geografias-do-cinema-0202

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    GEOGRAFIAS DE CINEMA: DO ESPAOGEOGRFICO AO ESPAO FLMICO*

    GEOGRAFAS DEL CINE: DEL ESPACIO

    GEOGRFICO AL ESPACIO FLMICOCINEMA GEOGRAPHIES: FROM THE

    GEOGRAPHICAL SPACE TO THE FILMING SPACE

    Alexandre Aldo Neves

    Mestrando do Programa de Ps Graduao em Geografia da

    Universidade Federal da Grande Dourados UFGD.E-mail: [email protected]

    Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar as possibilidades deinterao existentes entre as diversas reas do saber cientfico com as expressesartsticas, em especial, as relaes e aproximaes existentes entre discurso geo-grfico com a linguagem cinematogrfica. O estudo e a utilizao do cinema pelacincia geogrfica promove um valorizar mtuo e contnuo de conceitos e sabe-

    res. No caso da geografia, as imagens cinematogrficas nos permitem outrosolhares que viabilizam uma leitura da forma como Cinema se apropria do con-ceito de espao para arquitetar suas tramas e narrativas. Ao Cinema no cabedizer como ou o que o espao, mas sim, a partir da interao com a CinciaGeogrfica, apresentar novas possibilidades de leituras a partir dessa interao. preciso interpretar, qualificar, dar sentido/significado as imagens. A leitura/interpretao dessas imagens permitem compreender a organizao scio-espaci-al da sociedade atual.

    Palavras-chave: Geografia; linguagem; espao; cinema; cincia.Resumen: Este trabajo tiene el objetivo de presentar las posibilidades deinteraccin existentes entre las diversas reas del saber cientfico con las expresionesartsticas, en especial las relaciones y aproximaciones existentes entre el discurso

    * As discusses apresentadas neste texto esto vinculadas realizao da Dissertao deMestrado intitulada: A Paisagem Pantaneira Pela tica do Cinema Brasileiro, jun-to ao Programa de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal da GrandeDourados (UFGD) e em decorrncia das pesquisas realizadas no interior do Grupo de

    Pesquisa Linguagens Geogrficas (GPLG). Endereo eletrnico: www.fct.unesp.br/grupos/gplg

    Entre-Lugar, Dourados, MS, ano 1, n. 1, p. 133-156, 1 semestre de 2010.

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    geogrfico y el lenguaje cinematogrfico. El estudio y la utilizacin del cine por laciencia geogrfica promueve la valorizacin mutua y continua de conceptos ysaberes. En el caso de la Geografa, las imgenes cinematogrficas nos permitenotras miradas que hacen viable una lectura de la forma como el cine se apropia

    del concepto de espacio para construir sus tramas y narrativas. Al cine no cabedecir cmo o qu es el espacio, sino presentarle, a partir de la interaccin con laCiencia Geogrfica, nuevas posibilidades de lecturas a partir de esta interaccin.Es necesario interpretar, calificar, dar sentido/significado a las imgenes. Lalectura/interpretacin de esas imgenes permiten comprender la organizacinsocioespacial de la sociedad actual.

    Palabras clave: Geografa; lenguaje; espacio; cine; ciencia.

    Abstract:This work aims at presenting the possibilities of interaction which are

    present among the various areas of the scientific knowledge with its artisticexpressions, especially the existing relations and approximations between thegeographical discourse and the cinematographic language. The study and the useof the cinema by the geographical science promote a mutual and continuousappreciation of concepts and wisdom. In the case of geography, thecinematographic images allow us to have different views which enable a readingof the way which the cinema makes use of the concept of space to develop its plotsand narratives. The cinema is not responsible for explaining how or what thespace is, but it is in fact responsible for interacting with the Geographical Science

    as a mean to present new possibilities of readings. It is necessary to interpret,qualify, and attribute meaning/sense to the images. The reading/interpretationof these images allows the comprehension of the social-spatial organization of thecurrent society.

    Key words:Geography; language; space; cinema; science.

    INTRODUO

    Dentre as inmeras definies sobre o que vem a ser concei-to, destacamos algumas que melhor problematizam nossas considera-es. Uma delas que aponta sua origem etimolgica: do latim conceptus,em geral, todo processo que torne possvel a descrio, a classificao ea previso dos objetos cognoscveis. Desta forma, este termo capaz deincluir todo e qualquer tipo de sinal semntico, independentementedo que venha a ser o objeto a que se refere, sendo este, abstrato ouconcreto, algo que esteja prximo de ns ou extremamente distante e

    que seja algo individual, particular nico ou universal (cf.ABBAGNANO, 1999, p. 164).

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    Esta breve noo de conceito nos possibilita a construo dedois questionamentos essenciais para a sua total compreenso: umestaria diretamente relacionado com a natureza deste conceito e ooutro, com a funo adquirida. Ainda, de acordo com Abbagnano

    (1999, p. 168), o problema da natureza do conceito possui duas propo-sies possveis: (1a) Entende-se o conceito necessariamente como aessnciadas coisas e, consequentemente, sua prpria essncia. Essacondio implicaria no fato de que o conceito no poderia existir demodo diferente daquilo que a sua essncia determina. (2a) A outraenquadraria o conceito como um signo que representariao objeto.

    Com relao a sua funcionalidade, o conceito um instrumentoque possibilita, sobretudo, a descrio dos objetos das experincias de

    maneira a permitir o seu reconhecimento, e a organizao dos dadosobtidos nas experincias de modo que se estabeleam entre eles cone-xes de natureza lgica. vlido ressaltar que os conceitos, especial-mente os cientficos, no se restringem somente a essas duas funes.

    Desta forma, compreendemos ento, que:

    Os conceitos so instrumentos do pensar e do agirque se justificam e ganham sentido prprio nocomplexo sistema que compe com os conceitoscorrelatos e no qual interagem em campo terico

    mais vasto. Impe--se, por isso, nova viso deinterdisciplinaridade ou transdisciplinaridade.Nenhuma regio do saber existe isolada em si mes-ma, devendo, depois, relacionar-se com as demais.S na unidade do saber existem as disciplinas, isto, na totalidade em que se correlacionam e uma soutras demandam reciprocidade. (MARQUES,2000, p. 151).

    A Cincia sempre buscou estabelecer um discurso unitrio

    de entendimento, mas acabou, por motivos que iremos abordar aqui,por impor esta forma de leitura ao mundo. Essa postura cessou to-das as possibilidades de esclarecer as diferentes compreenses e suassemelhanas para eleger uma leitura nica tida como correta.

    Assim como as outras reas do saber cientfico, a Geografiatambm utiliza conceitos estruturadores, sendo que atualmente al-guns deles assumem certa proeminncia: Espao e Tempo, Socieda-de, Lugar, Paisagem, Regio e Territrio. Para Rego (2002, p. 204),os conceitos atravessam os fatos interpretativamente, interligando-ossob uma determinada tica, criando uma malha de leitura complexa.

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    Partido dessas concepes, nos deparamos com o objeto cen-tral da nossa discusso que, em sua concepo, perpassa por todos oselementos expostos acima: o conceito de Espao. Mas devemos estaratentos, como nos adverte SANTOS (1982, p. 15), [...] sendo hist-

    rico, todo conceito se esgota no tempo.Ao longo do processo de oficializao e sistematizao do

    Conhecimento Cientfico Geogrfico (engendrado, sobretudo no s-culo XIX pelos proeminentes pensadores alemes Kant, Humboldt,Ritter e Ratzel), o Espao tem sido objeto de amplos debates no srestritos s fronteiras da Geografia, bem como em outras reas doconhecimento. Esses embates tericos promovidos pelas mais diver-sas correntes do pensamento geogrfico (positivismo, geografia crti-ca, neo-positivista, entre outras), segundo Corra (2006) contribuempara o enriquecimento da consolidao do arcabouo terico deCincia Geogrfica, como veremos no prximo tpico.

    Entretanto, a Cincia deve ser apreendida e interpretada comouma parte da tentativa da humanidade compreender o mundo emseus diversos aspectos, suas facetas e, sobretudo, suas mltiplas rea-lidades. Contraditoriamente, o j citado processo de sistematiza-o, impulsionado por fatores sociais, polticos e ideolgicos que seentrecruzaram na organizao da moderna sociedade urbana, tecno-cientfica e pautada na lgica da mercadoria, supervalorizaram a bus-ca pela verdade trilhada pela prtica cientfica, que tendeu a optarpor uma nica perspectiva, o que acabou por provocar umdistanciamento e isolamento no dilogo entre as diversas reas dochamado conhecimento (rico em teorizaes, pesquisa e embates)com os no-cientficos (misticismos, as expresses artsticas).

    Essa busca pela preciso desmedida da Cincia acabou se tra-duzindo, como aponta Hissa (2002, p. 27), em uma procuraesquizofrnica da verdade que, transforma os guardies profissio-nais do rigor em quixotescos construtores de mundos inteis, emfalseadores da realidade, consubstanciados por fervorosas discussese embalados pro eloquentes idias de que seria possvel reproduzir omundo tal como ele . consenso em algumas correntes tericasque a reproduo sempre menor que o reproduzido, visto que,

    toda reproduo pode ser interpretada como uma representao par-cial do universo. H sempre o desejo de super-lo, transgredi-lo!

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    Um conjunto de transformaes significativas, ocorridas nos nas correntes do pensamento geogrfico, mas na cincia como umtodo, foram impulsionadas pela chamada crise da modernidade, oucomo destaca Hissa (2002) a crise de uma forma racional de conceber

    o mundo, se acentuou nas ltimas dcadas, permitindo a prolifera-o de novos discursos e crticas.

    A Crise da razo crise da prpria cincia per-mite e abre espao para a discusso de novos for-matos de produo do saber, de novos mtodos eposturas alternativas. Discute-se a emergncia denovas sensibilidades, tambm no mbito da cin-cia. Por essa tica, o debate percorre meandrosainda mais tortuosos e refora novas polmicas.(HISSA, 2002, p. 64).

    Nesse sentido, tomamos por referncia a teoria de Hissa (2002)e Costa (1996), para justificar e qualificar a discusso aqui proposta,acerca das possibilidades e necessidades de se estabelecer novos olha-res e dilogos para os fenmenos que nos cercam, mas que intuemtransgredir as fronteiras do conhecimento cientfico.

    Desta forma, partindo de uma rpida definio conceitual,

    perpassando pela construo, aplicao e apropriao do Espao pelaCincia Geogrfica, objetivamos apontar formas outras de leitura eutilidades atribudas ao espao no dilogo com a stima arte, oCinema.

    Atualmente, vivenciamos o boom da linguagem visual e dasociedade imagtica, em que a percepo se volta cada vez mais paraas propriedades retinianas. O mercado e a indstria cultural rapida-mente se apropriaram desta tendncia, influenciando nas formas como

    as mercadorias passaram a ser apresentada visualmente. Atravs destatendncia de valorizao dos estmulos visuais, o ensino no tem outrasada, seno abordar esta questo como forma de, no s atrair osestudantes para questes contemporneas, mas tambm aprofundaros processos de conhecimento crtico em relao lgica imagticada sociedade. Nesta perspectiva, o uso da linguagem audiovisual noensino/aprendizagem se traduz como uma necessidade desta tendncia.

    Desta forma, ler e interpretar o mundo de hoje para buscar

    elementos que nos oriente e localize espacialmente, passa necessaria-mente pela anlise do papel do cinema na contribuio das nossas

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    leituras e percepes do real. Nesse sentido, tentar compreendercomo o Cinema utiliza-se do Espao para a construo de suas narra-tivas, proporcionar a ampliao das conceituaes e leituras.

    O ESPAO GEOGRFICO A CONSTRUO DE UMCONCEITO

    Espao. Finito ou infinito, relativo ou absoluto,receptculo ou, simplesmente um invlucro dosobjetos, o uso de tal categoria , sem dvida, e emnossos dias, praticamente obrigatrio em qualquertipo de debate acadmico.(SANTOS, 2002, p.

    15-16).A citao retirada da obra do Gegrafo Douglas Santos refle-

    te a pluralidade conceitual arregimentada, sobretudo, pelas diversascorrentes tericas e epistemolgicas a partir do perodo que se iniciaem 1870, momento em que a Geografia passa a ser uma Cinciainstitucionalizada nas Universidades do velho continente, s lti-mas dcadas do sculo XX, marcadas por uma confluncia de leiturase teorias humanistas, culturalistas, fenomenolgicas e quantitativistas.

    Mas importante ressaltar que esse conceito-chave no se res-tringe Geografia. A psicanlise, as artes plsticas, o Cinema, soexemplos de linguagens que se utilizam dessa esfera (nem todasteorizadas). Neste contexto, Santos (2002), aponta que esse conceitotornou-se rico de significados e definies, dificultando dizer ao cer-to, qual expressa precisamente nosso pensamento.

    Mas antes de apontarmos, sucintamente, algumas conside-raes acerca do conceito de espao no mbito da Geografia, fun-damental destacarmos como esse conceito permeia nossas relaescotidianas e como ele percebido. De imediato somos tentados aresponder o que espao, mas acreditamos que seria maisenriquecedor tentar entender a sua existncia em outros domnios,em outras esferas do conhecimento e reconhecer a variabilidade doseu emprego.

    Desta forma, imprescindvel destacarmos que at o sculoXIV, a localizao exata dos fenmenos e localidades, ainda no esta-va colocada em questo. Mas como aponta Santos (2002, p. 44):

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    [...] se perfeitamente vivel considerarmos que ahumanidade j possua capacidade tica de olharo mundo tridimensionalmente e que, portanto,percebia concretamente que suas representaesgrficas se distanciavam da realidade fenomnica,

    podemos afirmar tambm que a aceitao pura esimples da bidimensionalidade sem que isso cau-sasse espcie ao observador envolvia algo muitomais complexo que a simples aceitao da incapa-cidade tcnica.

    Ou seja, preciso tentar entender um amplo conjunto detradies histricas, ideologias e um contexto poltico, pertinentesao sistema feudal de organizao e gesto do espao e da sociedade,

    conhecido como a era das trevas na qual, o conhecimento cientfi-co estava resignado frente s teorias e valores Teocntricos da IgrejaCatlica.

    O nascimento de um novo sentido espacial, da necessidadede demarcar, traar e planejar precisamente o espao foi impulsiona-do no perodo do Renascimento, pelo surgimento de novas necessi-dades socialmente construdas. Ou seja,

    Colocar as coisas e os homens nos seus lugares im-

    plicou medir distncias e, mais que isso, sistematiz-las como representao possvel e necessria paragarantir os novos parmetros de produo/repro-duo social. (SANTOS, 2002, p. 46).

    Inicia-se ento, uma nova forma de redesenhar o mundo,impulsionada pela inveno da perspectiva e do ponto de fuga, anco-rados pela geometrizao da confeco do quadro, com o auxlio deuma tela recoberta por quadrculas interpostas entre o modelo e a

    tela orientando as transposies e as simetrias nos atividades de trans-posio de imagens (jogos de escala), no s na pintura, mas commaior preciso na Cartografia. As expanses ultramarinas, a necessi-dade de conquistar novos mercados consumidores e novas colnias,a ambio em conhecer o desconhecido e apropriar-se de suas rique-zas e a necessidade humana de desvendar e tentar entender as formase organizao dos fatos e fenmenos foi a mola propulsora dessesavanos tcnicos e cientficos.

    Isto ,

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    [...] trata-se da representao resultante da necessi-dade de deslocamento, o que para a poca queestamos nos referindo, significa fundamentalmen-te identificar os caminhos possveis entre os por-tos, garantindo os mecanismos bsicos para a cir-culao de mercadorias e pessoas no ritmo em queisso se desenvolvia no perodo. (SANTOS, 2002,p. 54).

    Esses processos demarcaram a realizao dos primeiros passospara o entendimento do mundo. Nesse sentido essas iniciativas repre-sentavam a GEOMETRIZAO DO TERRITRIO. Essa Geometri-zao prev o controle e a dominao do espao, a efetivao do exer-ccio do poder e sistematizao do conhecimento para alm da f.

    O mundo burgus no mais nem menos humanoque o feudal, o que est em jogo o que se entendepor humano e, na ascenso das relaes fundadasna produtividade cumulativa, a criatura tem de setransformar em criador e, portanto, olhar o mun-do como seu. (SANTOS, 2002, p. 83).

    Certamente, a criao de um mundo racional passa pela raci-onalizao das nossas percepes. Nesse novo mundo, no mudouapenas a forma como as pessoas sentiam o mundo, mas tambm amaneira como pensavam sobre ele.

    Como vimos, pensar o espao no foi uma atividade terico-reflexiva lanada aos olhares do mundo pela Cincia Geogrfica. Masessa construo discursiva rendeu mltiplas teorizaes, ancoradasem perspectivas polticas e ideolgicas que consubstanciaram oarcabouo terico dessa moderna cincia.

    Para ns Gegrafos, torn-lo inteligvel e compreensvel aatividade basilar de nossas anlises. Decifr-lo significa revelar as prati-cas sociais realizadas pelos mais diversos grupos sociais que nele(re)produzem, circulam, consomem e realizam a efetivao da vida.

    O ESPAO E AS CORRENTES TERICAS

    Entre outros, a Geografia tem como objeto de estuda a soci-edade, que objetivada por meio da utilizao de um conjunto deconceitos entre eles, o Espao. Esses conceitos foram pensados e

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    teorizados das mais diversas formas e perspectivas na mais diversascorrentes do pensamento geogrfico.

    Iniciaremos nossa anlise apresentando algumas caractersti-cas de como esse conceito foi pensado pela chamada Geografia Tra-

    dicional. Uns dos marcos principais que confabulam na articulaodas teorias que embasam esse vis do pensamento geogrfico, foi aoficializao do ensino de geografia nas Universidades europias. Esseprocesso ocorreu por volta de 1870. A principal caracterstica dessapoca reside no fato de que nesse momento as anlises estavam volta-das para a discusso dos conceitos de Regio e Paisagem, e as aborda-gens que privilegiassem as localizaes das atividades antrpicas, esta-vam secundarizadas. Na Geografia Tradicional, o Espao, ainda noera encarado como um conceito--chave.

    O Gegrafo alemo Ratzel levantou na poca algumas consi-deraes em torno do conceito de espao, mas com o intuito deevidenciar suas teorias territoriais: antropogeografia, ou seja, o espa-o algo vital e indispensvel para a realizao da vida do homem.Entretanto, esse substrato, no qual se do essas interaes receberia adenominao de Territrio. Nesse sentido, podemos destacar que oEspao no era a discusso central, mas ele era a base para de susten-tao das teorizaes que estavam em voga naquele perodo.

    Por volta de 1950, a insurgncia da revoluo teortico-quan-titativa introduziu profundas transformaes no fazer geogrfico, aoadotar como referencial os modelos tericos matemticos equantitativistas, elaborados pelas cincias fsicas e naturais.

    Nesse sentido, Correa (2006, p. 20) ajuda a endossar nossadiscusso, reafirmado que:

    O raciocnio hipotctico-dedutivo foi, em tese, con-sagrado como aquele mais pertinente e a teoria foierigida em culminncia intelectual. Modelos, entreeles os matemticos como sua correspondentequantificao, foram elaborados e, em muitos ca-sos, anlogos aos das cincias naturais.

    Apesar da matematizao das anlises dos processos humanosde uso, planejamento e ocupao do solo justamente nesseparadigma que o conceito de espao passa a ter a devida e necessriaateno. Neste contexto, duas principais concepes distintas estive-

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    ram em evidncia. Espao enquanto:1. Plancie Isotrpica (embasada pelo racionalismo hipottico-

    dedutivo que considerava o espao enquanto uma superfcieuniforme em sua geomorfologia/clima/vegetao bem como,

    em seus indicadores sociais e populacionais. Um exemplo aser destacado seria quanto s possibilidades homogneas decirculao de pessoas e materiais pelo espao, sem levar emconsiderao as diferenciaes existentes entre as regies deum pas, quanto ao oferecimento de uma malha rodoviria/ferroviria/area/hidroviria).

    2. Representao Matricial (essa forma de representao utiliza-se da linguagem geomtrica para abordar seus objetos, repre-

    sentados pela gerao de matrizes, estabelecendo os fluxos demovimentao e as redes de contato).

    Chamamos a ateno para o fato de que ambas as formas derepresentao privilegiam uma perspectiva paradigmtica de equilbrio.

    Ao longo da dcada de 1960, ao mesmo tempo que vigoravaem todas as cincias s um modelo neopositivista de pensamento,havia tambm um forte sentimento de mudana. Movimentoscontestatrios e de insatisfao em todo planeta surgem com o intui-

    to de questionar os modelos vigentes de produo de conhecimentoe de organizao da sociedade e dos modelos produtivos. Neste con-texto, ocorre o fortalecimento da reflexo marxista. Vejamos as con-tribuies de Capel (1981 p. 405):

    La aparicin de movimentos revolucionarios en elTercer Mundo va afectando de forma lenta, peroincontenible el antiguo sistema de dominacinimperilaista que pretene ahora perpetuarse a tra-vs de unas relaciones neocoloniales con los paisesindependientes [...] En el campo de las cienciassociales todo ello se tradujo em una nuevacomprensn de los problemas de los problemas delos paises dependeintes, y en una puesta en cuestindel papel de las potencias imperiales y del sistemacapitalista em la situacion de sudesarrollo, asi comoen uma quiebra de la confianza en muchos de losenfoques hasta entonces dominates.

    A integrao das teorias marxistas encontrou na escola fran-cesa um vasto campo para multiplicar as teorizaes acerca das prati-

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    cas sociais e espaciais. Em especial o filsofo Henry Lefevbre com arealizao dos seus estudos voltados para o entendimento das rela-es sociais existentes no mundo urbano moderno, abriram espaossignificativos para o desenvolvimento de uma teoria marxista do es-

    pao. Assim, o Espao desempenharia um papel ou uma funodecisiva na estruturao de uma totalidade, de uma lgica, de umsistema (LEFEBVRE apud CORRA, 2006, p. 25).

    Com isso, um conjunto de posturas foram levantadas, desta-cando que o espao no poderia ser encarado como absoluto, vazio epuro, nem como receptculo onde se rene os objetos produzidos,no seria tambm, ponto de partida ou de chegada para s anlises,salienta Corra (2006).

    Do espao no se pode dizer que seja um produtocomo qualquer outro, um objeto ou uma somade objetos, uma coisa ou uma coleo de coisas,uma mercadoria ou um conjunto de mercadorias.No se pode dizer que seja simplesmente um ins-trumento, o mais importante de todos os instru-mentos, o pressuposto de toda a produo e detodo intercmbio. Estaria essencialmente vincula-do com a reproduo das relaes (sociais) de pro-

    duo. (LEFBVRE apud CORRA, 2006, p. 26).

    A partir dessas perspectivas, o Espao passou a ser encaradocomo o lcus da reproduo das relaes sociais de produo. Essaconcepo iria direcionar e embasar as anlises dos gegrafos a partirda dcada de 1970 que passaram a adotar como referencial tericofundamentador das discusses, o materialismo histrico e dialticoelaborado por Karl Marx.

    Aqui no Brasil, um dos principais gegrafos a seguir essa li-nha de raciocnio foi Milton Santos. O Espao passa a ser encaradocom uma esfera importante da sociedade (reflexo ou instncia desta)para entender a reproduo das relaes sociais de produo. ParaSantos, o espao s se torna visvel e passvel de ser interpretado pelatica da Geografia preciso criar categorias de anlise para decifra-lo:

    Estrutura(diz respeito natureza social e econmica de umasociedade em um dado momento temporal);

    Processo (ao contnua visando um resultado qualquer im-plicando tempo e mudana);

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    Funo (atribui atividades e destinos s formas cotidianamen-te vivenciadas em suas mltiplas dimenses);

    Forma ( o aspecto visual de um objeto, seu exterior).Segundo Santos (apud CORRA, 2006, p. 28-30), essas esfe-

    ras so indissociveis. Tomadas individualmente representam apenasrealidades parciais, limitadas do mundo e no geogrficas. Juntas po-rem, constituem uma base terica para se discutir os fenmenos es-paciais.

    A dcada de 1970 foi responsvel tambm, pelo surgimentoda Geografia Humanistae, consequentemente, da retomada das dis-cusses da Geografia no mbito cultural que procurou evidenciar oespao vivido e privar pela valorizao de uma nova escala de anli-

    se: o lugar. Assentadas nas filosofias do s significados, o existencialismoe a fenomenologia, privilegiando o singular e no o particular ou ouniversal.

    Nesse sentido, Capel (1981, p. 425) destaca que,

    En definitiva es el espacio vivido tal como es vividorealmente, y los mecanismos de percepcin y deajuste con el medio geogrfico lo que, a travs detodo ello, empieza a interessar, enlazando de esta

    forma con los enfoques fenomenolgicos yexistenciales a los que antes hacamos referencia.

    A concepo de espao vivido (escola francesa), procuroudestacar o lado afetivo, mgico e imaginrio das relaes que se esta-belecem e ajudam a configurar o sentido dos lugares e dasespacialidades cotidianamente vivenciadas, que passam tambm a seexpressar como um campo de representaes simblicas. Nasce a,um projeto vital de sociedade calcada nos sentimentos de

    pertencimentos e de afetividade construdos a partir da vivncia nolugar.

    De forma geral, apesar das chamadas escolas geogrficas e in-troduo de novos referenciais metodolgicos, o sentido do concei-to de espao tendeu a ser tomado como um palco estranho ao ho-mem, como natureza fsica ou fisicidade urbana, como base materialdo territrio para domnio humano ou forma de pertencimento. Ocomum a tudo isso o sentido dogmtico de verdade cientfica a ser

    atingido, mesmo que questionando a isso.

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    At aqui, apresentamos como as concepes e as formas deapropriao do espao foram sendo engendradas, pela Geografia. Apartir do prximo tpico, tentaremos evidenciar uma das possibili-dades existentes de aproximao entre os elementos da linguagem

    geogrfica com os da linguagem cinematogrfica. Nesse ponto, o di-logo com outras esferas do saber humano, como no caso a arte (emespecial o cinema), pode contribuir para ampliar os conceitos, indoalm do formalismo e da mera especializao dogmatizante dos mes-mos, visto que, arte e cincia, sensibilidade e racionalidadeinterpenetram-se continuamente em todas as instncias do processode criao.

    O cinema, ao narrar os acontecimentos enquanto imagem do

    mundo estabelece essa possibilidade de falar ao homem no seu pre-sente espacial e temporal, sendo nestas condies que se d a cons-truo da existncia humana. Desta forma, discutiremos como o ci-nema se apropria dessa esfera de realizao da vida (o Espao) nosentido de viabilizar suas tramas e narrativas.

    CINEMA E GEOGRAFIA O ESPAO GEOGRFICO COMOUM CAMPO DE POSSIBILIDADE PARA A CONSTRUO

    DA NARRATIVA FLMICA

    O cinema, pelos seus aspectos de produo e distribuio,assim como pela sua prpria esttica de elaborao (uso de lentes,enquadramentos, simultaneidade de imagens, edio e montagemetc.), permitiu o surgimento de uma nova forma de ver e perceber,exercitando maneiras subjetivas e objetivas, dinmicas e fracionadasde se ler espao, o que gerou presses sobre as diversas reas do saber

    cientfico, com o objetivo de buscar melhor compreender o papel e algica de elaborao e divulgao das imagens. Desta forma, desta-cou-se para a Geografia a necessidade de melhor compreender o pa-pel da imagem na configurao e leitura das relaes scio-espaciaisestabelecidas.

    Mas quais as ligaes concretas existentes entre o cinema e aGeografia? Como elas se estabelecem? E o que seriam as geografias deum filme?

    Essas questes, de certo modo, tentaro contribuir com oenriquecimento do dilogo entre essas duas formas de produo, a

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    Geografia e o Cinema. Neste sentido, a questo que se apresenta noest em como devemos olhar e mostrar o que h de geogrfico emuma obra cinematogrfica, mas sim, estabelecer qual a geograficidadeexistente em uma obra flmica e a qual (is) geografia (s) esta obra

    permite existir.Assim como as reas do conhecimento cientfico, a arte cine-

    matogrfica desenvolveu um conjunto de elementos que fundamen-tam e estruturam a sua linguagem (lentes, angulaes, planos, monta-gem, decupagem, sonorizao, efeitos grficos, entre outros). No in-cio, os filmes eram constitudos por uma mera sucesso de qua-dros, entrecortados por letreiros (vide os filmes de Chaplin) queapresentavam dilogos e davam outras informaes que a incipientelinguagem cinematogrfica no conseguiu fornecer. Com o desenvol-vimento de novas tcnicas e tecnologias foi havendo um aprimora-mento da linguagem. E, os passos fundamentais para a elaborao eestruturao dessa linguagem recaem, sobretudo, sobre a criao dasestruturas narrativas da trama e a sua intrnseca relao com o espao(BERNARDET, 1991).

    A sociedade contempornea e caracterizada, dentre outras coi-sas, pela simultaneidade e sobreposio das relaes espaos-tempo-rais. Entretanto, para os primeiros filmes, representar a caoticidadedo mundo atual era uma tarefa quase impossvel de ser realizada.Nesse perodo (primeiras dcadas do sculo XX), o cinema conseguiadizer apenas: agora acontece este fato (primeiro quadro), e logo emseguida: acontece aquilo (segundo quadro), e assim sucessivamente.Uma importante conquista para o desenvolvimento da linguagemcinematogrfica se deu quando o cinema deixou de apenas relatar oconjunto de cenas que se sucediam no tempo e passou a dizer: en-quanto isso. Ou seja, algo prximo do formato que temos hoje. Ha alternncia dos espaos e dos fatos de forma no linear, por exem-plo, nas sequncias de suspense dos filmes de Alfred Hitchcock, emuma perseguio vemos alternadamente o perseguidor e o persegui-do, o perseguidor que no vemos continua a correr e vice-versa. Algosimples, porem, no momento de sua descoberta, genial!

    Outro elemento que propiciou a linguagem cinematogrfica

    alar vos mais longos em suas empreitadas cinematogrficas, foi odeslocamento da cmera que abandona sua imobilidade (naquele

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    1 David W. Griffith, cineasta Estadunidense (1875-1948).

    perodo as cmeras eram enormes, pesadas e de difcil manuseio) epassa a explorar o espao com a utilizao dos travellings, ou carri-nhos, das panormicas e com o uso das lentes chamadas zoom.Para filmar uma cena de perseguio de automvel, Griffith1 fixou sua

    cmera na dianteira de um veculo. Esse foi o primeiro travelling (dapalavra inglesa travel, que significa viagem) da histria do cinema.

    Bernardet (1991, p. 36) destaca ainda que:

    Filmar ento pode ser visto como um ato de recor-tar o espao, de determinado ngulo, em imagens,com uma finalidade expressiva. Por isso, diz-se quefilmar uma atividade de anlise.

    A partir de ento, a cmera no s passou a deslocar peloespao, mas recort-lo. Todo filme possui uma espacialidade prpriaconstituda de lugares, no-lugares e territrios. Em uma obra flmicao espao real recortado, decomposto, recriado, sonhado, lembra-do e por fim, vivido como parte de uma experincia que une ashistrias cotidianas, as memrias de vida e as histrias de seus perso-nagens (BARBOSA, 2004, p. 64).

    Mas esse recorte e anlise s ganharam sentidos, no processode montagem do filme o qual, caracteriza-se por uma atividade desntese. A montagem ir definir o ritmo do filme. Sentados mesa, omatador e o direto visualizam as cenas do filme. Elas foram, em suamaioria, rodas fora de ordem. Com a utilizao de alguns efeitos(fade in e fade out, ou seja, a utilizao de um suavizador para passarde uma sequncia outra sem proporcionar um corte seco da ima-gem, o que chamaria a nossa ateno em funo das passagens brus-cas de uma cena outra), todas as cenas que se desenrolaram nummesmo lugar, do incio ou do final de um filme, so montadas emsequncia. importante destacar que a idia de que a articulaoentre dois instantes permite reconstruir, graas montagem, um es-pao de maneira verossmil, um fundamento narrativo introduzidopelo cinema (ARAUJO, 1995).

    Partindo dos elementos que esto impressos e que compema paisagem geogrfica, o cinema os recria, sua maneira, constituin-

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    do novas formas de perceber e visualizar os espaos concretamentevivenciados e os explora com o intuito de atribuir sentido narrativaflmica. justamente neste ponto que se d a interface entre o Cine-ma e a Geografia.

    Como aponta Oliveira Jr. (2006, p. 1)2, A geografia de cinemaseriam os estudos e os encontros com a dimenso espacial na qual aspersonagens de um filme agem. Essa espacialidade constituda pe-los locais narrativos, ou seja, os lugares (cenrios e estdios) peloqual a trama do filme vai se desenvolvendo, por onde os personagensvo passando e se deslocando (por onde vai sendo ambientada), con-ferindo ao filme uma geograficidade, arquitetada pela continuidadeda narrativa cinematogrfica3 que d sentido histria. Entretanto,

    importante destacar que essa geografia produzida e arquitetada emum filme construda pelos passos e olhares dos personagens (OLI-VEIRA JR., 2006, p. 2), no precisa necessariamente estar relaciona-da ou ser correspondente geografia da superfcie planetria.

    Em 1977 o produtor e ator de cinema David Cardoso es-treou na direo com o filme Dezenove Mulheres e um Homem4,comroteiro de Ody Fraga e ambientado em locaes do seu estado natal,Mato Grosso do Sul, com o objetivo de explorar as belezas naturais

    do Pantanal. Como diretor, David Cardoso realizou um filme deaventura, oferecendo um espetculo de muita ao(ABREU, 2006,p. 92) interpretado por ele mesmo.

    2 OLIVEIRA Jr., Wenceslo Machado de. O que seriam as geografias de cinema?Ensaio publicado na pgina da Revista Eletrnica TXT (Leituras Transdisciplinares deTelas e Textos). Disponvel em: http://www.letras.ufmg.br/atelaeotexto/revista\txt[leituras transdisciplinares de telas e textos.html]. Acesso em: 30 out. 2006.3 Ao contrrio do que muitos imaginam o cinema no se opem narrativa. Segundo

    Andr Parente Narrativa e Modernidade a narrativa e a imagem so uma nica emesma coisa. O autor aponta que o cinema, qualquer que seja ele, no tem naturezalingustica, mas propriamente imagtica. As imagens cinematogrficas no se opem narrao, mas a uma concepo da narrao, ou seja, quela que a reduz a processoslingsticos [...] a narrativa no um enunciado que representa um estado de coisas [...]mas o prprio acontecimento (PARENTE, 2000, p. 13).4 19 Mulheres e um Homem (Brasil, 1977. Dir.: David Cardoso; Prod.: DACAR Prod.Cinemat.) Dezenove universitrias paulistas e uma professora resolvem fazer uma ex-curso ao Paraguai alugando um nibus numa empresa, cujo diretor, Rubens, decideservir de motorista e gozar assim suas frias, junto com as moas. A viagem interrom-

    pida por cinco criminosos, fugidos da cadeia, que confinam o grupo numa fazenda dopantanal sul-mato--grossense, aps matar os empregados.

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    Nos minutos iniciais, antes de serem apresentados os crdi-tos contendo o ttulo do filme, os atores e toda a produo tcnica,h um conjunto de sequncias e planos que tentam familiarizar elocalizar o espectador na trama. Rubens (David Cardoso) acompa-

    nhado por uma bela atriz aterrissa com seu mono motor (skyplane) noAeroporto de Cumbica (que nos apresentado por meio de umalonga panormica), localizado na cidade de Guarulhos (SP).

    Aps essa sequncia inicial, Rubens desloca-se em direo aoseu local de trabalho, uma empresa de nibus (a garagem da ViaoMotta).

    Ao longo do trajeto podemos identificar alguns pontos im-portantes da cidade de So Paulo (que fazem parte da memria cole-

    tiva dos indivduos), como o elevado Costa e Silva (o famosoMinhoco), a Avenida So Joo e suas intermediaes, at chegar garagem da Viao Motta que, geograficamente, est localizada nacidade de Presidente Prudente (SP) localizada no Oeste do estadode So Paulo e no na cidade de So Paulo como mostra o filme.

    H ento uma relao entre a dimenso espacial, na qual ospersonagens de um filme agem (os locais por onde transcorre a narra-tiva), com os lugares geogrficos alm filme (lugares cartograficamente

    existentes e localizveis, mas que no so apresentados na tela docinema). Para atribuir uma narrativa coerente ao filme, o diretor op-tou por subverter a ordem da localizao real (geogrfica) dessesdois pontos (lugares), apresentando-os como espaos contguos doterritrio. Nesse sentido Oliveira Jr. (2006, p. 2) destaca que:

    Ao cinema, o espao imposto como condio deexistncia. As cenas se desenrolam em lugares flmicosque muitas vezes se cruzam com lugares para alm

    dos filmes, contaminando esses lugares com seussentidos, seus ngulos, seus enquadramentos,redefinindo-os perante os espectadores. Esse pro-cesso de contaminao mtuo: no cinema proli-feram aluses a lugares criados pela Natureza epelos discursos e prticas sociais, da mesma manei-ra, nestes lugares naturais e sociais proliferam alu-ses a lugares criados no cinema.

    Alguns autores defendem a idia de que no faz diferena se

    as filmagens foram realizadas em locaes naturais (nos lugares geo-

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    grficos correspondentes), ou se foram feitas em grandes estdios,como os que existem em Hollywood e sim,

    [...] o que importa o sentido que fica.Isso, emgrande medida, se deve ao fato de que o cinema,ainda que localiza suas narrativas em lugares espe-cficos Sul da Itlia, cidade de Ls Vegas, caatinganordestina tem um carter, via de regra,universalizante, uma vez que ele est sempre a nosfalar da existncia humana, ainda que sejaambientalizada num nico [...] (OLIVEIRA JR.2006, p. 01).

    O cinema no deve se alimentar dessa espacialidade real

    com o intuito de garantir o seu funcionamento e verossimilhana,mas usufruir e submeter essa espacialidade suas recriaes e subver-ter suas dinmicas e contiguidades tornando-as novas e mltiplas.

    Essa habilidade para recortar os lugares e objetos e destac-los, acaba por revelar novas dimenses, possibilidades e facetas quepassariam despercebidas pela grande maioria se estivessem inseridasno contexto amplo, dinmico e complexo5. Como j dissemos nestetpico, a utilizao dos elementos da linguagem cinematogrfica:

    cortes, planos, ngulos, enquadramentos, aparato tcnico e possibili-dades e efeitos na montagem nos proporciona ver detalhes com dife-rentes nuances que normalmente no veramos caso estivssemos pre-sentes no local da filmagem ou mesmo no estando no local e nomomento da realizao do filme, como j o conhecssemos.

    Nesse sentido, como ficaria representado o espao geogrficoque conhecemos a partir dessa outra geograficidade que o cinemaconstri?

    A cidade de So Paulo desde os primrdios vem servindo depalco e referncia para a realizao de inmeras tramas cinematogrfi-

    5 O cinema trabalha muito com detalhes (close-up) em que o micro acaba se revelandona tela maior do que o macro, em funo da explorao dos detalhes (micro-escala).Atualmente a Cincia Geogrfica tem se preocupado com cortes de anlises maisextensos (macro-escala), diferentemente do cinema. As anlises feitas das cidades,campos de cultivo, montanhas ou at mesmo pases inteiros, optam por classificaressas extenses como entidades sem se preocupar com os seus interiores. Para que as

    relaes humanas voltem ao centro do pensamento geogrfico necessrio que seinvista no conceito de lugar (como uma escala valorizada).

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    cas (nas dcadas de 1940, 1950 e 1960 estiveram localizado nestacidade grandes estdios cinematogrficos como a Vera Cruz e aMaristela Cinematogrfica). Em sua grande maioria, filmes comoAnjos do Arrabalde (Carlos Reichenbach, 1987); A Noite das Taras

    (David Cardoso; Ody Fraga; John Doo, 1980); Anjos da Noite (Wil-son Barros, 1986); A Noite do Desejo (Fauze Mansur, 1973); A Damado Cine Shangai (Guilherme de Almeida Prado, 1987) e; O Homemque virou Suco (Joo Batista de Andrade, 1981) pontos histricos etursticos da cidade, como o viaduto do Ch, o Edifcio Copan,Edifcio Itlia, Vale do Anhangaba e o prdio Central do Banespa,no so meras construes de ferro, ao e concreto, mas sim comoaponta Barbosa (2004, p. 64),

    So lugares cujas imagens carregam uma fora sim-blica relacionada visceralmente com o imagin-rio corrente da cidade de So Paulo.As razes es-to na histria que esses lugares protagonizam e naforma como as pessoas se apropriam dela e doslugares, recriando-os e rememorando-os.

    Ou seja, h um adensamento, uma aglutinao desses pontosque, nos dizeres de Carlos (2004), contribuem na formao da identi-

    dade e da memria individual e coletiva dos indivduos que a habitam,uma vez que esses elementos conhecidos e reconhecidos esto impres-sos na paisagem paulistana urbana. Nesse sentido, estaramos falandoem cones paisagsticos ou paisagens adensadas/aglutinadas em que:no o todo que contm a parte, mas a parte que contm o todo,num sentido mais denso por ter que representar as partes obscureci-das. Essas idias esto melhor esclarecidas no fragmento abaixo.

    No cinema, as imagens montadas/mostradas soapenas aquelas partes iluminadas. Elas que, colo-cadas uma aps as outras, constituiriam um filme.O restante, o obscuro, se encontraria entre elas.Neste processo de escurecer/esconder para melhoriluminar que ocorre o adensamento de tudo oque foi escondido e obscurecido no pedao queficou claro. Nele estar presente tudo o que foiexcludo a principio, gerando uma densidade mai-or na parte clara da imagem, uma vez que dela

    que partiremos em direo/em retorno quilo queficou sem luz. (OLIVEIRA JR., 2006, p. 4).

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    Esses adensamentos paisagsticos que revela os cones dos luga-res e regies que esto presentes na memria das pessoas so funda-mentais para construo da paisagem que, pode ser evidenciada nocartaz do filme O Homem que virou Suco (figura 1), o qual foi dirigi-

    do por: Joo Batista de Andrade, em 1981. O personagem interpreta-do pelo ator Jos Dumont, vindo do serto nordestino chega gran-de metrpole paulistana, vai aos poucos perdendo sua identidadediante do gigantismo e dos processos dinmicos da cidade grande. Opersonagem, em sua peregrinao por So Paulo acaba passando porpontos importantes do centro histrico da cidade.

    O cartaz do filme foi feito por um importante cartazista doCinema Brasileiro, Fernando Pimenta. O artista soube aproveitar e

    explorar a trama do filme dando destaque para a grandiosidade egrandiloquncia assumidas pelos cones que esto presentes na me-mria (tanto dos indivduos que habitam essa cidade, quanto daque-les que a conhecem pela televiso ou por qualquer outro meioimagtico de comunicao), e que compem a paisagem urbana deSo Paulo (Edifcio Martinelli, Prdio Central do Banespa e o viadu-to do Ch).

    Independente do objetivo do filme a construo de determi-

    nados parmetros sgnicos dos lugares so consolidadores de imagi-nrios pr-estabelecidos, ao mesmo tempo em que subverte a percep-o dos mesmos.

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    Figura 1 - Cartaz do filme O Homem que Virou Suco.Fonte: www.cinemateca.com.br

    O Cinema rompe com os limites da realidade, proporcio-nando uma nova forma de rearticular e recriar os elementos quepermeiam o nosso cotidiano. Na tela, so projetados os sonhos, asiluses, os devaneios, a vida dentro de um plano, possibilitando umamplo jogo de escalas de espao e tempo, destacando pequenos deta-lhes do cotidiano e minimizando fatos consagrados.

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    CONSIDERAES FINAIS

    Diante de todos esses aspectos, podemos apresentar algumasconsideraes relevantes sobre o tema. Sendo assim, pertinente res-

    saltar que o estudo pautado na racionalizao cientfica, portanto,adequado lgica formal/conceitual, por mais rigoroso e neutro quepretende ser, deve levar em considerao que o rigor discursivo norepresenta o real em sua totalidade, pois devemos levar em conside-rao que interpretar o mundo traduz-se em um processo de cont-nua recriao.

    A Geografia, como as demais disciplinas entendidas e classifi-cadas como cientficas, assim como tambm ocorre com as de carter

    artstico, tem as configuraes de sua existncia social, da elaboraodos seus significados histricos e utilidades em meio s necessidadeshumanas, submetidas fuga de seu prprio territrio de conheci-mento institucionalizado, o qual se consubstanciou ao longo da his-tria da modernidade.

    Certamente, no h Geografia sem que haja a transgresso desuas prprias fronteiras. O reconhecimento destes territrios cientfi-cos (to rigidamente construdos e demarcados) e a efetivao de um

    contnuo dilogo com as demais reas do saber (cientfico ou no)promovero a democratizao dos discursos e uma experinciadialgica to necessria para o revigoramento conceitual e social des-te saber.

    Nesse ponto, o dilogo com outras esferas do saber humano,como no caso a arte (em especial o cinema), pode contribuir paraampliar os conceitos, indo alm do formalismo e da mera especializa-o dogmatizante dos mesmos, visto que, arte e cincia, sensibilidade

    e racionalidade interpenetram-se continuamente em todas as instn-cias do processo de criao.Desta maneira, o gegrafo deve estar preparado para um me-

    lhor aproveitamento e uso de novas linguagens pautadas na imagem,pois produzir conhecimento geogrfico no pode se restringir a con-ceitos genricos que se delimitam no jogo vocabular pautado na coe-rncia da lgica gramatical, com que oficialmente se entende estesaber, reduzindo-o a um processo de memorizao e reproduo de

    palavras e conceitos enrijecidos e que acabam por se impor dinmi-ca do real.

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    Atravs das imagens que a obra flmica apresenta, narram-seos acontecimentos do mundo, nisso ele permite aos observadoresresgatar as memrias espacialmente vivenciadas em diferentes momen-tos, trazendo e re-qualificando a estas perante as novas experincias,

    produzindo a novas memrias por meio de somas, comparao,classificao entre o j vivido com o atualmente experimentado epercebido.

    Estabelecendo uma ponte entre a linguagem geogrfica,notadamente com relao ao conceito de espao, podemos confir-mar que todo e qualquer acontecimento da vida implica um espao,portanto, todo espectador sempre relaciona o que imageticamenteest sendo narrado no filme com um espao narrativo da vida real,isso faz com que todos os acontecimentos e fenmenos experimenta-dos por qualquer ser humano s foram possveis de ocorrerem emalgum lugar e em um determinado momento.

    As imagens flmicas viabilizam a narrao destas experinciasconcretamente vividas nos mais diversos lugares ao estabelecer, pormeio do observador, o resgate, via memria, de um tempo passadopara o presente espacial.

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    Recebido em 18/11/2008.Aprovado para publicao em 09/05/2009