greenberg, danto e o fim da arte

14
GREENBERG, DANTO E O FIM DA ARTE Pedro Süssekind* [email protected] RESUMO Este estudo discute a questão do fim da arte com base nas reflexões críticas de Clement Greenberg e na posterior apropriação dessas reflexões por Arthur Danto. Em primeiro lugar, pretendo mostrar como a visão negativa de Greenberg acerca da arte produzida a partir dos anos 1960 implica o tema do fim da arte. Em segundo, pretendo expor a tarefa assumida por Danto a partir de sua avaliação dos diagnósticos e da teoria de Greenberg. Palavras-chave Greenberg, Danto, arte moderna, arte contemporânea, crítica. ABSTRACT This paper addresses the question of the end of art based on the critical reflections of Clement Greenberg and the subsequent appropriation of these reflections by Arthur Danto. Firstly, I intend to show how the negative view of Greenberg about art produced from the 60’s implies the issue of the end of art. Secondly, I intend to expose the task taken up by Danto based on his debate with Greenberg’s theory. Keywords Greenberg, Danto modern art, contemporary art, criticism. KRITERION, Belo Horizonte, nº 129, Jun./2014, p. 349-362 * Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Artigo recebido em 07/06/2012 e aprovado em 15/06/2013.

Upload: clara-nobre-de-camargo

Post on 28-Sep-2015

23 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Este estudo discute a questão do fim da arte com base nasreflexões críticas de Clement Greenberg e na posterior apropriação dessasreflexões por Arthur Danto. Em primeiro lugar, pretendo mostrar comoa visão negativa de Greenberg acerca da arte produzida a partir dos anos1960 implica o tema do fim da arte. Em segundo, pretendo expor a tarefaassumida por Danto a partir de sua avaliação dos diagnósticos e da teoriade Greenberg.

TRANSCRIPT

  • GREENBERG, DANTO E O FIM DA ARTE

    Pedro Sssekind*[email protected]

    RESUMO Este estudo discute a questo do fim da arte com base nas reflexes crticas de Clement Greenberg e na posterior apropriao dessas reflexes por Arthur Danto. Em primeiro lugar, pretendo mostrar como a viso negativa de Greenberg acerca da arte produzida a partir dos anos 1960 implica o tema do fim da arte. Em segundo, pretendo expor a tarefa assumida por Danto a partir de sua avaliao dos diagnsticos e da teoria de Greenberg.

    Palavras-chave Greenberg, Danto, arte moderna, arte contempornea, crtica.

    ABSTRACT This paper addresses the question of the end of art based on the critical reflections of Clement Greenberg and the subsequent appropriation of these reflections by Arthur Danto. Firstly, I intend to show how the negative view of Greenberg about art produced from the 60s implies the issue of the end of art. Secondly, I intend to expose the task taken up by Danto based on his debate with Greenbergs theory.

    Keywords Greenberg, Danto modern art, contemporary art, criticism.

    kriterion, Belo Horizonte, n 129, Jun./2014, p. 349-362

    * Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Artigo recebido em 07/06/2012 e aprovado em 15/06/2013.

  • Pedro Sssekind350

    1

    tanto a fase inicial da arte moderna quanto a passagem para a chamada arte contempornea, dcadas depois, configuram momentos de crise, nos quais o desenvolvimento de teorias sobre a arte exige uma renovao que s pode se dar por meio da contestao de modelos tericos estabelecidos. Se as vanguardas artsticas, a partir do final do sculo XIX, levaram ao extremo a necessidade de renovar o pensamento crtico, a arte das ltimas dcadas do sculo XX ps novamente em xeque o discurso terico sobre as vanguardas que vinha se consolidando. nesse segundo momento, no s era necessrio romper com os parmetros institudos a partir da arte j consagrada a fim de pensar uma arte nova, que no obedecia mais a esses parmetros, mas essa quebra precisou ser radicalizada e passou a ter um duplo alcance, voltando-se tanto para a avaliao da prtica artstica quanto para o questionamento da prpria histria da arte, como discurso terico explicativo.

    As reflexes de Arthur Danto sobre a tese do fim da arte, retomando em novo contexto o clebre tema hegeliano, assumem essa dupla tarefa de discutir os rumos da arte contempornea e de pensar os limites das narrativas que procuram explicar e classificar o que os artistas produzem. Seu questionamento dos modelos tericos pe em xeque tanto a concepo tradicional, que marcou o desenvolvimento da histria da arte desde o Renascimento, quanto a crtica renovada no sculo XX a partir das exigncias impostas pela produo artstica moderna. Assim, quando Danto, em Aps o fim da arte, considera Clement Greenberg como o grande narrador do modernismo,1 ou como incontestavelmente o mais importante crtico de arte kantiano de nosso tempo,2 trata-se certamente do reconhecimento da importncia de seu precursor, mas tambm de uma estratgia algo polemista, na qual o elogio expe uma discordncia. Ou seja, essas referncias elogiosas tm aqui, a meu ver, a funo de ressaltar a oposio a um crtico anterior assumidamente importante e, com isso, a todo o modelo terico do qual ele o maior representante.

    Minha hiptese, a partir dessa oposio, que, apesar das crticas dirigidas por Danto a Greenberg (implcitas mesmo quando o elogia), sua principal tese na filosofia da arte a tese do fim da arte, aplicada a uma reflexo sobre os rumos da produo artstica a partir dos anos 1960 parte justamente da crtica greenberguiana, mais exatamente do reconhecimento de uma mudana

    1 Danto, 2006, p. 10.2 Ibidem, p. 93.

  • 351GREENBERG, DANTO E O FIM DA ARTE

    e de uma espcie de esgotamento, de fim da arte moderna. Entretanto, para esclarecer essa hiptese, preciso ressaltar que, como grande crtico da arte moderna, Greenberg foi tambm um tipo de polemista, que revolucionou a teoria da arte desconstruindo os parmetros crticos dominantes ainda nas primeiras dcadas do sculo XX. Mais do que qualquer outro autor, ele foi capaz de justificar teoricamente, contra o juzo crtico tradicional, a insero dos movimentos modernistas, como o Impressionismo, o Cubismo e o expressionismo Abstrato, na linha mestra de evoluo da histria da arte no ocidente.

    trata-se de um trabalho fundamental para o desenvolvimento da crtica de arte, uma vez que o modelo tradicional de avaliao das obras, consagrado por sculos de arte representacional, ou mimtica, servira de base para as mais violentas e intransigentes reaes pintura modernista em seus primrdios. Para dar um exemplo, lembro a esse respeito as declaraes do poeta Wilfried Blunt, que nos seus dirios, ao comentar uma exposio que inclua Czanne, Van Gogh e Matisse, avaliou o que viu como rude puerilidade que rabisca indecncias na parede de um sanitrio, ou obras da ociosidade e de uma impotente estupidez.3 Suas palavras podem ser consideradas, segundo uma perspectiva consolidada algumas dcadas depois com a valorizao e o reconhecimento desses pintores por parte da crtica, um dos melhores indcios da dificuldade, na teoria da arte, de abandonar um modelo consagrado para enxergar o sentido ou a qualidade de novos caminhos artsticos.

    2

    Na poca de Greenberg, o rumo da pintura modernista em direo ao abstracionismo constitua o grande desafio para a teoria da arte. Ao assumir esse desafio, ele v justamente as obras que causaram escndalo no final do sculo XIX como os marcos iniciais da ruptura que originou a arte moderna. Manet e os impressionistas franceses do incio, de acordo com a narrativa histrica desenvolvida em seus trabalhos crticos, a uma mudana profunda na pintura ocidental, uma revoluo cujo pleno significado ainda estava para ser avaliado. o que afirma o crtico americano em seu ensaio Arte abstrata, de 1944.4

    3 Blunt, W. S. My Diaries: Being a Personal Narrative of Events, 1888-1914 (London: Martin Secker, 1919-1920), 2, p. 743. Cf. Danto, 2006, p. 63.

    4 Cf. Greenberg et al., 1997, p. 61.

  • Pedro Sssekind352

    Ao propor uma perspectiva histrica para entender o significado da arte abstrata, Greenberg descreve as duas grandes revolues pelas quais a pintura ocidental tinha passado. A primeira, em suas palavras, levou da planaridade hiertica do gtico e do bizantino tridimensionalidade do Renascimento.5 Trata-se da mudana iniciada por Giotto no final da Idade Mdia e teorizada pelos historiadores da arte desde o sculo XVI, com A vida dos mais eminentes pintores, escultores e arquitetos, de Giorgio Vasari. De acordo com essa teoria, que estabelece uma clara linha evolutiva para a pintura, a revoluo consolidada pelos grandes mestres renascentistas italianos consiste no aprimoramento dos recursos tcnicos da tridimensionalidade, a tal ponto que a tela passou a ser concebida como superfcie transparente, como janela para a realidade. Assim, haveria um conjunto de procedimentos que tornou mais adequada e exata a representao mimtica.

    Ao comentar o modelo vasariano justamente num texto sobre Greenberg , Arthur Danto observa que as frmulas usadas pelo terico renascentista para elogiar as pinturas esto ligadas plena identificao com a realidade. O rosto da Monalisa no parece ser pintado, mas feito de carne e osso; o homem curvado sobre uma fonte, num afresco de Giotto em Assis, retratado com um efeito to maravilhoso, que se poderia acreditar ter ali um homem vivo.6 Segundo Danto, de acordo com esse modelo, o critrio para o elogio crtico a semelhana exata com a realidade, portanto a perfeita iluso.

    Em Arte abstrata, Greenberg descreve a revoluo promovida pelos pintores renascentistas do ponto de vista tcnico. Para ele, o problema era obter uma unidade estrutural, tonal e decorativa, o que exigia acreditar bastante na iluso de profundidade para organizar elementos no espao ilusionista.7 A iluso das trs dimenses seria, portanto, o fator preponderante. O efeito ilusionista teria orientado o rumo da pintura at meados do sculo XIX, de modo que a evoluo dessa prtica artstica pode ser avaliada como a conquista de uma capacidade cada vez mais apurada de representar na tela as formas das coisas visveis, as imagens do mundo. Mas com Manet e Courbet a arte ocidental reverteu sua direo,8 afirma Greenberg para designar o marco inicial daquela que considera a segunda grande revoluo da pintura.

    O que o Impressionismo fez foi virar ao avesso a pintura figurativa, a partir da explorao de descobertas ligadas cincia, especialmente

    5 Idem.6 Danto, 2006, p. 57.7 Greenberg et al., 1997, p. 63.8 Idem.

  • 353GREENBERG, DANTO E O FIM DA ARTE

    inveno da fotografia. No se tratava de romper com a ideia de representao fiel da natureza, mas de levar essa ideia ao extremo, na tentativa de reproduzir a experincia visual. O questionamento da tridimensionalidade a partir da concepo de que os dados visuais no passam de cores desencadeia, assim, um processo no qual a pintura permanece prxima da superfcie. Comea a prevalecer o que Greenberg chama de planaridade, ao mesmo tempo que o ilusionismo abandonado em favor de uma explicitao da materialidade da pintura. Para enfatizar a diferena desta com relao fotografia nova maneira de captar e representar o mundo visvel , ficam aparentes os elementos pictricos, como a tela, a tinta aplicada sobre ela, a marca das pinceladas.

    Progressivamente, os sucessores do impressionismo eliminariam da pintura suas caractersticas ligadas tradio ilusionista ou representativa, como a perspectiva atmosfrica e os efeitos tridimensionais luminosos. em vez de ser concebida como janela para a cena retratada, a superfcie se converte no locus real da pintura. E Czanne exemplar nesse processo. Segundo a descrio de Greenberg, foi para lidar com a planaridade que ele fragmentou os objetos que pintava em multiplicidades de planos, paralelos superfcie da tela. O mtodo pelo qual Czanne buscava criar uma nova e menos enganosa iluso da terceira dimenso influenciou, por sua vez, o desenvolvimento do cubismo, com Picasso e Braque, cujos esforos para restaurar aquela mesma terceira dimenso, por meio de um exagero dos mtodos tradicionais, acabaria por anul-la nos quadros em que a identidade dos objetos desaparece por completo.9

    Para Greenberg, com uma velocidade que ainda parece espantosa, operou-se uma das mais epocais transformaes da histria da arte:10 a renncia aos mtodos ilusionistas, uma vez que as tcnicas baseadas nas convenes da representao esgotaram suas possibilidades. O artista no poderia mais imitar a natureza, e com isso a arte volta-se para si mesma, toma conscincia de si mesma como arte. Na narrativa greenberguiana esse processo entendido como um movimento necessrio, encadeado de maneira coerente s questes de seu momento histrico, um movimento cujo resultado a arte moderna, que tem no abstracionismo pictrico sua expresso mais acabada.

    9 Ibidem, p. 64.10 Idem.

  • Pedro Sssekind354

    3

    A base da perspectiva histrica proposta por Greenberg a filosofia crtica de Kant. Ele explicitou essa fundamentao em seu ensaio Pintura modernista, de 1960, afirmando: Identifico o modernismo com a intensificao,a quase exacerbao dessa tendncia autocrtica que teve incio com o filsofo Kant.11 A frase se refere a uma poca histrica que se volta para o exame de suas prprias bases, de suas condies de possibilidade. Kant seria, assim, o primeiro verdadeiro modernista. E o que motiva essa constatao a ideia de que o filsofo foi o primeiro a criticar os prprios meios da crtica.12

    Greenberg pretende descrever, desse modo, uma verdadeira revoluo copernicana da cultura, uma mudana identificada com o rumo especfico da arte na modernidade. A ideia de autocrtica explicada no ensaio sobre a pintura modernista parte da noo kantiana de uma crtica da razo especulativa, ou seja, do conhecimento que se volta para os meios do conhecimento, para os prprios usos da razo. Portanto, a referncia aqui a proposta de uma revoluo da metafsica, nos moldes da filosofia crtica: uma ruptura com o pressuposto de que o conhecimento definido pelos objetos para, invertendo o eixo que orienta o senso comum, partir da admisso de que os objetos so definidos pelo conhecimento.13 Segundo Greenberg, natural que esse tipo de crtica tenha aparecido primeiro na filosofia, que crtica por definio, mas, no decorrer do sculo XIX, ela penetrou em muitos outros campos, com a exigncia de justificativa racional de cada atividade no mbito da cultura moderna ocidental.14

    A analogia da proposta metafsica kantiana com a arte moderna se evidencia, ento, quando a crise da pintura figurativa considerada como uma crise da representao. Assim como o conhecimento, a pintura abandona o pressuposto de ser definida pelos objetos e de precisar imit-los. Essa ruptura tem como consequncia um processo reflexivo da arte, de conscincia e explorao dos seus prprios procedimentos. trata-se ao mesmo tempo de uma restrio e de uma consolidao: as artes perderam a funo figurativa que as definia, mas por isso mesmo foram levadas a examinar suas condies

    11 Ibidem, p. 10112 Idem.13 Kant, 1989, pp. 19-20. At hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos;

    porm, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se no se resolvero melhor as tarefas da metafsica admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento.

    14 Greenberg et al., 1997, p. 101.

  • 355GREENBERG, DANTO E O FIM DA ARTE

    de possibilidade, a determinar o que havia de nico e irredutvel no somente na arte em geral, mas tambm em cada arte particular.15 restringindo sua rea de competncia, cada arte se consolidaria em seu domnio mais prprio, cumpriria sua tarefa e sua finalidade especfica. Greenberg define do seguinte modo a essncia kantiana do modernismo: o uso de mtodos caractersticos de uma disciplina para criticar essa mesma disciplina, no no intuito de subvert-la, mas para entrincheir-la mais firmemente em sua rea de competncia.16

    Assim definido, o modernismo artstico implica que cada arte particular elimine de sua prtica elementos importados de outras reas, buscando a pureza de uma elaborao exclusiva de seus meios especficos. Ou seja, quando a pintura figurativa dos grandes mestres do passado ocultava a superfcie, a tela e a tinta, para mostrar as coisas com o mximo de realismo, ela estava usurpando caractersticas da escultura, que trabalha com o espao tridimensional. Da mesma maneira, as cenas representadas (o tema) eram traos literrios, dramatizaes de uma histria. Entretanto, com o modernismo, a pintura deveria abandonar tudo o que ela tinha de escultrico e literrio, voltando-se para a rea de competncia nica que consiste na natureza de seus meios prprios de expresso. E a consequncia que os elementos encarados anteriormente como limitaes a serem dissimuladas (superfcie plana, pinceladas) passam a ser vistos como fatores positivos, assumidos explicitamente pelos pintores a partir do movimento impressionista. Segundo Greenberg, se a arte realista, naturalista, havia dissimulado os meios, usando a arte para ocultar a arte, o modernismo usou a arte para chamar a ateno para a arte.17 Trata-se de uma misso de autodefinio radical, associada noo de pureza, que passaria a ser um critrio de avaliao no trabalho do crtico.

    Alis, como ocorre com a noo de crtica, o uso do termo puro, nesse contexto, remete a kant. A arte modernista pura porque se volta para a explicitao de seus prprios meios e de seus prprios limites, da mesma maneira que, na Crtica da razo pura, a crtica empreendida pela razo se volta para a prpria razo, explicitando seus usos especficos e suas limitaes.

    15 Ibidem, p. 102.16 Ibidem, p. 101.17 Ibidem, p. 102.

  • Pedro Sssekind356

    4

    No toa, portanto, que Danto considera Greeenberg o mais importante crtico de arte kantiano de nosso tempo, como ele afirma em seu livro Aps o fim da arte.18 A meu ver, o uso do adjetivo kantiano possui aqui uma dupla funo. Por um lado, Danto valoriza Greenberg como filsofo da arte, ou melhor, como um crtico de arte que assume sua tarefa a partir de certa concepo filosfica embasada na esttica moderna. Por outro, cham-lo de kantiano tem mais uma vez uma funo estratgica aqui (algo polemista) de indicar o compromisso da crtica greenberguiana justamente com a esttica filosfica.

    Segundo a leitura feita por Danto, o compromisso com os parmetros da esttica implica uma contraposio entre beleza e utilidade. A atribuio dos juzos de gosto a um prazer desinteressado, na Crtica da faculdade do juzo, marcaria essa distino entre o campo esttico e o campo prtico.19 A apreciao da beleza desprovida de qualquer interesse, de acordo com a concepo kantiana, sustentaria um tipo de crtica que busca a qualidade das obras de arte, sua pureza, como pretendia Greenberg. No estava em jogo pensar o que era arte, mas separar a arte boa, de qualidade, da arte ruim, com base no gosto apurado do crtico. e a pintura constitua, nessa perspectiva, o gnero mais tradicional e mais puro da criao de objetos voltados para a contemplao. A finalidade ou a funo da obra era reduzida, assim, ao prazer que ela era capaz de despertar em funo das caractersticas de elaborao e composio que levavam adiante a evoluo artstica da pintura.

    Considero que a leitura de Kant feita em Aps o fim da arte deixa de lado elementos importantes da Terceira Crtica, como a questo do tipo especial de universalidade ligado aos juzos de gosto. no se pode simplesmente assumir a disjuno entre beleza e utilidade sem uma reflexo sobre a maneira como Kant pensou a finalidade no campo esttico. Alm disso, o comentrio ignora a questo do gnio como fator de distino entre o belo natural e o belo artstico. Contudo, o modelo kantiano de Greenberg, que propriamente o objeto da anlise de Danto, tambm bastante simplificado e no aprofunda as reflexes do filsofo alemo sobre a universalidade ou sobre o gnio artstico.

    Do ponto de vista do seu embasamento na esttica moderna, parece-me que Greenberg poderia ser classificado mais precisamente como crtico humiano do que como crtico kantiano,20 pois sua concepo de gosto est ligada a um

    18 Cf. p. 93.19 Danto, 2006, pp. 89-90.20 Danto parece concordar com isso. Cf. Danto, 2006, p. 122.

  • 357GREENBERG, DANTO E O FIM DA ARTE

    aprimoramento do olhar, experincia pessoal do especialista em artes. E essa noo empirista, ou materialista, bem mais prxima do ensaio Do padro do gosto, de Hume, do que da Crtica da faculdade do juzo. O materialismo do gosto pode inclusive ser contraposto subjetividade incontornvel dos juzos estticos, impossibilidade de prov-los, pois segundo Kant a reivindicao de universalidade, neste caso, diz respeito a uma espcie de unanimidade do sentimento de prazer e no a um conceito determinado.

    Em todo caso, Greenberg certamente no um comentador fiel filosofia kantiana, mas um crtico filosfico que se baseia na esttica moderna. Da mesma maneira que a valorizao de Greenberg por Danto como maior crtico (kantiano ou no) do nosso tempo, embora faa parte de uma estratgia polemista para pensar os limites da histria da arte como narrativa, indica que o autor de Aps o fim da arte de fato enxerga esse crtico como um dos interlocutores mais importantes para o debate que ele prope.

    Nesse sentido, considero que a principal tese de Danto na filosofia da arte, a tese sobre o fim da arte, vem justamente de um desafio imposto pelas limitaes da crtica greenberguiana, que a partir de certo momento (a dcada de 1960) reage contra os rumos da arte contempornea. Segundo a concepo de Danto, isso ocorre pelo simples fato de Greenberg ser um prottipo do crtico modernista. ou seja, no s o compromisso com critrios fundamentados numa compreenso da histria da arte, como tambm a narrativa que demonstra a importncia do modernismo so os fatores que impedem Greenberg de perceber e avaliar os movimentos artsticos contemporneos, aqueles que Danto enxerga como incio de uma arte ps-histrica.

    5

    a partir das dificuldades da grande crtica modernista em lidar com a arte contempornea que se pode constatar a inadequao da esttica (no sentido pensado por Danto), e com isso a necessidade de uma reforma na teoria filosfica da arte. E esse processo tem incio com uma mudana nos rumos da prpria arte. Em Onde est a vanguarda?, de 1967, Grenberg j se referia ao colapso sbito do expressionismo abstrato, considerando que ainda poderia haver um remanescente salvador de artistas: pintores e escultores que ainda produziam arte superior na dcada de sessenta.21 em sua concepo, a chamada abstrao ps-pictrica, de Kenneth Noland, Frank Stella e Jules

    21 Greenberg et al., 1997, p. 116.

  • Pedro Sssekind358

    olitski, seria a grande esperana de salvao da arte, uma continuao de certa tarefa histrica de autoconscincia da pintura.

    Ao comentar essa posio, Rosalind Krauss considera anmala ao extremo a incapacidade de Greenberg de lidar com grandes artistas daquele perodo, como richard Serra, robert Smithson e outros.22 Por chegar concluso de que a crtica modernista prescritiva e prescinde de autocrtica,23 ela prope uma analogia com a potica classicista, incapaz de enxergar sua histria como uma perspectiva. Cito a avaliao de Krauss:

    A crtica modernista inocente. E essa inocncia se manifesta sob trs aspectos: ela se recusa a ver a temporalidade que nunca cansa de invocar toda a histria da pintura desde Manet como essa armadura perspectivista sobre a qual ela estrutura a arte em questo (e sobre a qual essa arte tendeu cada vez mais a se estruturar); pensa essa histria como objetiva acima dos ditames da sensibilidade, acima da ideologia; enfim a crtica modernista prescritiva e prescinde de autocrtica.24

    Avaliando o mesmo problema, Danto constata que a esttica parece cada vez mais inadequada para lidar com a arte a partir da dcada de 60 justamente a partir da recusa em considerar a arte no-esttica ou anti-esttica como arte.25 Por isso a arte pop, o minimalismo e outros movimentos contemporneos tinham sido avaliados por Greenberg como mera arte-novidade.26 e esse tipo de avaliao aparece tambm em suas consideraes sobre a obra de Duchamp, precursora das instalaes contemporneas. Greenberg analisa o artista francs no Seminrio Seis, de 1976, como um exemplo de inovao prematura:27 um artista que no entendeu o Cubismo e que se voltou contra a arte formal apenas para violar suas convenes. Ele julga essa proposta primeiro entediante, para depois conden-la inteiramente como talvez a pior e certamente a mais enfadonha arte de que se tem notcia.28 Um juzo semelhante expresso por Greenberg numa entrevista de 1993, na qual ele considera a moda das instalaes to entediante....29 E Danto narra em Aps o fim da arte um episdio de 1992 que revela a extenso desse diagnstico: Greenberg, falando para um pequeno grupo em Nova York, teria constatado que nada aconteceu nos ltimos trinta anos em arte. ou seja, nada

    22 Krauss. Uma viso do modernismo. In: Greenberg et al., 1997, p. 171.23 Ibidem, p. 169.24 Ibidem, p. 169. 25 Danto, 2006, pp. 94-9526 Ibidem, p. 115.27 Greenberg et al., 1997, pp. 138-141.28 Ibidem, p. 140. 29 Ibidem, p. 148.

  • 359GREENBERG, DANTO E O FIM DA ARTE

    a no ser a arte pop e seus desdobramentos, esses movimentos avaliados como buscas de novidade que no contribuem para a arte superior, para a grande arte.30

    6

    Concluo que Greenberg, a seu modo, j pensava o fim da arte. Sua reao contra a arte produzida a partir dos anos 1960 (a constatao de que nada foi feito em arte) pode ser encarada como a constatao de um fim. Nesse sentido, trata-se talvez de um modelo terico que no capaz de explicar os fenmenos artsticos de seu tempo, da mesma maneira que o modelo vasariano tinha sido incapaz de compreender o incio do modernismo, com o caminho da pintura de Manet em direo aos elementos propriamente pictricos e sem o privilgio do ilusionismo tridimensional.

    Em resumo, para Danto a teoria de Greenberg constitui o estabelecimento de um critrio de crtica de arte que substitui o anterior, baseado na noo de mmesis, mas que se revelaria incapaz, na dcada de 1960, de avaliar o advento da arte pop, ou de outros movimentos artsticos contemporneos. em lugar da era da imitao haveria, na narrativa greenberguiana, a caracterizao de uma era da ideologia ou uma era dos manifestos, o que significa uma era que fundamenta a crtica de arte em sua prpria ideia filosfica do que a arte, numa distino excludente entre a arte aceita, a verdadeira, e todo o resto que no verdadeiramente arte.31 A maneira como Greenberg concebe a histria da arte estaria ligada a esse trao ideolgico das vanguardas modernistas: cada novo movimento (Dadasmo, Surrealismo, Futurismo etc.) se proclamava, por meio de um manifesto, como critrio excludente para definir a arte de seu tempo.

    No auge desse processo, o manifesto ideolgico do abstracionismo pictrico americano, construdo pelo prprio Greenberg, adotaria como critrio excludente ideias como a de pureza, que consiste na explicitao dos meios e dos limites de uma arte sem recorrer aos recursos e meios de expresso alheios. A pintura seguia, assim, o caminho da recusa seja de elementos literrios, como o contedo alegrico, seja de elementos escultricos, como a tridimensionalidade, em favor da elaborao mxima potncia da planaridade, da linha, da cor etc.

    30 Danto, 2006, p. 116.31 Ibidem, p. 52.

  • Pedro Sssekind360

    A tarefa que Danto se impe ao refletir sobre os rumos iniciados com a arte pop nos anos 1960 diz respeito, do ponto de vista da crtica de arte, a uma superao da estrutura imposta pela era da ideologia, a fim de caracterizar um novo perodo, no qual no existe mais uma forma especial que determine como devam ser as obras de arte.32 A definio desse perodo ps-histrico est ligada ao diagnstico de Hegel do fim da arte, que para o filsofo ameri-cano deve ser lido como o fim da histria da arte como narrativa determinante da atividade artstica:

    No h mais uma direo nica, na verdade no h mais direo. Foi isso que eu pretendi dizer com o fim da arte quando comecei a escrever sobre esse fim em meados da dcada de 1980. no que a arte morreu ou que os pintores deixaram de pintar, mas sim que a histria da arte estruturada narrativamente chegara ao fim.33

    A arte produzida a partir das dcadas de 1960 e 1970 teria demonstrado que qualquer coisa pode ser uma obra de arte, at mesmo uma ideia que no se efetiva em nenhum objeto visual. isso no s tornava impossvel uma definio de arte a partir de exemplos concretos, mas tambm impunha uma nova pergunta para a teoria da arte. Como explica o primeiro captulo de Aps o fim da arte, se fosse o caso de descobrir o que era arte, seria preciso voltar-se da experincia do sentido para o pensamento, para a filosofia.34

    Citando uma entrevista de Joseph Kosuth, um dos mais importantes artistas conceituais daquele perodo, Danto constata:

    Foi somente na dcada de 1960 que uma filosofia da arte sria se fez possvel, que no se fundamentasse em fatos puramente locais, por exemplo que a arte fosse essencialmente pintura e escultura. Somente quando ficou claro que tudo poderia ser uma obra de arte foi que se pde pensar a arte filosoficamente. S ento surgiu a possibilidade de uma filosofia da arte geral e verdadeira.35

    7

    A filosofia da arte de Danto constitui uma teoria sobre qual a questo filosfica correta relacionada com a natureza da arte, e ela se baseia numa leitura da histria da arte.36 A concluso mais importante dessa teoria , como seu autor reconhece, um pensamento completamente hegeliano, a

    32 Ibidem, p. 52.33 Ibidem, p. 139.34 Ibidem, p. 16.35 Ibidem, p. 17.36 Ibidem, p. 34.

  • 361GREENBERG, DANTO E O FIM DA ARTE

    saber: que o fim da arte consiste na tomada de conscincia da verdadeira natureza filosfica da arte.37

    O clebre trecho da introduo dos Cursos de Esttica, de Hegel, que serviu de base para a discusso posterior em torno do fim ou da morte da arte, citado ento, no segundo captulo de Aps o fim da arte, para evidenciar a adequao daquele diagnstico do sculo XIX a uma teoria do sculo XX. Como o filsofo alemo usa a expresso em nossos dias, Danto comenta que ela se refere poca na qual os cursos foram ministrados, portanto mais de um sculo antes do momento em que ele chegou sua prpria verso da concluso de Hegel.38 Assim, o que une os dois momentos uma concluso em comum, derivada da observao de uma situao atual das artes.

    Em outro momento de Aps o fim da arte, Danto relembra e comenta brevemente o mesmo trecho da introduo dos Cursos de Esttica:

    Lembremos a poderosa afirmao de Hegel sobre o fim da arte: no s a arte considerada em sua mais elevada vocao e permanece para ns uma coisa do passado, mas a arte perdeu para ns sua verdade e vida genunas, tendo ao contrrio sido transferida para nossas ideias em vez de mantida a sua necessidade anterior na realidade. Agora, disse Hegel, e ele estava certo, a arte nos convidava a uma contemplao intelectual, especificamente sobre a sua prpria natureza, esteja a sua contemplao sob a forma de arte em papel autorreferencial ou na forma de filosofia real.39

    Aqui, a expresso e ele estava certo, intercalada ao trecho citado, refora o procedimento de Danto, que consiste em concordar palavra por palavra com a tese hegeliana, mas aplicando-a a um outro momento histrico, inteiramente diferente daquele do qual a tese fora extrada. Essa apropriao fica evidente na concluso do raciocnio que o levou a relembrar aquele diagnstico sobre o carter reflexivo da arte: Os artistas do final das dcadas de 1960 e 1970 sentiam que, tendo chegado a esse ponto, era tempo de voltar atrs, no para estilos desgastados, mas precisamente para a genuna verdade e vida.40 ou seja, os artistas da poca de Danto teriam chegado a um ponto, a um agora, que corresponde quilo que Hegel afirma sobre a situao das artes na sua prpria poca, meados do sculo XIX. Em outras palavras, a concordncia (ele estava certo) traz consigo, implicitamente, um deslocamento: no se

    37 Idem.38 Ibidem, p. 35.39 Ibidem, p. 164.40 Idem.

  • Pedro Sssekind362

    trata mais do agora de Hegel, mas da poca analisada como um momento no qual a arte chega ao ponto de crise que impede o retorno a um passado de estilos e gneros desgastados.

    Considero que a tarefa de Danto enxergar positivamente aquilo que Greenberg identificava como a decadncia da arte com a constatao, na dcada de 1990, de que nada tinha ocorrido nos ltimos 30 anos. nesse sentido, a reao de Greenberg nova arte desenvolvida a partir da dcada de 1960 seria anloga reao dos crticos tradicionais ao impressionismo, no final do sculo XIX: uma incapacidade, baseada em certo conjunto de critrios de avaliao, de identificar e valorizar o novo rumo tomado pela produo artstica. Ao propor essa analogia, Danto sugere uma revoluo to importante quanto aquelas duas descritas por Greenberg.

    Portanto, seria necessrio encontrar uma nova narrativa, que desse sentido arte pop. A resposta da teoria de Danto a esse ponto de crise consiste em seu esforo de desenvolver uma reflexo que seja capaz no s de responder pergunta sobre aquilo que define determinados objetos ou aes como obras de arte, mas tambm de compreender a nova relao que as obras estabelecem com a histria. O primeiro desses desafios o levou a pensar a transfigurao do lugar-comum, como a caracterizao de uma distino entre objetos artsticos e no artsticos sem se basear em critrios formais ou visuais. o segundo desafio o levou a definir a arte contempornea como sendo ps-histrica, no sentido de no mais adequar-se a uma narrativa progressiva que determina ou limita a produo artstica.

    Referncias

    DANTO, A. A transfigurao do lugar-comum. Traduo de Vera Pereira. So Paulo: Cosacnaify: 2005.______. The Transfiguration of the Commonplace. Harvard: Harvard University Press, 1981.______. Aps o fim da arte. Traduo de Saulo Krieger. So Paulo: Edusp, 2006.______. Artworld. The Journal of Philosophy, nova iorque, nr. 19, 1964.GREENBERG, C. et al. Clement Greenberg e o debate crtico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.______. Art and culture. Boston: Beacon Press, 1961.______. Arte e cultura. Traduo de Otaclio Nunes. So Paulo: tica, 1996.HEGEL, G. W. F. Cursos de Esttica I. So Paulo: Edusp, 2000.KANT, I. Crtica da faculdade do juzo. Rio de Janeiro: Forense, 1993.______. Crtica da razo pura. 2 ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989. LESSING. De teatro e literatura. So Paulo: Herder, 1964.ROSENBLUM, R. On american modern art. Nova York: Harry N. Abrams, 1999.