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67 Revista de Arqueologia, 20: 67-82, 2007 Artigo Geoglifos da Amazônia ocidental: evidência de complexidade social entre povos da terra firme Denise Schaan 1 ; Martti Pärssinen 2 ; Alceu Ranzi 3 ; Jacó César Piccoli 4 Resumo Diferenças ecológicas entre os ambien- tes de várzea e terra firme (terra para agricultura, acesso aos recursos ribeiri- nhos e navegação) têm apoiado inter- pretações dos povos de terra firme como horticultores de coivara semi-sedentá- rios, que nunca desenvolveram comple- xas instituições sociais ou cultura mate- rial elaborada. Esse artigo desafia essa posição, ao reportar a existência de cen- tenas de estruturas de terra perfeitamen- te geométricas erigidas por populações pré-colombianas nos solos argilosos da Amazônia ocidental, no Estado do Acre e adjacências. Os geoglifos, como estão sendo chamados, indicam uma popula- ção expressiva, organizada regionalmen- te, vivendo por centenas de anos em um habitat que foi uma vez considerado como inadequado para sustentar com- plexidade social. Levantando algumas hipóteses sobre os construtores de geo- glifos, os autores argumentam por uma revisão do modelo ecológico à luz das novas evidências. Palavras-chave: Geoglifos, terra firme, sociedades complexas, arqueologia Ama- zônica 1 Universidade Federal do Pará, Laboratório de Antropologia A. Napoleão Figueiredo, R. Augusto Correa 1, Campus Básico, 66075-110, Belém/PA, [email protected]. 2 Instituto Renvall, Unionin 38 B (Caixa 59), 00014 - Universidade de Helsinque, Finlândia, [email protected]. 3 Prefeitura Municipal de Rio Branco, Museu de Paleontologia, e Universidade Federal do Acre, Labora- tório de Pesquisas Paleontológicas, [email protected]. 4 Departamento. de Filosofia, Comunicação e Ciências Sociais, UFAC-Universidade Federal do Acre, BR-364, Km 4 - Campus Universitário - 69915-900 - Rio Branco/AC, [email protected].

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Page 1: Geoglifos da Amazônia ocidental: evidência de complexidade ...€¦ · Steward e seus colegas, aos povos ha-bitantes da floresta tropical estaria re-servada a pouco gloriosa condição

67Revista de Arqueologia, 20: 67-82, 2007

Artigo

Geoglifos da Amazônia ocidental: evidênciade complexidade social entre povos da terrafirme

Denise Schaan1 ; Martti Pärssinen2;Alceu Ranzi3 ; Jacó César Piccoli4

ResumoDiferenças ecológicas entre os ambien-tes de várzea e terra firme (terra paraagricultura, acesso aos recursos ribeiri-nhos e navegação) têm apoiado inter-pretações dos povos de terra firme comohorticultores de coivara semi-sedentá-rios, que nunca desenvolveram comple-xas instituições sociais ou cultura mate-rial elaborada. Esse artigo desafia essaposição, ao reportar a existência de cen-tenas de estruturas de terra perfeitamen-te geométricas erigidas por populaçõespré-colombianas nos solos argilosos daAmazônia ocidental, no Estado do Acree adjacências. Os geoglifos, como estãosendo chamados, indicam uma popula-ção expressiva, organizada regionalmen-te, vivendo por centenas de anos em umhabitat que foi uma vez consideradocomo inadequado para sustentar com-plexidade social. Levantando algumashipóteses sobre os construtores de geo-glifos, os autores argumentam por umarevisão do modelo ecológico à luz dasnovas evidências.

Palavras-chave: Geoglifos, terra firme,sociedades complexas, arqueologia Ama-zônica

1 Universidade Federal do Pará, Laboratório de Antropologia A. Napoleão Figueiredo, R. Augusto Correa1, Campus Básico, 66075-110, Belém/PA, [email protected] Instituto Renvall, Unionin 38 B (Caixa 59), 00014 - Universidade de Helsinque, Finlândia,[email protected] Prefeitura Municipal de Rio Branco, Museu de Paleontologia, e Universidade Federal do Acre, Labora-tório de Pesquisas Paleontológicas, [email protected] Departamento. de Filosofia, Comunicação e Ciências Sociais, UFAC-Universidade Federal do Acre,BR-364, Km 4 - Campus Universitário - 69915-900 - Rio Branco/AC, [email protected].

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Schaan, D.; Pärssinen, M,; Ranzi, A.; Piccoli, J. C.

AbstractEcological differences between várzeaand terra firme environments (agricul-tural land, access to riverine resourcesand navigation) have supported inter-pretations of terra firme peoples as semi-sedentary, slash-and-burn cultivatorswho never developed complex social ins-titutions and elaborated material cultu-re. This article aims to challenge this as-sumption by reporting the existence ofhundreds of geometric earthen structu-res built by pre-Columbian populationsin the clayed soils of occidental Amazo-nia, in the state of Acre and adjacenci-es. The geoglyphs, as they are been cal-led, indicate that sizable, regionally or-ganized populations were living for hun-dred of years in a habitat that was onceconsidered inadequate to support cultu-ral complexity. Raising some hypothesisabout the geoglyphs’ builders, the au-thors call for a revision of the ecologicalmodel in light of the new evidence.

Keywords: Geogliphs, terra firme, com-plex societies, Amazonian archaeology

IntroduçãoAs pesquisas arqueológicas na Ama-

zônia começaram a pautar-se, a partirda metade do século XX, pelo debatesobre o desenvolvimento cultural vistoa partir de perspectivas ecológicas. Omarco inicial do tão debatido determi-nismo ecológico foi o volume 3 do Han-dbook of South American Indians, orga-nizado por James Steward (1948): Thetropical Forest Tribes. De acordo comSteward e seus colegas, aos povos ha-bitantes da floresta tropical estaria re-servada a pouco gloriosa condição de so-breviventes em uma região de solos po-bres e escassa proteína animal. Nos vinteanos que se seguiram à publicação se-minal de Steward, Meggers refinou taisteorias, construindo argumentos ecoló-gicos a partir de diversas disciplinas,mostrando como estresses climáticos

cíclicos, escassez protéica e solos pobrestinham contribuído para manter o de-senvolvimento cultural no patamar ca-racterístico de floresta tropical (Meggers1954, 1979, 1994, 1995a, 1995b). Umaexceção, no entanto, foi feita, publicadaprimeiramente no livro Amazônia, a Ilu-são de um Paraíso (Meggers, 1971,1977). Lá Meggers reconhecia a superi-oridade da várzea do Amazonas e seusgrandes tributários, locais onde as artese a política poderiam ter alçado outrosvôos, devido à fertilidade superior dossolos e à oferta abundante de fauna aqu-ática.

A dicotomia várzea/terra firme per-sistiu nos trabalhos arqueológicos e an-tropológicos posteriores, incluindo aí ou-tros autores não alinhados com Meggers(Carneiro, nesse volume; Roosevelt,1991). Críticas futuras a tal visão simplis-ta de uma Amazônia imensa, reduzida adois habitats principais foram realizadaspor estudiosos de outros campos (Morán,1995), mas sempre a consideração dasuperioridade da várzea permaneceu naliteratura arqueológica, principalmente.A contribuição de Heckenberger (1996,2005, Heckenberger et al., 2003), estu-dioso das comunidades regionais do altoXingu foi a primeira crítica mais consis-tente à visão de uma terra firme des-provida dos meios necessários à emer-gência de complexidade social. Aindaque Carneiro (1960, 1961) tenha res-saltado, desde os anos 1960, a faláciada agricultura semi-sedentária pintadapor Meggers, a falta de argumentos ar-queológicos certamente impediu que fos-se ouvido entre os estudantes das soci-edades pretéritas amazônicas.

Pode-se dizer, então, que a dicoto-mia várzea/terra firme, no que tange àspossibilidades que um ambiente e outrooferecem ao desenvolvimento de com-plexidade social, ainda que continua-mente desafiada, tem sido festejada pormais tempo do que deveria. Nesse arti-go pretendemos colocar mais uma pe-dra no caminho dos deterministas am-

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bientais, os poucos que ainda negam-sea admitir a crescente quantidade de evi-dências que apontam para uma históriaamazônica plena de episódios de supe-ração das supostas dificuldades ecológi-cas. Nos últimos anos, e especialmentenos últimos meses, os autores desse ar-tigo têm descoberto estruturas de terrade tamanho monumental, verdadeirasobras de engenharia construídas nossolos argilosos de terra firme da porçãooriental do Estado do Acre, sul do Esta-do do Amazonas e oeste de Rondônia.Até agora são mais de cem sítios desco-bertos, espalhados por uma região de250km de extensão, que demonstram aexistência de uma população considerá-vel manejando áreas tidas como inade-quadas para suportar grandes densida-des populacionais. Nesse artigo resumi-mos os dados obtidos até agora com re-lação a esses sítios a que chamamosgeoglifos e cuja existência, acreditamos,têm o potencial de reescrever a históriada ocupação humana da Amazônia.

Breve histórico daarqueologia do Ácre

A arqueologia do Estado do Acre tor-nou-se conhecida a partir de 1977 comas investigações realizadas pelo Progra-ma Nacional de Pesquisas Arqueológicasna Bacia Amazônica - PRONAPABA. On-demar Ferreira Dias Jr. e Franklin Levy,do Instituto de Arqueologia Brasileira,foram os primeiros a identificar e regis-trar sítios arqueológicos na região, ca-dastrando, até 1980, 70 sítios (Dias,1977, 1979, 1980; Dias e Carvalho,1978)

Seguindo a proposta de divisão emfases arqueológicas do programa, naárea SM (Sena Madureira) identificou-se a fase cerâmica Iaco. Na área XA (Xa-puri) identificaram-se as fases Quinari eXapuri, mas o sítio Los Angeles, que es-taria nessa área apresentou uma cerâ-mica diferente, que não foi classificadaem nenhuma das fases anteriores. Os

pesquisadores ainda notaram diferençasentre os sítios com relação ao tamanho,forma e tipo de cerâmica associada. Al-guns sítios foram identificados como sen-do sítios de habitação, pela presença deuma cerâmica simples e sem decoração,enquanto outros foram identificadoscomo sendo sítios cerimoniais, pela pre-sença de cerâmica decorada e enterra-mentos em urnas. Ambos, sítios-habi-tação e sítios-cerimoniais ocorriam emtodas as fases. As pesquisas não forammuito além desta primeira identificação,e não foram feitas escavações mais ex-tensas ou datações destes sítios.

Alguns dos sítios identificados peloPRONAPABA, entretanto, estavam asso-ciados a estruturas de terra, como mon-tículos ou trincheiras circulares de gran-de extensão, circundadas por muretasformadas pelo solo escavado. Por exem-plo, o sítio AC-IQ-2: Prohevea, localiza-do no vale do rio Iquiri, apresentava umatrincheira circular de cerca de 100m dediâmetro, 10m de largura e 1m de pro-fundidade (Simões, 1983). Uma macro-estrutura medindo 50 por 50m tambémfoi identificada no sítio AC-IQ-1: Campodas Panelas, situado a 3km da estradaRio Branco-Xapuri (km 42). Todos estessítios, no entanto, foram localizados ge-ograficamente de maneira rudimentar epouco precisa, principalmente devido àfalta de GPS na época. Ao todo foramidentificados nove sítios com estruturasde terra (Dias s/d).

Como resultado da análise da cerâ-mica coletada nestes sítios, OndemarDias estabeleceu a existência de ocupa-ções distintas, caracterizadas como fa-ses cerâmicas, e as agrupou em umamesma tradição, chamada Quinari(Prous, 1991:464). Uma característicadesta tradição é a existência de vasosde formato geral cilíndrico, mas abaula-dos no centro, onde a decoração freqüen-temente representa figuras humanas, oque fez com que os chamassem de “va-sos-caretas” (Prous, 1991:465). Em al-guns dos sítios pesquisados, identifica-

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ram montículos de terra (de até 4m²)repletos de fragmentos de cerâmica.Foram encontrados também instrumen-tos líticos, principalmente lâminas demachado. Os anéis de terra identifica-dos por Ondemar Dias estavam associa-dos a esta Tradição Quinari, nas suasdiversas fases.

Interessante notar aqui é que, devidoà excessiva preocupação com a cerâmicapor causa das seriações que deveriamproporcionar datações relativas e com-provar a teoria de que as ocupações se-riam semi-sedentárias, os impressionan-tes anéis de terra não foram considera-dos como caracterizando um tipo distin-to de ocupação. Ou seja, as estruturasde terra não foram consideradas comoestruturas arqueológicas importantes osuficiente para indicarem que aquilo setratava de uma nova forma de ocupaçãodo espaço físico. Não deixa de ser curio-so notar que a ecologia, tão exaltadapara a formação de modelos interpreta-

tivos entre os pesquisadores do PRONA-PA e PRONAPABA, não era levada emconsideração na interpretação das açõeshumanas no processo de ocupação dedeterminada área geográfica.

De qualquer modo, parece que asestruturas de terra tinham, sim, desper-tado a curiosidade de Dias. Tanto é que,em 1988, ele publica, juntamente comEliana Teixeira de Carvalho, um peque-no artigo no Boletim do IAB - InstitutoBrasileiro de Arqueologia, intitulado Asestruturas de Terra na Arqueologia doAcre (Dias e Carvalho, 1988), onde des-creve oito sítios com estruturas e ofere-ce sua interpretação. No quadro I po-dem ser vistos os dados básicos sobreesses sítios. Todos os sítios estavam lo-calizados em áreas de cotas elevadas(cerca de 200m), no interflúvio. Seis sí-tios possuíam estruturas circulares (umcom círculo duplo e outro elíptico) comdiâmetro médio de 100m, e valetas pou-co profundas, com cerca de 1m de

Quadro I – Sítios com estruturas de terra identificados pelo PRONAPABA

Sítio Tipo de estrutura Medidas Fase Localização

AC-XA-03: São Francisco Círculo

Diâmetro desconhec., parcialmente destruída, valeta 3m largura

Fase Xapuri BR-317 – Rio Branco-Xapuri

AC-IQ-02: Prohevea Círculo

100m diâmetro, valeta 10m largura, 1 m prof

Sem mat. arq., área da fase Quinari

BR-317 – Rio Branco-Xapuri

AC-RB-01: Boca Quente Círculo

120m diâmetro, valeta 6m largura, 1 m prof

Sem mat. arq., área da fase Quinari

Vale do Rio Acre, próx. A Rio Branco

AC-XA-01: Palmares I Círculo

65m diâmetro, valeta 8m largura, 1 m prof

Sem mat. arq., área da fase Quinari

BR-317 – Rio Branco-Xapuri

AC-SM-01: Lobão Dois círculos

50 e 10m diâmetro, 2m larg., 0,5 m prof.

Iaco 18,5km de Sena Madureira, vale rio Iaco

AC-IQ-01: Campo das Panelas

Elíptica 100x80m, valeta 8m largura, 1 m prof.

Quinari BR-317 – Rio Branco-Xapuri

AC-IQ-9: Catapará Mureta retilínea 10m extensão

Sem mat. arq., área da fase Quinari

65km de Rio branco, Munic. Plácido de Castro

AC-IQ-08: Catuaba

Plataformas retilíneas

8m de extensão, 4m largura e 1m de altura

Quinari

BR-364 – Rio Branco-Porto Velho, Munic. Plácido de Castro

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profundidade. Um sítio foi classificado nafase Iaco, um na fase Xapuri e os de-mais na fase Quinari, considerando-secomo Quinari também aqueles nos quaisnão havia sido encontrada cerâmica, masestavam na mesma área geográfica (Diase Carvalho, 1988).

Buscando uma razão para a constru-ção do conjunto valeta-mureta, Dias eCarvalho (1988:23) consideram que avaleta pode ter sido resultante da reti-rada de terra fértil, superficial, acumu-lada no exterior do círculo, cujo intentoseria formar uma barreira vegetal comuma plantação de abacaxis, impedindode forma eficaz qualquer tentativa decruzá-la, pelo menos a pés descalços,por homens e animais (Dias e Carvalho,1988:23). Essa hipótese baseia-se emuma observação feita em 1983 pelos au-tores de prática similar em uma aldeiaCurina no rio Juruá, Estado do Amazo-nas. No caso da segunda estrutura dosítio AC-SM-01: Lobão, com apenas 10mde diâmetro, os autores consideram quepoderia ter protegido a moradia de umchefe (Dias e Carvalho, 1988:24).

Nos anos de 1984 e 1985, o prof.Oldemar Blasi, arqueólogo do Museu Pa-ranaense, juntamente com o prof. JacóCésar Piccoli, antropólogo da Universi-dade Federal do Acre - UFAC, desenvol-veram escavações no sítio AC-XA-07:Los Angeles (10º42’48” S, 68º10’46”W),no contexto de atividades de extensãoteóricas e práticas na área da arqueolo-gia realizadas em conjunto pelo Depar-tamento de Filosofia e Ciências Sociaisda UFAC e a Fundação de Desenvolvi-mento de Recursos Humanos da Culturae do Desporto do Estado do Acre. Loca-lizado no município de Senador Guio-mard, o sítio foi descrito como possu-indo uma estrutura circular de cerca de

200m de diâmetro, valeta com largurade 2 a 3m e fosso atingindo em algunspontos até 3m de profundidade. Os re-sultados daquela pesquisa foram proces-sados em relatório institucional e estãosendo preparados para publicação.

Entre julho de 1994, juntamente compesquisadores ligados ao IAB e os pro-fessores Mauricélia Barroso e Marcus Vi-nícius Simplício das Neves, do Departa-mento do Patrimônio Histórico do Esta-do do Acre, Ondemar Dias volta ao Acrepara escavar o sítio Los Angeles. As pes-quisas então efetuadas foram patrocina-das pela National Geographic Society(Grant n. 5.200/94) e os dados integra-dos ao PRONAPABA. Segundo Dias (s/d)5 , havia três razões principais paraescavar o sítio Los Angeles: o grandetamanho da estrutura (que, com 200mde diâmetro era a maior conhecida atéentão), seu bom estado de conservaçãoe o fato de que a cerâmica lá encontra-da não pertencia à nenhuma das fasesjá identificadas.

Aparentemente, antes da chegada deDias no Acre, na década de 1990, os téc-nicos do Departamento do PatrimônioHistórico do Estado Acre tinham encon-trado três outros sítios, dois deles comestruturas circulares: AC-RB-10: SítioGuarantã (9º52’24”S 67º23’23” W)(135m de diâmetro) e AC-IQ-11: SítioAlto Alegre (10º04’31”S 67º33’14” W),com valeta circular dupla (127m de diâ-metro, largura de 15m e profundidadede até 2,9m)6 . O sítio Alto Alegre (Fig.01) foi escavado, e algumas amostrasde cerâmica foram datadas por termo-luminescência, fornecendo as datas de2070 AP, com 400 anos de permanência(Nícoli:2000, citada por Dias s/d).

Prospecções realizadas durante o es-tudo do sítio Los Angeles revelaram sete

5 Obtivemos informações sobre os trabalhos realizados por Ondemar Dias e alunos seus no Acre entre1992 e 1994 através de artigo inédito intitulado “As Estruturas Arqueológicas de Terra no Estado doAcre, Amazônia Ocidental, Brazil. Um Caso de Resiliência?”, que nos foi enviado gentilmente pelopróprio autor, Ondemar Dias. Ficamos sabendo que o artigo teria sido publicado, mas não tivemosacesso à versão final.6 O terceiro sítio era AC-RB-02: Sítio Macauã (10º05’19”S 67º56’25”W), sítio cerâmico sem estrutura,localizado próximo ao riozinho do Rola, Rio Branco.

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novos sítios, sendo cinco com estrutu-ras de terra (Dias s/d, ver Quadro II). Osítio AC-XA-08: Sítio Xipamanu(10º42’07” S 68º09’33” W) teve amos-tras de cerâmica datadas por termolu-miniscência, em 2600 AP, com 970 anosde permanência (Nícoli:2000, citado porDias s/d). Os sítios AC-XA-13: Igarapédo Escondido (10º44’48”S 68º10’28”W)e AC-XA-10:Ouro Branco (10º43’12”S68º10’36”W), esse último localizado pró-ximo ao sítio Los Angeles, não apresen-taram estruturas de terra.

As escavações no sítio Los Angelesforam feitas na forma da abertura decortes estratigráficos 1x1m, ampliadoseventualmente, seguindo uma linha nor-te-sul a partir do centro da figura até aparte externa. A concentração de cerâ-mica variou espacialmente, com densi-dades maiores entre 27 e 40m do cen-tro e 64 e 70m do centro (Nícoli:2000,citado por Dias s/d). O sítio não apre-senta a TPA típica dos sítios-habitaçãoamazônicos. Foram obtidas diversas da-tas por termoluminescência, que, ape-sar de serem executadas sobre amos-tras coletadas do nível 30cm, mostra-ram grande discrepância: 1700-1660 AP,2920-2730 AP e 1410 AP (datas em La-tini, 1998:88; citadas por Dias s/d). Dias

(s/d:31) interpreta essas diferençascomo ocupações distintas, concêntricase não contemporâneas, separadas pormomentos de abandono.

Foram feitas escavações também naestrutura de terra, tanto nas muretas(interna e externa) quanto na valeta. Amaior quantidade de cerâmica ocorreuna mureta externa e na valeta, onde aocorrência de material cerâmico, lítico,ossos e carvão alcançou 2,20m de pro-fundidade. Carvão coletado no nível 180-190cm foi datado em 2050 AP (Dias, s/d:10). Outras datações de TL e C14 va-riam entre 1228 e 2940 AP (op.cit.). Agrande ocorrência de material cerâmicodentro da valeta foi interpretada comohabitação dentro das valetas, mesmoque esporádica ou ocasional (o que po-deria indicar seu uso em momentos decrise, ou nas friagens, por exemplo (Dias,s/d:12).

Com relação à interpretação das es-truturas, Dias duvida que tenham sidotrincheiras defensivas cercando aldeias,mas não descarta totalmente a possibi-lidade. Considera que a superfície da áreainterna é geralmente mais baixa do queo exterior, o que dificultaria a defesa(Dias, s/d:25).

Quadro II – Sítios de estruturas encontrados em 1994

Sítio Tipo de estrutura Medidas Fase Localização AC-IQ-12: Sítio Sapucaia (9º52’54”S 67º25’06”W)

Quadrado s/informação Não determinada BR-317

AC-XA-08: Xipamanu I (10º42’07” S 68º09’33” W)

Elipse 300x160m Não determinada BR-317

AC-XA-09: Xipamanu II (10º42’08”S 68º09’34”W)

Círculo 200m diâmetro Não determinada

BR-317, 300m de Xipamanu I

AC-XA-11:Rio Ina (10º45’29”S 68º11’22” W)

Círculo 200m diâmetro Não determinada

Fazenda Guanabara

AC-XA-12: Jarina (10º45”43”S 68º09’02”W)

Círculo 70m diâmetro Não determinada

Próximo igarapé Escondido, rio Ina

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Dias (s/d:27) ainda considera que al-gumas estruturas estariam relacionadasa sítios sem estruturas, de onde poderi-am ter saído também braços para cons-truí-las, o que é uma hipótese interes-sante.

Dias (s/d:37-38) procura explicar asestruturas como

um novo comportamento frente a uma (oumais) pressão externa, [que, por sua for-ça, faria com que] comunidades em chefiasimples se organizassem de forma a pode-rem unir forças em torno de um objetivocomum, simbolizado pelas obras de terra-plenagem (valetas, muretas, elevações re-tilíneas), sem – no entanto – abandona-rem completamente o estilo de vida anteri-or, de núcleos espalhados pelo campo. [Aexistência de uma chefia regional é expli-cada pela provável existência de] uma li-nhagem dominante, capacitada a organi-zar ou dirigir tais esforços. [Causas exter-nas seriam mudanças climáticas, migra-ções, epidemias] Mesmo que o impulso quelevou às construções tenha chegado ao lo-cal por difusão, a história seguiria no Acreuma trajetória própria, e diferente dos lu-gares de origem, onde tais construções per-maneceram sendo produzidas, como padrãocomum pelos séculos vindouros (Dias,s/d:39).

No final da década de 1990, amos-tras de cerâmica coletadas por Dias fo-ram objeto de estudo por parte de duasestudantes de química da UniversidadeFederal Fluminense (Latini 1998, Nícoli,2000). Latini analisou 162 fragmentoscerâmicos classificados por Dias em vá-rias fases da Tradição Quinari, relacio-nada às estruturas de terra: 20 perten-ciam à fase Quinari, 18 à Iquiri, 22 àIaco, 11 à Jacuru, 17 à Xapuri e 74 frag-mentos eram provenientes do sítio LosAngeles, que não havia sido enquadra-do em nenhuma das fases conhecidas(Latini et al., 2001:725). O método uti-lizado para a identificação dos compo-nentes químicos foi a AAN (Análise porAtivação Neutrônica). Esse tipo de aná-lise consiste na irradiação das amostrasatravés de sua exposição a um fluxo denêutrons e a conseqüente medida daatividade induzida por meio de espec-

troscopia gama (Latini et al., 2001:724).Uma vez que cada elemento químicopossui uma assinatura diferente, elespodem ser identificados, e o conjunto deelementos e sua quantidade em cadafragmento confere uma identidade úni-ca a cada um. Em seguida, se proces-sam os dados obtidos por meio de umaanálise estatística multivariada, o quepermite correlacionar os objetos combase em múltiplas variáveis e agrupá-los por semelhança. A partir dessa aná-lise, Latini pôde fazer uma classificaçãoem grupos e confrontá-la com a classifi-cação feita pelos arqueólogos.

Latini concluiu que houve uma con-cordância de 70% entre sua classifica-ção e a dos arqueólogos. As fasesarqueológicas Xapuri, Iquiri e Quinari fo-ram as que apresentaram maior concor-dância, e as fases Iaco e Jacuru as quemenos se definiram como um grupohomogêneo. A autora conclui que as fa-ses Xapuri, Iquiri e Quinari possuem al-guma consistência, enquanto que osfragmentos de outras deveriam ser re-classificados. Quanto ao sítio Los Ange-les, o resultado da análise mostrou porque os arqueólogos tiveram dificuldadeem encontrar ali uma fase. Apenas 54%dos fragmentos mostravam alguma ho-mogeneidade, enquanto que o restanteformava um grupo com amostras da faseIaco e Jacuru, além de algumas poucasamostras das fases Xapuri e Quinari(Latini et al., 2001:728-9). Os resulta-dos não surpreendem quem conhece asfalhas da classificação em fases utiliza-da pelo PRONAPABA (ver, por exemplo,A. Dias, 2007; Schaan, 2007).

Geoglifos: pesquisasrecentes

As estruturas de terra descobertaspor Dias permaneceram desconhecidasdos arqueólogos brasileiros e do públicoaté 1999, quando o Prof. Dr. Alceu Ranzi,um paleontólogo da Universidade Fede-ral do Acre, que havia participado ainda

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como estudante das pesquisas do PRO-NAPABA, as viu da janela de um aviãocomercial, quando viajava de Porto Ve-lho para Rio Branco. A partir de então,passou a buscar informações sobre taisestruturas, primeiramente com pilotos deaeronaves e depois com fazendeiros, pro-prietários das terras onde as estruturasse localizavam. Como um estudioso dapaleoecologia da Amazônia, Ranzi esta-va interessado nas implicações daqueleachado para nosso entendimento sobreas dinâmicas de expansão e retrataçãodas florestas. Por sua dimensão e per-feita geometria, as estruturas deveriamter sido feitas quando a região estavaocupada por savanas. Portanto, a florestaintocada do imaginário popular e cientí-fico deveria ser bem mais recente do quese supunha.

Fascinado pela perfeição das formasgeométricas que se descortinavam pe-rante seus olhos em alguns vôos queconseguiu fazer em pequenas aerona-ves, Ranzi os chamou de geoglifos: mar-cas na terra. O nome mostrou ser ade-quado para chamar a atenção de um tipode sítio nunca antes visto na Amazônia.Apesar de estruturas de terra defensivaterem sido encontradas no alto Xingu(Heckenberger et al., 2003), aqui elassão perfeitamente geométricas, forman-do figuras cuja dimensão – 100 a 350mde diâmetro - quase nos impede de per-cebê-las do solo. As figuras são forma-das por um conjunto de valeta e muretaadjacente, esta última formada pelo soloescavado e depositado do lado de forada valeta. O vão formado pela valeta temem média 10m, enquanto que a profun-didade varia de 1 a 7m. Há geoglifos deforma quadrada, retangular, circular,oval, hexagonal, com oito lados e em for-ma de ”U”, além de caminhos retos queos conectam, alguns estendendo-se poraté 600m (Fig. 02). Algumas dessas es-truturas foram cortadas por estradas fe-derais e vicinais, localizando-se todas emárea de propriedade privada (Fig. 03).O que possibilitou sua visibilidade foi jus-

tamente a derrubada da floresta para aplantação de pastagens para o gado. Emalgumas das valetas nasceram casta-nheiras datadas em 800 anos. As evi-dências indicam, portanto, que a flores-ta é mais recente do que esses sítios.

Nos primeiros anos, cerca de 25 sítiosarqueológicos foram identificados, al-guns com mais de uma figura geométri-ca (Ranzi & Aguiar, 2000, 2004). Depoisde buscar chamar a atenção de arqueó-logos brasileiros e estrangeiros para anecessidade do estudo de tais sítios,Ranzi finalmente conseguiu que arque-ólogos da Universidade de Helsinque seinteressassem. Feitas as primeiras visi-tas, foi elaborado um projeto de pesqui-sa, e buscado financiamento. Além dis-so, as primeiras impressões e notíciasforam publicadas (Pärssinen et al., 2003;Ranzi, 2003; Ranzi & Pärssinen, 2003).Pärssinen et al. (2003) considera que asestruturas podem ser remanescentes deassentamentos fortificados, sendo asmuretas parte de paliçadas defensivas.Caso os sítios datem do mesmo períodoque as aldeias fortificadas do alto Xingue de Beni, isso poderia significar que es-tariam lidando com a disseminação deuma prática para responder a situaçõessimilares, como crescimento de confli-tos armados e expedições para apresa-mento de escravos. Mesmo assim, elesconsideram que geralmente os fossos sãoescavados fora da paliçada e não den-tro, como seria o caso das estruturas noAcre. Nesse sentido, Pärssinen e seuscolegas propõem que o fosso teria sidoum reservatório de água, talvez para acriação de tartarugas.

Em 2005, a construção de uma linhade transmissão de energia elétrica pelasCentrais Elétricas do Norte do Brasil S.A.- Eletronorte, ao longo da BR-317, le-vou ao Estado a arqueóloga Denise PahlSchaan, pesquisadora do Museu Paraen-se Emílio Goeldi, também movida pelointeresse que as primeiras notícias so-bre os geoglifos tinham-lhe despertado.Durante aquele trabalho, dois novos ge-

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oglifos foram descobertos, tendo sido re-comendado à Eletronorte que a linhafosse desviada para que não causasseprejuízos ao patrimônio arqueológico. Foirecomendada ainda a execução de umPrograma de Arqueologia Preventiva, queenglobasse o estudo dos sítios e educa-ção patrimonial (Schaan e Plens, 2005)7 .

A partir de então, os diversos pes-quisadores com interesse no estudo dosgeoglifos firmaram parcerias para a exe-cução de um projeto comum. Em junhode 2007 iniciou-se o estudo de cinco sí-tios com geoglifos, com apoio financeiroda Academia de Ciências da Finlândia,coordenação de Denise Schaan (UFPA eMPEG) e Martti Pärssinen (Universidadede Helsinque), e apoio da UniversidadeFederal do Acre. Ao mesmo tempo, cons-tituiu-se um grupo de pesquisa reunin-do professores da Universidade Federaldo Acre e da Universidade Federal doPará para realizar um grande inventáriode sítios arqueológicos do tipo geoglifona região. Até agora já são mais de 100sítios identificados, que serão registra-dos para que possam efetivamente fa-zer parte de uma base de dados paraconhecimento e gerenciamento dessepatrimônio. Além disso, esse levanta-mento será utilizado para compor um sis-tema de informações geográficas (SIG)através do qual poderão ser respondi-das perguntas sobre a distribuição regi-onal desses sítios e sua implantação napaisagem.

As poucas datações existentes, rea-lizadas pelos arqueólogos do IAB, colo-cam os sítios entre 500 a.C. e 1000 d.C.Uma data de 1260 d.C foi obtida datan-do-se o carvão retirado de uma muretacortada pela estrada de uma fazenda(Pärssinen et al., 2003).

Apesar da grande disparidade de da-tas, estima-se que a maior parte dasestruturas date entre 800 e 1300, poiseste é o período em que em outras par-

tes da Amazônia começam a surgir socie-dades demograficamente densas, apa-recendo trabalhos coletivos bem orga-nizados (ver Neves, 2003; Roosevelt,1999; Schaan, 2004). Estes sítios lem-bram também as obras de terra encon-tradas nas terras baixas da vizinha Bolí-via, onde extensos canais e áreas eleva-das têm sido interpretados como cam-pos agrícolas (Erickson, 1980).

Os geoglifos localizam-se principal-mente ao longo da BR-317, e vários de-les podem ser vistos no entroncamentoda BR-317 com a BR-364, na região de-nominada Quatro Bocas, próximo à RioBranco. A proximidade aos núcleos ur-banos abriu uma nova perspectiva paraa prospecção arqueológica na região. Osgeoglifos são facilmente encontradosusando-se imagens de satélite disponí-veis de maneira gratuita na Internet,através do Google Earth (Ranzi, Feres &Brown, 2007).

A distribuição regional dosgeoglifos

Combinando várias ferramentas debusca e prospecção, tais como pesquisaem imagens de satélite gratuitas, pros-pecção oportunista terrestre e sobrevô-os em aeronaves alugadas, já localiza-mos até o momento 110 sítios do tipogeoglifo. Alguns sítios possuem mais deuma estrutura, de modo que até o mo-mento localizamos cerca de 130 estru-turas, não contados os caminhos que asconectam. Esses sítios distribuem-sesobre uma área de 250km de extensão,que vai desde o município de Xapuri atéo município de Boca do Acre, no Amazo-nas, próximo à desembocadura do rioAcre no rio Purus (Fig. 04).

No Acre, os geoglifos localizam-sesobre áreas elevadas (geralmente cotasde 200m, ocorrendo em até 100m de al-titude), exatamente no interflúvio entre

7 Os programas de Arqueologia e Educação Patrimonial recomendados não foram executados, masmesmo assim a obra foi liberada pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre.

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os rios Abuña e Acre. Vários deles loca-lizam-se sobre platôs de onde se des-cortina uma visão panorâmica que al-cança dezenas de quilômetros até o ho-rizonte, e de onde se percebem os riosencobertos pela mata ciliar. Se os geo-glifos eram aldeias fortificadas, sua po-sição era realmente a melhor possível,pois qualquer movimento vindo a partirdos rios poderia ser notado à distância.Apesar da falta absoluta de rios navegá-veis nas imediações, os moradores dosgeoglifos contavam com água de nas-centes da melhor qualidade. Algumasnascentes parecem mesmo se conectarcom as valas, sugerindo a possibilidadede que tais estruturas estivessem rela-cionadas ao manejo de água.

Do ponto de vista regional, as for-mas geométricas mostram um interes-sante padrão: ao sul abundam as figu-ras circulares, enquanto que ao nortepredominam as figuras quadrangulares8 .A Fig. 05 mostra alguns dos formatos eassociações de formatos encontrados.Estamos ainda estudando os padrões deorientação dessas figuras. Algumas fi-guras quadrangulares possuem um doscantos direcionado para o norte. Em ou-tras, há caminhos que saem do pontomediano dos lados nas quatro direções,formando eixos leste-oeste e norte-sul(Fig. 02).

Até o momento, as prospecções fo-ram feitas de forma esparsa e pontual.A partir de agora o grupo de pesquisacomeça a prospeccionar de forma siste-mática. Tendo em vista que a maior partedos geoglifos foi localizada com o Goo-gle Earth, que tem cobertura restrita,estima-se que o número de sítios en-contrados é pequeno, talvez 10% dosexistentes. Além disso, muitos sítios ain-da estão dentro da floresta, o que te-mos percebido tanto em imagens de sa-télite (onde parece apenas parte da fi-gura junto à área coberta por mata) (Fig.06) quanto na prospecção terrestre.

ConclusãoAtualmente trabalha-se com diversas

hipóteses: de que os geoglifos eram lo-cais cerimoniais, aldeias fortificadas, oulocais de encontro. Ou talvez todas es-sas coisas, tendo em vista sua variabili-dade. Sua geometria perfeita indica seucaráter francamente simbólico: denotaa maneira correta de construir assenta-mentos ou praças cerimoniais, implican-do aí talvez a intenção de seguir as dire-trizes deixadas por espíritos ancestrais.

Em junho de 2007 iniciamos as es-cavações dentro do projeto Natureza eSociedade na História da Amazônia Oci-dental, resultado de uma cooperaçãoentre pesquisadores brasileiros e finlan-deses, ligados ao Museu Paraense Emí-lio Goeldi, Universidade Federal do Pará,Universidade Federal do Acre e Univer-sidade de Helsinque. Uma vez que osestudos apenas se iniciaram, ainda nãopossuímos dados sobre estruturasarqueológicas e cultura material existen-te nas áreas intra-sítio, atualmente sobinvestigação. Entretanto, o levantamentoregional até agora realizado, ainda queincompleto, já possui o potencial dequestionar a tão propalada inferiorida-de numérica e dispersão social dos po-vos de terra firme. Seja o que for que osconstrutores de geoglifos pretendessemcom suas obras monumentais, eles es-tavam organizados regionalmente, obe-decendo a lideranças e esquemas cultu-rais de âmbito regional. Até que possa-mos entender exatamente qual seu tipode organização regional não poderemosdizer se seriam cacicados centralizadosou se possuiriam uma organização maisheterárquica, como a dispersão de síti-os de mesmo formato e tamanho parecesugerir. Mesmo assim, tal configuraçãoé bem diferente das sociedades de terrafirme descritas pelos etnógrafos do sé-culo XX e consideradas em inúmeros ar-tigos de Betty Meggers como o retratofiel da vida pré-colonial.

8 Tal padrão já havia sido notado por Dias e seus colegas, dentre eles Marcus Vinicius Simplicio.

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Consideramos que é chegada a horade avaliarmos as evidências disponíveisde várias áreas amazônicas que indicampopulações substanciais organizadas re-gionalmente e vivendo em áreas distan-tes das várzeas do Amazonas. Modelosque não têm a capacidade de explicar eservir como ferramentas para interpre-tar a realidade devem ser questionadose abandonados. A realidade, às vezes,tem o péssimo costume de querer der-rubar nossas mais perfeitas teorias, mas

esse parece ser o caminho da ciência.As sociedades amazônicas do passadonão construíram pirâmides ou muros depedras, mas erigiram obras monumen-tais com a terra, a mesma terra tantasvezes chamada de improdutiva. Emmuitas áreas da Amazônia, os solos po-dem, de fato, não serem os mais ade-quados para agricultura, mas, certamen-te, mostraram-se, ao longo de centenasde anos, excelentes fontes de materialconstrutivo.

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Fig. 01 – Sítio Alto Alegre, fotografado por Denise Schaan em junho de 2007

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Fig. 03 – Geoglifos Fazenda Colorada, foto de Sérgio Vale, julho de 2005

Fig. 02 – Sítio Cruzeirinho, Boca do Acre

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Fig. 05 – Geoglifos das fazendas Baixa verde, Colorada e Jacó Sá (modificado de Pärssinen etal. 2003)

Fig. 04 – Mapa de sistribuição de sítios tipo Geoglifo

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Fig. 06 – Geoglifo quadrangular (sem nome) parcialmente dentro da floresta