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1 Globalização, empresas transnacionais e Estado nacional: ensaio sobre questões candentes da atualidade considerando o setor agroalimentar e o Brasil Hoyêdo Nunes Lins UFSC e-mail: [email protected] Resumo Um dos assuntos recorrentes no debate sobre a globalização, considerada fonte de desafios e mesmo de ameaças para setores de atividades, territórios e grupos sociais, sobretudo para os trabalhadores, refere-se à situação do Estado nacional. Diferentes autores argumentam que, frente ao aprofundamento do caráter mundial dos fluxos econômicos, tendo como aspecto básico a grande mobilidade do capital, também perante as influências culturais transnacionais facilitadas pelo desenvolvimento tecnológico e, do mesmo modo, em face do crescente peso político de instituições supranacionais, o Estado nacional perdeu capacidade de agir eficazmente em termos regulatórios e de promoção do desenvolvimento, devendo ser colocado, portanto, em segundo plano como paradigma para o estudo da vida social. Outros autores argumentam no sentido contrário, assinalando que o capitalismo global funciona sob a influência normativa de Estados nacionais representativos de diferentes ambientes regulatórios e socioculturais, tanto que cadeias ou redes globais de produção e comércio estariam a refletir, na sua forma de proceder e no seu perfil organizacional, o “peso” da referida esfera de atuação institucional. Também sobre questões políticas e culturais esses autores indicam escassez de evidência sobre uma pretensa erosão inapelável do Estado nacional, dizendo que a realidade exibe processos de fortalecimento dessa esfera e do transnacionalismo, simultaneamente, dependendo das questões consideradas e das experiências observadas. Este estudo se inspira no aludido debate e procura problematizar a idéia de que o Estado nacional foi enfraquecido, ampla e inexoravelmente, pela globalização. Após uma discussão calcada na literatura, explora-se o assunto observando a situação do Brasil a partir da década de 1990, com as abrangentes mudanças registradas no país, particularmente as de marco regulatório. O foco se concentra no setor agroalimentar, cujos movimentos em escala mundial permitem assimilação com o que de mais frequentemente se costuma referir utilizando o termo “globalização”. A experiência específica abordada refere- se à Parmalat, multinacional de origem italiana que tem o segmento de lácteos como carro chefe das suas atividades e que ostentou particular desenvoltura em termos de internacionalização nas últimas décadas, até ser abatida, em 2003, por uma crise que, de tão profunda e geradora de consequências mundo afora, garantiu-lhe destaque durante algum tempo entre manchetes sobre questões de polícia e justiça. Palavras chaves: Estado nacional na globalização, setor agroalimentar, Parmalat Brasil Introdução Tornou-se lugar comum, principalmente no meio acadêmico, considerar a globalização como fonte de desafios e ameaças para setores de atividades e trabalhadores. Geralmente assimilada ao aprofundamento sem atenuantes da internacionalização econômica,

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1

Globalização, empresas transnacionais e Estado nacional: ensaio sobre

questões candentes da atualidade considerando o

setor agroalimentar e o Brasil

Hoyêdo Nunes Lins

UFSC – e-mail: [email protected]

Resumo

Um dos assuntos recorrentes no debate sobre a globalização, considerada fonte de desafios e

mesmo de ameaças para setores de atividades, territórios e grupos sociais, sobretudo para os

trabalhadores, refere-se à situação do Estado nacional. Diferentes autores argumentam que,

frente ao aprofundamento do caráter mundial dos fluxos econômicos, tendo como aspecto

básico a grande mobilidade do capital, também perante as influências culturais transnacionais

facilitadas pelo desenvolvimento tecnológico e, do mesmo modo, em face do crescente peso

político de instituições supranacionais, o Estado nacional perdeu capacidade de agir

eficazmente em termos regulatórios e de promoção do desenvolvimento, devendo ser

colocado, portanto, em segundo plano como paradigma para o estudo da vida social. Outros

autores argumentam no sentido contrário, assinalando que o capitalismo global funciona sob a

influência normativa de Estados nacionais representativos de diferentes ambientes

regulatórios e socioculturais, tanto que cadeias ou redes globais de produção e comércio

estariam a refletir, na sua forma de proceder e no seu perfil organizacional, o “peso” da

referida esfera de atuação institucional. Também sobre questões políticas e culturais esses

autores indicam escassez de evidência sobre uma pretensa erosão inapelável do Estado

nacional, dizendo que a realidade exibe processos de fortalecimento dessa esfera e do

transnacionalismo, simultaneamente, dependendo das questões consideradas e das

experiências observadas. Este estudo se inspira no aludido debate e procura problematizar a

idéia de que o Estado nacional foi enfraquecido, ampla e inexoravelmente, pela globalização.

Após uma discussão calcada na literatura, explora-se o assunto observando a situação do

Brasil a partir da década de 1990, com as abrangentes mudanças registradas no país,

particularmente as de marco regulatório. O foco se concentra no setor agroalimentar, cujos

movimentos em escala mundial permitem assimilação com o que de mais frequentemente se

costuma referir utilizando o termo “globalização”. A experiência específica abordada refere-

se à Parmalat, multinacional de origem italiana que tem o segmento de lácteos como carro

chefe das suas atividades e que ostentou particular desenvoltura em termos de

internacionalização nas últimas décadas, até ser abatida, em 2003, por uma crise que, de tão

profunda e geradora de consequências mundo afora, garantiu-lhe destaque durante algum

tempo entre manchetes sobre questões de polícia e justiça.

Palavras chaves: Estado nacional na globalização, setor agroalimentar, Parmalat Brasil

Introdução

Tornou-se lugar comum, principalmente no meio acadêmico, considerar a

globalização como fonte de desafios e ameaças para setores de atividades e trabalhadores.

Geralmente assimilada ao aprofundamento sem atenuantes da internacionalização econômica,

2

nas suas faces produtiva, comercial e financeira, ela representa acirramento da concorrência e

fortes pressões por reestruturação, com reflexos socioeconômicos de várias ordens.

É recorrente a vinculação analítica das consequências da globalização à dinâmica do

capital privado, tido como amplamente desvencilhado, na atualidade, de quase todas as

“rugosidades” aptas a dificultar o seu desenvolvimento. Nesse tipo de abordagem, chega a ser

quase trivial assinalar que a capacidade de influência do Estado nacional sofreu considerável

erosão, sendo este um dos fatores do desembaraço ostentado (e usufruído) pelo capital.

Este artigo, idealizado como um ensaio, tem como assunto geral as relações entre a

globalização, com seus efeitos, e o Estado nacional. A intenção é problematizar a ideia de que

este último teve corroídas, sob o signo da globalização e na esteira desta, a sua capacidade de

intervenção e sua efetiva influência em vários aspectos, entre eles aqueles relativos à

economia. O assunto é explorado observando-se a situação do Brasil a partir da década de

1990, com as mudanças testemunhadas no país, sobressaindo as de marco regulatório. O foco

recai no setor agroalimentar, atribuindo-se destaque aos processos dizendo respeito à

Parmalat, importante empresa multinacional cujo core business reside no segmento de lácteos

(que inclui leite in natura e igualmente derivados como iogurte e queijo, entre outros).

Inicia-se com algumas breves colocações sobre o debate em torno do papel do Estado

nacional na globalização.

1 O Estado nacional em face da globalização

Um dos tópicos mais intensamente debatidos sobre a globalização contemporânea diz

respeito à situação do Estado nacional. A discussão gira amplamente em torno de questões

econômicas, referindo aos desdobramentos – ou à sua expressão nestes termos – produtivos,

comerciais e financeiros desse processo. Aspectos políticos também têm lugar, pois a

paisagem política passou a exibir fortes movimentos até mesmo acima e abaixo da esfera

nacional. Tampouco a temática cultural passa ao largo, pelo reconhecimento, entre outras

coisas, de que os avanços nas comunicações lubrificaram a aproximação entre hábitos e

formas de comportamento em nível mundial.

Frente ao que se designa, em distintas abordagens, como tendência geral à

desterritorialização (cf., p. ex., Ianni, 1992), alguns autores avaliam negativamente a situação

do Estado nacional no contexto caracterizado anteriormente. Avaliar negativamente, frise-se,

significa basicamente admitir incontornável perda de importância da respectiva esfera de

atuação.

3

Em termos mais propriamente econômicos, argumenta-se que a força produtiva,

tecnológica e financeira concentrada nas empresas multinacionais tende a “vassalizar” o

Estado-nação, por conta, entre outros aspectos, da permanente possibilidade de deslocalização

produtiva, com seus resultados (DECORNOY, 1993; HOLLOWAY, 1994). A organização

dos negócios em redes globais, com segmentos produtivos e outras atividades de grandes

empresas salpicando numerosas localizações em diferentes regiões mundiais e países,

representa potencial de mobilidade do capital que inibe e dificulta as ações do Estado

(CHESNAY, 1996). Assim, este resultaria fragilizado na sua capacidade reguladora e de

promoção do desenvolvimento (IANNI, 1992; MICHALET, 1994).

Essa suposta fragilização é tanto mais problemática, argumenta-se, tendo em vista que

a globalização afeta, geralmente no sentido do agravamento, os contrastes socioeconômicos

entre países e entre regiões subnacionais (PALMA, 2006; VELTZ, 1996). Esse tipo de

repercussão espelha e traduz, vale assinalar, diferentes formas de envolvimento na dinâmica

da globalização.

Na atividade industrial, por exemplo, a divisão espacial do trabalho – fruto da

estratégia de grandes empresas que consiste na instalação de unidades especializadas em

localizações geograficamente separadas – representa atribuição de funções distintas, em

termos técnicos e tecnológicos (refletindo nos padrões dos empregos e remunerações), a

países e/ou regiões envolvidos em estruturas produtivas integradas (LIPIETZ, 1983;

MASSEY, 1984). Análises que exploram as noções de cadeia ou rede global sugerem

imagens semelhantes, como se pode ver em Dicken et al. (2001).

Em termos políticos, o funcionamento de instituições supranacionais de abrangência

mundial (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Nações Unidas) ou regional (União

Europeia, Organização dos Estados Americanos), embora de escopo e sentido variáveis,

estaria a restringir a importância da esfera de atuação correspondente ao Estado nacional

(JACOBSON, 1997). O mesmo caberia dizer considerando-se a descentralização das

iniciativas do Estado central para níveis menores de gestão pública, uma tendência observada

em vários países nas últimas décadas (BOISIER et al., 1992; COE et al.,2004).

Conduz também a conclusões desse tipo a proliferação, no interior dos Estados

nacionais, de movimentos políticos de base territorial e de instâncias de reivindicação com

recortes étnicos ou socioculturais, nutridas inclusive por processos migratórios ou diásporas,

que afetam a importância do território nacional como base de definição da identidade de uma

população. Nessa configuração, o tipo de modelo político representado pelo Estado nacional,

cuja forma historicamente específica é tida como representativa de (por incorporá-la) uma

4

“vontade geral”, revelar-se-ia cada vez menos apto a acomodar o dinamismo social

(JACOBSON, 1997).

Tudo isso ressoa no plano analítico, sem que isso cause surpresa. Por exemplo, o

sentido de mudança ontológica que Robinson (1998) enxerga na globalização, associada à

crescente e aprofundada transnacionalização da estrutura social, seria bastante marcada pela

obsolescência do Estado-nação como forma básica de organização social. Tal situação estaria

a exigir, como pondera aquele autor, um novo paradigma para o estudo da vida em sociedade:

à aludida mudança ontológica seria necessário conjugar troca epistemológica representando a

superação do paradigma do Estado nacional, de modo que, em vez de privilegiar o

correspondente nível de análise, as indagações se concentrariam em fenômenos e processos

transnacionais.

Mas está longe de ser consensual a ideia de que, em face da globalização, o Estado

nacional perde importância. Talvez bastasse considerar, para sustentar a posição contrária,

que “[o] capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado”

(BRAUDEL, 1987, p. 55). Todavia, argumentos específicos podem ser encontrados na

literatura.

Em relação à problemática do crescimento e disseminação de estruturas produtivas em

redes ou cadeias transfronteiriças de grande abrangência territorial, uma irrecusável tendência

na organização produtiva industrial nas últimas décadas – e frequentemente assimilada à

contração da esfera de ação do Estado – , é importante ressaltar o ponto de vista de Dicken et

al. (2001), como segue.

Um vínculo de rede que atravessa fronteiras internacionais não é somente um

exemplo a mais de “ação a distância”, podendo também representar uma

disjunção qualitativa entre ambientes regulatórios e socioculturais diferentes (...).

Regimes nacionais de regulação continuam a criar um padrão de “regiões

limitadas”, e redes de atividade econômica não são simplesmente superpostas a

esse mosaico, nem é o Estado apenas mais um ator em redes econômicas. (...)

O ambiente regulatório criado por diferentes Estados ainda é (...) uma

imensa influência normativa no desenvolvimento de redes (...). Em outras

palavras, mesmo firmas operando em setores altamente internacionalizados

tendem a manter distintas formas e práticas organizacionais que refletem

largamente o ambiente regulatório (...). (DICKEN et al., op cit., p. 96-97 – itálico

no original)

Referindo-se a um âmbito que se poderia designar como mais propriamente político,

Rapoport (1997) trata do “debilitamento generalizado do Estado-Nação como consequência

do processo de globalização” (p. 167), assinalando que o avanço das políticas neoliberais,

marcante nas últimas décadas, pode ter reduzido o tamanho do Estado em vários países, mas

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não necessariamente o enfraqueceu. Mais ainda, se a, por assim dizer, “face social da ação do

Estado” foi duramente afetada no turbilhão neoliberal dos anos 1980-1990 (ANDRÉ, 1995), a

esfera de intervenção referente à promoção da competitividade foi mais do que preservada,

quer se fale de políticas de inovação ou de infraestruturas, entre outros aspectos (AMABLE;

PETIT, 1998).

Vários processos normalmente evocados para argumentar pela contração das ações do

Estado nacional constituiriam, a rigor, evidências em sentido oposto. Diversas decisões

estratégicas, ligadas, por exemplo, aos problemas ambientais em escala global ou ao

envolvimento em esquemas de integração regional (Nafta, Mercosul), necessariamente

requerem “Estados nacionais fortes e economias poderosas e integradas nos níveis locais,

nacionais e regionais” (SANTOS, 1993, p. 38). Assim, não obstante a proliferação ou

intensificação de movimentos integracionistas entre países, além de outros aspectos da

globalização, “os Estados nacionais continuam a ser a unidade econômica, política e cultural

essencial (...). É pouco provável que estes processos pudessem ocorrer sem a mediação de um

organizador coletivo da dimensão dos Estados nacionais” (op cit., p. 57).

Mann (1997), de sua parte, propõe-se a examinar de maneira conjunta blocos de

supostas ameaças ao Estado nacional frequentemente referidas na literatura como vinculadas à

globalização. Uma dessas ameaças é representada pelo capitalismo alçado a dimensões

efetivamente globais, escapando dos controles estatais. Outra se refere ao agravamento de

problemas com alcance planetário, como os ambientais, demasiadamente amplos e profundos

para tentativas de equacionamento restritas à escala do Estado-nação. A diversificação das

identidades e os novos movimentos sociais, não coincidentes com “sociedades nacionais”,

formariam uma terceira ameaça, encapsulada na ideia de “sociedade civil transnacional”. O

pós-nuclearismo ou pós-militarismo, implicando redução (ao menos no centro do capitalismo)

no engajamento dos países em ações de guerra – envolvimento historicamente constitutivo do

Estado-nação – , seria igualmente uma ameaça.

O autor conclui como segue a sua abordagem, que se escora na distinção entre redes

de interações sociais operando em diferentes escalas: local, nacional, internacional,

transnacional e global; observe-se que o Estado-nação, com o seu âmbito de funcionamento,

influencia fortemente o desenho e as operações das redes nacionais e internacionais.

Devemos ter cuidado com os globalistas e transnacionalistas mais entusiastas.

Com pouco senso de história, eles exageram a força pretérita dos Estados

nacionais; com pouco senso de variedade global, eles exageram o seu declínio

contemporâneo; com pouco senso de sua pluraridade, eles minimizam a

importância das relações internacionais. Em todas as quatro esferas de “ameaça”

6

devemos distinguir: a) impactos diferenciais em diferentes tipos de Estado em

diferentes regiões; b) tendências que enfraquecem e algumas tendências que

fortalecem os Estados-nações; c) tendências que deslocam a regulação nacional

para redes internacionais e também transnacionais; d) tendências que fortalecem

simultaneamente os Estados nacionais e o transnacionalismo. (MANN, 1997, p.

494 – itálico no original)

Cabe igualmente assinalar, na abordagem desse autor, que

[a]s redes de interações globais estão realmente se fortalecendo. Mas elas

entrelaçam três elementos principais. Primeiramente, parte da sua força deriva da

escala mais global de relações transnacionais que se originam principalmente da

tecnologia e das relações sociais do capitalismo. Mas estas não têm o poder de

impor um universalismo único às redes globais. Portanto, em segundo lugar, as

redes globais são também parcialmente segmentadas pelas particularidades dos

Estados nacionais, especialmente dos mais poderosos do norte. Terceiro, essa

segmentação é mediada por relações internacionais. (op cit., p. 495)

2 Estado nacional: “refém” e “protagonista” da globalização

O período que se convencionou associar à globalização permite observar

internacionalmente, como assinala Baumann (1996), uma “convergência dos requisitos de

regulação em diversas áreas (...)” (p. 35). Esse processo não se apresentou dissociado da

entronização e atuação, nos staffs governamentais de diferentes países, “de equipes

econômicas comprometidas com a desregulamentação e redução do grau de intervencionismo

nos mercados” (p. 38).

Esse realce cumpre função de preâmbulo à indicação de que, neste trabalho, assume-se

que o Estado nacional está longe de ter perdido importância em face da globalização, em que

pese a assinalada disseminação do comprometimento institucional com a desregulamentação e

com o menor intervencionismo. Reconhece-se ser difícil refutar, concentrando a observação

no terreno econômico (principal foco de interesse no estudo), que a grande mobilidade do

capital suprimiu graus de liberdade à ação do Estado. Mas a capacidade reguladora que,

apesar de tudo, este detém e (potencialmente) pratica interfere nas decisões de investimento e

de localização mesmo de empresas multinacionais, condicionando-as em grande medida.

O próprio desenho das cadeias e redes globais não deixa de sugerir esse tipo de

influência, em diferentes setores e circunstâncias. Isso é percebido, por exemplo, quando se

volta a atenção para uma experiência como a da China, onde grandes reformas e as famosas

Zonas Econômicas Especiais, materialização de vigorosas estratégias governamentais,

ajudaram a “modelar” estruturas produtivas globalizadas (GEREFFI, 2007).

7

Com efeito, a grande mobilidade do capital e a maior intensidade do comércio externo,

importantes sintomas da globalização, mostram-se fortemente ligadas a ações levadas a efeito

na esfera estatal. Não é de outra coisa que se trata no surto de desregulamentações observadas

em distintos países, principalmente na década de 1990. Em outras palavras, opções de política

constituem vetores da globalização, pavimentando o caminho para a grande fluidez dos

movimentos e fluxos que lhe determinam o perfil e – por via de consequência – definindo a

maneira como os países participam do respectivo processo.

O Estado nacional constitui, portanto, um sujeito ativo da globalização. Ativo mesmo

quando as escolhas políticas resultam em diminuição da intervenção pública em vários

aspectos, no marco, por exemplo, do que tem sido referido com o termo “neoliberalismo”,

fortalecendo dessa forma a capacidade de barganha do grande capital globalizado. Afinal,

segundo Bourdieu (1998), o neoliberalismo – ao qual a globalização contemporânea é

geralmente associada – desnuda-se a um só tempo como uma teoria, um programa científico e

– remetendo particularmente aos processos na esfera do Estado – um projeto político.

Em boa parte dos anos 1980 e na década de 1990, o Brasil não representou exceção

nesse quadro geral, que refletia, cabe assinalar, as indicações do chamado Consenso de

Washington. De fato, no governo Sarney promoveu-se redução tarifária que fez o país

convergir para situação de abertura comercial já exibida naquele momento por outros países

latinoamericanos. Esse processo foi depois amplificado pela política de câmbio do Plano Real

(criado no governo Itamar Franco), mantida até a maxidesvalorização efetuada pelo Brasil no

início de 1999.

Importações em avalanche e dificuldades para exportar foram a tônica naquele

cenário, correspondente à primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso na presidência,

impondo reestruturação que em muitas empresas envolveu modernização tecnológica e

gerencial e focalização das atividades (CASTRO, 2001). Registraram-se mudanças na

geografia da produção que resultaram em maior diversidade em termos de localização

industrial, como na produção de artigos de vestuário e de calçados e na agroindústria. Os

reflexos no mundo do trabalho não se fizeram esperar, com repercussões sociais que

praticamente impuseram a recorrência do termo “precarização” nos debates (DEDECCA,

2005).

Privatizações em profusão também caracterizaram o período. A intensidade foi

crescente desde o breve governo Collor, atravessando o período de Itamar Franco e ganhando

particular vigor sob Fernando Henrique Cardoso. Os setores siderúrgico, petroquímico e de

fertilizantes despontaram nos primeiros movimentos, e os de transportes, telecomunicações e

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eletricidade foram especialmente implicados na segunda metade dos anos 1990 (PINHEIRO,

1999). Dessa forma, uma importante mudança patrimonial operou-se no país, inclusive

representando aumento da presença estrangeira em atividades estratégicas.

Não foi pequeno, nesse período, o dinamismo no front dos investimentos no Brasil, em

especial os originados no exterior, atraídos pelas mudanças em curso. Não se tratou somente

de investimentos em papeis, seduzidos pelos altos juros praticados, ou dos ligados às

privatizações, fluxo que foi também registrado na Argentina na esteira das suas próprias

reformas.

Os investimentos produtivos com origem externa ganharam intensidade já em meados

dos anos 1990, refletindo os primeiros movimentos do Plano Real (LAPLANE; SARTI,

1997). A figura 1 informa sobre isso, permitindo observar que a segunda metade daquela

década abrigou uma notável progressão dos fluxos líquidos de investimentos externos diretos

no país. Ocorreu reversão somente em 2001, com aprofundamento até 2003, em ambiente de

incertezas sobre a situação econômica do país e também sobre o futuro do Mercosul,

principalmente devido à deterioração das condições na Argentina.

Figura 1 – Brasil: fluxos líquidos de investimento externo direto – 1994-2004 (US$ bilhões)

-5.000

0

5.000

10.000

15.000

20.000

25.000

30.000

35.000

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

US

$ bi

lhõe

s

Fonte: elaborado pelo autor com base em CEPAL (2005) – Quadro II.2, p. 92

Cabe particular destaque, em termos de incidência desses investimentos, ao setor

automotivo, que apresentou aumento no número de fábricas pertencentes a produtores já em

atuação no país e também entrada de novos fabricantes, quer se fale de veículos ou de

autopeças e componentes. Em ambas situações, esse movimento representou disseminação

geográfica dessa indústria, com incorporação de novos estados e municípios à sua dinâmica

9

(SANTOS; PINHÃO, 2000). Deve-se assinalar que uma importante iniciativa institucional

influenciou essa trajetória da indústria automotiva no país – a relativa ao Regime Automotivo

Brasileiro, de 1995 (BEDÊ, 1997).

3 O Brasil na mira do grande capital agroalimentar

O setor automotivo não foi o único reduto de dinamização produtiva no Brasil a

reboque das transformações que tiveram lugar nos anos 1990. Outro setor em que é possível

detectar movimentos importantes naquele período é o agroalimentar. O pano de fundo, em

escala mundial, exibe o entrelaçamento de alterações nos hábitos alimentares – refletindo

processos mais gerais ligados, por exemplo, à urbanização e ao funcionamento do mercado de

trabalho – e importantes desenvolvimentos nos planos tecnológico e organizacional,

principalmente entre as empresas maiores.

No bojo das referidas mudanças observou-se aumento da concentração e da

internacionalização na oferta de alimentos. Figuraram como subjacentes a esse processo os já

aludidos avanços tecnológicos, possibilitando inovações na gestão (com disseminação no uso

da informática) e melhores condições em matéria de logística. O predomínio da grande

distribuição no setor de produtos alimentares, incontestavelmente instalado, é uma espécie de

corolário dessas transformações (WILKINSON, 2002).

As repercussões em nível de cadeia produtiva incluíram um marcado incremento na

produtividade da agropecuária. Os resultados nessa direção decorreram amplamente das

alterações na base técnica em meio à já mencionada reestruturação geral do setor. Essas

modificações enfeixaram-se numa tendência à uniformização técnica e dos padrões de

eficiência na esfera da produção. Condiz com isso a testemunhada aceleração no surgimento

de novos produtos, um reflexo dos amplos e já referidos movimentos no plano do consumo

alimentar, e processo exigente tanto de mais qualidade das matérias primas como de avanços

na padronização destas.

As mudanças observadas internacionalmente também implicaram notável escalada das

fusões e aquisições de empresas. Registradas em diferentes países e cadeias produtivas, essas

ações tiveram consequências no funcionamento dos mercados, repercutindo em termos de

aprofundamento da concorrência (RODRÍGUEZ ZUÑIGA; SORIA, 1991). Socialmente

falando, foram sobretudo os resultados na esfera do emprego que espelharam a intensidade

das transformações, ainda que, sem que isto surpreenda por se tratar de capitalismo, tenham

10

sido pronunciadas as desigualdades socioespaciais na incidência, seja entre países ou entre

regiões.

Aspecto merecedor de especial realce nessa dinâmica – ainda mais considerando-se o

foco de interesse deste artigo – diz respeito à internacionalização das grandes empresas

agroalimentares originárias dos países mais ricos. Esse processo ganhou velocidade e se

aprofundou a partir dos anos 1980, vincando fortemente o cenário econômico mundial desde

então.

Em estudo sobre a reestruturação do chamado agronegócio no passado recente, Benetti

(2004a) aponta dois grandes vetores dessa internacionalização em grande escala.

De um lado encontra-se o fortalecimento da tendência à liberalização do comércio

mundial, embalada pelas negociações protagonizadas no âmbito do GATT, substituído em

meados dos anos 1990 pela Organização Mundial do Comércio (OMC). As possibilidades que

tal liberalização representa em matéria de, entre outros aspectos, complementação produtiva e

ampliação e diversificação no leque de oferta de produtos finais, não só favoreceram, mas

parecem ter igualmente incentivado, a internacionalização, encorajando a constituição de

oligopólios com alcance (quase) planetário.

De outro lado, cabe assinalar um aparente esgotamento, nas zonas centrais do

capitalismo mundial, da estratégia de segmentação dos mercados colocada em prática

naqueles países pelas grandes empresas. Essa estratégia evoluiu em sintonia com o

aparecimento e generalização dos já referidos novos hábitos alimentares e ganhou tradução

na também já aludida maior velocidade no processo de lançamento de novos produtos.

Prospectar e explorar outros mercados no cenário mundial, com dimensões e dinamismo que

acenassem positivamente às empresas, tornaram-se iniciativas incontornáveis e prementes no

contexto dos anos 1990.

Observou-se na seção 2 que o Brasil se apresentava atraente para o capital globalizado

na década de 1990, como evidenciado pela escalada dos fluxos líquidos de investimento

externo direto no país. Na base dessa ascensão figurava, sem dúvida, o potencial de mercado

representado pelo tamanho da população brasileira, amplificado pelas possibilidades

incrustadas no processo de integração regional ligado ao Mercosul. Todavia, foi quando novas

e mais favoráveis condições para a realização de negócios passaram a caracterizar o país,

advindas do controle da inflação e da ampla desregulamentação da economia, que esses traços

se tornaram quase irresistíveis. Vale destacar especialmente as possibilidades associadas, na

perspectiva de alguns setores, à abertura comercial (exacerbada pelo regime de câmbio que

vigorou até o começo de 1999) e também à liberalização financeira.

11

O capital que se valorizava internacionalmente nas atividades do setor agroalimentar

não escapou à sedução brasileira. Os respectivos investimentos com origem no exterior

ganharam magnitude e velocidade, um dinamismo que fez a internacionalização desse setor

exibir elevação de patamar no país. A tabela 1, que recobre período desdobrado entre meados

dos anos 1990 e dos anos 2000, permite observar a sua participação como destino daqueles

investimentos. O segmento de alimentos e bebidas aparece entre os três mais importantes da

indústria de transformação, ao lado dos produtos químicos e dos automóveis, reboques e

carrocerias, devendo-se também assinalar, de todo modo, a proeminência dos serviços.

Tabela 1 – Brasil: estoque e fluxo do investimento externo direto por setores de atividades –

1995-2004 (%)

Setores/segmentos

Estoque Fluxo

(média anual)

1995 2000 1996-2000 2001-2004

Agricultura, pecuária e extração

mineral

2,2 2,3 1,8 6,8

Indústria de transformação

Destacando-se:

- Alimentos e bebidas

- Produtos químicos

- Veículos, reboq. e carrocerias

66,9

6,8

12,8

11,6

33,7

4,5

5,9

6,2

18,0

2,6

3,0

3,9

40,3

10,6

7,4

7,1

Serviços

Destacando-se:

- Eletricidade, gás e água quente

- Comércio

- Serviços prestados às empresas

- Correio e telecomunicações

- Intermediação financeira

30,9

0,0

6,9

11,9

1,0

3,9

64,0

6,9

9,9

10,7

18,2

10,4

80,2

14,9

9,9

20,3

18,1

13,6

52,9

6,7

7,2

4,6

19,6

5,8

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: extraído de CEPAL (2005) – Quadro II.3, p. 94

O mecanismo básico da referida internacionalização tomou a forma de uma

verdadeira escalada de aquisições de empresas nacionais por empresas estrangeiras. Portanto,

o processo envolveu majoritariamente transferência e incorporação de ativos já existentes,

num processo de mudança patrimonial cujo significado maior não foi outro senão, como

ressalta Benetti (2004a), uma verdadeira desnacionalização. Assinale-se que essa

internacionalização aprofundada atingiu igualmente o comércio, pois ocorreu crescimento na

participação da produção brasileira nas trocas mundiais (BENETTI, 2004b).

A forte entrada no Brasil de empresas agroalimentares de alcance mundial teve

repercussões importantes no país. Como já se indicou, a internacionalização assim

impulsionada abrangeu maior presença de produtos brasileiros em mercados internacionais, a

melhor tradução residindo, provavelmente, no crescimento das exportações na área de soja.

12

Mas, refletindo processos em curso em termos globais, ocorreu igualmente transferência de

tecnologia. Uma ilustração refere-se à entrada e disseminação, no marco de parceria

institucional em território brasileiro, do uso de sementes transgênicas fornecidas pela

Monsanto, uma empresa multinacional de origem estadunidense.

Especialmente digno de nota é que esse surto de penetração de grandes empresas

agroalimentares estrangeiras promoveu rompimento do padrão histórico de funcionamento

desse setor no Brasil, vigente até as mudanças de marco regulatório efetuadas nos anos 1990.

Com efeito,

[a] entrada inusitada das firmas internacionais no País, na década de 90, aumentou

dramaticamente a competição, rompendo, por assim dizer, o equilíbrio com que se

repartia o mercado interno entre a tríade das empresas então operantes, obrigando-

as a revisarem suas estratégias e a mudarem seu comportamento de atuação. As

filiais das empresas estrangeiras aqui já instaladas se reestruturaram e

promoveram novos investimentos; as nacionais de grande porte, visando garantir

suas posições no mercado, aceitaram as novas regras do jogo, transitando

bruscamente para o padrão de crescimento baseado na diferenciação acelerada da

produção (...). (...). As pequenas e as médias empresas, por seu lado, viveram um

período de dificuldades dramáticas, ao sofrerem a concorrência direta e

intensificada dos grandes grupos nacionais e internacionais – os já instalados e os

latecomers –, sem que tivessem, como os grandes brasileiros, as mínimas

condições de acompanhar o novo jogo vigorando no mercado. (BENETTI, 2004a,

p. 23 – itálico no original)

Uma experiência plena de ensinamentos, sobre o significado da entrada em grande

escala de investimentos estrangeiros no setor agroalimentar em território brasileiro, concerne

à Parmalat. É disso que se ocupa a próxima seção do estudo.

4 Parmalat, um sugestivo affair em tempos de globalização

No Brasil, a dinâmica da globalização manifestada em processos dizendo respeito ao

setor agroalimentar teve na Parmalat um protagonista de grande expressão. Sua escolha neste

estudo, para especificar a abordagem sobre as relações entre globalização e Estado nacional,

deve-se ao referido destaque, que exprime experiência pedagógica em diferentes sentidos.

4.1 Aspectos da internacionalização de uma multinacional de lácteos

A Parmalat é uma empresa multinacional criada na Itália e que tem como carro chefe o

segmento de lácteos, embora também opere com suco de frutas. Suas atividades foram

iniciadas em 1961, segundo o histórico disponível na respectiva página na Internet

(www.parmalat.com), mas o processo de internacionalização seria desencadeado só nos anos

13

1970, após expansão e fortalecimento dos negócios no interior das fronteiras nacionais. Esse

confinamento foi rompido em 1974, quando a empresa passou a se fazer presente também no

Brasil, primeiro destino no trilhado percurso de internacionalização.

Desde então, o caráter multinacional da Parmalat ganhou vigor e velocidade na sua

conformação. Benetti (2004c) identifica nessa trajetória os seguintes períodos: entre 1977 e

1990, quando o processo tomou a direção da Europa Ocidental (implicando Alemanha,

França, Espanha e Portugal); década de 1990, com marcada aceleração da tendência de

internacionalização, tanto que, ao final daqueles anos, nada menos que 24 países registravam

a presença da empresa, entre eles Estados Unidos, Canadá e Austrália, mercados

reconhecidamente exigentes e competitivos; começo dos anos 2000 – até a eclosão da grave

crise sobre a qual se falará posteriormente –, com orientação das atenções para mercados

asiáticos.

Na América Latina, essa expansão acabou resultando em presença dessa multinacional

em oito países. A estrutura de filiais instaladas no subcontinente chegou a representar, no seu

conjunto, ¼ do faturamento e cerca de 40% do pessoal empregado, considerando-se o grupo

Parmalat em termos globais (BENETTI, 2004c).

O instrumento básico utilizado nesse crescimento em escala mundial foi a compra de

empresas locais. As aquisições foram, de fato, numerosas, um tipo de procedimento que

permeou a política de segmentação de mercados colocada em prática por essa multinacional.

Nesse processo, foi iniciativa recorrente a substituição de marcas antes existentes nos novos

espaços de atuação por marcas pertencentes à Parmalat.

Assinale-se que essa estratégia de substituição exibe ampla sintonia com uma das

linhas de atuação que a empresa segue ainda hoje (após a reestruturação promovida em 2005,

sobre a qual se falará depois), conforme observado na sua página na Internet. De fato, um dos

seus eixos de comportamento implica “[p]romover marcas com alto valor agregado e seguir

implementando, progressiva e efetivamente, o processo de ‘Parmalatização’ em todos os

países em que o Grupo opera, mediante: - a gradual racionalização do portfólio de produto,

substituindo pequenas marcas locais sempre que possível (...)” (www.parmalat.com).

O modus operandi da Parmalat, que provavelmente também caracteriza a organização

produtiva de outras empresas com semelhantes dimensões e alcance espacial, pode ser

captado na descrição a seguir.

[A] empresa montou uma rede de filiais em nível internacional, operando de

forma integrada, de modo que unidades industriais instaladas em um país

fornecem a matéria-prima – ou com pouca elaboração – para as de outros países,

14

onde passam pela fase de processamento final junto aos mercados consumidores.

Nesse esquema, as unidades industriais, em cada região, não ficam dependentes

da oferta agrícola local, que, como se sabe, apresenta a característica de

sazonalidade. (...) Além do mais, possuir rede de fornecedores em várias regiões e

países permite às transnacionais manipular os preços pagos aos produtores pela

matéria-prima.

Trata-se, portanto, de um caso de estruturas empresariais flexíveis, dada a

possibilidade sempre presente de fechamento e de abertura de plantas industriais

em regiões (estados ou países), em função do redesenho das estratégias

mercadológicas que visam ao bom desempenho futuro do grupo como um todo.

A empresa italiana instalou-se nos blocos regionais com o propósito de

aproveitar as vantagens daí decorrentes no que diz respeito à livre circulação das

mercadorias finais e dos recursos produtivos entre as plantas industriais instaladas

nos países integrantes dos mercados comuns. (BENETTI, 2004a, p. 39-40)

4.2 A Parmalat no Brasil: o frenesi dos anos 1990 e seus reflexos

Se o percurso expansivo global da Parmalat nos anos 1990 chama a atenção pela

amplitude e rapidez, sua incidência no Brasil é nada menos que assombrosa. Antes desse

período, a empresa já tinha alcançado o segundo lugar no mercado nacional de lácteos,

chegando a canalizar cerca de um bilhão de litros de leite por ano, superada apenas pela

Nestlé. Afinal, suas atividades no país haviam começado já em 1974, numa associação com a

Laticínios Mococa S.A., e em 1977 ocorreu a inauguração da primeira unidade industrial da

empresa em solo brasileiro, em Itamonte (MG).

Entre 1991 e 2001, o surto presenciado significou 24 aquisições no país, representando

pouco menos de 40% de todas as empresas que processavam produtos agropecuários no Brasil

e que foram compradas por empresas estrangeiras. Considerando-se somente o segmento de

lácteos, onde se concentrou a grande maioria das operações, as compras da Parmalat

totalizaram mais de 80% do total adquirido (Tabela 2), um número que sugere a agressividade

da investida dessa empresa no país. As operações da multinacional passaram a incidir, desse

modo, em diferentes regiões e estados brasileiros, sendo que a Parmalat Brasil tornou-se

também responsável pela coordenação do crescimento da marca na América Latina como um

todo.

Conforme assinalado na introdução, este estudo se ocupa das relações entre a

globalização e seus efeitos e o Estado nacional, objetivando problematizar a ideia de que este

teve substancialmente erodida a sua capacidade de intervenção e sua influência em vários

aspectos, uma posição defendida por distintos autores (ver seção 1). Assim, é importante

destacar, sobre o processo de internacionalização do setor agroalimentar em operação no

Brasil – notadamente o segmento de lácteos –, que iniciativas protagonizadas na esfera estatal

15

figuraram entre as razões da referida escalada de compras de empresas operando no Brasil por

capitais estrangeiros, entre estes o relativo à Parmalat.

As aquisições maciças na cadeia do leite estão relacionadas ao fim da

interferência estatal no mercado do produto, no início da década de 90. Isto

envolvia tanto a fixação dos preços, pois os mesmos eram tabelados pelo

Governo, quanto a quantidade demandada, em função da perda de importância dos

programas sociais oficiais de distribuição do leite. Não bastasse isso, o incentivo

às importações, devido à liberalização comercial e à apreciação cambial, levou os

grandes grupos nacionais e internacionais situados na ponta da cadeia de

processamento a importarem matéria-prima. (BENETTI, 2004a, p. 40)

Tabela 2 – Brasil: número de empresas processadoras de produtos agropecuários compradas

por multinacionais de 1991 a 2001

Empresas

multinacionais

Número de empresas compradas (por segmentos)

Total

Lati-

cínios

Trigo

Soja

Doces e

alim.

em geral

Café

Suínos

e

aves

Sucos

Parmalat 24 19 2 0 3 0 0 0

Bunge e Born 8 0 3 4 0 0 1 0

Macri 7 0 5 0 0 0 2 0

Louis Dreyfus 4 0 0 2 0 0 0 2

ADM 3 0 0 3 0 0 0 0

Sara Lee 3 0 0 0 0 3 0 0

Danone 2 2 0 0 0 0 0 0

Milkaut 2 2 0 0 0 0 0 0

Total 53 23 10 9 3 3 3 2 Fonte: BENETTI (2004c) – Quadro 3, p. 135

A forte entrada do capital globalizado nesse setor no Brasil (como em outros setores)

não deve ser tomada como sintoma de fragilidade do Estado nacional perante a desenvoltura e

a enorme capacidade de barganha das empresas multinacionais, como certamente consideram

as posições analíticas que salientam ter o Estado se tornado refém dos grandes interesses

econômicos internacionais no período contemporâneo. O frenesi de aquisições estaria a

representar, muito mais, consequência de opção governamental pela desregulamentação –

refletindo modo de compreender como o país deveria se relacionar internacionalmente e de

apoiar e estímular esse tipo de “diálogo” – e pela atrofia de certas funções do Estado. No

processo em tela, este se apresentaria, assim, como um sujeito ativo – tão ativo quanto o

próprio interesse da Parmalat – no envolvimento do Brasil e do segmento lácteo presente em

seu território no processo de globalização.

Portanto, o Estado nacional não pode se eximir – alegando impossibilidade ou

fragilização determinada pela “força das coisas” – de responsabilidade sobre os

desdobramentos dessa internacionalização, um processo que significou aprofundamento da

16

desnacionalização em setor de alimentação básica – o leite – que, sobretudo por conta disso,

haveria de merecer maior cuidado governamental mediante procedimentos regulatórios.

A entrada de empresas multinacionais em qualquer setor produtivo pode refletir

positivamente em nível setorial e de cadeia produtiva, e até mais amplamente. O que se

observou no setor agroalimentar em território brasileiro foi, de fato, um processo

acompanhado de benefícios enfeixados em “racionalização dos processos de trabalho e de

gestão, novos canais de comercialização, internos e externos, novas fontes de financiamento e

novos produtos” (BENETTI, 2004a, p. 54).

Com efeito, a expansão da Parmalat representou aumento de produtividade na

produção primária efetuada em propriedades rurais integrantes de diferentes bacias leiteiras

do país. Representou também elevação da concorrência, principalmente devido a fatores

tecnológicos, traço que se pode considerar como um eco distante do pioneirismo da empresa,

ainda na década de 1960, quanto ao uso de embalagem capaz de permitir longa conservação

(embalagem Tetra Pak) e quanto ao lançamento do leite longa vida, resultado de ação

inovadora no processo de esterilização. No Brasil, a empresa assumiu a liderança em leite

longa vida, em leite pasteurizado e em creme de leite.

Mas o surto de aquisições, com disseminação da presença da multinacional em

diferentes regiões e estados, provocou o desaparecimento de empresas de menor porte

(pequenos e médios laticínios) que atuavam em mercados regionais, com suas respectivas

marcas. O motivo, basicamente, foi o posterior fechamento de vários laticínios adquiridos,

afetando a estrutura até então vigente, de produção repartida entre bacias leiteiras regionais

que forneciam para centros de consumo próximos.

Esse movimento traduziu-se, sem que isto cause espécie, em aumento de concentração

no segmento de lácteos, com aprofundamento do controle patrimonial e industrial unificado.

Pode-se dizer que essa concentração teve alcance amplo, pois, embora a grande maioria das

compras se concentrasse no segmento lácteo, carro chefe da Parmalat desde a sua fundação,

também outros segmentos (massas, biscoitos) entraram na dinâmica de expansão observada

nos anos 1990, evidenciando o que Benetti (2004c) classificou de “estratégia de crescimento

horizontal multiprodutos” (p. 135). Com efeito, a multinacional exibiu espantosa desenvoltura

em compras generalizadas na indústria de alimentos, como sucedeu com as fábricas da Etti e

da Neugebauer.

4.3 Desnacionalização, crise corporativa e resultados locais

A forte entrada de interesses externos em setores de atividades operando

nacionalmente é capaz de produzir resultados ainda mais amplos e agudos do que os

17

anteriormente referidos. De fato, “a alienação das empresas nacionais significa que o controle

da produção passa a ser exercido pelas matrizes dos grupos transnacionais, localizadas no

Exterior, e em função de interesses gerais da empresa, os quais podem vir a não coincidir com

os do país hospedeiro” (BENETTI, 2004a, p. 53). Reside nisso um dos maiores problemas de

processos de internacionalização cujo sentido é, fundamentalmente, a desnacionalização de

frações importantes de atividades produtivas. A experiência da Parmalat no Brasil representa

uma instrutiva ilustração sobre esse assunto.

No final de 2003, o mundo dos grandes negócios registrou um abalo sísmico de

proporções transcontinentais. A Parmalat ocupou as manchetes por meio de bombásticas

notícias sobre a explosão de uma grave crise, uma turbulência tão profunda que acabou por

levar a matriz da empresa a pedir concordata. O quadro era tanto mais surpreendente na

medida em que os resultados financeiros até então divulgados apontavam uma situação sob

controle, de um modo geral. As indicações de débito da Parmalat tinham no acúmulo de

aquisições de empresas mundo afora o seu componente principal, mas informações dadas pela

multinacional induziram auditores de reconhecida competência a considerar que sua gestão

financeira apresentava-se moderada.

A surpresa com a eclosão da crise, todavia, derivava de um engodo, como se viu

depois. Não permite equívoco sobre isso o fato da cúpula da Parmalat ter sido acusada de

apropriação indébita, desvio de dinheiro, fraude e falsificação de contabilidade. O fundador,

pivô do buraco financeiro detectado, acabou preso, ao mesmo tempo em que o grupo

empresarial – com presença em cerca de 30 países e empregador, naquele momento, de mais

ou menos 36 mil pessoas – teve o seu mais importante braço operacional declarado

insolvente.

No Brasil, o acontecimento foi motivo de inquietação em importantes esferas

institucionais, e não só no âmbito do Ministério da Agricultura, na Câmara Setorial do Leite e

Derivados. É que em outubro de 2003, três meses antes do assinalado pedido de concordata, o

BNDES havia concedido um empréstimo de mais ou menos R$ 26 milhões à empresa. Mas a

preocupação não rondava só esse banco. Por exemplo, o mencionado empréstimo teria sido

liberado mediante apresentação, pela Parmalat (a título de garantia), de uma carta de fiança do

Banco Itaú (Balbi, 2004a). Outros importantes bancos com presença no país também eram

credores da empresa e, assim como as instituições mencionadas, certamente passaram a

vivenciar grande inquietação.

Curioso é que o alarme não tenha soado no Brasil antes da eclosão da crise, já que as

atividades da Parmalat vinham acumulando prejuízos nos cinco anos anteriores. Não teria

18

como passar despercebida, com efeito, uma progressão desses resultados com cifras que

evoluíram de R$ 33,6 milhões em 1998 para R$ 183,3 milhões em 2002 (MATTOS, 2004a),

em que pese a trajetória oscilante. A rapidez e intensidade da reorganização posta em marcha

pela Parmalat Brasil também era indicativa de que a situação tornava-se crescentemente

adversa, já que

os responsáveis pela reestruturação alienavam ativos do grupo a uma velocidade

maior do que haviam sido adquiridos, tanto através de vendas como do

fechamento de plantas industriais e de centros de distribuição ou, ainda, da

devolução dos mesmos aos seus antigos proprietários. Das 33 plantas industriais

que possuía, 25 foram fechadas no período 2000-02 (...). (BENETTI, 2004c, p.

138-139)

Assinale-se que as operações da multinacional no mundo todo foram afetadas pela

crise. As atividades desenvolvidas em outros países da América do Sul não foram poupadas,

tanto que o braço brasileiro – a quem fora designada, como se falou, a tarefa de coordenar a

expansão da marca em escala de América Latina – teria enviado milhões de reais ao exterior

(R$ 198 milhões só em 2003) para auxiliar, além da matriz na Itália, empresas vinculadas que

operavam no subcontinente (Balbi, 2004b).

O estridente surgimento da crise esteve longe de preocupar, em território brasileiro,

somente o setor bancário mais diretamente atingido. No período em que o assunto ganhou as

manchetes, a empresa marcava importante presença no cenário lácteo do Brasil, não obstante

a acelerada alienação de ativos referida anteriormente. Essa incidência mostrava-se, no início

de 2004, na forma de oito fábricas que, instaladas em sete estados, ocupavam pouco mais de

60% do total de seis mil funcionários registrados pela Parmalat Brasil S.A. (Tabela 3), assim

como na forma de sete centros de distribuição.

Com a avassaladora penetração da Parmalat no mercado de leite no Brasil, muitos

produtores tinham passado a fornecer à empresa de forma praticamente exclusiva. Portanto,

foi principalmente junto a tais produtores primários, mas também em fornecedores de

embalagens e matérias primas, que recaiu o principal das dificuldades provocadas ou

ampliadas pela crise. Os produtores de leite implicados, geralmente organizados em

cooperativas, tiveram os seus pagamentos sustados ou consideravelmente atrasados, com

efeitos dramáticos em várias regiões, principalmente nos estados de Pernambuco, Paraná e

Rio Grande do Sul. Estes efeitos manifestaram-se também em desligamentos de trabalhadores

em diferentes unidades produtivas, principalmente nas fábricas em que a entrega de leite foi

interrompida.

19

Tabela 3 – Estrutura produtiva da Parmalat no Brasil no início de 2004

Estado

Localização

das

fábricas

Produtos

Nº de

empre-

gados

Rio Grande

do Sul

Carazinho Leite longa vida; leite condensado; leite natura

premium; creme de leite

331

Paraná Carambeí Leite longa vida; leite fermentado; petit suisse;

iogurtes; produtos aromatizados; sobremesas; queijos

1.100

São Paulo

Jundiaí Leite longa vida; sucos; chás; creme de leite;

biscoitos; bolinhos

1.100

Araçatuba Conservas; produtos atomatados; condimentos; doces 532

Rio de

Janeiro

Itaperuna Leite em pó; leite condensado; creme de leite;

produtos da linha Festa!

231

Goiás Santa Helena Leite longa vida; creme de leite; molhos lácteos;

produtos aromatizados

227

Pernambuco Garanhuns Leite longa vida; creme de leite; iogurtes 151

Rondônia Ouro Preto d’Oeste Leite longa vida; manteiga; produtos aromatizados 34

Total 3.706 Fonte: MATTOS (2004b)

Nos locais onde não havia alternativas adequadas para venda de leite por parte dos

produtores – inexistência que também resultava das próprias investidas da Parmalat, que

contribuíram decisivamente para desorganizar o setor lácteo em diferentes locais –, os

problemas revelaram-se profundos, ensejando até a venda de parte dos plantéis de vacas

leiteiras em algumas propriedades. Isso cocorreu, por exemplo, em Garanhuns (PE), onde a

fábrica da Parmalat (inaugurada em 1994) absorvia o leite de mais ou menos 400 pequenos

produtores. Cabe ressaltar que nessa área a Parmalat representava problemas para os

produtores antes mesmo das turbulências ligadas à crise, haja vista ter incentivado

os produtores a adquirir resfriadores e ordenhadeiras mecânicas, mas não cumpriu

a promessa de elevar o preço pago pela melhoria da qualidade do leite. (...) [Além

disso,] a empresa nem sequer mantém contratos com os fornecedores individuais

(...). A falta de contratos permite (...) alterar a qualquer momento seus preços,

clientes e volume a ser adquirido. Os fornecedores são obrigados a entregar o leite

à fábrica por 30 dias consecutivos antes de receber a primeira quinzena. Os outros

15 dias só são pagos após mais duas semanas. Uma eventual interrupção da

entrega por opção do produtor implica a retomada de todo o processo. A estratégia

reduz as chances de o pecuarista procurar melhor preço para o seu produto.

(GUIBU; TORTATO, 2004, p. B5).

4.4 O Estado nacional e a “questão Parmalat”

O episódio da débâcle da Parmalat, com suas dramáticas consequências, é repleto de

ensinamentos não só sobre o quanto as estruturas locais e regionais são vulneráveis aos

processos em curso em esferas amplas de determinação, mas também sobre os perigos que

rondam a desnacionalização de setores chaves da economia. É também sugestivo de que,

20

perante os movimentos associados à globalização – e não raramente em sintonia com tais

movimentos –, o Estado nacional cumpre papéis que contribuem para que certos resultados se

produzam nas condições observadas. No caso narrado na subseção anterior, o Estado

nacional, em vez de âmbito inerte ou sujeito passivo, figurou de corpo inteiro no centro do

problema.

Esse aspecto perpassa as contundentes observações do então presidente do BNDES,

Carlos Lessa, diante da “questão Parmalat”, principalmente as emitidas no calor dos

acontecimentos. Frente aos riscos de um efeito dominó de grandes consequências em toda a

cadeia de lácteos, Lessa julgou ser nada menos que uma irresponsabilidade permitir a

concentração de segmentos importantes do setor de alimentos básicos nas mãos de interesses

estrangeiros (Soares, 2004). O contexto da manifestação foi um seminário realizado no Rio de

Janeiro (intitulado “BNDES – Um sonho do Desenvolvimento”) em janeiro de 2004, ocasião

em que o presidente declarou ter-se sempre preocupado “com a excessiva concentração,

principalmente em setores essenciais para o país, como o de alimentos” (LESSA..., 2004. s/p).

Nas suas próprias palavras, “‘[o] episódio Parmalat demonstra o risco [que se corre] quando

se permite uma concentração dessa maneira’” (ibid.).

Em artigo publicado no jornal Gazeta Mercantil no ano da crise, transcrito no Jornal

da Ciência, Ferrari (2004) salientou o mesmo tipo de posição de Lessa, verbalizada

posteriormente (em agosto), sobre a penetração de investimentos estrangeiros em setores

como os de matérias primas: “‘[e]sses setores têm de ter a presença do capital nacional. Não

podem ser totalmente dominados por interesses externos, que podem perfeitamente se

articular e transferir potencialidades nacionais para fora do país’” (s/p).

Sobretudo por se tratar de setor estratégico, tendo em vista o caráter de alimento

básico representado pelo leite e, também, o fato de que os movimentos na etapa de

processamento afetam distintos elos da cadeia produtiva, envolvendo produtores primários e

outros fornecedores distribuídos em diferentes locais e implicando várias comunidades, uma

ação rigorosa e bem dirigida do Estado nacional mostrar-se-ia necessária. Atuar

preventivamente contra abalos do tipo observado e, portanto, encarnando tipo de agente

interessado no “bem comum”, envolveria, por exemplo, controlar o próprio processo de

desnacionalização incrustado no ingresso de interesses estrangeiros. Sem que isso

representasse qualquer descabida aversão à presença estrangeira, e sim tentativa de diminuir

os riscos, o disciplinamento poderia ocorrer mediante incentivos às parcerias ou associações

entre empresas estrangeiras e nacionais, possivelmente inibindo escalada de compras capazes

21

de representar, como se deu no segmento lácteo, desaparecimento de unidades produtivas

devido ao fechamento ou desativação.

Na esteira da crise, com os acenos de resultados catastróficos em diferentes latitudes –

em março de 2004, o jornal Valor Econômico trazia esta manchete: “Crise na Parmalat do

Brasil acentuou crise na pecuária de leite, nota CNA” (CRISE..., 2004, s/p), citando o

presidente da Comissão Nacional de Pecuária de Leite, pertencente à Confederação da

Agricultura e Pecuária do Brasil –, o Estado brasileiro se mobilizou. O BNDES sinalizou

positivamente, divulgando que estava disposto a ajudar os afetados pela crise, já que “‘[a]s

bacias leiteiras brasileiras não podem ser afetadas, nem destruídas’”, nas palavras do próprio

presidente do banco (LESSA..., 2004, s/p). Na Câmara dos Deputados, criou-se uma comissão

especial da Parmalat, que realizou audiências públicas e anunciou, por meio do seu

presidente, que logo seria instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a

crise na empresa (CPI..., 2004, s/p).

A aprovação da Lei n. 11.101, em fevereiro de 2005 – dita “Nova Lei de Falências” –

facilitou o ingresso da Parmalat Brasil em processo de recuperação judicial, com plano de

soerguimento aprovado. A continuidade das operações da Parmalat no Brasil teve nesse

processo de recuperação um mecanismo fundamental. Cabe assinalar que, ao mesmo tempo, a

matriz italiana trilhava o que no seu site é indicado como etapa de “administração

extraordinária” (cf. www.parmalat.com), em vigor de janeiro de 2004 a setembro de 2005 e

ao cabo da qual surgiu, em 1º de outubro, o “novo Grupo Parmalat”, tendo a Parmalat S.p.A.

como empresa principal [Parent Company] e inaugurando o que aparece referido como

terceiro período principal na história dessa multinacional. Fato de indiscutível proeminência

nesse período foi a obtenção do controle acionário da Parmalat pela francesa Lactalis: em

julho de 2011, esta passou a concentrar 83,3% do capital daquela, galgando a posição de líder

mundial em lácteos (LACTALIS..., 2011).

No Brasil, a reboque da recuperação judicial, o turbilhão de acontecimentos incluiu a

tomada do controle acionário da Parmalat Brasil pelo Grupo Laep Investiments em 2006. Em

2010 a LBR – Lácteos Brasil, resultado de fusão entre os laticínios Leitbom e Bom Gosto,

emergiu como empresa de produtos lácteos com enorme presença no país e usufruindo de

exclusividade no emprego da marca Parmalat em território nacional, incidente em leites e

derivados. Cabe notar que, em todo o período após a recuperação judicial, a Parmalat

manteve-se atuante no front dos lançamentos de novos produtos e de novas versões de

produtos já integrantes do seu portfolio, e igualmente protagonizou importantes investidas

publicitárias, assim como patrocínios a eventos.

22

Assim, ao que parece, as condições de atuação da empresa no Brasil foram

recompostas. Mas não se tratou de recuperação desvinculada de movimentos mais gerais,

segundo estudos técnicos realizados recentemente.

De um lado, como informam Zocal, Alves e Gasques (2011), ocorreu um crescimento

constante do consumo per capita de leite no país desde 2003, com aceleração desde 2007.

Trata-se de processo que, certamente, guarda estreita relação com as políticas sociais

executadas no Brasil na correspondente década.

De outro lado, ganhou velocidade a concentração no setor de laticínios por meio de

fusões e aquisições, de visibilidade crescente desde a segunda metade dos anos 1990. Essa

dinâmica, segundo Carvalho et al. (2010), incidiu primeiramente no comércio varejista

(supermercados) e depois na indústria de laticínios. Junto com isso, representando, de algum

modo, reflexo da Instrução Normativa Nº 51, emitida em setembro de 2002 pelo Ministério da

Agricultura, Pecuária e Abastecimento – aprovando os regulamentos técnicos de produção,

identidade e qualidade do leite, assim como de coleta e transporte a granel –, observaram-se

importantes mudanças na captação do leite, na escala industrial, na distribuição e no consumo

do produto, entre outras (CARVALHO, 2010).

Se as áreas de distribuição e de processamento exibiram avanços, não se pode dizer

que movimento equivalente ocorreu no âmbito da produção primária. A maior concentração

na esfera industrial ampliou ainda mais o seu poder no diálogo com os produtores, que

permaneceram na condição, e, aparentemente, de forma cada vez mais acentuada, de

tomadores de preços. De fato,

os laticínios têm buscado constantemente ganhos de eficiência. Isso tem levado a

uma redução no número de fornecedores sem que haja queda no volume de

captação, o que proporciona redução no custo de captação de leite. Essa política

adotada pelas grandes empresas, na realidade, é uma tendência mundial.

(CARVALHO, 2010, p. 4)

Considerações finais

A globalização não se apresenta, necessariamente, em situação de trade-off com o

Estado-nacional, como se a maior presença de um implicasse, sem qualificações, a menor

presença do outro. Na globalização, conforme as diferentes situações e circunstâncias, e

também os aspectos observados, o Estado nacional é a um só tempo fortalecido e fragilizado.

É importante, todavia, destacar que, sobretudo com respeito à economia, ações

protagonizadas em escala de Estado-nação costumam representar “vetores” de dinamismos

globais. Mudanças regulatórias abrangendo liberalização comercial e desregulamentação

23

financeira nas relações entre os países e a esfera internacional representam ilustrações nessa

direção. Em relação a tais aspectos, globalização e Estado nacional não configuram um par

antagônico, e sim o contrário: o caráter internacional dos fluxos se aprofunda também porque

iniciativas em escala nacional contribuem – até induzindo, talvez – para isso.

A movimentação do grande capital globalizado ligado ao setor agroalimentar,

exemplificada pela desenvoltura da Parmalat em termos mundiais e, como explorado

analiticamente no artigo, particularmente no Brasil, é um caso em questão nessa maneira de

encarar as relações entre globalização e Estado nacional. As mudanças macroeconômicas e

regulatórias efetuadas no país nos anos 1990 favoreceram decisivamente o tipo de

comportamento privilegiado por essa multinacional do segmento de lácteos.

Indissociável, na perspectiva deste estudo, da ação do Estado nacional, essa conduta

materializou-se para o bem e para o mal. Para o bem, tendo em vista o impulso em termos de

competitividade, com modernização tecnológica e atualização organizacional, imprimido na

cadeia do leite. Para o mal, pelo fato da internacionalização desse setor ter rimado com

concentração e desnacionalização, envolvendo a transferência para o exterior do âmbito de

tomada de decisões sobre fração importante de uma cadeia produtiva estratégica, visto que

ligada a alimento básico. Foi possível aquilatar o significado disso por ocasião da grave crise

financeira em que mergulhou o grupo Parmalat em 2003.

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