentam consideravelmente.

Paulo Barreto, o João do Rio, foi escritor dessa fase em que a crônica ganhou

relevo nos jornais e em que a literatura esteve relacionada ao jornalismo. Em seu

trabalho, o escritor inovou ao sair da redação para fazer os registros do cotidiano ao

invés de ficar esperando por informações. Houve mudança de enfoque, linguagem e da

própria estrutura do folhetim (SÁ, 1985).

83

A realização da Semana de Arte Moderna, de 1922, também contribuiu para a

mudança na forma de se fazer crônica. A emergência de uma brasilidade junto a esse

movimento fez com que os cronistas passassem a trabalhar com uma linguagem mais

coloquial, como já fizera Paulo Barreto com certa dose de originalidade. As

modificações não ficaram apenas na forma, mas também se estenderam ao conteúdo, na

medida em que os cronistas passaram a tratar dos assuntos da vida e do cotidiano do

povo. No Brasil, a crônica se afirma a partir dos anos 30.

Nesse contexto, a crônica já aparece afirmada no jornalismo. Em relação a sua

produção e características, ela termina por incorporar o modus operandi jornalístico. Sá

(1985, p. 10) lembra o fato de que a crônica herda a precariedade do jornal, “esse seu

lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes que se acabe o

dia”. Devido à rapidez de processamento das informações pelos jornais, o cronista acaba

tendo seu trabalho influenciado, o que reflete no seu texto. A crônica aparece então

como um diálogo leve e solto em que o escritor se propõe a conversar com seu

interlocutor. Há o apelo ao circunstancial, já emergente em Caminha, como condição

básica para o sucesso da crônica. “[...] o termo assume aqui o sentido específico de

pequeno acontecimento do dia a dia, que poderia passar despercebido ou relegado à

marginalidade por ser considerado insignificante” (SÁ, 1985, p. 11).

Em relação às definições em torno do gênero, no jornalismo hispano-americano

há polêmicas que envolvem a crônica e suas configurações variam entre autores e entre

países (MARQUES DE MELO, 2002). “A discussão se estabelece em torno da sua

origem e da articulação que experimenta com os demais gêneros jornalísticos”

(MARQUES DE MELO, 2002, p. 143). No entanto, há uma unanimidade, aponta José

Marques de Melo, quanto à percepção da natureza informativa da crônica e sua

proximidade com a notícia e a reportagem. Pesquisadores como Martinez Albertos,

Martin Vivaldi, Gil Tovar e Eugenio Castelli também parecem concordar que a crônica

é um gênero que não se apresenta de forma pura, mas através da combinação entre

informação e opinião, relato e comentário. A informação é o principal, contudo, não é

veiculada sem a valoração do fato. “Os pesquisadores de fala espanhola de ambos os

continentes são convergentes em ressaltar que a crônica é um gênero informativo, sendo

sua função precípua oferecer descrições (matizadas pela observação de cada cronista) ao

público leitor dos jornais e revistas” (MARQUES DE MELO, 2002, p. 146).

De outra forma, no jornalismo luso-brasileiro a crônica aparece como gênero

opinativo. “A crônica, na imprensa brasileira e portuguesa, é um gênero jornalístico

84

opinativo, situado na fronteira entre a informação de atualidades e a narração literária,

configurando-se como um relato poético do real” (MARQUES DE MELO, 2002, p.

147). De acordo com o autor, o lugar da crônica é o das páginas de opinião. Assim, ela é

mais próxima do editorial, do artigo e do comentário que da notícia e da reportagem,

conforme o autor. José Marques de Melo faz questão de frisar que a característica

opinativa da crônica não a afasta dos assuntos do cotidiano, mas, pelo contrário, é do

cotidiano e do contemporâneo que se alimenta para dar-lhes um sentido poético.

No livro ‘Gênero jornalísticos no Brasil’, que tem José Marques de Melo como

um de seus organizadores, a crônica aparece tanto vinculada ao gênero informativo

quanto ao gênero opinativo – com maior ênfase a este. Em seu artigo sobre o gênero

informativo, Laura Conde Tresca apresenta uma classificação de Martinez Albertos em

que a crônica aparece como gênero informativo de 2º nível junto à reportagem

interpretativa; a sua função é a análise e a interpretação. Por outro lado, Ana Regina

Rêgo e Maria Isabel Amphilo apresentam a crônica no gênero opinativo, tendo como

referência José Marques de Melo. O detalhe é que na citação que destacam desse

pesquisador, as características de relato e narração da crônica se fazem presentes, o que

nos remete a pensar que mesmo sendo vinculada ao jornalismo opinativo, a crônica

ainda traz informação – neste caso, claro, com a valoração do fato pelo jornalista.

Mesmo que haja um reconhecimento de uma configuração histórica da crônica e

tenhamos tentativas do seu enquadramento em uma forma discursiva, de modo a

caracterizá-la, por exemplo, como gênero jornalístico informativo ou gênero jornalístico

opinativo, existem indicações de uma indefinição epistemológica que a constitui. Os

argumentos são diversos e na pesquisa que fizemos em artigos apresentados em

congressos da Intercom localizamos alguns argumentos que ratificam as incertezas que

pairam quanto à definição do gênero. Neto (2011, p. 1-2) diz que tem “[...] encontrado,

no decorrer de nossos estudos, muitas definições que quase sempre só confundem, que

se contradizem ou mesmo que nada informam, pois que são muito abstratas”. Para

Ramos (2012, p. 6), “a crônica não é um gênero fechado, está longe de padrões rígidos e

fixos e, por isso, levanta diversos questionamentos”. França e Dantas (2012, p. 4)

afirmam que a ambiguidade é uma das características da crônica “[...] por uma

imprecisão na definição do seu gênero [...]”. Chiquim (2014, p. 7) reconhece a

dificuldade de classificação da crônica: “Por força da sua ambiguidade – objetividade

do jornalismo e subjetividade da criação literária – a crônica tornou-se de difícil

classificação. Nela, o acontecimento diário é narrado sob a visão criativa do escritor”. E,

85

ainda que tenhamos uma definição da crônica no jornalismo brasileiro como gênero

opinativo, há quem veja nela um potencial informativo: “[...] pode ainda apresentar uma

forma narrativa que conta uma história, ser uma crônica informativa que expõe os fatos

ao leitor ou, finalmente, apresentar apenas comentários sobre fatos” (TRAVANCAS,

2009, p. 3).

A ambivalência do gênero

As crônicas ‘O que faz um centroavante’, de David Coimbra, e ‘Danke,

Alemanha’, de Diogo Olivier, tratam, respectivamente, dos jogos entre Uruguai e

Inglaterra e Alemanha e Argentina da Copa do Mundo de 2014, no Brasil. Os textos

podem ser considerados crônicas porque se apropriam de um fato para apresentá-lo ao

leitor sob o olhar subjetivo dos jornalistas; o elemento narrativo se faz presente, bem

como o comentário e a opinião sobre o que é narrado; não há preocupação em tratar do

assunto a partir das diferentes percepções que permite, com a apresentação dos pontos

de vista dos envolvidos. O que existe é um relato comentado do jornalista sobre uma

realidade a que teve acesso.

Ambos os textos de David Coimbra e Diogo Olivier aparecem sem vinculação às

páginas de opinião do Jornal da Copa e não estão localizados em colunas ou seções

específicas. Pelo contrário, seu formato se assemelha mais ao de uma notícia ou

reportagem, na medida em que o texto é ilustrado por imagens, traz a cartola – com a

identificação do contexto a que se refere –, título e subtítulo. Mesmo assim cada texto se

caracteriza como crônica pela forma que está construído.

A crônica de cada jornalista é estruturada em torno de um eixo principal a partir

do qual a narração e a opinião tomam forma. Numa espécie de introdução à narrativa,

primeiro ganha destaque o comentário. Assim, há um encaminhamento do texto no

sentido de que a narrativa posterior corrobora os argumentos iniciais. Ao longo do texto

é dada maior ênfase à informação, ao que aconteceu dentro de campo, numa justificação

ao posicionamento de cada cronista que começa pelo título.

Uma das características da crônica, que é a leveza no tratamento do tema,

começa pelos títulos e se desenvolve ao longo dos textos. O uso de expressões

coloquiais caracteriza essa espécie de conversa fiada que os cronistas estabelecem com

seus leitores. Ambos os textos são intimistas, buscam uma proximidade com o ledor. Há

a tentativa por parte dos jornalistas de provocar em quem lê as crônicas uma imersão

86

nos acontecimentos. O tratamento do resultado dos jogos a partir de pontos de vista e da

interpretação desses comunicadores dá vitalidade a cada acontecimento. A mescla entre

informação e opinião torna o texto rico em sentidos de modo a não o tornar engessado.

A verve literária se mistura à objetividade jornalística.

Na crônica de David Coimbra, a opinião se destaca com mais força no início do

texto, quando ele enfatiza a característica do jogador Luis Suárez, do Uruguai: “Suárez

é centroavante. Dizer que um jogador é centroavante é mais do que definir sua posição.

É fazer-lhe um elogio. Porque centroavante não é apenas substantivo; é adjetivo. Não.

Melhor: centroavante é verbo. Centroavante faz acontecer”. A informação aparece nos

momentos em que David Coimbra trata diretamente dos fatos de dentro de campo,

como em: “Aos 30 (minutos), Rooney acertou uma cabeçada no travessão. Será que ele

passaria mais uma Copa do Mundo, a terceira da sua carreira, sem marcar um único

gol?”. Como esse trecho já sugere, há momentos em que informação e opinião, e relato

e comentário, aparecem ainda mais próximos. O jornalista usa termos como “luziu” e “a

estrela do centroavante” para informar o momento do jogo em que Luis Suárez marcaria

seu segundo gol. Entretanto, há partes em que a informação parece se sobrepor ao

comentário: “Num contragolpe veloz, a bola caiu no bico esquerdo da área inglesa, nos

pés de Cavani. Suárez corria pelo meio, olhando o lance. Imiscuiu-se num desvão às

costas dos zagueiros. Cavani levantou a bola. E Suárez meteu-lhe a cabeça: 1 a 0 para o

Uruguai”.

No mesmo modelo segue a crônica de Diogo Olivier. Inicialmente há um

destaque para a opinião do jornalista. Ele afirma: “Havia tempo a Copa não produzia

um campeão tão justo e inatacável sob todos os aspectos”. Nos trechos seguintes a uma

combinação entre informação e opinião que se manifesta pela forma como o cronista

interpretou o resultado da partida com a conquista da Alemanha: “Agora, como

acontece após todas as Copas, as seleções do planeta perseguirão o estilo campeão. [...]

A Argentina é menos time, mas compensou tudo com raça desmedida e uma disciplina

pétrea para se defender”. E há momentos, principalmente, quando se trata de narrar os

lances da partida, em que a informação prevalece no discurso de Diogo Olivier: “Aos

19, Higuaín chutou torto, de dentro da área, tendo apenas Neuer à frente, após Kroos

cabecear para trás. Depois, Higuaín marcou um gol bem anulado, aos 28, recebendo

cruzamento de Lavezzi”.

O que fica evidente, portanto, é que informação e opinião convivem tanto na

crônica de David Coimbra quanto na crônica de Diogo Olivier. É o que acontece

87

também com o relato e o comentário. Em momentos do texto vai predominar uma

forma, mas em outros instantes elas estão mais próximas, aparecendo combinadas,

tornando a crônica ambivalente.

Conclusão

A partir das reflexões acima, nossa hipótese é de que, ainda que a crônica figure

no jornalismo brasileiro em geral como um gênero opinativo, no jornalismo esportivo,

em que o folkjornalismo é exercido em sua excelência, nem sempre há como determinar

com precisão o gênero a que pertence. As crônicas sobre os jogos da Copa não ocupam,

necessariamente, os espaços voltados para a opinião e, somando-se a isso, a combinação

de gêneros no jornalismo esportivo nos remete ao fato de que a crônica pode até se

confundir com a notícia; a diferença é que aqui o relato e a informação do

acontecimento são trazidos na visão pessoal e subjetiva do jornalista, em que não há

uma preocupação com isenção, imparcialidade ou objetividade. Nesse sentido, a

literatura e o jornalismo aparecem próximos pelo tom poético como os discursos são

encaminhados. Isso tende a gerar uma maior proximidade do leitor com o conteúdo do

jornal e com o próprio veículo.

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89

Reflexos da precarização do trabalho sobre a qualidade da notícia

Janara Nicoletti23

Resumo:

Em um cenário de constantes cortes nas redações e fechamento de publicações, os

jornalistas tentam se adaptar ao novo ritmo imposto pelas empresas. Equipes reduzidas

precisam produzir cada vez mais e em menos tempo. A estrutura cada vez menor gera

produtores ansiosos, num ambiente onde o stress é parte da rotina. Este artigo analisa os

efeitos da precarização sobre a qualidade da notícia, quando a busca pela audiência

mantém em segundo plano o cuidado com erros e deslizes - técnicos e éticos.

Palavras-chaves: jornalismo, precarização, qualidade da notícia

1. Introdução

Mesmo quando qualquer pessoa pode dar em primeira mão uma informação

relevante (LUCHESSI, 2010; EL JABER, 2010), a agilidade e habilidade com a

tecnologia acabam sendo diferenciais competitivos para o jornalista. Neste contexto, as

empresas jornalísticas buscam profissionais polivalentes e multimídia. “Dele[s] é

exigido que tenha domínio dos mais variados meios e linguagens, assumindo funções

desempenhadas antes por outros profissionais (editores, revisores, repórteres,

diagramadores, pauteiros)” (FRIGO, 2012, p. 11). Por causa disso, valores, como ética,

qualidade de apuração e bom texto, muitas vezes ficam em segundo plano

(MORETZSOHN, 2002).

O fazer jornalístico obedece a técnicas e regras próprias, que possibilitam ao

profissional perceber e produzir os fatos (GENRO FILHO, 1989). Com o ritmo

acelerado de produção das notícias a pressão sobre o jornalista se agrava, o que fragiliza

este processo de produção.

23 Mestre e doutoranda em Jornalismo pelo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (POSJOR) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e professora substituta no Departamento de Jornalismo da UFSC..

90

Quanto maior o imediatismo estimulado pelas organizações jornalísticas, mais o

jornalista estará exposto a situações de risco, deslizes e falhas de avaliação, além de

passar a produzir notícias superficiais ou baseadas unicamente em fontes oficiais.

Conforme Oliveira (2005, p.72) “não há sequer condições, em alguns casos, de verificar

ou confrontar respostas e explicações dadas por determinadas fontes, quiçá ampliar o

repertório de informantes para a construção do texto”.

Esta condição é tratada com preocupação pelos jornalistas, pois recai sobre eles a

responsabilização do julgamento público, em especial os editores (ESSENFELDER,

2012). Erros e deslizes geralmente não são aceitos pelas empresas, que agora concorrem

com o público pela informação - o que amplia a exigência por agilidade.

Este artigo busca fazer um breve debate teórico sobre os reflexos do atual cenário

de precarização e enxugamento das redações jornalísticas no produto entregue ao

público. A análise leva em consideração parte do levantamento bibliográfico iniciado

pela autora para sua tese de doutoramento. O objetivo aqui é apontar questionamentos e

cenários que impactam sobre a qualidade, a ética e as condições de trabalho dos

profissionais que atuam nas redações brasileiras.

2. Enxugamento das redações e o profissional multiplataforma

A quantidade de informações recebidas por um jornalista diariamente é

comparada por Tcherkaski (2003) a uma “inundação”. O autor considera o jornalismo

uma profissão em crise, devido à impossibilidade de o jornalista absorver toda a

informação recebida, processá-la e filtrá-la. Para o autor, a notícia já envelhece no

instante em que a informação surge.

Fontcuberta (2006) alerta que os novos meios exigem novas linguagens, nova

retórica e um novo modo de produzir. A busca pela atração do público tornou-se uma

verdadeira obsessão, mas ainda suscita muitas dúvidas em um grande número de

organizações, que parecem perdidas frente às inovações tecnológicas. Desta forma, a

91

produção se volta à necessidade de acompanhar a evolução tecnológica e estar presente

em diferentes meios, primando pela técnica, em detrimento dos cuidados éticos e

técnicos da produção jornalística.

De acordo com Mick e Lima (2013), dentre os jornalistas que atuam diretamente

em mídia, 76% trabalham com internet, mas apenas 38,6% tem como atividade-fim

veículos online. Índice que, segundo o estudo, indica a diversificação da exploração do

trabalho efetuada pelos proprietários de empresas jornalísticas em nome da adaptação às

novas mídias.

O jornalista, em sua maioria, trabalha entre oito e 12 horas por dia. Carga muito

superior ao previsto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que limita em

cinco horas diárias a jornada deste profissional, podendo a mesma ser expandida em até

sete horas por meio de contrato.

Tais constatações sobre o mercado de trabalho, feitas por Mick e Lima,

conversam com resultados de estudos anteriores sobre o mundo do trabalho deste

profissional realizado por pesquisadores brasileiros e de outros países, os quais abordam

os efeitos da jornada sobre o jornalista. Conforme Willnat e Weaver (2014), nos Estados

Unidos, o percentual de jornalistas que se diziam muito satisfeitos com o trabalho era de

49% em 1971. Em 2013, caiu para 23,3%. O mesmo aconteceu com o quesito liberdade

para escolha das pautas. Em 1971, 60% se sentia livre para sugerir suas histórias, em

2013, apenas 33,6% têm esta liberdade.

Assim como no jornalismo, a internet gerou uma grande transformação nas

práticas de publicidade e marketing. Com novas opções de anúncios direcionados à

audiências cada vez mais segmentadas, muitos anunciantes passaram a migrar para

novas plataformas, que oferecem maior poder de aferição de resultados e são mais

diretivas (SHIRKY, BELL e ANDERSON, 2013). Como resultado, os veículos de

comunicação passaram a vivenciar a queda da publicidade (BARSOTTI, 2014).

O impacto disso é sentido diretamente dentro das redações. A cada ano é mais

comum ver as chamadas reestruturações das equipes. Só em 2015, centenas de

92

profissionais foram demitidos para dar espaço à “reorganização organizacional” no

Brasil, em grupos como Abril, Folha da Manhã, Band e Organizações Globo. Como

justificativas, os anúncios parecem se copiar: queda da arrecadação publicitária e

reordenamento das redações.

Os efeitos deste cenário são os mesmos no Brasil e em outros países: aumento do

trabalho freelancer, proliferação das contratações como Pessoa Jurídica, baixos salários,

poucos benefícios, multifuncionalidade, juvenilização, frequentes incertezas e cobranças

(HELOANI, 2013; FIGARO, 2012; HERSCOVITZ, 2012; MICK e LIMA, 2013;

WILLNAT e WEAVER, 2014).

Àqueles que ficam, estas alterações administrativas significam sobrecarga,

pressão e incertezas. Frigo e Schuster (2013) apontam que os profissionais deixaram de

se preocupar com estes cortes e estão preparados para quando chegar sua vez. Então,

pode-se afirmar que esta é uma condição que já se tornou parte da cultura profissional.

3. Menos tempo, menos gente e mais produtividade

Para se manter frente à concorrência e interessante para o público, os veículos

passaram a adotar novas abordagens. Existe uma grande mudança em curso dentro das

redações, seja na parte cultural seja no quesito tecnológico e isto afeta diretamente o

profissional que está na linha de produção (FONTCUBERTA, 2006; PAVLICK, 2005).

Altas cargas de trabalho, várias horas-extras acumuladas e pouco tempo para

pensar fazem parte destas “reconfigurações” pelo lado do profissional. Trata-se de uma

condição muito presente no expediente da atividade jornalística desde o final do século

XX, início do XXI e que se intensifica com as frequentes baixas e cortes de funções.

Bergamo, Mick e Lima (2014, s.p.) apontam que

“nos últimos 20 anos, transformações estruturais do

capitalismo combinaram-se à política de expansão do ensino

superior, à redemocratização do país e a mudanças na

regulamentação profissional e produziram um ambiente em que

se reconfiguraram por inteiro as possibilidades de atuação dos

jornalistas brasileiros” (BERGAMO, MICK, LIMA, 2014,

s.p.).

93

Apesar disso, os autores ressaltam que o campo profissional está cada vez mais restrito

e a concorrência, mais acirrada. Muitas vezes, estes trabalhadores combinam atividades

dentro da mídia, em veículos clássicos e digitais - jornal, televisão, revista, rádio e

internet - ou em funções fora da mídia, como comunicação organizacional e assessoria

de imprensa. A informatização que trouxe como promessa, desde a década de 1970, a

melhoria nas relações e condições de trabalho, acabou gerando uma situação inversa.

No caso dos jornalistas, elas até pioraram, especialmente, no que diz respeito às

condições de trabalho (HELOANI, 2006). Estas mudanças geram “profundas

implicações para os profissionais da comunicação [...] que vão do campo ético-

profissional ao cultural e pessoal” (FIGARO, 2012, p. 6).

No campo pessoal, a esfera da família, da educação, do convívio social fora do

expediente, acabam comprometidos com a alta carga de stress e trabalho. “As práticas

organizacionais trouxeram, como efeito colateral danoso, não apenas a corrosão de

certos valores básicos, mas, principalmente, a cisão da ideia de qualidade de vida e

excelência no trabalho” (HELOANI, 2006, p. 194).

A alta concorrência e a pressão em busca da agilidade acabam afastando o

profissional de fundamentos básicos do jornalismo: ética, cuidado com a pesquisa e

apuração da informação. “Nas empresas jornalísticas, o fazer tornou-se mais importante

que o saber, e o jornalista é hoje um trabalhador de linha de montagem” (KUCINSKI,

2005, p. 109).

Pesquisadores que abordam o mundo do trabalho do jornalismo concordam ao

classificar a profissão como desgastante, insalubre e precária. Segundo Willnat e

Weaver (2014), nos Estados Unidos, em um mapeamento recente feito com a categoria

e que é realizado desde a década de 1970, 59,7% dos entrevistados acreditam que o

jornalismo esteja seguindo o caminho errado. Em outro momento, 62, 6% dos

respondentes afirmaram que a força de trabalho diminuiu nos locais onde laboram.

94

Esta condição traz reflexos preocupantes, apontados por Grisci e Rodrigues

(2007), como o distanciamento de elementos considerados importantes para a vida:

família, amor, lazer e atividades sociais, tornando a relação do jornalista com sua

profissão uma atividade de “amor e ódio” (HELOANI, 2013).

Silva e Heloani (2007) indicam que é a idealização do jornalismo o que mantém

muitos profissionais trabalhando em condições, às vezes, extremamente desgastantes. O

jornalista hoje vive um paradoxo: ao mesmo tempo em que precisa dominar novas

tecnologias e estar sempre à frente da concorrência, convive com modelos de negócio

defasados. Práticas comerciais e até mesmo editoriais continuam seguindo os mesmos

padrões de décadas atrás, apesar de ser claro, para pesquisadores e executivos, que é

necessário se readaptar e criar modelos rentáveis economicamente e que garantam

qualidade editorial. Kucinski (1998) se refere a esta incoerência como reflexo do

conservadorismo da mídia, que vive um combate velado com o pluralismo das novas

tecnologias.

A pressa de se buscar a melhor informação, a ansiedade de ser o primeiro a

noticiar um fato provoca equívocos de diferentes proporções, que podem ser desde os

mais simples até os mais danosos. Desde o surgimento da internet, diferentes situações

apontam para questionamentos éticos quanto a conduta prática do jornalista neste

ambiente - seja como produtor para este veículo ou utilizador dos recursos e

informações oferecidos por ele. Manipulação de imagens, invasão da privacidade,

apropriação de conteúdo produzidos por terceiros, descuido de checagem de

informações são alguns aspectos que levantam questionamentos e debates nas redações

e na academia.

A arquitetura pluralista da internet impôs um ritmo ainda mais acelerado ao

processo de produção de notícias. As informações que antes chegavam eram checadas e

precisavam ser divulgadas dentro de algumas horas ou no próximo dia. Agora, na

internet, têm o intervalo de alguns minutos para ser novidade ou notícia velha. “A

velocidade exigida para este novo meio gera produtores ansiosos, em um cenário onde

95

os cuidados com a qualidade da notícia, às vezes, são sobrepujados pelos ditames do

relógio” (NICOLETTI, 2012, p. 46).

Para Moretzshon (2002), o único valor desta velocidade é a rapidez de sua

difusão. A necessidade de se publicar as informações o mais depressa possível, com

foco sempre no imediatismo, coloca os produtores de notícias em situação de extrema

suscetibilidade à manipulação das fontes. Sem tempo para checar informações e

contrapor pontos de vista, os profissionais acabam se colocando numa situação de

subserviência.

Conforme Oriella, 2011, a ampliação de canais de produção aumentou a pressão

sobre os jornalistas. Segundo seu estudo, 45% dos entrevistados produzem mais

conteúdo e 34% trabalham mais horas por dia. O jornalista, muitas vezes, não trabalha

apenas para o veículo no qual está registrado, o conteúdo produzido por ele é adaptado e

replicado para vários outros canais do grupo do qual integra.

A convergência piora as condições de trabalho e questiona a

autoestima, que é um dos pilares da satisfação com o emprego. […] O

maior estresse, no entanto, vem de sentir-se treinado de maneira

insuficiente para trabalhar devidamente em mídias diferentes, da

ansiedade de ser um malabarista que tem que produzir para o website,

a imprensa, o rádio e a televisão. (NEVEU, 2010, pp. 38-39).

Oliveira (2005) observa que a falta de investimentos em recursos humanos, aliada

à cobrança organizacional, torna o ambiente laboral “extremamente desgastante para os

sujeitos”. Essa pressão psicológica da briga contra o tempo ganha dimensões maiores

quando se analisa os aspectos sobre o produto e a função.

Segundo pesquisadores que estudam a psicodinâmica do trabalho, profissionais

que atuam em funções extenuantes e com forte pressão psíquica tendem a se adaptarem,

para sobreviver no ambiente. “Trata-se de uma defesa que enseja uma atitude ativa do

trabalhador, quer seja de resistência biopsíquica ao estresse, quer seja de enfrentamento

das adversidades políticas, sociais e organizacionais” (SILVA e HELOANI, 2007, p.

112).

96

No caso dos jornalistas, é possível observar esta condição de forma coletiva.

Desde a faculdade, aprende-se que a categoria atua sob pressão - por conta da natureza

da atividade, mas também devido aos conflitos organizacionais e a precarização das

redações. Diante deste contexto, o recém-formado inicia sua atividade profissional

ciente de que enfrentará adversidades, como baixos salários, jornadas extenuantes e

concorrência acirrada dentro e fora da redação - e ele confirma isto na prática.

Como estratégia de defesa existe um certo sentimento de resignação em grupo.

Por mais evidentes que sejam as precariedades, a categoria entende como algo comum à

sua função. Aqueles que buscam melhores condições de trabalho mudam de emprego ou

começam a apresentar resistência à condição oferecida. Os que se resignam, mantêm

seus empregos, até crescem na carreira, mas vivem no círculo vicioso de incertezas e

subserviência.

Segundo Heloani (2013), a prática profissional leva os jornalistas a um nível de

stress que beira a exaustão. “Há a obrigação de ser mais ágil, pois necessita desenvolver

um número maior de atividades no ambiente de trabalho, ao passo que há um excesso

de horas de trabalho e baixos salários” (FRIGO e SCHUSTER, 2013, p. 5).

O ritmo acelerado da linha de produção põe em cheque o cuidado com os detalhes

e com a qualidade da produção e acabamento. Assim, as decisões tomadas são decididas

“por padrões viciados e em geral imutáveis, sempre os mesmos enfoques, as mesmas

caracterizações”. (MARCONDES FILHO, 2009, p. 81).

4. Considerações finais

O trabalho jornalístico é em parte objetivo, por meio das técnicas e práticas

profissionais, mas também é muito subjetivo. Por maiores que sejam as tecnologias e

mais bem estabelecidos os processos, a produção da notícia ainda é uma atividade que

depende sobremaneira do esforço de trabalho manual. Pode-se dizer que a profissão

ainda depende de um trabalhador que desenvolve sua atividade quase como um artesão:

97

é ele quem pega a matéria bruta, recolhe, analisa, interpreta e molda a peça final que é

entregue ao público.

Em um cenário em que o produtor da notícia é colocado em condições

semelhantes às de máquinas de alta produtividade, como é possível julgar, avaliar e

dimensionar o valor das informações que surgem na pauta diária? Lima (2010) diz que o

pior efeito é a falta de preocupação do profissional com um produto “fundamental na

sociedade contemporânea”.

É cada vez mais comum observar excertos de reportagens e textos jornalísticos se

tornarem piada na internet, por erros grosseiros - digitação, revisão, em alguns casos - e

por deslizes mais sérios, como problemas graves de apuração, falta de checagem,

confiança cega no conteúdo publicado em redes sociais ou páginas oficiais de fontes.

Em busca da audiência, muitos jornalistas perdem a noção do valor notícia, se

desestabilizam emocionalmente devido à pressão da rotina e sofrem os reflexos de

conviver com uma profissão em que baixas do quadro laboral e cortes permanentes de

cargos e setores são frequentes.

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100

Jornalismo no século XXI: Época e os

documentos secretos do Itamaraty24

Taís Seibt 25

Resumo: Este artigo tem por objetivo problematizar transformações do jornalismo no século

XXI, a partir da concepção do jornalismo como atividade institucionalizada para construir

conhecimento acerca do cotidiano. A publicação de Época sobre telegramas do Itamaraty

envolvendo a Odebrecht dará corpo à discussão de fundo, que é o jornalismo como instituição

social, diante da reconfiguração do mercado jornalístico e das práticas profissionais.

Palavras-chave: jornalismo; instituição social; redes sociais; internet; Época.

1. Para entender o contexto

Desde novembro de 2014, quando diretores das maiores empreiteiras do Brasil

foram detidos pela Polícia Federal, por envolvimento em um esquema que incluía o

pagamento de propinas em contratos com a Petrobras, a imprensa brasileira tem

dedicado especial atenção à Operação Lava-Jato. A ênfase da cobertura se justifica, uma

vez que este é um dos maiores escândalos de corrupção da história do país, imputa

membros do alto escalão da Petrobras e tem graves consequências políticas, econômicas

e sociais, já que significou milhões de reais em prejuízos à estatal, sem contar a perda de

credibilidade do país perante investidores.

Em meio à avalanche de denúncias, delações premiadas, documentos revelados e

muitas especulações, um momento como este seria ideal para a imprensa assumir o

papel de certificadora da informação, bem como desempenhar a tarefa de estabelecer

nexos dos acontecimentos com diferentes contextos e conjunturas. Gira em torno dessas

funções o caminho visto por muitos profissionais e estudiosos da área como alternativa

para a sobrevivência do jornalismo no século XXI. Muito tem se falado que o “furo

jornalístico” perde espaço e que o jornalismo deve ser mais interpretativo e

aprofundado.

24 Artigo apresentado ao GT Estudos em Jornalismo, no XIII Seminário Internacional de

Comunicação, realizado de 17 a 19 de novembro de 2015 na Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre/RS. 25 Jornalista, doutoranda em Comunicação e Informação no PPGCOM da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista Capes.

101

O papel interpretativo do jornalismo não é invenção deste século, pelo contrário.

No decorrer do século XX, o jornalismo se fundamentou como uma atividade

profissional com papel “socialmente legitimado e institucionalizado para construir a

realidade social como realidade pública e socialmente relevante” (ALSINA, 2009, p.

47). O que parece ocorrer atualmente é um enfraquecimento desse status, e não faltam

exemplos.

Um desses casos será o norte das discussões propostas neste artigo26. Trata-se da

reportagem de Época sobre “os documentos da Odebrecht que o Itamaraty quis

esconder”27, publicada no site da revista em 16 de junho de 2015. Especulava-se em

reportagens anteriores que o ex-presidente Lula tivera recebido benefícios da

empreiteira enquanto estava no poder e que o Ministério das Relações Exteriores estaria

tentando evitar que a imprensa tivesse acesso a correspondências envolvendo a empresa

e o então presidente. O esforço de reportagem é válido e representaria um importante

avanço na cobertura jornalística sobre as denúncias de corrupção na Petrobras, já que a

Odebrecht não havia sido citada na investigação.

O que faltou foi fazer a reportagem. Quando finalmente o empreendimento

investigativo de Época teve efeito e os documentos foram disponibilizados pelo

Itamaraty, a revista se absteve de interpretá-los. Sob a cartola “exclusivo”, Época

divulgou um arquivo de 2 mil páginas com telegramas citando a empreiteira durante o

governo Lula, sem qualquer tratamento jornalístico que minimamente apontasse alguma

razão pela qual, supostamente, o Itamaraty estivesse querendo escondê-los. Em um

texto de três parágrafos, a revista enumera justificativas para a publicação dos arquivos

brutos, como o fato de as páginas terem sido entregues impressas e fotografadas uma a

uma ou o arquivo em PDF não permitir pesquisas por palavra-chave, para, ao final,

delegar aos leitores a tarefa de encontrar a notícia: “Ajude a equipe de ÉPOCA a

analisar os documentos. Se encontrar, nos telegramas, algo que mereça a nossa atenção

para uma reportagem, envie um e-mail”.

Não se sabe se algum leitor enviou e-mail à reportagem de Época, mas nos dias

subsequentes à publicação dos documentos nenhuma matéria interpretativa sobre os

telegramas foi publicada. Dezenas de veículos reproduziram a matéria nos mesmos

26 Algumas reflexões presentes neste artigo estão contempladas em textos ensaísticos publicados

pela autora no Observatório da Imprensa, porém aqui os comentários empíricos estão postos em

perspectiva com referenciais teóricos, configurando um exercício de reflexão acadêmica com propósito

mais estruturado em relação aos textos iniciais. As referências dos referidos textos podem ser consultadas

no final do artigo. 27 Disponível em http://migre.me/qH1SM

102

termos de Época, dando créditos à revista pela revelação dos documentos, mas

igualmente sem escrutiná-los. Apenas Veja28 detalhou trechos de telegramas que

compõem o dossiê. O texto de Veja, aliás, foi publicado seis minutos antes do de Época,

o que dá margem a outra inferência a respeito do tom da reportagem de Época, que mais

se preocupa em destacar que foi a primeira a obter os documentos do que propriamente

em responder por que sua revelação era relevante: como foi “furada” por outro veículo

no detalhamento dos telegramas aos quais já havia tido acesso, era então preciso dizer

aos leitores que já sabia dos documentos uma semana antes dos concorrentes.

A desistência de Época em fazer uma suíte da matéria chamou menos atenção

porque três dias após, em 19 de junho de 2015, o presidente da Odebrecht, Marcelo

Odebrechet, foi preso na Operação Lava-Jato, e a notícia mudou de foco. Mas não seria

este um gancho para recuperar evidências supostamente contidas nos telegramas?

Ao abrir mão do seu papel interpretativo, os jornalistas deixam escapar uma das

propriedades que poderia justificar sua permanência na sociedade, já que as “chaves dos

portões”29 do espaço público não lhes pertencem há algum tempo. Ainda que a

aceitação de uma visão construcionista do jornalismo exponha a incidência de

ideologias, relações de poder, tendências políticas, favorecimento econômico e outros

fatores nos processos produtivos da notícia, a capacidade de interpretar, contextualizar e

certificar informações é uma das poucas vantagens que o jornalista ainda preserva em

relação aos algoritmos que operam como os verdadeiros gatekeepers contemporâneos.

2. A internet e os jornalistas

O mercado jornalístico tem apresentado diversos sintomas de que o status do

jornalismo como instituição social está ameaçado, em especial no âmbito das empresas

jornalísticas. Demissões em massa, fechamento de títulos, jornais que deixam de ser

impressos, devolução de concessões de TV. O fenômeno da internet está relacionado a

essas medidas de diferentes maneiras, mas principalmente porque o acesso a

informações na rede torna os meios tradicionais de divulgar notícias cada vez menos

lucrativos.

28 Disponível em http://migre.me/qH2HE 29 A expressão “chave dos portões” faz referência à premissa dos estudos de gatekeeping, de que há

uma série de fatores que determinam a escolha do jornalista por noticiar ou não determinado fato. Esses

filtros são chamados de “portões” (do inglês, gates) dispostos numa sequência mais ou menos precisa.

(TRAQUINA, 2001)

103

O resultado desse processo é o encolhimento das redações, fenômeno que

coincide com a recolocação profissional dos jornalistas no papel de fontes, e não de

repórteres, em escala desproporcional. Conforme levantamento sobre o perfil do

jornalista brasileiro30, divulgado em 2012, de cada dez jornalistas, um era professor,

quatro trabalhavam predominantemente fora da mídia e cinco trabalhavam

principalmente em mídia, o que permite concluir que pelo menos metade dos

profissionais da área está fora das redações.

Um terço desses jornalistas trabalhava em órgãos públicos e outro terço em

empresas privadas especializadas em assessoria de imprensa e comunicação. São

jornalistas que estão, possivelmente, mais ocupados em impedir que repórteres tenham

acesso a fontes e informações que não interessam a seus clientes ou oferecer pautas e

releases favoráveis a seus assessorados do que em exercer seu papel de certificação e

interpretação. Apesar da desproporcionalidade, parece reconfortante pensar que, como

fontes não tornam públicas informações que lhes são inconvenientes, a internet não

dispensaria os jornalistas (BARSOTTI, 2014, p. 23). A questão é: em que espaço esse

exercício seria viável?

Barsotti (2014) faz uma boa recopilação de teorias do jornalismo e leituras tanto

apocalípticas quanto rendentoras do jornalismo no século XXI, da “saga dos cães

perdidos” de Marcondes Filho, até a esperança de Neveu de que o caos da oferta de

informação na internet poderia devolver sentido ao trabalho dos jornalistas. Ao trazer

Manuel Pinto (2010, p. 72 apud BARSOTTI, 2014, p. 114) para a discussão, a autora

deixa uma pista para a reflexão deste artigo: apesar da diluição do papel de

intermediário dos jornalistas, à medida que cresce a avalanche de informações na

internet, seria ainda mais necessária a tarefa de pesquisar informações não divulgadas e

confrontar dados a partir de ângulos diversos. No caso de Época aqui descrito, o esforço

jornalístico parou na pesquisa de informações não divulgadas. Não houve

“confrontamento de dados por ângulos diversos”, o que leva a questionar a real

necessidade de jornalistas, já que a informação pode ser disponibilizada, com ou sem a

intermediação.

No entanto, parece que não é qualquer informação que interessa à sociedade.

Tanto que gigantes como Apple e Facebook estão empenhadas em lançar ferramentas

para disseminar notícias. Em junho de 2015, a Apple anunciou o aplicativo News para

30 Realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC), em convênio com a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ).

104

hospedar reportagens, em parceria com jornais como The Guardian, New York Times e

Daily Mail. Meses antes, o Facebook havia feito anúncio semelhante, no intuito de

publicar notícias na própria página, ao invés de direcionar usuários a outros portais.

Ainda que possam apontar para um eventual reconhecimento do valor da informação

jornalística, as iniciativas das gigantes da internet provavelmente têm mais a ver com o

interesse da audiência. Estudo divulgado em junho de 2015 pelo Pew Research Center,

instituto estadunidense especializado em pesquisas de comportamento e tendências, por

exemplo, mostrou que 61% dos jovens da chamada Geração Y usam o Facebook para

ler notícias de política.

Na mesma linha, é possível mencionar a pesquisa do instituto Datafolha,

divulgada em março de 2015, que apontou empate técnico entre imprensa e redes

sociais como as instituições de maior prestígio na sociedade brasileira. Foi a primeira

vez que redes sociais31 foram incluídas no levantamento. A nova categoria pesquisada

obteve 63% da preferência como uma “instituição de muito prestígio” na sociedade,

contra 65% da imprensa.

3. O jornalismo como instituição social

Diante dos argumentos postos em discussão neste artigo, a posição das redes

sociais no levantamento do instituto Datafolha não chega a surpreender. No entanto, é

preciso pensar mais criticamente sobre o status de “instituição” das redes, ao lado de

Igreja, Forças Armadas, Poder Judiciário e Congresso Nacional, além da imprensa. É

preciso tensionar, mais especificamente, o empate técnico das redes sociais com a

imprensa, sugerido pela pesquisa.

Nas primeiras décadas do século XX, o jornalista e sociólogo Robert Park se

esforçava em situar o surgimento da notícia – e do repórter – como um dos mais

importantes eventos da civilização americana. Park defendia a notícia como uma forma

social conhecimento e a função da notícia de “orientar” o indivíduo, preservando sua

sanidade numa sociedade que passava por mudanças “rápidas e drásticas”. Diante de um

ecossistema midiático muito mais simples do que o atual, o sociólogo percebeu nas

31 Foi mantida neste artigo a expressão “redes sociais”, conforme utilizado pelo instituto Datafolha

na pesquisa, para designar, na verdade, “sites de rede social”. Embora atuem como suporte para as

interações que constituem as redes sociais, os sites não são, por si, redes sociais (RECUERO, 2009, p.

103). Os sites são sistemas, as redes se constituem dos atores sociais que os utilizam, as pessoas. Por seu

caráter de apropriação criativa, esses sites de rede social funcionam também como mídias sociais:

ferramentas de comunicação que permitem a emergência de redes sociais numa lógica de conversação.

105

transformações de então uma oportunidade de posicionar o jornalismo como elemento

estruturante da sociedade. Como recupera Elias Machado (2005, p. 29), enquanto outros

intelectuais viam o jornal como um crime e o povo via nele uma espécie de tribuna,

Park percebeu que o mais importante era identificar o jornal como “uma instituição

social nascida para atender as demandas comunicativas de uma sociedade cada vez mais

complexa”.

Tal proposição mostra-se bastante atual frente a uma sociedade ainda mais

complexa, na qual o jornalismo tem seu papel questionado e as organizações

jornalísticas sofrem mudanças “rápidas e drásticas”. Há, aí, duas interpretações

possíveis diante do prestígio compartilhado pela imprensa e pelas redes sociais na

contemporaneidade: de um lado, a ideia de que, para além das transformações

momentâneas, deve permanecer a imprensa como um componente estrutural da

sociedade; de outro, que as redes sociais estão para o século XXI como o jornal estava

para o século XX. Hoje, essas redes são vistas com preconceito por uns e como tribuna

por outros, mas também nada impede que elas venham a ser compreendidas como “uma

instituição social nascida para atender as demandas comunicativas de uma sociedade

cada vez mais complexa”, sem que isso signifique, necessariamente, a derrocada

completa do jornalismo como componente estrutural da sociedade.

Para sustentar sua proposição de que a notícia é uma forma de conhecimento,

Park se apropriou das noções de “conhecimento de” e “conhecimento acerca de”,

propostos por William James, em 1896. Para Park, o conhecimento de é “(...) um tipo de

conhecimento que alguém inevitavelmente adquire ao longo de seus encontros pessoais

e de primeira mão com o mundo ao seu redor” (PARK, 2008b, p. 52). É o conhecimento

pessoal adquirido pelo indivíduo que se adapta ao mundo graças a uma fusão de

experiências. Em contraste a esse conhecimento instintivo e intuitivo, há um

conhecimento formal, racional e sistemático – o conhecimento acerca de. O caráter

exclusivo desse conhecimento científico é que ele é comunicável, enquanto o senso

comum, baseado na experiência prática, não o é. As duas formas de conhecimento

fazem parte de um continuum dentro do qual todos os tipos de conhecimento encontram

lugar – e onde a notícia tem localização própria: “Pode-se dizer que a notícia existe

somente nesse presente. O significado do 'presente precioso' é sugerido aqui pelo fato de

que a notícia, como é sabido pela imprensa comercial, é um produto muito perecível”

(PARK, 2008b, p. 59).

106

Se a notícia já era então considerada um produto altamente perecível, quem dirá

no século XXI, quando o tempo entre a ocorrência de um evento e sua comunicação é

praticamente nulo. De certa forma, a imediaticidade da mídia contemporânea reforça a

ideia de que a notícia “(...) desempenha as mesmas funções para o público que a

percepção desempenha para o indivíduo” (PARK, 2008b, p. 60). A compreensão de

Park deixa subentendido que o tipo de conhecimento gerado pelo jornalismo não

ultrapassaria o do senso comum, o que torna sua visão bastante criticável diante de

práticas de reportagem que se consolidaram posteriormente, mudando o patamar do

jornalismo perante a sociedade. Além disso, Park (2008b, p. 62) tomava a publicação

como caráter distintivo da notícia em relação a outros tipos de relatórios de eventos

“menos autênticos”, como o boato e a fofoca.

Tal definição parece insuficiente para diferenciar a notícia do boato na

atualidade. É preciso que o jornalismo se diferencie, especialmente no ciberespaço, pelo

tipo de conhecimento que produz. Assim, é válida a interpretação de Conde (2008, p.

25) de que a caracterização parkiana das notícias como forma elementar de

conhecimento exclui formas posteriores de jornalismo, como o investigativo. Cabe

ressaltar ainda que a visão de Park remete a uma noção de objetividade jornalística que

precisa ser relativizada. Por isso, a contribuição de Miquel Alsina (2009), que trabalha o

relato jornalístico como uma construção, ajuda na compreensão do jornalismo como

instituição social, noção delineada inicialmente pelo próprio Park.

Diante de mudanças “rápidas e drásticas” pelas quais passa a comunicação

contemporânea, o papel de “orientação” dos indivíduos exercido pelas redes sociais no

início deste século parece se assemelhar ao que tinha a imprensa no começo do século

passado. No entanto, ao se colocar imprensa e redes sociais no mesmo patamar – de

instituições – e com grau de prestígio idêntico na sociedade, corre-se o risco de ignorar

o que diferencia o conteúdo jornalístico dentre a imensidão de informações disponíveis,

desconsiderando os pilares que institucionalizaram o jornalismo no século XX.

Foi na modernidade que os jornalistas se consolidaram como construtores da

realidade, e também que os jornais se firmaram como negócios lucrativos. Na “história

natural da imprensa” concebida por Park, “o tipo de jornal que existe é o tipo que

sobreviveu sob as condições da vida moderna” (PARK, 2008a, p. 33). Ao escrever a

história social da imprensa nos Estados Unidos, Michel Schudson (2010) atribuiu a

consolidação da imprensa à democratização da vida econômica, o que seria uma

explicação para as condições que fizeram do jornal tal como o conhecemos.

107

Passou-se do viés político das primeiras publicações para uma lógica

empresarial de produção de notícias, o que acarretou em mudanças no conteúdo

publicado pelos jornais e também nas práticas jornalísticas. Desenvolvendo rotinas para

a produção de um discurso escrito “para dizer a verdade”, como destaca Alsina (2009),

os jornais estabeleceram um contrato pragmático fiduciário com seus leitores, “um

produto histórico da institucionalização e da legitimação do papel do jornalista”

(ALSINA, 2009, p. 48). Se a notícia é uma forma de conhecimento, para o jornalismo

fazer saber, é preciso que ele seja crível.

Para sustentar o entendimento de que os jornalistas têm um papel socialmente

legitimado e institucionalizado para recopilar os acontecimentos e dar-lhes sentido,

Alsina trabalha com as bases epistemológicas de Berger e Luckman (2002) sobre a

construção social da realidade. Para os autores, não existe apenas uma, mas sim muitas

realidades, porém há uma delas que se impõe como sendo a própria realidade: a

realidade da vida cotidiana. Essa realidade é objetivada e interpretada a partir de uma

série de processos de interação social, pelos quais geramos tipificações que

intermedeiam nossas relações com os sujeitos, a forma como vemos o outro e também a

nós mesmos.

Ocorre que esses processos interacionais e de tipificação não ocorrem apenas

face a face, mas também por meio da linguagem, que é capaz de “tornar presente” uma

grande variedade de objetos que estão espacial, temporal e socialmente ausentes do

“aqui e agora” (BERGER; LUCKMAN, 2002, pp. 59-60). Dito de outro modo, a

linguagem constrói representações simbólicas. Segundo Berger e Luckman, a religião, a

filosofia, a arte e a ciência são sistemas de símbolos historicamente mais importantes no

que se refere à transcendência de outros mundos por meio da linguagem. Ao longo do

século XX, o jornalismo adquiriu certo protagonismo na representação simbólica da

realidade. De instituição nascida para atender às demandas comunicativas da sociedade,

o jornalismo se firma como atividade socialmente institucionalizada para construir

relatos sobre a realidade socialmente relevantes.

4. O jornalismo no século XXI

Se o jornal moderno, segundo Park, era aquele que havia sobrevivido às

condições da vida moderna, nas condições da vida “pós-moderna”, para Miquel Alsina

(2009, p. 57), a informação na internet poderia mudar até mesmo o próprio conceito de

108

imprensa ou ainda da mídia de maneira geral. Alsina sinaliza que o estado permanente

de mutação não é novo, mas sim a velocidade das mudanças.

Não há, ainda, distanciamento histórico suficiente para se fazer essa análise com

clareza, mas percebe-se que a lógica de acesso à informação característica das redes

sociais tende a se sobressair neste século, e pode até se firmar a ponto de consolidar o

status de instituição a elas atribuído pela pesquisa Datafolha. Assim, uma vez inseridas

nessa lógica, as organizações jornalísticas e, portanto, o jornalismo enquanto instituição,

poderiam continuar exercendo seu papel estruturante na sociedade, desde que sejam

preservados os elementos que diferenciam o conteúdo jornalístico no ecossistema

midiático. Esse diferencial seria gerar construções da realidade publicamente relevantes,

ou gerar conhecimento sobre as diferentes realidades da vida cotidiana.

Park (2008b, p. 69) sustentava que a importância da notícia crescia

consistentemente com a expansão dos meios de comunicação e o crescimento da

ciência. Um século mais tarde, a expansão dos meios de comunicação é ainda mais

vertiginosa e, se antes o jornalismo lutava para se firmar como elemento estruturante da

sociedade, agora a sua legitimidade enquanto instituição é questionada.

Segundo essa perspectiva, no ambiente midiático contemporâneo, de ampla

circulação de informação, o conteúdo jornalístico só poderia se diferenciar se mantiver

sua função de influenciar a opinião pública e gerar ação política, apresentando-se como

forma de conhecimento social. Porém, não é possível garantir que a defesa do papel

interpretativo do jornalismo será suficiente para manter o prestígio da imprensa na

sociedade ao longo deste século, tampouco se o prestígio das redes sociais seguirá em

ascensão. Diante de mudanças tão “rápidas e drásticas”, não é possível sequer assegurar

se os pilares do jornalismo consolidados até então são realmente capazes de atender às

demandas comunicativas de uma sociedade cada vez mais complexa e construir

realidades socialmente relevantes.

Casos como o de Época, tensionado neste artigo, vão na direção contrária da

interpretação. Vale fazer uma ressalva de que este artigo trata de um caso específico e

aparentemente isolado. Não se pretende generalizar a prática aqui problematizada como

sinônimo do jornalismo praticado por Época. Nesse sentido, seria necessário um estudo

mais aprofundado, o que não era o objetivo deste artigo, que toma o referido exemplo

apenas ilustrativamente, com o intuito de promover uma reflexão sobre as condições e

as perspectivas para a prática jornalística no século XXI.

109

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