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DANIELA RIBAS GHEZZI “MÚSICA EM TRANSE: O MOMENTO CRÍTICO DA EMERGÊNCIA DA MPB (1958-1968)” CAMPINAS MARÇO / 2011

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DANIELA RIBAS GHEZZI MSICA EM TRANSE: O MOMENTO CRTICO DA EMERGNCIA DA MPB (1958-1968) CAMPINAS MARO / 2011 4 FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Bibliotecria: Ceclia Maria Jorge Nicolau CRB n 3387 Ttuloemingls:Musicintrance:thecriticalmomentoftheemergenceofMPB (1958-1968) Palavras chaves em ingls (keywords): rea de Concentrao: Sociologia da Cultura Titulao: Doutor em Sociologia Banca examinadora: Data da defesa: 30-03-2011 Programa de Ps-Graduao: Sociologia Brazilian popular music Bossa Nova Tropicalia (Musical movement) Brazilian popular music Criticism and interpretation Marcelo Siqueira Ridenti, Renato Ortiz, Jos Roberto Zan, Marcos F. Napolitano de Eugnio, Marcia Tosta Dias Ghezzi, Daniela RibasG343mMsica em transe: o momento crtico da emergncia da MPB (1958-1968) /Daniela Ribas Ghezzi.- - Campinas, SP : [s. n.],2011.

Orientador: Marcelo Siqueira Ridenti. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Msica popular brasileira . 2. Bossa Nova.3. Tropicalismo (Movimento musical).4. Msica popular brasileira Crtica e interpretao. I. Ridenti, Marcelo Siqueira, 1959- II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo. 5 ao Marco companheiro de jornada: do acordar aos acordes da madrugada 7 AGRADECIMENTOS Lembrar de todos os que contriburam, direta ou indiretamente, para que este trabalho se conclusse uma tarefa to ou mais rdua do que colocar no papel todas as idias que tive sobre a MPB ao longo dos ltimos anos. Mas com uma diferena: enquanto as idias que compem o trabalho foram amadurecendo ao longo do percurso, os agradecimentos s so redigidos ao final de todo o processo. Neste momento, j no h mais tempo para vasculhar a memria em busca daquelaspessoasque,emalgumaocasio,foramfundamentaisaotrabalhomasqueporora escapamdalembrana.Tentandonoserinjustanempassarporingrata,desdejmedirijoa todos aqueles que se encaixam nessa situao: a todos vocs, obrigada! E dentre aqueles que so impossveis de no serem lembrados, comeo agradecendo aos meus pais Sergio e Clarice, minha av Ana, ao meu saudoso av Zeca, minha irm Simone, aosmeustiosClaudioeAna,aosmeusprimosJooVtoreJlia,eaomeuzioLuciano:a compreensodevocsquantosminhasausnciasdmaissentidoexpressoamor incondicional. Da famlia que ganhei, agradeo D. Lcia e ao Sr. Tarcsio pela compreenso, carinhoecuidadodesempre(etambmpelosquitutes,sempredeliciososebem-vindos);e Luciana,pelaamizadeepelasacolhidasemCampinas.Sarav,Sarajevo,SaraVaughan!E fora na peruca! Aosamigos,toessenciaisemminhavida,gostariadefazerumalistaimensa,como nomedeabsolutamentetodos,detodasascidadesondefinqueialgumaraizSoRoque, Franca, So Paulo, Santos, Campinas e tambm por onde estive de passagem. Mas como isso s seria possvel num volume igual a uma lista telefnica (pois tenho um Arrasto de amigos), citoapenasaquelesquecontriburamefetivamentecomotrabalho:obrigadaaDaniLandi,que semprevememDisparadameajudarcomtodootipodecoisa,eaRobertaCardinali,pelas conversas sempre regadas com muita msica brasileira e biritas estrangeiras. A ambas, obrigada pela amizade acima de tudo: guardo vocs a sete chaves. Obrigada Carlo Romani, pela opinio sempresincera(mesmoqueeunomudedeopinio)epelamotivao.AtodosdoGrupo Improvise(inclusivequelesquejnofazemmaispartedogrupo)meusagradecimentos entoadosemformadecano,pormelembraremquesememoo(quemmeduma 8 emoo?)esemarte,avidanovalepena,equesomossempreeternosaprendizes.No poderiadeixardeagradeceraosqueridosamigosvirtuais/reaisPaulBeuter(Frankfurt)eAndr LuisOliveira(Salvador),quealmdeteremcedidoamimtodooacervomusicaldeque dispunham,mantiveramsempreuminstiganteinteressepelapesquisa.SandraDominicis,a quemaproveitoparadarumrecado:Chegadesaudade!AosamigosmsicosSauloAlvese ClairtonRosado,pelaBoapalavrasobremsicapopular,almdasrisadas.AoamigoFabio Caveira, pelo socorro nos momentos mais desesperados de pane total (no falei que voc merecia umagradecimentoespecial?Promessacumprida!).AoMarco,porsimplesmentetudo,tudo, tudo,epormefazersaberadoreadelciadeseroque.VocstodossoDivinos, maravilhosos!Efinalmente,masnomenosimportante,obrigadaMinduimePag, companheirinhos fiis das horas mais solitrias ao computador: vocs merecem muita Alegria, alegriaeumbelopasseioDomingonoparquedoMuseudoIpiranga,almdemuitos ossinhos! Agradeo tambm ao meu orientador Marcelo Ridenti, que, confiando em mim e no meu trabalho,meacompanhouemcadapassodesdeomestrado,semprecomleiturasatentssimase apontamentos importantes. Ao professor Renato Ortiz, pelas conversas sempre esclarecedoras. Mrcia Dias, pela amizade e pela disposio em compartilhar os frutos do trabalho. Ao professor J. R. Zan, pelas sugestes no exame de qualificao. s professoras Gilda F. P. Gouveia e lide Rugai, por terem feito parte de maneira indelvel da minha formao intelectual. Tnia Garcia daCosta(professoradaUnesp/FrancaqueconhecipessoalmentenaANPUHde2009),pela gentilezademecederseutrabalhoaindaemmimeo.SantuzaC.Naves,pelaelegnciana arguiodomeupapernaANPOCS2010.AoscolegasdeUnicampricaMello,Mariane Barreto, Michel Nicolau Netto, Rosane Pires Batista, Roberto Ravena Vicente, Diego Vicentin e Fbio Candotti, pelas caronas, cervejas, risadas, discusses e tudo o mais que a vida acadmica envolve. TambmnopoderiadeixardeagradecerJoycePorto(ArquivoMultimeiosCCSP), Sandra Santos (Cedem-Unesp), Christina Faccioni (Seo de Ps Graduao IFCH-Unicamp), eaofuncionriodaxeroxdabibliotecadoIFCH/Unicamp,peladelicadezaesolicitudetoda prova.Efinalmente,agradeoFAPESP,cujoauxliotornoupossvelarealizaodeste trabalho.9 RESUMO O trabalho analisa o processo de modernizao da msica popular brasileira compreendido entre 1958e1968,passandopelastendnciasdabossanova,dacanodeprotesto,damoderna msicabrasileiraedotropicalismo.Nodecorrerdesseprocessodeflagrou-seasiglaMPB, reconhecvel a partir de 1965. O objetivo do trabalho o de compreender a gnese e identificar osprincpiosmusicaisquesetornaramparmetroslegtimosdaproduomusicalconhecida comoMPB,bemcomoodeanalisaroprocessodeautonomizaodeumcampodeproduo simblica: o campo da MPB. Palavras-chave:MsicaPopularBrasileira;BossaNova;CanodeProtesto;Tropicalismo; MPB; Campo de Produo Simblica. ABSTRACT Theworkanalyzestheprocessofmodernizationofbrazilianpopularmusicbetween1958and 1968, going by the trends of the bossa nova, song of protest, the modern brazilian music, and thetropicalism.DuringthisprocessemergedtheacronymMPB,recognizablesince1965.The objectiveistounderstandthegenesisandidentifythemusicalprinciplesthathavebecome legitimateparametersofmusicproductionknownasMPB,aswellastoanalyzethe autonomization process of a symbolic production field: the field of MPB. Keywords: Brazilian Popular Music; Bossa Nova; Song of Protest; Tropicalism; MPB; Symbolic Production Field. 11 LISTA DE TABELAS E QUADROS Tabela I Nmero de sambas em relao a outros gneros nacionais (1917-1928) .................. 51 TabelaIIDistribuiodegnerosmusicaisdentreasgravaesmaisrepresentativas(1929-1945) ............................................................................................................................................ 53TabelaIIIRegistrodeobrasmusicaiseteatraisparagarantiadedireitosautoraispor instituio (1935-1939) ................................................................................................................ 55 TabelaIVRegistrodeobrasmusicaisparagarantiadedireitosautoraisSociedadeBrasileira de Autores Teatrais (SBAT) por gnero musical (1935-1936) .................................................... 56TabelaVRegistrodeobrasmusicaisparagarantiadedireitosautoraisInstitutoNacionalde Msica por gnero musical (1935-1939) ..................................................................................... 57 TabelaVIRegistrodeobrasnaEscolaNacionaldeMsicaporgneromusical(1940-1948) ....................................................................................................................................................... 61Tabela VII Registro de obras na Escola Nacional de Msica composies musicais segundo o gnero artstico (1947-1949) ........................................................................................................ 63Tabela VIII Registro de obras na Escola Nacional de Msica composies musicais segundo o gnero artstico (1950-1959) ........................................................................................................ 64 Tabela IX Lanamentos em 78rpm por gnero musical (1930-1960) ..................................... 66 Quadro I Lanamentos de Srgio Ricardo e Carlos Lyra (1957-1963) ................................. 199 Quadro II Resumo dos principais eventos musicais: So Paulo e Rio de Janeiro (1959 1966) ..................................................................................................................................................... 259 QuadroIIICronologiadoslanamentosemdiscoeeventosligadosMPB(19581968) ..................................................................................................................................................... 283 Quadro IV Distribuio por segmento dos 50 discos mais vendidos anualmente nas cidades do Rio de Janeiro e de So Paulo (1965/1968) ............................................................................... 298 Quadro V Resumo dos Festivais na TV (1965 a 1969) ......................................................... 369 13 SUMRIO Introduo .................................................................................................................................. 15 PRIMEIRA PARTEA Formao Histrica da Msica Popular Brasileira Captulo 1 - As Indstrias da Cultura ...................................................................................... 27 Nota metodolgica .................................................................................................................. 27 A formao da tradio do samba ........................................................................................... 29 As indstrias da cultura no debate cultural ............................................................................. 40 Panorama geral dos meios tcnicos ......................................................................................... 45 A dinmica dos gneros musicais atravs dos registros .......................................................... 49 A profissionalizao do mercado musical ............................................................................... 71 Captulo 2 - A Msica Popular no Rdio e no Disco: anos 40 e 50 ........................................ 83 Nota metodolgica .................................................................................................................. 83 A Era de Ouro da msica popular ........................................................................................... 83 A programao radiofnica: regionalismo X internacionalismo ..................................... 87 A avaliao da Revista de Msica Popular ............................................................................. 98 O confronto de duas tradies: baio X samba ..................................................................... 102 Captulo 3 A Gnese da Bossa Nova .................................................................................... 111Os modernos da pr bossa nova e Joo Gilberto ............................................................... 111 Produo e consumo musical distintivos .............................................................................. 116 O samba como espao de experimentao ........................................................................... 123 O salto de Joo Gilberto .................................................................................................... 128 SEGUNDA PARTE A Autonomizao e o Desenvolvimento do Campo da MPB Captulo 4 - Da Bossa Nova Bossa Nova nacionalista 1959 a 1963 ............................ 147 A consolidao da bossa nova 1959 a 1962 ....................................................................... 147 Enquanto isso ... do contexto poltico-cultural do fim dos anos 1950 ao CPC ..................... 174 CPC e bossa nova nacionalista: o sambalano de Carlos Lyra ......................................... 185 Captulo 5 Da Cano de Protesto idia de MPB - 1964 a 1966 .................................... 207 O contexto relacional ............................................................................................................ 207 Acidentenecessrioeespaodospossveis:amultiplicaodepropostaseasnovas feies da msica popular aps o CPC ...................................................................................... 21514 Rio de Janeiro: teatro, msica e disco na configurao da cano de protesto ..................... 219So Paulo: show, disco, e TV na configurao da msica brasileira moderna.................. 247 Da msica brasileira moderna MPB ............................................................................... 262 Captulo 6 da MPB ao Tropicalismo 1966 a 1968 ........................................................... 303 Edu Lobo e Chico Buarque: os mdiuns das possibilidades da MPB ................................... 303 Edu Lobo ou como ser brasileiro da melhor maneira possvel.................................. 304 ChicoBuarqueoumasosambachegagenteporcaminhoslongoseestranhos,sem maiores explicaes............................................................................................................... 317 O tropicalismo e a MPB: toda a festa estranha do mundo moderno .............................. 332 Consideraes Finais ............................................................................................................... 371 Referncias Bibliogrficas ....................................................................................................... 375 Referncias Discogrficas ........................................................................................................ 385 15 INTRODUO A pergunta que me incomodava, que sempre me acompanhou em minha vida acadmica, equemotivouestetrabalho,simples.Muitosimplessecomparadarespostaqueelaexige. Afinal, o que a MPB? Para alm do significado literal, quais as idias contidas nessa sigla to familiar, e ao mesmo tempo, to difcil de ser definida? A resposta complexa. Um estudo realizado entre 1997 e 2001 (ULHA, 2001) revelou queaspessoasquesedeclaravamnessapocafsdeMPBenglobamquasetudonessavaga categoria, desde os compositores de maior prestgio (como Chico Buarque e Caetano Veloso), os demenorprestgio(comoRobertoCarlos),passandopelosrepresentantesdorocknacional (LegioUrbana,Skank,ParalamasdoSucesso),eatopagode1.Dentreosmaisrejeitados como MPB, aparecem o pagode, o funk, a msica sertaneja, a ax music, o rock, etc2. Curioso notarquedentreosmaisrejeitadosenquantoMPB,ousmbolosdamMPB,aparecem algunsnomes/estilosquetambmsoenquadradoscomMPB,comoodeRobertoCarlos,o pagode, e o rock. Mas o que leva as pessoas que se declaram fs de MPB considerarem o rock ao mesmo tempo MPB e no MPB? Ou o pagode? Ou Roberto Carlos? Ou ainda, o que leva as pessoas a considerarem Roberto Carlos MPB, e Wando no? Oestudocitadotentacompreendertaisdiscrepnciasnaclassificaodegnerose artistaslevandoemconsideraocategoriascomoescolaridade,profisso,idade,esexo,e tambmainflunciadaconsagraopelotempotranscorridoepelomercado.Nocabeaqui problematizarasconclusesdesseestudo,denaturezamaisetno-musicolgicadoque sociolgica.Masasquestesqueelelevantasointeressantes,poissepercebequepassadas algumasdcadasdaeclosodachamadaMPB,asiglapareceterampliadoodimetrodesua 1Em298questionriosanalisados,osartistas/estilosquemaisapareceramenquantoartistasconceituadosforam (porordemdeimportncianosresultados):CaetanoVeloso,ChicoBuarque,Djavan,MiltonNascimento,Tom Jobim, Gilberto Gil, Marisa Monte,Roberto Carlos, pagode, Gal Costa, Legio Urbana, Samba, Skank, Ivan Lins, choro, Maria Betnia, bossa nova, Paralamas do Sucesso, Hermeto Pascoal. 2 Em 298 questionrios analisados, os artistas/estilos que mais apareceram enquanto artistas rejeitados foram (por ordemdeimportncianosresultados):pagode,funk,Tiririca,Gerasamba,msicasertaneja,RobertoCarlos,rock, Wando,Gabrielopensador,ClaudinhoeBochecha,Falco,LeandroeLeonardo,PlanetHemp,Chitozinhoe Choror, rap, Xuxa, Elymar Santos, Maurcio Mattar, msica baiana, Raa Negra. 16 significao, ou ter aberto ainda mais seu grande guarda-chuva. Parece que ao nos afastarmos do contexto que permitiu o surgimento da MPB, a sigla perde em identidade e assume o sentido genrico de popular e brasileiro. Arefernciaatalestudoserveaquiapenasparailustrar,comexemplosempricos,quo complexaarespostaperguntaoqueaMPB.Servetambmparaevidenciarqueas manifestaesmusicaisnopodemserplenamentecompreendidassemocontextoculturalque lhesoriginou,poiselequemforneceosreferenciaisparasuacompreenso.Apertinnciada msica , portanto, cultural: as manifestaes artsticas devem fazer sentido para a coletividade ou ao menos para uma parte dela para serem compreendidas. Por outro lado, se os referenciais culturaisfavorecemacompreensodasmanifestaesartsticas,asartestambmpodem propiciarumadensamentodacompreensodocontextohistrico-cultural.Amsica,porsua linguagem abstrata e polissmica, pode ser um bom artifcio para a compreenso de idias de um determinadotempohistrico,ouarcotemporal,idiasquenopoderiamsertobem compreendidas de outra forma, mesmo com uma descrio racional de um determinado contexto. Mas para favorecer tal tipo de entendimento, que tipo de abstrao a msica deve conter? O que devemintuirosartistasparafavoreceracompreensodeseutempohistricopelacoletividade quecompartilhadeseuscdigosculturais?Qualomistriodosespaosentreasletrasda siglaMPBqueatornaextremamentepertinenteparaboapartedosbrasileiros,eaomesmo tempo, faz com que a sigla seja ainda quase indefinvel? Asintuiesindividuaissotambmcoletivas,easmanifestaesartsticas,porsuas propriedadesindutorasderevelaodesentido,sobonsartifciosparaoadensamentoda compreensodeumapoca,umasociedade,ouumasociedadenumapoca.Almdapergunta oqueaMPB,outrasefazigualmenteimportante:qualaimportnciadaMPBparaa compreenso de sua poca? O que ela revela sobre a sociedade brasileira? Porque a MPB to indefinvel e ao mesmo tempo to reconhecida, nacional e internacionalmente?Observandoastendnciasmusicaisdosanos60,principalmenteaquelasquehoje aparentementesoumconsensoquandosoclassificadascomoMPBabossanova,acano deprotesto,eotropicalismonota-sequeamsicapopularnesseperodocomeaseauto-definireaserdefinidadeumamaneiradiferenteemrelaosdcadasanteriores.Apartir 17 dessas tendncias, a msica popular cria para si uma identidade distinta daquela em que o samba eraatendnciahegemnica,forjandolegitimidadeseilegitimidadesapartirdessanova identidade.Masquaisseriamosprincpios,ouoscdigosculturais,ordenadoresdessanova dinmica musical? Alm dessas questes mais voltadas para as questes propriamente musicais, havia nessa pocaumprocessodemodernizaoemcurso,quepropiciouosurgimentodessetipode manifestaoartstica(principalmentepelasnovastecnologiasepelasnovasformasde sociabilidadequeengendrava).MasamodernizaonospropiciouosurgimentodaMPB, como tambm foi interpretada pela MPB. Qual teria sido a interpretao contida na MPB? Qual teria sido a mediao dos msicos identificados MPB entre as demandas do universo social e o fazerartstico?Taisinterpretaeserampertinentesparaacoletividade?Elasdisseram,afinal, algo sobre a sociedade brasileira daquele perodo? Foiapartirdissoqueestetrabalhocomeouasedelinear.Devidoaofatodeamsica popularmanterumfortevnculocomasidiaseproblemticasdeseutempohistrico,a tentativadeacharumarespostaperguntaqueoriginouestetrabalhoexigiuummergulhona cultura brasileira desde o incio do sculo XX. Oscaptulosdestetrabalhoforamconstrudostentandoresponderaestasquestes. Primeiramente,foinecessriofalardoprocessoquelevouconsolidaodosamba,smbolo maiordaidentidademusicalbrasileira.Aconsolidaodosambafoiumprocessosocialmente construdo, que articulou questes de ordens diversas: intelectuais, sociais, estruturais, polticas, eformais.Emseguida,foinecessriorecuperarocontextoestruturalquepropicioua tradicionalizaodosambanocancioneiropopular,especialmentenodiscoenordio.Nesse cenrio,comearamasurgirasprimeirasentidadesautorais,quemostramadinmicados gneros registrados e o enraizamento do samba na cultura musical brasileira. Todo esse contexto contribuiuparaumacrescenteprofissionalizaodacadeiaprodutivadamsica.Estepercurso compe a argumentao do primeiro captulo, denominado As Indstrias da Cultura. As fontes utilizadasforampoucoexploradaspelabibliografiaespecfica,que,atomomento,poucose dedicou ao levantamento de dados do mercado cultural das dcadas iniciais do sculo XX. 18 Nosegundocaptulo,denominadoAMsicaPopularnoRdioenoDisco:anos40e 50,adiscussoestruturaldlugararticulaoentreosmeiostcnicoseadinmicada produo musical, com nfase no contexto musical que antecedeu o surgimento da bossa nova. A chamada Era de Ouro da msica popular acabou por canonizar autores e intrpretes de samba, mas tambm acabou por limitar o desenvolvimento das formas artsticas. O samba nos anos 1940 sedesenvolvianoambienteradiofnico,dividindo-seentreduascorrentesprincipais(o mainstream,maiscomercial;eochamadosambatradicional).Porumeoutromotivo,no havialiberdadeparaexperimentaesformais.Emrespostaatalsituao,osmsicos interessadosnarenovaodorepertriocomearamaseaproximardamsicaestrangeira, especialmente do jazz, o que contribuiu para o delineamento de uma nova forma de sociabilidade (que seria extremamente importante para o surgimento da bossa nova). Isso fez com que, fora o mainstream,sedesenvolvessemnosanos50duascorrentesnamsicapopular:umamais regionalista,queseapoiavanorepertriodosambatradicionalenobaio,eoutramais internacionalista,queassimilavaainflunciadojazz(correnteapartirdaqualabossanova teria se originado). Nesse contexto, ressalta-se a importncia dos crticos da Revista de Msica Popular,quemobilizaramargumentosdeMriodeAndradeedeoutrosintelectuaispara folclorizaramsicapopularurbanaautenticamentebrasileira,nointuitodelegitimar principalmenteorepertriodosambatradicionaledeslegitimarasinflunciasestrangeiras.O surgimento do baio um dado importante do contexto musical do perodo, pois, como se ver no terceiro captulo, ele foi um precedente necessrio escolha do samba como substrato formal dasexperimentaesestticasdesenvolvidasapartirdainflunciadojazz.Essefoiocontexto musical anterior ao surgimento da bossa nova, problematizado no segundo captulo. No terceiro captulo, procuro identificar as origens da bossa nova. A meu ver, dois fatores foramdeterminantesparatanto:emprimeirolugar,aspesquisasformaisrealizadasapartirda influnciadamsicaestrangeira,maisautnomasemrelaosexperinciasmusicais anteriores; em segundo lugar, a sociabilidade moderna dos consumidores brasileiros de jazz e do chamadosambamoderno.Estesdoisfatoresteriamcontribudoparaquecomeassease delinearumconsumomusicaldistintivo,deondeabossanovapareceterherdadopartedesua pertinnciacultural.Ageraodemsicoscomprometidoscomarenovaomusical,quese orientavaculturalmenteporumanovasociabilidade,dedicou-seaotrabalhodepesquisaformal apsainflunciadojazz,encontrandonatradiodosambaseuespaoprimordialde 19 experimentao. aqui que surge a idia de autonomia artstica na msica popular brasileira. E nesse contexto, marcado pela modernizao, que surgiu uma gerao de artistas que foi capaz de intuir e abstrair as demandas desse tempo histrico e revert-las em formas estticas renovadas, revelandoproblemticasculturaispertinentesenoresolvidasdesdeoModernismo.Nessa gerao, destaco neste trabalho a importncia da mediao artstica realizada por Joo Gilberto, e tentoidentificaremsuatrajetrianomeiomusicaloqueteriacircunstanciadosuasintuiese abstraes revertidas em uma forma musical: a batida. Esses so os temas tratados no terceiro captulo, denominado A Gnese da Bossa Nova. Estestrscaptulosiniciaisconstituemaprimeirapartedotrabalho(denominadaA Formao Histrica da Msica Popular Brasileira), onde procurei apontar todos os pressupostos daidiadeMPB,oqueacabouporevidenciarqueabossanova,emdiversosaspectos,foium divisordeguasnaproduomusicalpopularnoBrasil.Namudanadeumafasepioneira, marcada pela incipincia tanto das indstrias da cultura como da prpria produo musical, para outra, mais moderna, foi possvel observar a emergncia de condies para a autonomizao de um campo de produo simblica. A partir disso, a produo musical passaria a ser organizada a partir de suas leis internas, de forma a criar uma identidade prpria que abrigou diversas noes delegitimidade,todaselaspertinentescoletividadeoupartedela.emtornodessa identidade,norteadoradaproduomusicaldoperodo,queemergeaidiadeMPB.Acredito que a autonomizao desse campo, que venho chamando de campo da MPB, seja no s fruto da modernizaopelaqualopaspassounosanos50,comotambmadenseacompreensoda sociedade brasileira nas dcadas de 50 e 60 em virtude de sua pertinncia cultural. Nasegundapartedotrabalho,denominadaAAutonomizaoeoDesenvolvimentodo CampodaMPB,procurocolocaremevidnciaoprocessodeautonomizaodocampoda MPB, ou o momentocrtico da emergncia da MPB, compreendido entre1958 (ano de ecloso dabossanova)e1968(anodofimdotropicalismo).Noquartocaptulo,intituladoDaBossa NovaBossaNovanacionalista1959a1963procureicolocaremevidnciaopercurso trilhadopelamsicapopularbrasileiradesdeabossanovaataocontextoemquepareceter havido uma multiplicao de propostas musicais. Nesse itinerrio, alimentando o surgimento e a consagraodabossanova,ressalteiadiferenahierrquicaentreoscircuitosdodiscoedo show.Talhierarquizao,assimcomoapolarizaoqueelacausounadinmicadaproduo 20 musical, teria sido uma das caractersticas peculiares ao caso brasileiro de autonomizao de um campo de produo simblica no universo da msica popular. Outra particularidade seria o fato dequeoprocessodereconhecimentodapertinnciaculturaldamsicapopulartersedadoao mesmotempoemquesedavaaconsolidaodosparmetrosmercadolgicosqueaindstria culturalutilizariaparaoperarnomercadobrasileiro,obrigandoqueotrabalhodosmsicos fizessecoincidirosparmetrosdalegitimidademusicalaosparmetrosmercadolgicosda indstriafonogrfica,issonumcontextopolticodesfavorvelatalcoincidncia.Aequao proposta por Carlos Lyra em que o procedimento de valorizar a tradio podia ser interpretado comoumaoperaosimblicamodernizantedaexpressomusicalteriasidoemblemtica dessa peculiaridade. Procurei colocar em evidncia que a politizao de Lyra, alm de atender s demandas do universo poltico estudantil, era tambm um processo individual de construo do projetoautoral,quemobilizavadoiscapitaissociaisdiferentescapazesdeindividualizarsua trajetria.Creioquesejajustamenteessecrivoindividual,quearticulouengajamentopolticoe desenvolvimento esttico, que evidencie seu papel de mediador cultural. As duas motivaes a polticaeamusicalcolocadasemprticapeloprojetoautoraldeLyranopodemser hierarquizadas,poisumacontribuiparaaeficciasimblicadaoutra.Daanecessidadede interpretaressasduasmotivaesdemaneiranohierrquica,aindaqueasquestespolticas parecessemmaiscandentesparaomeioestudantil.Pode-sedizerque,semelhanada emblemticatrajetriadeJooGilberto(querapidamenteinfluenciouumageraointeirade msicos),Lyratambmteriainventadoumaposioatentoinexistentenocampoemque estava inserido, influenciando toda a gerao seguinte de msicos. Noquintocaptulo(DaCanodeProtestoidiadeMPB-1964a1966),abordoo contextomusicalsituadoentre1964e1966,emquehouveumamultiplicaodepropostas musicais que culminariam na idia de MPB. O eixo central da argumentao foi o de evidenciar ainterlocuoeacomplementaridadeentreoscircuitoscariocaepaulista,procurando compreender as questes musicais na perspectiva do contexto relacional e auto-referenciado em queelasseinseriram.Almdisso,procureiapontardequemaneirasessecontextorelacional acabou por estruturar osprincipais elementos que se tornariam os princpios de legitimidade da MPB. As transformaes que se operaram na msica popular aps as experincias do Opinio no RiodeJaneiro,edosshowsnoTeatroParamountemSoPaulo,fizeramcomqueumdos smbolos do perodo o programa O Fino da Bossa se relacionasse de maneira ambgua com o 21 movimentoqueoriginouonomedoprograma:aomesmotempoemqueamsicaquealise apresentavahavianascidoherdandoasconquistasformaisdabossanova(especialmentea harmonizao dissonante, a sofisticao meldica, e o poder distintivo, alm do engajamento da bossanacionalista),elatambmcontribuiudecisivamenteparaaderrisodoprojeto bossanovistaaoseerigircomomsicabrasileiramoderna(quetraziaumnovoparadigmade interpretaovocal,maisvigoroso,eumnovoparadigmadeacompanhamentoinstrumental quemantinhaostimbresdabossanova,masincorporavatantoaacentuaortmicadosamba como as mudanas de andamento do hot jazz). apenas levando-se em considerao que a bossa nova foi uma revoluo inaugural de um campo, que se pode compreender o fato de uma msica to expressiva e vigorosa como a msica brasileira moderna popularizar-se sendo exibida num programadeTVquelevavaabossanonome.Dadeduz-seopodersimblicodarevoluo inaugural,queseimpesobreosnovosmesmoquandoessesnovosreivindicamsuaexistncia pela diferena. Os circuitos carioca e paulista abordados neste captulo colocaram em evidncia o processodereconhecimentosocialpeloqualamsicapopularpassounodecorrerdoperodo. Aoserealizaremteatros(lugarprivilegiadodasartescultas)eaoevidenciarotrabalho intelectualorientandoaatividadeartstica,amsicapopulardemonstraamudanadolugar socialdacrticacultural,antesrestritaaosartistasecrticosligadosaosvaloresmodernistas.A argumentao mostrou que mesmo a atuao dos intrpretes decisiva para tais transformaes eraorientadapelaatividadeintelectual,algoinditonamsicapopularbrasileira.Nesse sentido, no foi toa que as principais transformaes musicais do perodo foram colocadas em prticaporintrpretes,tantovocais(NaraeElis)comoinstrumentais(osdiversostrios).No tocantesindstriasdacultura,ograndediferencialemrelaofaseanteriorfoiafeio integradaqueosmeiosassumiramnoperodo(comoqueanascenteMPBcontribuiu estrategicamente)oque,poroutrolado,garantiuaprofissionalizaodetodaagerao envolvidanarenovao.Senabossanovaosdoistiposdecircuito(odiscoeoshow) implicavam nveis diferentes de profissionalizao, j que apenas o circuito do disco eragerido pela indstria fonogrfica, na fase da msica brasileira moderna tanto o processo produtivo do discocomoodoshoweramgeridospelasindstriasdacultura.OshoweraveiculadopelaTV (que passou a encomendar pesquisas de audincia para racionalizar a relao com as agncias de publicidadeecomospatrocinadores),etambmgeravadiscoslanadospelaindstria fonogrfica.TalintegraoresultarianafrmuladosFestivais,fortesnouniversocultural 22 brasileiro sobretudo a partir de 1966. Juntas, tais indstrias da cultura alaram toda a gerao de msicoseintrpretesaumnveldeprofissionalizaotalvezsobtido,atento,pormaestros ou cones isolados da Era do Rdio. Nosextoeltimocaptulo,denominadoDaMPBaoTropicalismo1966a1968, procureicolocaremevidnciaqueasproblemticasdaesquerdanacionalistaeo desenvolvimentohistricodocampodaMPBlevaramconfiguraodedoisparadigmas composicionaisodeEduLoboeodeChicoBuarquequepassaramasersntesesdessas problemticas,tornando-seosmaioresemblemasdaMPB.Cadaumdelesfoiresponsvelpela introduodedeterminadoselementosnaMPB:EduLoboincorporouaosprincpiosde legitimidadedaMPBolastrocomotempohistricodosanos60,representadopelo regionalismo nordestino; e Chico incorporou aos princpios de legitimidade da MPB o lastro com a identidade cultural brasileira, realizado atravs da reinsero do samba dos anos 30 na pliade degneroslegtimosdaMPB.Taisposies,dotadasdeamplalegitimidadenomeiomusical, foram, contudo, questionadas pelo tropicalismo, que inseriu novos parmetros de legitimidade na MPB. Quanto ao tropicalismo, procurei mostrar que a possibilidade de ruptura j estava inscrita nocampo,jqueseudesenvolvimentoeasposiesanteriormenteconstrudasemseuinterior forneceram os parmetros com os quais o movimento dialogaria criticamente. Essa possibilidade de ruptura ofertada pela histria do campo fica evidente na avaliao que Caetano Veloso fez do contextomusicalimediatamenteanterioraotropicalismo,ocasioemqueomsicopropsa idia de linha evolutiva da MPB. Aolongodotrabalho,procureiidentificarquaisforamasproblemticasculturais mobilizadaspelos msicosidentificadosMPB,tentandocompreend-lasemseussignificados especficos no interior do campo (ou seja, compreender como tais problemticas foram expressas musicalmente, como as expresses musicais representaram uma tomada de posio diante das mltiplaspossibilidadesdocampo,equaisasconseqnciasdessasescolhasparao desenvolvimento do campo). Ao selecionar certos elementos dessa realidade multiforme, busquei descobrirqualeraosistemaderelaesprpriasaocampo,oqueimplicouemdarnovos significadosaosposicionamentosdosagentes,independentementedasintenesdeclaradaspor eles.Tambmprocureiapontarosdiferentesprocessossocioculturaisdelegitimaosimblica pelosquaisessastendnciaspassaramaolongodeumperododedezanos,natentativade 23 compreender os motivos e os elementos que tornaram tais tendncias legtimas para os pares, e pertinentesparaacoletividade.Sendoamsicapopularumadasprincipaisformasdeauto-representaodasociedadebrasileira,etendoaMPBseconstitudonumnovoespaode discussosobreaproduoculturalbrasileira,foinecessriocompreenderdequemaneirasa MPB assumiu a funo de crtica cultural. Depoisqueessecaminhointerpretativocomeouasertrilhado,aperguntaqueoriginou este trabalho talvez tenha se tornado para mim menos incmoda, porm no menos instigante. 25 PRIMEIRA PARTE A Formao Histrica da Msica Popular Brasileira 27 CAPTULO 1 As Indstrias da Cultura Nota metodolgica Nesta primeira parte do trabalho, procuro mapear a gnese da msica popular brasileira, desdeosurgimentodosambanofinaldadcadade1910atomercadomusicaldosanos50. Entendoquefoinesteperodopioneirodamsicapopular,marcadopelosurgimentoe tradicionalizaodosambaepelaincipinciadasindstriasdacultura,queforamcriadosos precedentesestticoseestruturaisquepossibilitaramarenovaopropostapelabossanovaa partir de 1958.Por se tratar de um perodo extenso e musicalmente intenso, no seria possvel reconstruir historiogrfica e minuciosamente todo o perodo. Tampouco este o objetivo do trabalho, que se propeaanalisaroprocessoderenovaodamsicapopularapartirdabossanova(ouseja, aps o perodo de hegemonia do samba). Para a compreenso dos cdigos culturais ordenadores daproduomusicaldosanos1960,opteiporselecionarestrategicamenteasproblemticas scio-culturaisquepresidiramosurgimentodabossanova,equemaisteriamincididono delineamentodaidiadeMPB.Estasproblemticasestodispostasemtrscaptulos.Neste primeiro,quefuncionacomoprembulodadiscusso,procuroidentificarasquestesscio-culturaisquecircunstanciaramosurgimentodosamba(gneroquesetransformouemsmbolo daidentidadeculturalbrasileiraequeseriare-significadopelabossanovanofinaldosanos 1950).Almdisso,procurorelacionaroprocessodetradicionalizaodosambaao desenvolvimentodosmeiostcnicos,usando,paratanto,osregistrosmusicaisnasentidades autoraisdoperodo.Aodarvozaessetipodefonte,poucoexploradapelabibliografia pertinente,foipossvelvisualizaradinmicadosgnerosmusicaisproduzidoseregistrados, dinmica que levou tradicionalizao do samba no cancioneiro popular brasileiro.Nesseprocessodetradicionalizaodosamba,asindstriasdacultura,quetiveramum papelestratgiconaconfiguraodamusicalidadepopular,seorganizarampromovendoum particulararranjoentremeiostcnicos,produomusicalpopular,demandasintelectuais, mercado,eEstado.Talarranjosistmicocaminhounosentidodeumaprofissionalizaoda 28 cadeiaprodutivadamsica,quesefariasentirapartirdofinaldosanos1950.Operodo pioneiroabordadonesteprimeirocaptulo,portanto,relevanteparaastransformaesque ocorreramnofinaldosanos1950:foinesseperodoqueasinstituiesculturaisdapoca principalmente o rdio, a indstria fonogrfica e as entidades autorais se organizaram de forma apropiciarasofisticaoprodutivadosanos1960,almdetersidonesseperodoquese consolidaram as bases formais/estticas do samba que seriam rearticuladas pela bossa nova. Adiscussosobreaconfiguraodasindstriasdacultura,etambmsobreosgneros musicaisdesdeasprimeirasdcadasdosculo,faz-senecessrianestemomentodotrabalho (antesdaabordagemdoobjetopropriamentedito)justamenteparaqueseevidencieamudana deumafaseinicial,marcadapelaincipinciadessasindstriasedaprpriaestticadosamba, paraumasegundafase,emquefoipossvelmodernizaraproduomusicalapartirdas condiesestruturaiseestticasconfiguradasnestaprimeirafase.Afasepioneiradamsica popularproporcionouascondies,tantoestruturaiscomoestticas,quepropiciaramo surgimento da bossa nova e da idia de MPB, e por isso devem aqui ser abordadas. A mudana deumafaseparaoutranamsicapopularpodeserentendidacomoumregistrodentreos inmeros possveis das transformaes scio-culturais pelas quais o pas passou no decorrer do sculoXX.aquiquecreioresidiroteorsociolgicodotrabalho:abuscadacompreensoda significao mais ampla da MPB. Se a MPB foi um registro de sua poca (pois carregou consigo tantoasmarcasdeumatradiorecentecomoasproblemticasculturaismodernas),deve-se buscarumacompreensoampladasignificaodaMPBenquantoexpressomusicalescio-cultural. Acreditoquefoinesseperodopioneiroqueforamcriadasascondiesparaa autonomizaodocampodaMPB3.Nessesentido,ostrscaptulosquecompemaprimeira parte do trabalho se dedicam a fazer uma espcie de genealogia desse campo. O objetivo o de conferir morfologia ao ngulo de anlise adotado neste trabalho. 3 H trabalhos, como o de Fernandes (2010), que consideram haver um campo j delimitado nesse perodo: o campo da Msica Popular Urbana (MPU), sendo o samba sua principal manifestao artstica. O ngulo de anlise do autor seapianosintelectuaismicosquesurgiramnoperodo.Talabordagem,entretanto,noinviabilizaapresente perspectiva,poisocampodaMPBpoderiaserpensadocomoumsubcampodaMPU,cujoprocessode autonomizao se deu ao longo dos anos 60. 29 A formao da tradio do samba Asdiversasinflunciasquesecondensaramaolongodotemponamsicapopularfeita no Brasil, sobretudo aquela produzida na Bahia e no Rio de Janeiro a partir de populaes afro-descendentes,confluramparaaformaodogneromusicalqueseconvencionouchamarde samba. A variedade de elementos scio-culturais e musicais direta ou indiretamente assimilados pelo samba (fato que, por si s, j torna trabalhosa sua interpretao sociolgica), fez com esse processo no tenha se dado de maneira linear. A formulao rtmica do gnero que passaria a ser chamado de samba, bem como o processo de fixao de suas estruturas meldico-entoativas, foi permeada de contradies e conflitos scio-culturais, configurando um longo e tenso processo de sedimentao desse gnero. No se pode aqui dar conta de todas essas questes, j discutidas na bibliografia especfica sobre o tema. Mas necessrio abordar algumas delas, como por exemplo a questo rtmica do samba, elemento formal da msica que, como se ver, assume centralidade na discusso sobre o papel inovador da bossa nova no universo da msica popular brasileira. Umexcelenteestudosobreasorigensetransformaesrtmicasdosambafoifeitopor Carlos Sandroni em Feitio Decente (SANDRONI, 2001). O autor detecta que o samba carioca, emsuafaseinicial,tributriodouniversomusicaleideolgicodasegundametadedosculo XIX, caracterizado por danas de salo como o lundu, o maxixe e seus parentes prximos a polca-lundu, o tango brasileiro, entre outros. Nesse contexto do sculo XIX, conforme aponta o autor, a terminologia dos estilos musicais que figuravam entre as danas populares de salo (que subsidiariamagnesedosambanosculoseguinte)encontrava-seembaralhada.Talconfuso deve-seaofatodequeoouvintepercebiaummesmorecursortmicoemtodasessasdanas, recurso que continuaria sendo utilizado no sculo seguinte, sobretudo no samba. O autor defende a idia de que a sociedade carioca do sculo XIX percebia certa equivalncia entre tais estilos justamenteporquehaviacertaequivalnciaentreasfrmulasrtmicasutilizadascomo acompanhamentodessesestilos:todoseleseramfeitosdentrodoparadigmadotresillo.A caractersticafundamentaldotresillo,segundooautor,amarcacontramtricarecorrentena quartapulsao(...)deumgrupodeoito,queassimficadivididoemduasquase-metades desiguais(3+5)(SANDRONI,2001,p.30).Achamadasncope,torecorrentena bibliografia sobre o samba, seria, para Sandroni, uma variante derivada do tresillo (SANDRONI, 2001, p. 27 e 31). Conforme o autor demonstra, o paradigma do tresillo foi amplamente utilizado 30 no sculo XIX, e foi incorporado pelos Sambas pioneiros produzidos entre 1917 e 1929 (perodo em que os principais expoentes eram Donga, Sinh e Joo da Baiana), motivo principal pelo qual oautordizqueosambadesseperodopioneirofoitributriodouniversomusicaldasegunda metade do sculo XIX. AdiscussofeitaporSandroniremete-sediretamenteorigemdasncopena musicalidadebrasileira,assuntoquefiguranodebatesobreamsicapopulardesdeseus primeirospensadores.ParaMriodeAndrade(ApudZAN,1997,p.10),asncopejestava presente na musicalidade europia, masera usada como recurso estilstico aplicadoao universo meldico, no sendo central na estrutura musical. Outra explicao seria a de que a sncope teria surgidocomoumrecursocujafunoeratornaradanamenosprevisvelemaisdifcildeser executada por aqueles que no compartilhavam dos cdigos culturais dos negros, para a diverso dosnegrosqueparticipavamdasrodas(SODR,1998).Comosev,nohconsensosobrea origemdasncopenamusicalidadebrasileira.Poroutrolado,norestamdvidassobresua presenanouniversomusicalafro-brasileiro.NolivrodeSandroni,taldiscussolongamente exploradaepodeserresumidadaseguinteforma:emrelaoaouniversomusicalocidental (marcadopelacometricidadeepelaparidadertmicanadivisomtricadoacompanhamento rtmico4),ouniversomusicalafricanoseriamarcado,diferentementedoocidental,pela contrametricidade e pela imparidade rtmica.Nascategoriasclassificatriasdouniversomusicalocidental,taiscaractersticasda musicalidadeafricanaapresentavam-secomodesvionaordemnormaldodiscursomusical, desvio reconhecido no lxico europeu como sncope (SANDRONI, 2001, p. 20-21)5. No caso damsicapopularbrasileira,acontrametricidadeafricana(ousuadenominaoocidental sncope), tornou-se a regra (SANDRONI, 2001, p. 21). Assim, por sncopes que a cultura musical brasileira, especializada ou no, reconhece os elementos africanos na msica produzida noBrasil,emboraafusocriadaemsoloamericanofossealgodenovo,eigualmentenovas 4MetricidadeotermoqueoautoremprestadeKolinskiparadesignaracoincidnciaounoentreamtrica (sempreconstante)easvariaesrtmicas(nemsempreconstantes)deumdeterminadoacompanhamentortmico. Assim,cometricidadedesignaumacoincidnciaentremtricaeritmo,aopassoquecontrametricidadeindica umano-coincidnciaentreeles.Damesmaforma,paridadertmicaseriaapossibilidadededivisodeum compassoempartesiguais(porexemplo,4+4),eimparidadertmicaseriaaimpossibilidadedeumadiviso equitativa devido a pulsaes contramtricas (por exemplo, 3+5). (SANDRONI, 2001, p. 19 e segs). 5 Outra definio de sncope seria a acentuao rtmica do tempo intuitivamente fraco do compasso, geralmente o segundo num compasso binrio (HORTA, 1985, p. 353). 31 fossem as condies sociais que lhe deram lugar (SANDRONI, 2001, p. 23).A sncope, nesse novocontexto,notalqualencontradanamusicalidadeafricana,tampoucorepresentauma transposio simples para o continente americano. Ela muda de sentido, configurando um outro sistema que no mais africano nem puramente europeu (SANDRONI, 2001, p. 27). Sandroni, dessamaneira,identificaquemesmonohavendoconsensoentreospesquisadoressobrea origemdasncopenamsicabrasileira,oempregodapalavrasncopeparadesignaras articulaes contramtricas foi, no Brasil, to freqente que se transformou (...) numa categoria nativa-importada, como o caf e a manga (SANDRONI, 2001, p. 27). Seja como for, as formas sincopadasdeacompanhamentortmicosoreconhecidascomoumtraortmicocaracterstico da musicalidade afro-brasileira, desde as danas de salo como o lundu e o tango, at expresses musicais como o choro e o samba. Sandronidestacaaindaqueaaparenteconfusonadenominaodosestilosmusicais sincopados utilizados para as danas populares de salo no Rio de Janeiro do sculo XIX no se resolveuatmeadosdadcadade1920,comosurgimentodosambaedesuasprimeiras gravaesemdisco.Aoincorporarotresillocomoacompanhamentortmicosincopado caracterstico,osambadoperodopioneirofezenormesucessonoscarnavaisderuadoRiode JaneironoinciodosculoXX,contribuindoparaaidentificaoimediatadasncopeaonovo gnero. Se o samba se afirmava como algo genuinamente brasileiro, e sua caracterstica rtmica maismarcanteeraasncope,aconclusomaisimediataeraadequeasncopeerauma caracterstica inata da musicalidade brasileira. Nesse sentido, as gravaes em disco dos Sambas pioneiros(iniciadasoficialmenteem1917comPeloTelefonedeDonga6)contriburam enormementeparaqueaculturamusicalbrasileiraidentificasseasncopecomoalgo tipicamente brasileiro. Tal processo teria ocorrido graas s novas condies scio-culturais do Rio de Janeiro no incio do sculo XX, quando as antigas formas musicais importadas da Europa vigentesnoBrasilduranteosculoXIXjnobastariamsexpectativasmodernascriadas pelavidaurbanadosculoXX(SANDRONI,2001,p.83).Serianecessriocriaralgo tipicamentebrasileiroparaatenderataisexpectativas,papelaqueosambaseprestoumuito bem. 6 Uma anlise bastante pormenorizada sobre as diversas questes implicadas na gravao de Pelo Telefone, desde aalteraodaletraoriginalatapolmicasobreaautoria,encontra-senocaptulodemesmonomeemSandroni (2001, p. 118-130). 32 Asncopebrasileira,dessaforma,seriaaclulaconstitucionaldamusicalidadeque aquisedesenvolveuapoiadanasformasdesociabilidadeafro-brasileiras.Nohcontrovrsia emrelaocentralidadedasncopeparaasedimentaodognerosamba,noimportando tanto sua origem ou as reformulaes que sofreu em territrio brasileiro. Ainda no mbito dos elementos formais do samba, outros aspectos tornam-se relevantes discusso aqui empreendida por serem rearticulados a partir da bossa nova: a melodia e a letra da canobrasileira.Semaprofundardemaisodebateoquenosafastariamuitodofocodeste trabalho gostaria de pontuar as principais referncias ao tema.L. Tatit defendea idia de que namsicabrasileiraocancionistamaispareceummalabarista.Temumcontroledeatividade que permite equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia, distraidamente, como se para isso no despendesse qualquer esforo(TATIT, 2002, p. 9). A tensocriadana costura artesanal (TATIT,2004,p.143)entreaseqnciameldica(delinearidadecontnua)easunidades lingsticas (de linearidade alterada por vogais e consoantes) neutralizada pelo gesto cancional, que,aoestenderafalaaocanto,aparaasarestaseeliminaresduosquepoderiamquebrara naturalidadedacano(TATIT,2002,p.9).Orecursoutilizadoparatalcosturaapia-sena prosdiabrasileira:asdiferenasentreasonoridadedasvogais(quealongamotempo)ea sonoridade das consoantes (que causam um corte no tempo) so utilizadas para aparar as arestas na articulao entre melodia e texto entoado, fazendo com que a melodia reitere intuitivamente a inteno da mensagem. Ou seja, a maneira como se diz acaba sendo mais importante do que o que se diz. ParaTatit,aestruturameldicaepoticadosprimeirosSambas(quetiveramquefixar umaestruturaparapoderemsergravadosemdisco)derivariadogestocancionalpresente tambmnafaseanterioraosurgimentodosamba.Nessafaseanterioraosamba,ascriaes coletivaseramconstitudasporumrefroprincipal(fcildesermemorizadoerepetido),epor uma segunda parte, cujas estrofes eram improvisadas a partir das temticas e da fala cotidianas (e poressemotivo,erammaisdifceisdeseremmemorizadaserepetidasdoqueorefro).Isso faziacomqueascriaescoletivasfossemsemprediferentesacadareunio,poisorefroera semprelembradoerepetido,masasestrofeseramdiferentes,tendoemcomumapenasogesto cancional de costura artesanal entre melodia e fala. 33 No processo que levou gravao em disco da primeira cano classificada como samba carnavalescoPeloTelefoneem1917essaestruturacriadacoletivamentetevequesofrer alteraesparaseadaptaraomeioderegistro,quenocomportavaaduraoindefinidados improvisos:osrefrospermaneceram,masoimprovisodeulugaraestrofesdefinidas.Nesse processo, Sandroni identifica uma passagem do folclrico ao popular (SANDRONI, 2002, p. 118-130).AoanalisarosdiversosaspectosdaestruturamusicaldePeloTelefone,Sandroni mostracomosedeuaadaptaodaestruturamusicaldorepertriofolclrico(criaes coletivasconstitudaporrefrofixoeestrofesimprovisadas,comoorepertrioexecutadona saladejantardaTiaCiata,porexemplo)aosmeiosdedivulgaodisponveisnapoca partitura,letraimpressaegravaoemdisco.Doscomportamentoserelaescoletivasque tornarampossveisosurgimentodosamba,seriaprecisodestacarresduos,objetoscapazesde transitarentreosbiombosdasociedade(...),criandonovasrelaes(SANDRONI,2002,p. 119-120). Nesse sentido, Pelo Telefone seria um produto misto, uma bela colcha de retalhos integrandoelementosconsideradoscomopertencentestantoesferadofolclorecomodo popular(SANDRONI,2002,p.120).Osvestgiosfolclricosseriamosdilogosexpressos nas estrofes das quadras (que remetem prtica da improvisao circunstanciada pelo cotidiano). Jasquadrasquefogematalcarterdialgico(queutilizamrimasrepetidasquealudemao carnaval)seenquadrariamnatticadeDongacomvistaaosucessopopular,sendolegtimo suporqueforamfeitasdeliberadamentecomesseintuito(SANDRONI,2002,p.128).A apropriaoindividualnocaso,porDongadoselementosfolclricoscriados coletivamente,natentativadetorn-lospopularespormeiododisco,dariaorigemfuno de autor na msica popular brasileira. Assim,nosSambaspioneirostransformadosemmercadoria,comonocasodePelo Telefone,haveriaaconvivnciadeduasdicespoticasumafolclricaeoutra popular,estaltimainseridaparadiluiroselementosfolclricosqueimpediamumamaior circulao social (atravs do carnaval e do disco) do novo gnero. Conforme j foi dito, alm da estruturameldico-textualformadaporessasduasdices(quenofogemaosistematonal europeu), havia nesses Sambas pioneiros tambm o acompanhamento rtmico sincopado inscrito noqueSandronichamoudeparadigmadotresillo.Nolongocaminhodosambaembuscada fixao de suas estruturas formais, o samba pioneiro contribuiu para a fixao de uma estrutura 34 musicalqueperdurariaatporvoltade1929,quandoSandroniidentificaumamudanade paradigma na composio de Sambas. Nosepretendenestetrabalhoexplorartodososaspectosquecircunstanciamo surgimento e nacionalizao do samba. Optou-se aqui por selecionar os acontecimentos de uma partesignificativadesseprocessosocialqueoriginouosamba:aquelesocorridosnacidadedo Rio de Janeiro entre o fim do sculo XIX e o incio do sculo XX. Por ter sido a capital do Brasil desde o Imprio, e, portanto, o maior centro urbano brasileiro de ento, o Rio tornou-se o palco privilegiadodastransformaespoltico-econmicasdosculoXIXcomoaabolioda escravido(1888)eaproclamaodarepblica(1899),porexemploeventosqueincidiram decisivamente no processo de diferenciao social que subsidiou a gnese do samba7. Tendo sido feitatalopo,torna-sefundamentalcompreenderaslutassociaisdocenriocariocaquese expressaram culturalmente atravs do samba.SegundoLuisTatit,acriao,consolidaoedisseminaodosambagnero essencialmente urbano e socialmente marginalizado em suas origens8 ocorreram num momento histricoemquediversossegmentosdasociedadecarioca,deumaformaoudeoutra,atuaram nodelineamentodoperfilmusicaldonovognero(TATIT,2002,p.30-32).Contudo,este delineamento se deu atravs de um processo de luta social por integrao e distino. Basta nos lembrarmosdasfestasnacasadabaianaTiaCiatanaregiocariocachamada,poca,de Pequenafrica(dadaagrandeconcentraodeafro-descendentes).L,comoMunizSodr sugeriu (SODR, 1998), as prticas musicais da Bahia (que tambm sofreram um longo processo de maturao, sobretudo o samba de roda), eram trazidas para o Rio e re-significadas a partir de interessesdedistinosocial.Sincretismoetnuesseparaes,aomesmotempo,uniame afastavamosdiversossegmentossociaisesuasrespectivasmanifestaesartsticas, configurandoumterrenodelutascio-cultural(TATIT,2002,p.30-35)numasociedade 7Sabe-sequeouniversoculturaldonordestebrasileiroeseusinmeroselementosmusicais(comoocco,a embolada, o baio, o xote, e principalmente o samba de roda baiano) tambm constituam o rico cenrio cultural que precedeu a formulao do samba ainda que de formamarginal dada a perda de importncia econmica da regio nordeste.Mas,peloprotagonismodoRiodeJaneironastransformaesdamsicapopularbrasileira(sejaele real ouforadopelahistriaoficial),etambmpelanaturezaeobjetivosdestetrabalho,deu-seprioridadeaoprocesso scio-cultural verificado no Rio, e os elementos culturais nordestinos sero trazidos para a argumentao na medida em que eles se inserirem no cenrio carioca. 8 Sobre o controverso assunto, que no ser discutido neste trabalho, vide principalmente Vianna (2004a) e Sandroni (2001). 35 extremamente marcada pelas desigualdades de um sistema agro-exportador escravista. Ainda que o exemplo da casa da Tia Ciata possa ser uma reconstruo metafrica da realidade, ele retrata com eficcia as lutas scio-culturais que efetivamente ocorriam naquele momento. A msica produzida e reproduzida na casa da Tia Ciata (e de tantas outras tias baianas quemoravamnamesmaregiodacidade)seconfigurava,paraalmdefruiosonora,como estratgiadelutasocial,umavezqueelamanifestava,deumlado,amarginalidadecultural dos grupos dominados, e, de outro, a cidadania cultural dos segmentos sociais melhor inseridos naestruturaeconmica(SQUEFF&WISNIK,2004,p.160)9.Assim,oquintalouterreiroda casaerareservadosmanifestaesmaisestigmatizadasemarginalizadas,comoasbatucadas ligadassprticasreligiosasdosnegrosmaisvelhos;noscmodosdofundo,osnegrosum poucomaisinseridossocialmenteexecutavamonascentesamba;enasaladevisitasenos cmodosdafrente,eramexecutadoslundusepolcas(estastocadasnosmaneiraeuropia, comotambmemsuaformachorosadeexecuonoBrasil10)parasegmentossociaismais elitizados.11 Sobreainteraodediversossegmentossociaisnosurgimentodosamba,J.R.Zan afirmaqueosurgimentodosamba,queconjugouasncopeafro-brasileiraeosistematonal europeu12, fez parte de uma ttica de resistncia dos negros s estratgias de dominao cultural 9 Sandroni tambm se dedica longamente ao assunto. Vide, por exemplo, os captulos Da Bahia ao Rio, Da Sala deJantarSaladeVisitas,ePeloTelefone(SANDRONI,2001,p.84-130).Neles,oautorproblematizade maneira mais aprofundada as lutas scio-culturais acima referidas. 10Sobreochoroenacionalismomusical,vide:Squeff&Wisnik(2004),eaindaZan(1997,p.18-19).Sobreas diferenas entre choro, samba e samba de partido alto, vide Sandroni (2001, p. 100-104). 11 Sandroni tambm se dedica ao assunto da funo diferenciadora do samba e do processo de deslocamento social e de nacionalizao pelo qual passou ognero ao longo das dcadas. Para tanto, um dos recursosmetodolgicos utilizadospeloautorfoianalisaraproduoliterriadoperodo,ondeosambaapareceinicialmente(noromance Til,deJosdeAlencar)comocoisadenegros,eposteriormente(emOCortio,delvaresdeAzevedo)como cdigoculturalcompartilhadoporoutrossegmentossociaisquenoapenasodosescravoseex-escravos.Oautor identificaqueosambapassoudemanifestaopopularrural(identificadaaofolcloreesorigensbaianas) produoculturalurbana(contextoemqueosambapassaaconjugarcaractersticasfolclricasepopularespara adaptar-seaonovoformatodedivulgao,odisco). Tal convergnciadofolclricoe dopopularnoprocessode nacionalizaodosamba(mbitosdistintosmasestreitamenterelacionados,eporissomesmoindevidamente confundidos)fezcomqueonovognerosebeneficiassedetodaacargapositivaatribudapelosintelectuais modernistasaofolclore.Oassuntoserretomadoadiante.Sobreosexemplosliterriosutilizadospeloautorvide Sandroni (2001, p. 84-117). Sobre a dinmica das festas na casa da Tia Ciata em relao aos segmentos sociais, vide Sandroni (2001, p. 100-117). 12 J. R. Zan assinala que havia no Brasil, desde a colnia, intensa circularidade entre as culturas de elite e popular. Oconceitodecircularidade,recuperadodohistoriadorCarloGinzburg,refere-secomunicabilidadeentreessas esferas,propiciandoqueasclassespopularesincorporemeredefinamelementosdaculturaerudita.(GINZBURG Apud ZAN, 1997, p. 7). 36 dos brancos: ao mesmo tempo em que se acatava o sistema tonal europeu, era realizada, atravs dasncope,umadesestabilizaodessesistema,fazendodasncopeumatticadefalsa submisso(ZAN,1997,p.10).Assim,osgnerosmusicaisdoperodotrazememseus aspectos formais as marcas das trajetrias que percorreram ao longo das quais foram apropriados e reelaborados por diferentes segmentos sociais (ZAN, 1997, p. 7). No processo de consolidao do samba como gnero caracterstico da identidade cultural brasileira13,ofazermusicalexpressava-seprincipalmenteatravsdeumalutasocial.Nesse primeiromomentodeformaodosamba(nofinaldadcadade1910einciodadcadade 1920,emqueaestruturasocialherdadadacolniacomeavaasecomplexificaremfunodo aumentodastrocascomerciais,daincipienteindustrializao,edoprocessodeurbanizao), ocorreoqueWisnikchamoudedevassamentodosbiombosculturais(SQUEFF&WISNIK, 2004,p.159-162).Emoutraspalavras,adiversificaodaestruturasocialproporcionouuma intensificao dos fluxos simblicos entre os diversos estratos sociais situados entre as elites e as camadaspopulares14.Odilogoentreessesnovosestratosnosurgecomotentativade integraopacficaesupressodasdiferenasdeclasse.Essedilogoculturalentrediferentes estratos constitui-se numa estratgia de legitimao social a partir da cultura, e surgiu a partir da necessidadededistinosocial.Oartifcioutilizadoparatantofoiodaconciliaoentre interessesaparentementeirreconciliveis:oscontedosculturaispresentesnasociabilidade exemplificadapelasfestasnacasadaTiaCiataforammobilizadosportaisestratospara,ao mesmo tempo, haver uma aproximao e uma distino cultural entre eles. 13Humaimportantebibliografia,queaquinopoderserexplorada,sobreasorigensesobreaconsolidao formaldosamba,etambmsobreseucontraditrioemisteriosoprocessodetransformaoemgneromais caracterstico da identidade nacional. Refiro-me principalmente a Vianna (2004a), e tambm Moura (2004), SODR (1998), Sandroni (2001), Caldeira (2007), e Zan (1997). Desta bibliografia, a tese que me parece a mais pertinente e amaisaceitapelosestudiososdoassunto,equefoiadotadanospargrafosaseguir,adeHermanoVianna. Resumidamente falando, o autor retoma a tese de E. Hobsbawm sobre a inveno das tradies para defender a idia dequeosambaseriafrutododilogodegrupossociaisheterogneos(entreelesmsicospopulareseintelectuais) que,cadaqualsuamaneiraecomseusmotivosparticulares,teriamcriadoognerosambaconcomitantemente suanacionalizaoesuatransformaoemsmbolomaiordaidentidadeculturalbrasileira(VIANNA,2004a,p. 161-162).Nestetrabalho,osmeandrosdesseprocessonopoderoseraprofundados,dadososlimitesdorecorte aqui proposto. 14J.R.ZanressaltaquedesdeoBrasilcolnia,emfunodacircularidadeentreasculturasdeeliteepopular, diversas manifestaes culturais populares desse perodo foram efetivamente aceitas e reconhecidas pelos extratos sociais superiores (...) (ZAN, 197, p. 7). Este processo foi marcado pela dialtica entre acomodaes e conflitos, j diagnosticadaporVianna(2004a),Sodr(1998),Squeff&Wisnik(2004),Tatit(2004),eZan(1997).As acomodaes,entretanto,nofizeramdesaparecerosconflitos oriundos da estruturasocial herdada do escravismo. O tema dos biombos culturais nessa sociedade, que aqui no poder ser desenvolvido, aprofundado por Wisnik (SQUEFF & WISNIK, 2004). 37 Aintensificaodosfluxossimblicosentreosdiversosestratossociaispodeser verificada tambm no desenvolvimento do choro, gnero que se constituiu a partir da execuo de polcas europias maneira brasileira. Era praticado por msicos geralmente intuitivos e com poucaeducaomusicalformal,masquetinhamalgumaaspiraoerudita,comoErnesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, e posteriormente Pixinguinha, por exemplo. Dentro da hierarquia delegitimidadesdosgnerosquecompunhamapaisagemsonoradoinciodosculoXX,o choroocupavaumaposiointermediria,poisosmsicoseram,emgeral,bemaceitospelas classesmdiasurbanas,oque,juntamentecomosamba,contribuiuparaaaproximaode msicos eruditos e populares. Um bom exemplo dessa aproximao o de Villa Lobos, msico eruditoligadoaoModernismoquenoescondeuainflunciaqueochorotevesobresuaobra (ZAN, 1997, p. 19). Issotrazduasconseqnciasimportantesparaadiscussoaquiempreendida:aomesmo tempo em que passa a haver um relaxamento das restries impostas s prticas populares (que buscavamrefinar-secomoestratgiadedistinosocial,aexemplodocarnaval),passaahaver ummaiorinteresse,sobretudoporpartedeintelectuaiseartistasmodernistas,pelaproduo cultural popular. Isso propiciou um maior reconhecimento do choro e do samba como elementos musicais constitutivos da identidade nacional que estava sendo construda (e, para os crticos da Revista de Msica Popular veiculada nos anos 1950, localiza-se neste momento o marco zero da tradio musical que deveria ser recuperada para combater os estrangeirismos veiculados pelo rdio). Paralelamente, por mais que o padro composicional do samba estivesse sendo fixado por msicos populares geralmente sem formao musical, eram os intelectuais oriundos da elite que realizavamacrticaculturalcapazdearticularasesferaseruditasepopularesnaconcepode identidade nacional que estava sendo construda (e aqui se identifica, portanto, o lugar social da crtica cultural nos anos 1920: a esfera da produo cultural erudita). nesse contexto que ganha foraomovimentomodernistaenacionalistanamsicaerudita(etambmnaliteratura),que, segundo, Wisnik, foi capaz de sinfonizar os diferentes elementosculturais do pas (SQUEFF& WISNIK, 2004, p. 162).Oqueestavaemjogonessetensoprocessodeconsolidaodosambaenquantognero era a distino entre os diversos estratos sociais nele envolvidos, tanto dos segmentos populares como dos mais elitizados. Cada um deles contribuiu para tal processo de uma maneira especfica. 38 Enquantoaselitescariocasenvolvidasnasedimentaodosambaincorporavamoselementos populares numa estratgia de dominao social atravs de contedos culturais, por outro lado, as camadaspopularesquebuscavammaiorinserosocial,aore-significaremelementosmusicais deorigemeuropia(almdaquelesreconhecidoscomoresquciosafricanos,comoasncope), criaramogneroque,apartirdosanos20,seriareinterpretadopelaintelignciaartstica paulista15. Mas isso no quer dizer que os conflitos sociais foram amenizados. O que ocorreu foi adiferenciaodossignosdeclasse,etaldiferenciaoocorria,estrategicamente,nosdois sentidos: tanto por parte do plo dos dominados (em que o refinamento dos contedos culturais representouumaestratgiadefalsasubmissoeresistncia),comoporpartedosplos dominantes(emqueointeressepelopopularrepresentouumaestratgiadedominao) (SQUEFF & WISNIK, 2004, p. 160).Talincorporaodopopularrealizadapelaselitescariocasenvolvidasnoprocessode consolidaodosamba,portanto,nofoidespretensiosa:talestratgiacarregavaconsigouma tentativadedominaosocialqueseutilizavadouniversodaproduoculturalcomorecurso. Posteriormente,aincorporaodoelementopopularsofreuumamudanadeperspectiva:a inteligncia artstica paulista envolvida com o Movimento Modernista passa a se preocupar com a incorporao do popular sob um ponto de vista artstico propriamente dito, revertendo-se numa estratgia menos direta de dominao social. Houve, assim, por parte dessa inteligncia artstica, umatentativadecriaodeumaidentidadeculturalqueconfeririasmanifestaesartsticas eruditas,aomesmotempo,apeculiaridadedodadolocal(incorporadoere-significadoapartir dosinteressesdedominao)eauniversalidadedosprocedimentosartsticoseruditos.Tal procedimento,segundoMriodeAndrade,seriacapazdeinseriraproduomusicalerudita brasileiranocenriointernacional,umavezqueelapassariaafiguraraoladodeoutrasno panoramainternacional,levandosuacontribuiosingularaopatrimnioespiritualda humanidade (ANDRADE Apud TRAVASSOS, 2000, p. 33-34). Esse seria o passaporte para a modernidademusicalnosanos20:incorporarodadolocalsformasexpressivaseruditasque caracterizavam a sensibilidade universal da modernidade capitalista. 15 No caso de Mrio de Andrade, havia uma valorizao muito maior das manifestaes folclricas rurais do que das urbanas.MasnocasodeVilla-Lobos,nosepodedizerqueelenosofreuinflunciasdamsicapopularurbana, especialmente do choro. 39 Seosambajhaviacontribudoparaaaproximaodesegmentossociaisdistintos,a produo intelectual do incio do sculo XX tambm contribuiu para tal aproximao, atravs de umanovainterpretaodoelementopopularnaculturabrasileira.Asdiferentescorrentesde pensamento inauguradas no incio do sculo XX (representadas pelos Modernistas, por Gilberto Freyre,epelavertenteacadmicaquevaideCaioPradoeSrgioBuarqueaFlorestane Antonio Candido), ao tentarem se distanciar da discusso raciolgica do sculo XIX, acabaram porredefinirasbasestericasdadiscussosobrepovo,nao,eidentidadenacional.Sea miscigenaoeraatentovistacomomazelasocial,elepassa,apartirdessasnovas interpretaes,aserconsideradacomoalgopositivo,comoumasurpresaquesurgeda precariedade, como remdio, como originalidade de um mundo ainda encantado. E sendo o sambaamanifestaoartsticamaisrepresentativadaoriginalidadeculturalproduzidapela mestiagem, ao longo dos anos 1930 e 1940 ele gradativamente vai se convertendo em smbolo musical da identidade nacional (VIANNA, 2004a). Nas palavras de Zan: Oreconhecimentodosambacomoumamanifestaoculturalmestiaedeabrangncianacional vaisedarnointeriordeumaconstruotericamuitomaisamplaqueprocurademonstrarquea mestiagem um processo saudvel, positivo, que aponta para a consolidao da unidade nacional fundadanaidiadeumaculturabrasileira.dessaformaque,gradativamente,osambavaise convertendo de smbolo tnico em smbolo nacional. (ZAN, 1997, p. 20). Aconversodosambaemsmbolonacional,dessaforma,nosvemaoencontrodos interesses de setores das elites em atenuar a polaridade entre as classes e construir a unidade da nao(ZAN,1997,p.19),comoeletambmcentralparaamediaodosconflitosentreo Estadoeasmassasurbanasnasdcadasde1930e1940.Almdisso,osamba(eaesferada cultura popular em geral, incluindo o futebol) parece conter os elementos que os intrpretes do Brasil procuravam para justificar seus posicionamentos tericos na tentativa de compreenso da entidade Brasil. A sncope do samba, que altera a acentuao rtmica dos compassos, pode ser compreendida, para alm de estratgia malandra e original de insubordinao social, como um desvio imprevisto que se torna regra e elemento identitrio da cultura brasileira. Ao confundir a percepo do tempo forte do compasso, ela coloca o ouvinte beira da vertigem, sendo difcil se distinguiraordemdadesordemnaorganizaomusicaldotempo.Semodernistas,ensastase intelectuais pretendiam, cada qual sua maneira, desvendar o mistrio da originalidade brasileira que vasa as estruturas sociais, o samba pode assumir o posto nacionalmente reconhecido de smbolodessemistrio.Osambaapresentaoimprevisto,masnoforneceafrmulaparase adivinhar tal imprevisto. Ele no resolvea tenso entre ordem e desordem, pois a vertigem que 40 proporcionanofavorecearevelaodessemistrio.Aocontrrio:cristalizaessemistrio imprevisvel em forma de smbolo da identidadenacional, que se enrazaculturalmentea partir da tradio exaltada e re-significada pela indstria cultural. Nessemomentoinicialdesedimentaodoselementosformaisdosamba,emquea fruioaindasedavaaovivosemamediaodosmodernosmeiosdecomunicao, evidenciava-se,portanto,umalutasimblicaquesecaracterizavamaisporsuasdemandas sociais, do que por questes circunscritas a um universo artstico propriamente dito. As questes eminentemente artsticas relativas ao processo de incorporao de elementos eruditos e populares namusicalidadeparaaconstruodeumaidentidadeculturalbrasileiracolocava-secomo problemticaesferadaproduoculturalerudita,vistoqueasmotivaesdaesferapopular eramcircunscritasaouniversosocial.Nositensaseguir,procuropontuarcomoamsica popular,especialmenteosamba,foiseconfigurandoparalelamenteaodesenvolvimentodas indstrias da cultura. As indstrias da cultura no debate cultural NoBrasil,odelineamentodamsicapopularurbana,desdeosambadasdcadas pioneirasatamodernamsicapopulardosanos60e70,deu-senumcontextoemqueos veculos de comunicao tambm se desenvolviam e adquiriam contornos peculiares realidade scio-cultural brasileira. Neste item, procuro colocar em evidncia como as questes relativas indstriaculturalforamincorporadasaodebateacadmicosobreaculturabrasileira,para, posteriormente, iniciar a argumentao sobre o arranjo sistmico das indstrias da cultura e como tal arranjo influenciou a dinmica dos diversos gneros populares do perodo. Odisco,eprincipalmenteordio,forammeiosfundamentaisparaoenraizamentodo sambanaculturamusicalbrasileira.Enoapenastrabalhosespecficossobremsicapopular podemfazertalafirmao.Aimportnciadaindstriaculturalnamodernizaodopasena reconfigurao do debate em torno da identidade cultural foi ressaltada em trabalhos que no se debruaramespecificamentesobremsicapopular.Atemticadamodernizaodasociedade brasileira j foi colocada por Renato Ortiz em Cultura Brasileira e Identidade Nacional (2006), e retomadaemAModernaTradioBrasileira(2001).Almdodebatesobreaquestoda 41 identidadenacional(exploradanumaperspectivahistricaemCulturaBrasileira),emA Moderna Tradio foi inserida a problemtica de como tal identidade, tradicionalmente pautada peladiscussodonacionaledopopular,sereconfigurouapartirdeumparticularcontextode desenvolvimentodaindstriaculturalnoBrasil.Paratanto,oautorrecuperaatemtica desenvolvidaanteriormenteporeleemCulturaBrasileira...,erecolocaaquestoemnovos patamares, apontando para a importncia da relao entre, de um lado, a tradio do pensamento brasileirosobreacultura(quedirecionouodebateparaquestesemtornodoseucarter nacionalepopular),edeoutro,opeculiarprocessodemodernizaodasociedadebrasileira (apreendido atravs do desenvolvimento da indstria cultural no Brasil). Esta relao, segundo o autor, teria, num primeiro momento, escapado aos estudos acadmicos sobre a dinmica cultural brasileira,queatentavammaisparaocarterpopularenacionaldacultura,ouparaocarter alienantedaindstriaculturalimplantadanoBrasil.Fugindodestapolaridadeinterpretativa,e recuperandoaperspectivadeOrtiz,pretende-seaquidiscutirasformaspelasquaisodebate artstico implicado na MPB (que carregava as tradicionais problemticas em torno do nacional e do popular, mas ao mesmo tempo, era travado no interior da indstria cultural) teria contribudo paraqueopensamentosobreaculturabrasileiranomaisrestritoesferaeruditaouao universoacadmicoincorporasseasquestesecontradiesrelativasmodernizaodas foras produtivas no mbito da cultura. A MPB, entendida como nova prtica de crtica cultural, teria colocado ao pensamento crtico no apenas questes herdadas da bagagem modernista. A MPB(juntamentecomoutrasreasdaproduocultural,comooteatroeocinema),porter contribudoparaaefetivaconsolidaodaindstriaculturalnopas,teriaevidenciadoao pensamentocrticoalgumasdascontradiesinerentesveiculaodessecontedocultural diferenciado pelas indstrias da cultura. Neste trabalho defendo que uma das formas pelas quais sedeutalarticulaoentreotradicionalpensamentosobreaculturabrasileiraeaindstria culturalfoiatravsdaMPB,queaomesmotempoemque,voluntariamenteouno,resgatoua bagagem modernista e colocou a discusso cultural em novos termos, contribuiu tambm para o desenvolvimento de algumas das indstrias da cultura16. Assim, o desenvolvimento da indstria cultural insere-se nesta discusso de duas formas: primeiramenteporque,comosepodededuzirapartirdasafirmaesdeOrtiz,foiapresena 16 A peculiar relao entre a MPB dos anos 60 e as indstrias da cultura foi desenvolvida por Marcos Napolitano e ser retomada em momento oportuno. Vide Napolitano (2001). 42 cada vez maior dessa indstria na vida cultural do pas que reorientou o tradicional pensamento, iniciado no Modernismo, sobre a produo artstica brasileira. Por exemplo: se no incio dos anos 60asinterpretaessobreascontradiesinerentesindstriaculturalerampolarizadasem torno do papel alienante dos meios tcnicos, ou da sua utilidade para a veiculao de contedos culturaispopularesenacionaisquecontribussemparaaemancipaopopular17,apartirdo tropicalismoessadiscussoaltera-sesignificativamente.Semquenenhumdessesaspectos deixassedecaracterizarasindstriasdacultura(aomenosat1968,quandooAI-5colocou srioslimitesveiculaodecontedosculturais),otropicalismo,aoincorporaraguitarra eltrica (to smbolo do nosso colonialismo quanto a atuao das indstrias da cultura), tambm incorporou imagem do Brasil que se recriava naquele momento a modernidade tcnica da qual aindstriaculturaleraportadora.Ditodeoutraforma,otropicalismo,emsuacurtaexistncia enquanto movimento artstico, contribuiu para que a indstria cultural fosse pensada de maneiras diferentesdastradicionaispolarizaes,sendopossvelpens-laenquantocaractersticado processobrasileirodemodernizaocultural.Aoreunirfragmentosarcaicosemodernosda cultura brasileira numa narrativa no linear, o tropicalismo logrou incorporar a modernidade das indstrias da cultura identidade cultural brasileira. Emsegundolugar,odesenvolvimentodaindstriaculturalinsere-senestadiscusso porqueoexamedonveldeprofissionalizaodessasindstriasumdosparmetrosquese podelanarmoparaavaliaronveldeautonomizaodeumcampodeproduosimblica. SegundoBourdieu (2001, p. 100), existem trs condies para que um determinado campo seja constitudo:aexistnciadeumpblicoconsumidorsocialmentediversificado;a profissionalizaotantodosprodutoresdebenssimblicoscomodosempresriosqueo comercializam; a diversificao das instncias de consagrao e difuso na luta por legitimidade (oque,nocasodaproduomusical,pressupeoregistrofonogrficoesuadistribuio ampliadapelordioeposteriormentepelaTV).Acontemplaoounodessascondies ser analisada aps ter sido apresentado alguns aspectos da indstria cultural no Brasil, para que 17Sobreoiderionacional-popularnaculturabrasileira,videprincipalmenteSqueff&Wisnik(2004),Ridenti (2000), e Ortiz (2001 e 2006). A problemtica relao entre contedos culturais emeios tcnicos, contudo, nofoi umprivilgiodageraodosanos60.OprprioMriodeAndradejsedeparavacomaquestonaocasiodas MissesdePesquisasFolclricas(seamodernidadecapitalistacorroiaatradiopopularquemalseformara,ela tambmfoiaresponsvelporseuregistrofsico).Poroutrolado,Mriodefendiaquediscosefongrafoseram essenciaisnoensinodeEstticaeHistriadaMsica,oumesmonoensinodeinstrumentos(ANDRADEApud TONI, 2004). 43 se possa relacionar as etapas da racionalidade tcnica dos meios s etapas da profissionalizao dos msicos e demais agentes do campo. Este cruzamento de informaes, que tambm inclui asquestesrelativasautonomiaartstica,tornarpossvelidentificaromomentoda autonomizaodocampodaMPB,etambmdequaisformasasindstriasdaculturaatuaram como instncias de legitimao paralela ao campo. Dessaforma,oconceitodeindstriacultural,talcomocunhadoporT.Adorno(1985), no seria a melhor forma de abordar o conjunto dessas questes, dada a relevncia dos processos de legitimao simblica18 da MPB, e tambm pela peculiaridade do contexto brasileiro (em que aTVeaindstriafonogrficacontriburam,aomenosat1968,paraaconsolidaodeum segmentomusicalqueenvolviacrticaculturalnumcontextopolticomarcadopelo autoritarismo).Oconceitoseraquiutilizadocomoumaconstatao,apartirdaqualsepode interpretar a racionalidade do desenvolvimento dos meios tcnicos. Se o objetivo deste item o deavaliarcomoadiversificaodasindstriasdaculturaatuounaconsolidaodatradio musical e naautonomizao de um campo, no se poder balizar a discusso apenas pela viso apriorstica de Adorno. Entende-se que a esfera da produo massificada e estandardizada uma dimenso fundamental da produo cultural, e que se impe tambm ao produto MPB, mas sua 18 Sobre o assunto, vide Eagleton (1997, p. 115-142). O autor destaca as diferenas das obras de Adorno e Bourdieu a partir de uma interpretao de como o conceito de ideologia foi incorporado obra de cada um deles.Adorno, segundo Eagleton, se apia no mecanismo de troca de mercadorias para dizer que o mecanismo abstrato dessa troca, no plano da superestrutura, a prpria ideologia, pois ela equipara mercadorias que so incomparveis. E ao realizar essafalsaequivalncia,aideologiaparaAdornoseriaumaformadepensamentodeidentidadeumestilo verdadeiramenteparanicoderacionalidade,quetransmutainexoravelmenteasingularidadeeapluralidadedas coisasemmerosimulacrodesiouqueasexpulsaparaalmdesuasfronteiras,emumatodeexclusodominado pelo pnico da diferena (p. 116). E para Adorno, a arte entendida enquanto alta cultura seria a nica maneira derecuperarono-idntico,afirmandoasparticularidadescontraatiraniadatotalidadenica(sendoaarte popularoopostodisso,ouseja,areafirmaoconstantedomesmo,daidentidade).JBourdieupreocupa-semais com os mecanismos atravs dos quais a ideologia toma conta da vida cotidiana, desenvolvendo para tanto o conceito dehabitus(emqueasaesindividuaissoobjetivamenteregulamentadassemseroprodutodeobedincia conscientearegras).Bourdieu,diferentementedeAdorno,compreendecomonaturaliza-seumaarbitrariedadea partir das aes individuais, e no a partir da onipresena da racionalidade instrumental dos meios de comunicao. E para Bourdieu, o reconhecimento dessa arbitrariedade seria o reconhecimento da legitimidade de um dado poder, que se torna assimuma violncia simblica. Esta interpretao de como aideologia incorporada vida cotidiana pelos prprios agentes sociais (e no apenas por uma fora externa a eles, que anula a significao cultural de suas formas de auto-representao artstica) que torna o referencial terico de Bourdieu mais apto para a compreenso daformadearteaquiemquesto:aMPB,porsuarelaocomumdebateintelectualmaisamploeporsua reconhecidasignificaocultural,enquantoartepopular,noseriasimplesmenteumprodutodcildominao ideolgica da indstria cultural. Para compreender a MPB do ponto de vista adotado nesta pesquisa necessrio um referencial terico apto a perceber a ideologia no como algo mecanicamente imposto. necessrio um referencial capazdeperceberaideologiaenquantoarbitrariedadenaturalizadapelasprticasindividuaisdosagentes, naturalizaoquesereverteemestratgiassimblicasdelegitimaodessaarbitrariedade(sempresustentadapor um capital simblico) pelo reconhecimento de um poder num determinado campo de atuao. 44 compreensoapenasapartirdoconceitodeindstriaculturalinsuficienteparadarcontados objetivos aqui propostos e da multiplicidade de aspectos quecircunstanciaram a MPB dosanos 60. Se a problemtica sociolgica que motivou a pesquisa refere-se aos processos de legitimao de determinado segmento da produo cultural brasileira que se situa no limites entre a produo culta ea popular, oconceito de indstriacultural no seria de fato a melhor ferramenta para se analisar tais processos. Mesmo porque, deve-se considerar a especificidade desse objeto: No Brasil, a tradio da msica popular, pela sua insero na sociedade e pela sua vitalidade, pela riquezaartesanalqueestinvestidanasuateiaderecados,pelasuahabilidadeemcaptaras transformaesdavidaurbano-industrial,noseoferecesimplesmentecomoumcampodcil dominaoeconmicadaindstriaculturalquesetraduznumalinguagemestandardizada(...). (WISNIK, 2004, p. 176). Nessesentido,adiscussosobreindstriaculturalrealizadanesteitemdotrabalhono temporobjetivofazerumaavaliaosobreainflunciaideolgicadosmeiostcnicosno contedo das canes, como outros importantes trabalhos j o fizeram19. O objetivo aqui o de apresentar,aindaquesumariamente,oarranjosistmicodossegmentosmaisimportantesda indstriaculturalparaaproduoecirculaodamsicapopular:ordio,odisco,e, posteriormente, a TV. Sero priorizados os aspectos mais relevantes discusso aqui proposta: o tipodeprogramaoveiculada(paraacompreensodecomoatradioseconsolidouequais eramosgnerosveiculadosantesdaeclosodabossanova);osdadosnumricostrazidospor algumas das instituies da indstria cultural, como as entidades autorais (que ajudam a avaliar a produodosgnerosmusicaisnoperodo);eonveldedesenvolvimentodosmeiostcnicos antesedepoisdabossanova(paraquesepossacompreenderopapeldaindstriaculturalna autonomizaodocampodaMPB).Sendoestesosaspectosmaisrelevantesparaadiscusso 19Estesaspectosforamtratados,porexemplo,nostrabalhosdeTinhoro,direcionadoporumnacionalismode esquerdaquevnaindstriaculturalumaformadeapropriaodaculturapopulargenuinamentebrasileirapelos segmentos da elite; de Carlos Sandroni; Hermano Vianna; Jorge Caldeira; Roberto Moura; e na tese de doutorado de Jos Roberto Zan, que relaciona a indstria cultural ao desenvolvimento do mercado de bens simblicos: (...) se, de umlado,[aindstriacultural]permitiuqueela[amsicapopularurbana]fosseseimpondogradativamentecomo manifestaoculturalcapazdeinfluircomcertavantagemnessecampodeforas,poroutro,atuoucomomeiode massificao/estilizaodessamanifestaocultural,diluindoasdiversidades,atenuandoosconflitosinerentesaos seusespaossociaisdeorigemeimprimindo-lhenovospadresestticos,tornando-amaispalatvelparaum pblico mais amplo. Zan tambm desenvolve a perspectiva do papel estratgico do rdio na mediao dos conflitos entre o Estado e as massas urbanas nos anos 1930, tendo o samba absorvido as demandas da disciplina do trabalho impostapelogovernodeGetlioVargas.Sobreummomentoposteriordaproduomusicalpopularbrasileira, MarcosNapolitanointerpretaaMPBdosanos1960comoumcampoprivilegiadoparaacompreensodas contradies inerentes msica popular, que se colocava num espao delimitado pelo engajamento poltico e pelas demandasdaindstriacultural.ViderespectivamenteTinhoro(1997e1998),Sandroni(2001),Vianna(2004a), Caldeira (2007), Moura (2004), Zan (1997, p. 20), e Napolitano (2001). 45 aquiproposta,ficam,porora,emsegundoplano,outrosaspectosdovastouniversodacano popular e de seu relacionamento com as indstrias da cultura. Panorama geral dos meios tcnicos Osmeiostcnicossempredesempenharamumpapelestratgiconaconfiguraoda musicalidadebrasileira,desdeseusprimrdios(numcontextoemqueanascenteindstria fonogrfica optou por gravar o popularesco samba, e no o refinado choro, em virtude de o sambasermaistocadonasruasepoderpotencializaroalcancedodisco,mesmosendoos aparelhos reprodutores caros e restritos aos segmentos da elite20) at pelo menos a configurao dotipode msicapopularurbanachamadadeMPB.Noinciodoprocessodeimplantaodas indstrias da cultura no Brasil, os meios mais importantes eram a indstria fonogrfica e o rdio. Estesmeios,segundoainterpretaodeRenatoOrtiz(2001),teriampassadopordoisperodos distintos de desenvolvimento: um relativo s dcadas de 1940 e 1950, e outro referente ao final dosanos1960.Segundooautor,antesdadcadade1940jerapossvelacharmeiosde comunicaodemassanoBrasil.Mas,apresenadetaismeiosnopodesertomadacomoa efetivao de uma cultura de massa. Para haver uma cultura de massa, no basta a presena dos meios, necessrio que toda a sociedade se reestruture para que esses meios adquiram um novo significado e uma maior amplitude social (ORTIZ, 2001, p. 38). Assim, s na dcada de 40 que tem incio no Brasil o processo de massificaoda cultura, devido consolidao da sociedade urbano-industrial que propiciou a modernizao de alguns setores produtivos, incluindo aqueles relacionados cultura. Ainda assim, e apesar do incremento do mercado consumidor durante as dcadas de 40 e 50,a industrializao restrita a determinados setores, no se estendendo a toda a sociedade. Isso revela incipincia da indstria cultural nesse momento inicial, ainda que ela j tivesse iniciado seu processo de consolidao (ORTIZ, 2001, p. 45). Deve-se considerar tambm a fraca diferenciao entre as esferas de circulao restrita e ampliada no Brasil at pelo menos o fim dos anos 50, visto que no Brasil as condies materiais damodernizao,diferentementedocontextoeuropeu,notornarampossveluma autonomizaoefetivaentretaisesferas(ORTIZ,2001,p.26-28),eportanto,noteriahavido 20AafirmaodeLuisTatit,empalestraintituladaOqueCano,ministradanoCursoMPB oferecidopela Revista Cult (SP), em 07/08/2007. 46 uma distino ntida entre seus respectivos pblicos. Essa caracterstica do contexto brasileiro s sealterariacomodesenvolvimentoeconsolidaodaindstriaculturalnosanos60e70(na segundafasededesenvolvimentodestacadaporOrtiz),emqueaelevaodopatamar tecnolgicodasindstriasdaculturaeosignificativoincrementodopblicoampliado contriburam para a formao de um pblico que pode ser considerado de massa. claro que a produoradiofnicadosanos50japontavaparaaformaodeumambientemassivo.Mas deve-se fazer a ressalvade que ordio nos anos50 estavacircunscrito ao universo urbano es grandescidadesdopas,faltando-lhejustamenteocarterintegradorcaractersticodaindstria cultural que s seria atingido no decorrer dos anos 60 e 70, tendo a TV papel primordial nessa integrao.EoambientemassivosseformounoBrasilquandoatendnciadasindstriasda culturanomundojeraadasegmentaodomercado(oqueincluaaespecializaoe autonomizao das etapas produtivas), o que passou a ser sentido aqui j nos anos 7021. Este seria o panorama geral de como as questes relativas industria cultural se inserem nadiscussoaquiproposta.Mas,paraacompreensodatradicionalizaodosambano cancioneiro brasileiro, necessrio retomar um momento anterior a essas fases identificadas por Ortiz,emqueaincipinciadosmeiosedasociedadedemassas,assimcomoaconfigurao scio-cultural do pas, contriburam para tal tradicionalizao. Os anos 1920-1930 correspondem ao perodo em que houve um particular arranjo entre meios tcnicos, produo musical popular, demandas intelectuais, mercado, e Estado. Este arranjo foi desenvolvido no trabalho de J. R. Zan (1997):partindododesenvolvimentohistricodordioedaindstriafonogrficanoBrasil, passando pelas demandas sociais e polticas que caracterizaram os anos 30, Zan demonstrou que a consolidao do samba na programao radiofnica exigiu uma interao muito particular entre meiostcnicos,msicospopulares,intelectuais,mercado,eEstado.Eisto,segundooautor, contribuiu para a converso do samba em expresso de brasilidade.Seaindstriafonogrficaimpedeterminadosparmetrosformaisetcnicoscano,a consolidao do rdio passa a determinar, por sua vez, a pauta e as estratgias das gravadoras. Por outrolado,apolticaestatalvoltadaparaascomunicaesirinterferirnaconfiguraodos programas,oque,entretanto,nocaracterizaumarelaodemerasubordinao,jqueas emissoras(mesmoasestatais)continuamatuandodentrodomodelocomercial.Contudo,esse primeiroarranjosistmicodosmeiosdemassanoBrasilvaiexigiropreenchimentode determinadascondies.Dopontodevistadomercado,fazia-senecessrioaequiparaodo materialmusicalcomonveltcnicodareproduodamsicapopularentovigente.Este movimento, por sua vez, exigia o aparecimento de produtores, msicos, compositores e intrpretes capazes de estabelecer a mediao entre a produo e um pblico cada vez mais amplo. Do ponto 21 Sobre as estratgias da indstria fonogrfica no Brasil entre as dcadas de 1970 e 1990, vide Dias (2008). 47 devistadaestticadacano,percebe-senessesmovimentosalgumasressonnciasdaproduo deintelectuaiseartistasdeelite,especialmentemodernistas,edapolticaculturaldoperodo Vargas,voltadaparaaconsolidaodanacionalidade.Osprocessosdehomogeneizaoe estilizaodamsicapopularnesseperodovocaminharnadireodaconversodessa manifestao cultural em expresso da brasilidade. (ZAN, 1997, p. 41). Como se v, a interpretao de Zan no se pautou pelo reconhecimento de uma relao depurasubordinaoentreostermos.Dadososobjetivosdestetrabalho,nosepoder reconstruiraquitodaaargumentaoqueZanapresentouparachegarsntesesupracitada. possvel,contudo,explicitarmelhoralgunsdoselosdessainteraoapresentadaporZan,no intuito de se chegar compreenso de como a tradio do samba se constituiu atravs do rdio. Assim,adota-seaquinosessasntese(queservedepontodepartidaparaaargumentaoa seguir),mastambmoprocedimentodenosubordinaraconsolidaodatradiodosambaa apenas um desses termos. OgovernodeGetlioVargasnadcadade1930manteveumapolticaculturalcujo intuito era a converso das massas em povo e o povo em Nao (ZAN, 1997, p. 35), o que foi ao encontro ainda que por caminhos ideolgicos muito distintos das demandas de intelectuais como Mrio de Andrade22. Tal poltica cultural teve como principal veculo o rdio, sem que este tenha deixado de lado suas finalidades comerciais (regulamentadas desde 193223) em funo das demandas estatais. 22MriodeAndradeinterpretoudeumamaneiramuitoparticularoelementopopularnaculturabrasileiraao vislumbrarumaidentidadedevalidadenacionalquelevasseapeculiaridadeeacontribuiobrasileiraao patrimnioartsticodahumanidade.ParaperceberaaproximaodeMriocomapolticaculturaldeGetlio Vargas, basta lembrar que Mrio de Andrade foi Diretor da Secretaria de Cultura de So Paulo entre 1935 e 1938, tendosidofinanciadopelogovernoparaconcebererealizaraMissodePesquisasFolclricas.Talconciliaode interesses,contudo,durouapenasataradicalizaodapolticagetulista,quandoasdiferenasideolgicasse sobrepuseram aos interesses comuns. 23OrdiofoiintroduzidonoBrasilem1922,eem1923foifundadaaRdioSociedadedoRiodeJaneiro,por RoquettePinto.Nodecorrerdadcadade1920,ordionoBrasileraumveculoaindaincipienteedebaixa qualidadetcnica.Asrdio-sociedades,comoasrdioseramchamadaspoca,eramcomprometidascomuma missoeducativaecivilizadora,esuaprogramaoeravoltadamaisparapalestrasdoqueparaprodues musicais. A escassa programao musical restringia-se praticamente msica erudita. Segundo R. Ortiz, A dcada de 20 ainda uma fase de experimentao do novo veculo e a radiodifuso se encontrava muito mais amparada no talentoenapersonalidadedealgunsindivduosdoquenumaorganizaodetipoempresarial.(...)Durantetodaa dcada surgem apenas 19 emissoras em todo o pas, e seu raio de ao, devido falta de aparelhamento adequado, se reduzia aos limites das cidades onde operavam. Esta situao comea a se transformar com a introduo dos rdios devlvulanadcadade30,oquevemabaratearoscustosdeproduodosaparelhosepossibilitarsuadifuso juntoaumpblicoouvintemaisamplo.Em1932ocorreumamudananalegislao,quepassaapermitira publicidadenordio,fixando-anoincioem10%daprogramaodiria.Asemissoraspodiamagoracontarcom umafonte de financiamento constante e estruturar sua programao em basesmais duradouras. Evidentemente isto iria modificar o carter do rdio, que se torna cada vez mais um veculo comercial, a ponto de alguns anunciantes se 48 Eparagarantirumpblicoampliadocapazderespondersnecessidadesdos patrocinadores,asrdiosinvestiramnumaprogramaovoltadaessencialmenteparaamsica popular (que j era muito difundida e aceita pordiversos segmentos sociais, graas ao processo derefinamentodosambaevidenciadodesdeosanos20),abandonandoamissoeducativa quetinhamotivado,nosanos20,asprimeirasiniciativasderadiodifusonoBrasil.A programaopdeserconfiguradadestaformatantograasdisponibilidadedeartistas talentosos(que,porsuashabilidades,foramcapazesdefazeramediaoentreaproduo musicaleopblicoqueajudavamaampliar),comopelodesenvolvimentodastcnicasde gravao24 (que possibilitaram novas formas de canto, menos ligadas tradio operstica e mais adaptadas dico do samba que ia se constituindo). transformarem em verdadeiros produtores de programas (...). Com a legislao de 1952, que aumentou o percentual permitidopara20%,estadimen