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GEOPOLÍTICA DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS PARA O BRASIL: OS NOVOS CONCEITOS DE POLÍTICA EXTERNA MIGRATÓRIA, HIPERDINAMIZAÇÃO DAS MIGRAÇÕES E MIGRAÇÕES DE PERSPECTIVA ROBERTO RODOLFO GEORG UEBEL 1 RESUMO: Este estudo é resultado de tese doutoral em Geopolítica e concentra a discussão de três novos conceitos propostos para o entendimento da geopolítica das migrações internacionais para o Brasil no período de 2003 a 2018. O Brasil foi o país que mais recebeu imigrantes de forma proporcional em todo o Hemisfério Sul neste período, cerca de 2,1 milhões, de acordo com os dados da Polícia Federal, a autoridade migratória brasileira. Oriundos majoritariamente da América Latina, Caribe e costa oeste da África, esses novos grupos migratórios trouxeram novas trajetórias migratórias e teceram um peculiar fluxo transnacional, implicando novas leituras e geografias políticas acerca de seus caminhos, repercussões e integrações nos países de recepção e acolhimento. A pesquisa realizou uma prévia revisão crítica dos principais referenciais teóricos da Ciência Geográfica global, sobretudo das escolas geopolíticas anglo-americana e franco-canadense, a fim de traçar um perfil de tratamento e definição de conceitos como migração, migrante, fronteira e refugiados. Utilizamos como instrumento complementar de análise dos dados estatísticos oficiais, as ferramentas da cartografia temática, que permitiram uma padronização e atualização dos mapas de fluxos migratórios para o Brasil, apontando, ao cabo, trajetórias relevantes para os estudos derivados da pesquisa principal. Como resultado, propusemos o debate de três novos conceitos para o entendimento da geopolítica das migrações internacionais para o Brasil, quais sejam: Política Externa Migratória Brasileira: sustentada exclusivamente a partir da inserção estratégica do Brasil, sob uma égide da “política externa ativa e altiva”, e cimentada por pilares como as participações brasileiras em missões humanitárias, a concessão de bolsas de estudo e pesquisa para estudantes estrangeiros, a criação do visto humanitário, a emissão e isenção de vistos para grandes eventos desportivos, a discussão e tramitação da nova Lei de Migração, a imigração subsidiada por meio do Programa Mais Médicos. Migrações de Perspectiva: se tratam de um tipo migratório, muito peculiar e pertinente aos grupos de imigrantes latino-americanos e africanos baseado nas perspectivas do país de acolhimento, isto é, de acordo com o cenário econômico, político, social, laboral, cultural, racial, de igualdade de gênero, etc., existentes no Brasil, neste caso, e que criaram condicionantes muito específicos que permitiram que o país acolhesse até dois milhões de imigrantes em treze anos. Os migrantes de perspectiva podem ser tanto refugiados como imigrantes ditos econômicos, e emigram ou remigram tão logo esses condicionantes e perspectivas apontem para uma piora no cenário de acolhimento, inserção e integração. Hiperdinamização das Migrações: fenômeno ocorrido a partir da revisão bibliográfica e documental geopolítica, pela primeira vez no Brasil e de forma mista entre os grupos, especialmente dentre os oeste-africanos e latino-americanos. Em menos de uma década o saldo migratório do Brasil oscilou de negativo para positivo, restando ali em um curto período de tempo, e retornando para negativo até os dias de hoje, dado o agravamento da economia, mercado de trabalho e xenofobia social e 1 Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e Mestre em Geografia (UFRGS). Economista (CORECON/RS 8074) e Professor dos cursos de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-POA) e da Faculdade São Francisco de Assis (UNIFIN). Pesquisador do Laboratório Estado e Território (LABETER-UFRGS) e do grupo de pesquisa Novos Polos de Poder e a Política Internacional (ESPM-POA). E-mail de contato: [email protected].

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GEOPOLÍTICA DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS PARA O

BRASIL: OS NOVOS CONCEITOS DE POLÍTICA EXTERNA

MIGRATÓRIA, HIPERDINAMIZAÇÃO DAS MIGRAÇÕES E

MIGRAÇÕES DE PERSPECTIVA

ROBERTO RODOLFO GEORG UEBEL1

RESUMO: Este estudo é resultado de tese doutoral em Geopolítica e concentra a discussão de três novos conceitos propostos para o entendimento da geopolítica das migrações internacionais para o Brasil no período de 2003 a 2018. O Brasil foi o país que mais recebeu imigrantes de forma proporcional em todo o Hemisfério Sul neste período, cerca de 2,1 milhões, de acordo com os dados da Polícia Federal, a autoridade migratória brasileira. Oriundos majoritariamente da América Latina, Caribe e costa oeste da África, esses novos grupos migratórios trouxeram novas trajetórias migratórias e teceram um peculiar fluxo transnacional, implicando novas leituras e geografias políticas acerca de seus caminhos, repercussões e integrações nos países de recepção e acolhimento. A pesquisa realizou uma prévia revisão crítica dos principais referenciais teóricos da Ciência Geográfica global, sobretudo das escolas geopolíticas anglo-americana e franco-canadense, a fim de traçar um perfil de tratamento e definição de conceitos como migração, migrante, fronteira e refugiados. Utilizamos como instrumento complementar de análise dos dados estatísticos oficiais, as ferramentas da cartografia temática, que permitiram uma padronização e atualização dos mapas de fluxos migratórios para o Brasil, apontando, ao cabo, trajetórias relevantes para os estudos derivados da pesquisa principal. Como resultado, propusemos o debate de três novos conceitos para o entendimento da geopolítica das migrações internacionais para o Brasil, quais sejam: Política Externa Migratória Brasileira: sustentada exclusivamente a partir da inserção estratégica do Brasil, sob uma égide da “política externa ativa e altiva”, e cimentada por pilares como as participações brasileiras em missões humanitárias, a concessão de bolsas de estudo e pesquisa para estudantes estrangeiros, a criação do visto humanitário, a emissão e isenção de vistos para grandes eventos desportivos, a discussão e tramitação da nova Lei de Migração, a imigração subsidiada por meio do Programa Mais Médicos. Migrações de Perspectiva: se tratam de um tipo migratório, muito peculiar e pertinente aos grupos de imigrantes latino-americanos e africanos baseado nas perspectivas do país de acolhimento, isto é, de acordo com o cenário econômico, político, social, laboral, cultural, racial, de igualdade de gênero, etc., existentes no Brasil, neste caso, e que criaram condicionantes muito específicos que permitiram que o país acolhesse até dois milhões de imigrantes em treze anos. Os migrantes de perspectiva podem ser tanto refugiados como imigrantes ditos econômicos, e emigram ou remigram tão logo esses condicionantes e perspectivas apontem para uma piora no cenário de acolhimento, inserção e integração. Hiperdinamização das Migrações: fenômeno ocorrido a partir da revisão bibliográfica e documental geopolítica, pela primeira vez no Brasil e de forma mista entre os grupos, especialmente dentre os oeste-africanos e latino-americanos. Em menos de uma década o saldo migratório do Brasil oscilou de negativo para positivo, restando ali em um curto período de tempo, e retornando para negativo até os dias de hoje, dado o agravamento da economia, mercado de trabalho e xenofobia social e

1 Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e Mestre em Geografia (UFRGS). Economista (CORECON/RS 8074) e Professor dos cursos de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-POA) e da Faculdade São Francisco de Assis (UNIFIN). Pesquisador do Laboratório Estado e Território (LABETER-UFRGS) e do grupo de pesquisa Novos Polos de Poder e a Política Internacional (ESPM-POA). E-mail de contato: [email protected].

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institucional/governamental do país, tornando-o não mais atrativo e, portanto, sem perspectivas positivas que fomentassem às novas imigrações ou a permanência daqueles que já haviam imigrado. Palavras-chave: Geopolítica. Migrações Internacionais. Brasil. Política Externa Migratória. Hiperdinamização. ABSTRACT: This study is the result of a doctoral dissertation in Geopolitics and concentrates the discussion of three new concepts proposed for the understanding of the geopolitics of international migrations to Brazil from 2003 to 2018. Brazil was the country that most proportionally received immigrants in the Southern Hemisphere in this period, around 2.1 million, according to data from the Federal Police, the Brazilian immigration authority. Coming mainly from Latin America, the Caribbean and the West Coast of Africa, these new migratory groups brought new migratory trajectories and created a peculiar transnational flow, implying new readings and political geographies about their paths, repercussions and integrations in the hosting countries. The research carried out a previous critical review of the main theoretical references of the global Geographical Science, especially of the Anglo-American and French-Canadian geopolitical schools, in order to draw a profile of treatment and definition of concepts such as migration, migrant, border and refugees. We used as a complementary tool to analyse official statistical data, the thematic cartography, which allowed a standardization and update of maps of migratory flows to Brazil, pointing out, eventually, trajectories relevant to the studies derived from the main research. As a result, we proposed the discussion of three new concepts for the understanding of the geopolitics of international migrations to Brazil, namely: Migration Foreign Policy: sustained exclusively from the strategic insertion of Brazil under the aegis of "active and assertive foreign policy", and cemented by pillars such as the Brazilian participation in humanitarian missions, granting of scholarships and research fellowships to foreign students, creation of the humanitarian visa, issuing and exempting visas for major sporting events, discussion and approval of the new Migration Law, subsidized immigration through the More Doctors Programme. Perspective Migrations: they are a very peculiar migratory type that is exclusively to Latin American and African immigrant groups based on the perspectives of the hosting country, that is, according to the economic, political, social, labour, cultural, racial, gender equality scenarios in Brazil, in this case, and which created very specific conditions that allowed the country to host up to two million immigrants in thirteen years. Perspective migrants can be both refugees and so-called economic immigrants, and they emigrate or remigrate as soon as these constraints and perspectives point to a worsening of the reception, insertion and integration scenarios. Hyperdynamization of migrations: a phenomenon that occurred from the bibliographic and documentary geopolitical review, for the first time in Brazil and in a mixed way among the groups, especially among West Africans and Latin Americans. In less than a decade Brazil's migratory balance has fluctuated from negative to positive, remaining there in a short period of time, and returning to negative until today, given the worsening economy, labour market and social and institutional/governmental xenophobia of the country, making it no more attractive and therefore without positive perspectives that would encourage new immigration or the permanence of those who had already immigrated. Keywords: Geopolitics. International Migration. Brazil. Migration Foreign Policy. Hyperdynamization.

1 – Introdução

De acordo com os dados compilados por Uebel (2018), fornecidos pela Polícia

Federal, o Brasil recebeu pouco mais de 2,1 milhões de imigrantes entre os anos de

2003 e 2018, originários sobretudo do Sul Global, a periferia do Sistema Internacional

sob a ótica moderna das Relações Internacionais e da Geografia Política sistêmica.

Oriundos majoritariamente das sub-regiões da América Latina, Caribe e costa

oeste da África, esses novos grupos migratórios trouxeram novas trajetórias

migratórias e teceram um peculiar fluxo transnacional, implicando novas leituras e

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geografias políticas acerca de seus caminhos, repercussões e integrações nos países

de recepção e acolhimento.

Deste modo, a presente pesquisa realizou uma breve revisão crítica dos

principais referenciais teóricos da Ciência Geográfica global, sobretudo das escolas

geopolíticas anglo-americana e franco-canadense, a fim de traçar um perfil de

tratamento e definição de conceitos como migração, migrante, fronteira e refugiados.

Utilizamos como instrumento complementar de análise dos dados estatísticos

oficiais, as ferramentas da cartografia temática, que permitiram uma padronização e

atualização dos mapas de fluxos migratórios para o Brasil, apontando, ao cabo,

trajetórias relevantes para os estudos derivados da pesquisa principal (UEBEL, 2018).

Como resultado, propusemos o debate de três novos conceitos para o

entendimento da geopolítica das migrações internacionais para o Brasil, a saber:

Política Externa Migratória, Migrações de Perspectiva e Hiperdinamização das

Migrações, que serão sumarizados na próxima seção (Discussão), bem como a sua

aplicação na Geopolítica e Geografia Política em sala de aula (Resultados), somada

à seção sobre a Metodologia empregada e as Conclusões ao final do trabalho.

2 – Discussão

2.1 – Perfil Imigratório do Brasil: um panorama

Conforme mencionado na seção anterior, segundo os dados da Polícia Federal,

a autoridade migratória brasileira, a população de novos imigrantes no Brasil chegou

a 2,1 milhões entre 2013 e 2018, isto é, o somatório total dos ingressos nacionais.

Com relação ao saldo migratório, ainda existe no Brasil um grande desafio para

geógrafos, demógrafos e pesquisadores da temática migratória em estabelecer uma

quantificação aproximada, uma vez que os dados de saída da própria Polícia Federal

contabilizam apenas a emigração regular, e os censos realizados pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística disponibilizam dados a cada dez anos, portanto,

as últimas estatísticas são de nove anos atrás, quando o Brasil ainda não havia

passado por um processo de boom imigratório ou se transformado em um “Eldorado”

para os novos imigrantes, ainda que de forma provisória (SILVA; ASSIS, 2016).

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Apesar destas questões, é possível estimar, conforme apresentamos na Figura

01 a seguir, as principais origens destes cerca de 2,1 milhões de imigrantes, que

escolheram o país baseados numa perspectiva de acolhimento atrelada à própria

inserção estratégica do Brasil em seus países de origem, uma sub-agenda da Política

Externa Migratória Brasileira, que veremos mais adiante.

Figura 01 – Estoque de imigrantes no Brasil por país de origem (2011-2016). Elaborado pelo autor

com a revisão técnica da geógrafa Jesica Beltrán.

A partir do mapa da Figura 01 é possível traçar o seguinte panorama: as

migrações para o Brasil se originaram principalmente na América do Sul e Caribe,

seguidas pelos fluxos originados na Europa Ocidental, China e Índia e países

africanos, subsequentemente. Conforme Uebel (2018) discute em sua tese, o fluxo de

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africanos foi o que mais cresceu entre 2003 e 2018, cerca de 173% em quinze anos,

face os 90% dos influxos de europeus.

Para finalizar a seção, apresentamos o Gráfico 01, que sintetiza a

representação percentual dos dez maiores grupos de imigrantes no Brasil de acordo

com os seus países de origem, e que subsidiará a discussão da próxima seção:

Gráfico 01 – Dez maiores grupos de imigrantes no Brasil de acordo com os seus países de origem

(2003-2018). Elaborado pelo autor.

Os dados supramencionados apontam, portanto, para uma concentração

quase que exclusiva de latino-americanos no perfil imigratório do Brasil no período –

cerca de 475 mil –, e que, somados aos cerca de 46 mil novos imigrantes africanos,

representarão o maior contingente imigratório do país, suplantando pela primeira vez

os fluxos históricos de europeus e asiáticos, representando assim uma nova etapa da

geopolítica das migrações do Brasil e do próprio Sul Global (WENDEN, 2016). Este

novo caráter geopolítico migratório será fortemente influenciado pela Política Externa

Migratória Brasileira, que discutiremos na próxima subseção.

2.2 – Política Externa Migratória

Por que o Brasil como país de destino em uma época de grandes fluxos Sul-

Norte e Sul-Sul? A resposta que explica o complexo fenômeno geográfico humano e

geopolítico das novas migrações se dá a partir do que chamamos de eixos de inserção

17%

16%

12%11%

9%

8%

8%

7%

6%6%

Bolívia Venezuela Haiti

Estados Unidos Argentina Colômbia

China Portugal Peru

França

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estratégica do Brasil, que são os direcionamentos e pautas de uma determinada

agenda, política ou ambição externa do governo brasileiro.

Nessa direção, não poderia ser diferente para com a política externa migratória

brasileira, que se trata de uma variante, uma consequência da política externa, ou

ainda, um amálgama da política imigratória, inexistente quanto à sua formalidade, com

a própria política exterior do país. Porém, sua temporalidade e evolução nem sempre

seguiram ao próprio sabor da política externa matriz, isto é, não raro, a práxis da

política externa migratória seguiu rumos, tendências e, até mesmo, ideologias,

diferentes da sua política-mãe.

Outro fator que consideramos neste estudo é a questão dimensional, por assim

dizer, que a política externa migratória brasileira e os subsequentes eixos de inserção

estratégica do Brasil sofreram e verificaram continuidades e rupturas nas transições

dos governos Lula da Silva para Dilma Rousseff, ou seja, ao contrário do inferido pelo

senso comum e por parte da literatura acadêmica referencial, no que se refere às

questões migratórias, não é possível afirmar em uma total continuidade de agendas e

política entre os dois governos, pelo contrário, há mais rupturas que continuidades.

Para cada um dos dois governos estudados, nota-se a existência de três eixos

de inserção estratégica que fomentaram os fluxos imigratórios em massa, isto é, a

própria hiperdinamização imigratória sentida pelo Brasil no período estudado, que

veremos mais adiante. A fim de facilitar a leitura e compreensão da discussão

proposta aqui, a Figura 02 sintetiza a relação entre política externa, política externa

migratória e eixos de inserção estratégica, com a específica inclusão dos dois

governos em tela.

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Figura 02 – Quadro-síntese da relação entre política externa, política externa migratória e eixos de

inserção estratégica. Fonte: Elaborado pelo autor.

Cabe analisar como essas duas peças quadrangulares – políticas externas

migratórias – inserem-se no tabuleiro quadrado-retangular que é a política externa

brasileira e como esses eixos, outrora chamados de pilares, sustentam a engrenagem

que movimentou as continuidades e rupturas entre os dois governos estudados.

Segundo Sassen (2007), são os próprios mecanismos de vinculação da política

externa à política externa migratória.

Esse movimento, ainda dentro da abstração da Figura 02, ocasionou, portanto,

a hiperdinamização das migrações no Brasil, migrações estas que chamamos de

perspectiva, dado que não seguiam com exclusividade às motivações econômicas

(imigrações econômicas) e políticas-humanitárias (refúgio e solicitação de asilo),

muito menos eram apenas motivadas por conflitos (migrações de crise), mas sim um

conjunto desses fatores, como nos casos dos sírios, venezuelanos, cubanos,

haitianos e oeste-africanos, dentre outros grupos.

O eixo de inserção estratégica que de fato influenciou e fomentação o boom

imigratório hiperdinamicamente vivido pelo Brasil foi justamente aquele que teve uma

menor participação estatal-governamental e sim uma maior presença das redes e

atores não estatais, ou seja, aquilo que chamamos de “a propagandização do país

pelas redes migratórias e internacionais do trabalho como uma alternativa aos

destinos tradicionais”.

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Conceitos emprestados da Geografia, as redes migratórias e internacionais do

trabalho foram a principal força-motriz e eixo de inserção estratégica que propiciaram

a emergência de um cenário aberto, ainda que muito dinâmico e temporalmente

diminuto, para a chegada em massa de imigrantes de perspectiva durante o governo

Rousseff, algo que ficou muito evidente quando das entrevistas informais como

imigrantes latino-americanos e africanos.

Apesar de não serem temas e conceitos novos – as redes migratórias já eram

estudadas no século XIX –, a forma como se desenvolveram no Brasil e, mais

especificamente, no governo Rousseff, foram muito peculiares quanto a sua

dinamização, intensidade e espacialidade. Relembremos novamente como as

imigrações ganharam um caráter essencialmente terrestre e físico naquele governo,

mesmo para aquelas oriundas de além-mar, como dos oeste-africanos.

A questão escalar também reaparece na Política Externa Migratória Brasileira,

uma vez que as redes obrigatoriamente, segundo a leitura de um mundo técnico-

científico-informacional (SANTOS, 1993), demandam a presença de múltiplas escalas

para a sua execução e própria compreensão. Por este motivo, na próxima subseção

discutiremos o conceito-proposto de migrações de perspectiva.

2.3 – Migrações de Perspectiva

Ao longo das últimas quatro décadas, desde a revolução quantitativa na Ciência

Geográfica, a qual a Geografia Política e a Geopolítica não ficaram imunes, o

empréstimo de terminologias das Ciências Sociais Aplicadas, sobretudo da Economia,

se apresentou de forma cada vez mais recorrente e inerente aos temas dos estudos

migratórios, por conseguinte.

Neste contexto, conceitos como “migrações de crise” (BAENINGER; PERES,

2017), expatriados (GREEN, 2009) e “migrações econômicas” (HATTON;

WILLIAMSON, 1998), se tornaram frequentes e mandatórios em praticamente todo e

qualquer estudo que versasse sobre a grande área das migrações, sobretudo as

internacionais e, mais recentemente, as transnacionais.

Apesar destes conceitos, sempre moldados de acordo com as figuras do ser

migrante, imigrante, emigrante e remigrante, portarem uma simbologia e uma

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significância política, também atrelada à imagética do contexto em que se

apresentam, isto é, o cenário migratório, com a revisão de literatura que realizamos

em Uebel (2018), evidenciou-se uma lacuna conceitual que explicasse o real motivo

das migrações contemporâneas e o complexo processo de transição e transformação

de migrantes em refugiados, apátridas, vítimas de tráfico humano, etc.

Isto posto, após retomarmos os autores supracitados e as contribuições da

criação teórica de Saskia Sassen (2007) com seus “mecanismos de vinculação”,

propusemos a elaboração do conceito de migrações de perspectiva, que significa,

para o caso brasileiro, mas adaptável em outros contextos internacionais:

[...] as migrações de perspectivas, criadas a partir da leitura dos conceitos tradicionais de imigração econômica, refúgio, asilo, e suas variantes, expatriação e migrações de crise, além das classificações adotadas pela Polícia Federal, como migrações permanentes, temporárias, provisórias e fronteiriças, se tratam de um tipo migratório, muito peculiar e pertinente aos grupos de imigrantes latino-americanos e africanos [...], baseado nas perspectivas do país de acolhimento, isto é, de acordo com o cenário econômico, político, social, laboral, cultural, racial, de igualdade de gênero, etc., existentes no Brasil, neste caso, e que criaram condicionantes muito específicos que permitiram que o país acolhesse até dois milhões de imigrantes em treze anos. Os migrantes de perspectiva podem ser tanto refugiados como imigrantes ditos econômicos, e emigram (deixam o país que os acolheu) ou remigram (migram para um terceiro país que não o seu de origem) tão logo esses condicionantes e perspectivas apontem para uma piora no cenário de acolhimento, inserção e integração, cenário que chamamos [...] de “hiperdinamização das migrações”. (UEBEL, 2018, p. 550).

Ou seja, o conceito é construído a partir das perspectivas que o potencial

migrante encontrará no seu futuro país de destino, que também contribuirão para a

sua permanência ou remigração para outro destino, uma vez consideradas as

perspectivas (aqui entendidas também como variáveis) econômicas, laborais, sociais,

políticas, previdenciárias, etc., no país de acolhimento, muito influenciadas pelo outro

conceito-proposto de hiperdinamização das migrações, que apresentaremos a seguir.

2.4 – Hiperdinamização das Migrações

Com relação ao nosso último conceito-proposto, o de hiperdinamização das

migrações, é possível defini-lo como o fenômeno ocorrido a partir da revisão

bibliográfica e documental histórica, pela primeira vez no Brasil e de forma mista entre

os grupos, especialmente dentre os oeste-africanos e latino-americanos.

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Em menos de uma década o saldo migratório do Brasil oscilou de negativo para

positivo, restando ali em um curto período de tempo, e retornando para negativo até

os dias de hoje, dado o agravamento da economia, mercado de trabalho e xenofobia

social e institucional/governamental do país, tornando-o não mais atrativo e, portanto,

sem perspectivas positivas que fomentassem às novas imigrações ou a permanência

daqueles que já haviam imigrado. Essa hiperdinamização também foi motivada pelas

transformações da política externa migratória brasileira, afetada pelas restrições

orçamentárias dos programas (eixos) que a mantinham, bem como pelo caótico

contexto político-institucional que se desenhou desde 2014 até a presente data.

A hiperdinamização se deu de forma quase que putativa, uma vez que poderia

ser confundida com a grande crise global das migrações, porém, no caso do Brasil,

as questões domésticas foram intrinsecamente mais relevantes, por meio de suas

interrupções e rupturas, do que as pressões externas, tanto que a própria Argentina,

em quadro muito semelhante, continuou a receber imigrantes no mesmo período.

Deste modo, os três conceitos que apresentamos nesta segunda seção são

complementares e indissociáveis para a compreensão total do cenário imigratório do

Brasil ao longo das últimas duas décadas. Espera-se que estas propostas conceituais

possam ser debatidas e incorporadas à grande discussão teórica acerca das

migrações na Geografia brasileira contemporânea. Para tanto, na próxima seção

faremos um breve arrazoado sobre o processo metodológico que levou à criação dos

três conceitos.

3 – Metodologias

Com relação às metodologias utilizadas nesta pesquisa, conforme já

mencionado, aplicamos os instrumentais da revisão bibliográfica, bem como uma

revisita aos autores referenciais dos estudos migratórios na Geografia brasileira,

anglo-saxônica e franco-canadense, aproximando as suas leituras sobre fluxos

migratórios internacionais com a transnacionalidade dos grupos verificados no Brasil.

Ademais, utilizando como referência a produção de Wenden (2016),

procedemos com a atualização das cartografias temáticas dos fluxos migratórios para

o Brasil, cujo exemplo apresentamos na Figura 01 no começo do artigo. O uso dos

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mapas temáticos e interativos, além de traduzir a informação quantitativa de tabelas

e gráficos, também comporta um aspecto didático, uma vez que arrazoa a informação

cartográfica de acordo com o público-leitor.

Por fim, cabe mencionar que, seguindo os preceitos de Gil (2008), o presente

artigo incorporou elementos da pesquisa bibliográfica, documental, explicativa e quali-

quantitativa, agregando-os ao problema de pesquisa em tela, sobretudo quando da

elaboração dos três conceitos propostos sob o prisma das teorias da Geopolítica

crítica moderna (LE BRAS, 2014).

4 – Resultados: a aplicação na Geopolítica e Geopolítica em sala de aula

Em se tratando de uma pesquisa que aporta conceitos novos, recém-

introduzidos no debate acadêmico, como este artigo em tela, procuramos aplicar os

três conceitos nas disciplinas de Geopolítica e Teoria das Relações Internacionais,

para estudantes de Relações Internacionais do quarto semestre2, a fim de coletar as

primeiras impressões sobre esta proposta conceitual de releitura das migrações

internacionais.

A aplicação se deu entre o segundo semestre de 2018 e o primeiro de 2019 por

meio de duas formas: a) aulas expositivas, apresentando, de fato, os três conceitos;

e b) aferição da compreensão dos conteúdos por meio de provas dissertativas. Nesse

contexto, foi possível identificar uma rápida assimilação entre os estudantes quanto

aos conceitos de migrações de perspectiva e hiperdinamização das migrações,

enquanto a política externa migratória ainda apresentou resistência interpretativa face

à extensa literatura sobre PEB que não aborda a temática migratória.

Isto posto, os resultados iniciais apontam para uma possibilidade de aplicação

em sala de aula dos novos conceitos, sobretudo para as classes de Geografia Política,

Geopolítica e Teoria das Relações Internacionais, assimilando-os aos clássicos

destas disciplinas e apresentando-os como possibilidades inovativas e práticas,

reforçando o caráter lúdico da cartografia temática neste aspecto. Portanto,

2 Aplicação realizada com estudantes da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-POA) e da Faculdade São Francisco de Assis (UNIFIN), onde o autor é docente.

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recomendamos a sua aplicação em estudos futuros, bem como a adoção dos

conceitos em diferentes níveis da formação acadêmica, a fim de consolidar o eixo

teoria-prática no que se refere aos estudos migratórios brasileiros.

5 – Conclusões

Neste artigo, que é resultado de pesquisa doutoral no campo da Geopolítica e

dos Estudos Estratégicos Internacionais, procuramos apresentar uma primeira

discussão acerca da proposta dos conceitos de migrações de perspectiva,

hiperdinamização das migrações e de política externa migratória (brasileira), a fim de

possibilitar uma releitura crítica contemporânea dos fluxos migratórios inter e

transnacionais com direção ao Brasil, especialmente de africanos e latino-americanos.

Nesse sentido, utilizando a revisão da literatura consolidada da Geografia,

sobretudo a crítica, sobre migrações, inferimos que a adoção de novas categorias

explicativas – e não classificatórias – para o entendimento dos fluxos do Sul Global se

faz relevante num contexto de ascensão de agendas nacionalistas, xenofóbicas e anti-

imigração e anti-integração, as quais se aplicam também para o caso brasileiro.

Considerando o aspecto de assimilação dos conceitos de migrações de

perspectiva e hiperdinamização das migrações, a cartografia temática se apresentou

como importante instrumental de aproximação quando da aplicação em sala de aula,

para estudantes de Relações Internacionais. Já o conceito de política externa

migratória demandará, segundo a nossa conclusão a partir dos resultados iniciais, um

debate maior e agregação tanto pela literatura consolidada de Política Externa

Brasileira, como a aproximação crítica da Geografia Política e da Geoeconomia,

sendo este primeiro artigo, portanto, um passo inicial para o seu debate nos meios

acadêmicos.

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Referências

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