gÊneros tatuados na educaÇÃo infantil · crianças e à leitura e, para isso, disponibilizou...

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GÊNEROS TATUADOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Juliana Ferreira da Cruz ¹ Lafânia da Silva Mendes ² Resumo Este trabalho discute a dicotomia de gêneros na educação infantil, materializada em artefatos didático/pedagógicos. O estudo observou os estereótipos de gênero propostos (ou impostos?) na educação infantil por se tratar de uma questão fortemente presente na escola, embora esta presença nem sempre seja submetida à reflexão crítica. A metodologia utilizada buscou referência nos estudos do cotidiano, empregando como procedimento, a produção de imagens no cotidiano escolar da educação infantil de escolas situadas no interior do estado do Rio de Janeiro. O resultado do estudo aponta para a percepção de que a naturalização de processos sociais está tatuada no ambiente escolar e se desdobra para fora dele. A demarcação de gênero, nos artefatos escolares, é perceptível a olho nu, mas isto não indica que a gênese da produção das diferenças esteja situada na escola. A escola não pode ser responsabilizada pelas desigualdades entre os gêneros, embora as representações visuais produzidas e expostas em seu interior contribuam para a sua reprodução. Escola e sociedade produzem e fazem circular a distinção de gênero, fortalecendo uma ideia binária que atravessa todo o tecido social e que deve, portanto, ser entregue a reflexões epistemológicas. Palavras-chave: cotidiano escolar; gênero; artefatos escolares. Introdução Absorvida em sua clássica missão por se ocupar de letras e números, “distraidamente” a escola produz, acolhe e dissemina lições atravessadas por questões políticas, sociais, religiosas, de gênero e tantas outras. Enquanto ensina, a escola é incapaz de controlar os direcionamentos do que é ensinado e aprendido, abrindo aos sujeitos, produções de sentidos diversos. O material didático, a organização cartográfica da sala de aula, as ordenações impostas às espacialidades e temporalidades, as relações estabelecidas entre os sujeitos e quaisquer outras dimensões escolares comportam, em ¹ Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail:[email protected] ² Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail:[email protected]

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GÊNEROS TATUADOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Juliana Ferreira da Cruz¹

Lafânia da Silva Mendes²

Resumo Este trabalho discute a dicotomia de gêneros na educação infantil, materializada em artefatos didático/pedagógicos. O estudo observou os estereótipos de gênero propostos (ou impostos?) na educação infantil por se tratar de uma questão fortemente presente na escola, embora esta presença nem sempre seja submetida à reflexão crítica. A metodologia utilizada buscou referência nos estudos do cotidiano, empregando como procedimento, a produção de imagens no cotidiano escolar da educação infantil de escolas situadas no interior do estado do Rio de Janeiro. O resultado do estudo aponta para a percepção de que a naturalização de processos sociais está tatuada no ambiente escolar e se desdobra para fora dele. A demarcação de gênero, nos artefatos escolares, é perceptível a olho nu, mas isto não indica que a gênese da produção das diferenças esteja situada na escola. A escola não pode ser responsabilizada pelas desigualdades entre os gêneros, embora as representações visuais produzidas e expostas em seu interior contribuam para a sua reprodução. Escola e sociedade produzem e fazem circular a distinção de gênero, fortalecendo uma ideia binária que atravessa todo o tecido social e que deve, portanto, ser entregue a reflexões epistemológicas. Palavras-chave: cotidiano escolar; gênero; artefatos escolares.

Introdução

Absorvida em sua clássica missão por se ocupar de letras e números,

“distraidamente” a escola produz, acolhe e dissemina lições atravessadas por questões

políticas, sociais, religiosas, de gênero e tantas outras. Enquanto ensina, a escola é

incapaz de controlar os direcionamentos do que é ensinado e aprendido, abrindo aos

sujeitos, produções de sentidos diversos. O material didático, a organização cartográfica

da sala de aula, as ordenações impostas às espacialidades e temporalidades, as relações

estabelecidas entre os sujeitos e quaisquer outras dimensões escolares comportam, em

¹ Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail:[email protected] ² Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail:[email protected]

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si, um universo de significados. Estes significados são produzidos nas relações entre

quem ensina e quem aprende, em processos de negociação que desconhecem,

antecipadamente, seu produto final.

Não é possível aplicar, ao cotidiano escolar, a ideia da neutralidade, pois ali,

tudo se implica continuamente. A sala de aula vira um mural de exposições com os

trabalhos confeccionados pelo(a)s aluno(a)s. No entanto, o que se pode observar neste

espaços, são murais repletos de significados legitimados nas relações humanas, usados

como meios para a reposição das nossas exigências.

Sabe-se que dentro de uma sociedade existem vários grupos e diversas formas de

olhar, porém o que buscam a todo momento, nas diversas formas de representação, é a

sua própria assimetria/identidade.

Este trabalho tem por objetivo discutir, a partir da análise de imagens registradas

no cotidiano escolar da Educação Infantil de duas escolas públicas do interior do estado

do Rio de Janeiro, e em outros ambientes extraescolares, os estereótipos de gêneros

propostos (ou impostos?), ou seja, as diferenças entres gêneros, tatuadas nestes espaços,

que ocasionam a naturalização do que foi socialmente construído. O que se percebe com

tais representações é um estímulo a assimetria de identidade e alteridade entre os

gêneros. E dessas discrepâncias, desvanece o conceito de exotopia proposto por Bakhtin

apud Amorim (2006) do qual entendemos que as relações humanas são constituídas e as

condições do outro compreendidas quando o “eu” e o “outro”, numa interação, trocam

de posição.

Nesse novo lugar tentam enxergar tal como o verdadeiro ocupante. E ao retornar

ao seu lugar, através do “excedente de visão”, contempla, completa e respeita o

horizonte do outro, pois naquela posição – que não nos é comum – percebemos o que o

outro, na sua zona de conforto, no seu lugar comum, não percebeu e, talvez, não venha

perceber. “A visão que o outro tem de mim, nunca será igual à visão que tenho de mim

mesmo. O ‘eu’ abrange o conhecimento interior, a visão do ‘outro’ é baseada em

suposições, com base no que vê externamente” (Dicionário inFormal- online, 2014).

Com isso, nós, assim como as crianças recapitulamos cotidianamente o que nos

propõem, do modo que fomos ensinados, deste modo a naturalização também se dá pelo

olhar. Pelo o que é “comum”, no que de tanto se repetir, materializou-se. É nosso.

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Quando adentramos a sala de aula nos vem um turbilhão de sensações e

significados pelos quais nos encantamos. De acordo com Dubois (1993, p. 15), “não nos

é possível pensar a imagem fora do ato que a faz ser”. Sendo assim as significamos para

depois registrá-las. Olhamos, olhamos, olhamos e vemos... e registramos.

Não queremos dizer com isto que a sala de aula é responsável pelas diferenças

discriminatórias de gênero. Entendemos, no entanto, que essas representações visuais

contribuem para a naturalização das desigualdades entre os sexos masculino e feminino.

Não levantaremos também nenhuma bandeira a favor de qualquer grupo. Afinal o fardo

que cada um carrega, dentro da sua condição é cruelmente pesado. O que defendemos é

o direito de sermos como somos legitimamente (MATURANA, 1998).

A demarcação de gênero imperceptível a olho nu

Há mais de cinquenta anos se fez ecoar uma frase que mudaria completamente a

relação da sociedade para com a mulher, que até então havia dedicado toda a sua vida ao

zelo do lar. A partir deste momento, estaria no mercado de trabalho, partilhando dos

mesmos feitos do homem que havia de servir na guerra. Até aquele momento, era

inadmissível tais posturas para uma mulher, inclusive seu ingresso no mercado de

trabalho.

Segundo Louro (2008) Simone de Beauvoir, uma feminista e escritora que

dedicou toda a sua vida aos estudos sobre a mulher na sociedade, em plena a Segunda

Guerra Mundial, cita em seu livro “Segundo Sexo” uma frase que ganhou o mundo:

“ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Esta frase obteve tanta repercussão, que é

utilizada até os dias de hoje, ampliando seu uso para outros gêneros e opções sexuais.

A edificação do gênero e da sexualidade dá-se continuamente, infindavelmente,

ou seja, no cotidiano. É empreendida de modo explícito ou dissimulado pela família,

escola, igreja, instituições legais, médicas e quaisquer instituições envolvidas com a

natureza humana. Ocupando lugar de destaque entre estas instituições, no que se refere

à formação e instrução, a escola é incapaz de controlar e refutar os direcionamentos do

que é ensinado e aprendido, pois:

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Vivemos mergulhados em seus conselhos e ordens, somos controlados por seus mecanismos, sofremos suas censuras, As proposições e os contornos delineados por essas múltiplas instâncias nem sempre são coerentes ou igualmente espalhadas por toda a parte e acabam por constituir-se como potentes pedagogias culturais (Louro, 2008, p.18).

O comportamento é influenciado e refutado na socialização primária pela família

que, por sua vez, apresenta posturas mediante aos ensinamentos que são reforçados

diariamente por outros meios de socialização. Um deles é a escola, onde passamos parte

considerável de nossas vidas.

Esse choque impetuoso, assim como qualquer outro, emana do que foi

naturalizado. A regra nasce em diferentes meios, por isso que não se aplica a ideia de

neutralidade no cotidiano escolar, pois tudo se aplica continuamente.

É possível encontrar em todos os espaços da escola, em especial, nas salas de

aula, onde são fixados um tipo especial de portador de texto, os murais, repletos de

significados. Os trabalhos confeccionados pelos alunos, em que é demarcada a questão

da cor, definem o gênero de seu autor. Trata-se de uma definição que é produzida fora

do sujeito e anexada a um trabalho de sua autoria, forçosamente mesclando-se à sua

corporeidade.

A sala de aula, sobretudo na Educação Infantil, geralmente dispõe de murais de

exposições com trabalhos confeccionados pelos alunos e professores. São essas

representações visuais o objeto de análise deste artigo. O que se pôde observar nestes

espaços, foi a presença de murais repletos de significados, os quais representam em suas

diversificadas formas o que é determinado socialmente.

Durante o estudo, percebemos que os murais em suas exposições permanentes,

em que os comparamos com tatuagem, insistem na dicotomia entre os gêneros. A

decisão arbitrária por associar cada sujeito ou imagem a um gênero especifico. As

imagens produzidas em cotidiano escolar da educação infantil, tatuadas neste trabalho,

nos convida a uma reflexão, perante os vestígios encontrados nestes espaços.

Artefatos, imagens e cores: indicativos de gênero

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Os murais escolares concentram, transitoriamente, diversos portadores de textos

que dispõem de funções das mais diversas. Comprometidos com a estética e a

ludicidade, costumam ser carregados de cores e imagens, de forma a oferecer aos

leitores a leitura indiciária de seu propósito. Em grande parte, são inseridos marcadores

de gênero que coadunam com a dicotomia entre o masculino e o feminino. Estes

marcadores ocorrem através do emprego de cores e imagens, as quais confirmam uma

ideia já bastante consolidada: para as meninas, bonecas cor-de-rosa; para os meninos,

carros azuis. Embora a gênese desta ideia não possa ser atribuída à escola, esta

instituição participa ativamente da circularidade deste princípio, interferindo junto à

educação da criança e confirmando uma lógica hegemônica, presente nas sociedades.

Em alguns momentos, a escola questiona esta postura, assim como a sociedade

também o faz. O questionamento geralmente conduz à “corajosa troca de matizes”,

quando surgem, temporariamente, meninas trajadas de azul e meninos vestidos de rosa.

As vestes são trocadas, os cadernos são novamente encapados, o cartaz de

aniversariantes é refeito, mas a ideia permanece. Embora ao azul e ao rosa – cores

emblemáticas que apontamos como marcadores de gênero na escola – sejam atribuídas

outras funcionalidades, o pensamento permanece inalterado, circunscrevendo cada

sujeito em um dos dois lados nos quais dividimos o mundo.

A imagem abaixo (Fig. 1), registrada fora dos muros escolares, dialoga com esta

questão. Havia uma feira do livro, e as escolas foram convidadas a participar. Em um

dos stands, uma livraria organizou o lugar de forma a que se mostrasse convidativo às

crianças e à leitura e, para isso, disponibilizou mesas e cadeiras azuis e rosas. Em pouco

tempo de observação, foi possível registrar o uso que as crianças fizeram do lugar.

Correndo e brincando, elas adentraram o stand e buscaram assentos. Elas sabiam (como

as crianças sabem de tudo!) que aquela livraria estaria distribuindo balões, e sabiam (as

crianças sabem de tudo, mesmo!) que para ganhar qualquer coisa, precisariam postar o

corpo segundo o clássico comportamento esperado: sentado, silenciado e imóvel.

Tão logo adentraram o stand, portanto, as crianças buscaram assentos. Esta

busca durou apenas alguns segundos, revelando o emprego de uma astúcia (CERTEAU,

1994): meninas sentaram-se nas cadeiras cor-de-rosa e meninos sentaram-se nas

cadeiras azuis. Rapidamente. Silenciosamente. Tacitamente já sabiam que este

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comportamento seria o mais ajustado à recompensa, permitindo que todos ganhassem os

balões. Nenhum adulto conduziu estes movimentos, estas escolhas, e nem seria preciso:

os dispositivos de controle e os marcadores de gênero já lhes foram mostrados desde o

berço, quando lhes calçaram o primeiro sapatinho.

Figura 1: Stand de livros, com cadeiras e mesas rosas e azuis FONTE: Mitsi Pinheiro de Lacerda Leite Benedito

Este evento provoca diversas reflexões, as quais costumam ser ocultadas pela

obviedade do que pode ser descrito: a marcação de gênero posta pelas cores. A

visibilidade da cor anuncia a circunscrição do lugar destinado a meninos e meninas,

além de anunciar que a obediência a esta norma deverá resultar em um prêmio: o balão.

Trata-se de uma concepção fortemente disseminada em todo o tecido social, a de que os

sujeitos são livres para caminhar e serem favorecidos, desde que se limitem aos lugares

que lhes são determinados e que se mostrem em conformidade com o que se espera

deles. A circunscrição de lugares, a distinção dos gêneros e a especificação de

comportamentos se disseminam, se naturalizam, se encarnam na sociedade, até produzir

o efeito de tornar qualquer manifestação minimamente divergente, um erro ou perigo.

É possível encontrar, na escola, indicadores de gênero que empregam, como

marcadores de distinção, cores e imagens, produzindo, assim, artefatos e símbolos que

direcionam o uso do lugar. A escola, “campo do outro”, se esforça no sentido de

circunscrever o lugar e controlar os movimentos de seus praticantes. Ao moverem-se

pelo lugar, os praticantes o tecem à sua maneira, criando espaços-tempos onde habita a

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vida e onde se dissipam as identidades forjadas (CERTEAU, 1994). É perceptível que a

criança convive, diariamente, no interior de processos de negociação entre o que mostra

de si, e o que a escola lhe orienta a ser. Para Bhabha (1998), a negociação pressupõe

Uma forma de comércio ou tráfico, articulação ou intercâmbio, conexão com contenção, que busca equivalências no mundo cotidiano. [...] O denominador comum ao qual a negociação aspira não é mais do que a teia e a trama da vida: discursos e ação, os tributos definidores da humanidade. Ao contrário do que diz o senso comum, o desvelamento da negociação não é meramente a revelação de alguma moeda comum de circulação; a negociação desvela certo mal-estar no lance final do intercâmbio, precisamente porque está mais preocupada com a enunciação dos jogadores da partida (p. 96).

Ao adentrar a sala de aula, a criança se depara com marcadores diversos. Em sua

relação com o ambiente escolar, busca pelo que há de si, representado neste espaço. A

inexistência de si no lugar a perturba e provoca o estado de mal-estar, pois rapidamente

a criança compreende que sua presença na escola deverá ser vivenciada,

permanentemente, no interior de negociações entre o como se percebe e o como é

orientada a ser. A imagem abaixo (Fig. 2), registrada em uma sala de aula, apresenta um

varal com o qual é conferida, diariamente, a frequência das crianças. Trata-se de outro

modelo para o registro das presenças das crianças. Em sua composição, este modelo é

diferente do que será exibido posteriormente, mas resguarda concepções semelhantes.

Todos os dias os nomes das meninas são fixados no varal em papelotes rosa, e os dos

meninos em azul.

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Figura 2: O varal

Fonte: Arquivo Pessoal

Além da clássica separação pelas cores, também grita nesta imagem a “natural”

fragilidade feminina e a “natural” força masculina. Quem chuta a bola? Aquele (a) que

tem força, que foi orientado (a) a praticar atividades que desenvolvessem mais suas

estruturas. Este (a), portanto, adquiriu força física. Quem tem a fragilidade de pétalas ou

de asas de borboleta? Aquele (a) que foi orientado para atividades que não exijam

grande esforço físico. Não são, pois, características naturais e sim naturalizadas. É fato

que existam diferenças naturais entre os gêneros, porém grande parte destas diferenças

são estereótipos que nos (des) caracterizam.

A realidade expressa e calcada nestes espaços nos adverte que por mais que

lutemos por uma escola igualitária, no que condiz a questão de gênero principalmente

na educação infantil, em que se pode observar claramente uma gritante discrepância

entre as cores azul e rosa que até hoje são utilizadas para classificar uma gênero, mesmo

que em uma tentativa e outra, tentem nos passar uma noção de indiferença para com as

diferenças que durante muito tempo se constituiu entre nós, acabam por pecar em outros

aspectos semelhantes; as cores não são o problema, mas os direcionamentos dos corpos.

Atenção para a chamada

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A chamadinha é um artefato usado diariamente para registrar a presença dos

alunos e alunas. Às vezes, acidentalmente, um nome aparece do lado oposto ao que

deveria estar, mas imediatamente a criança afetada (sim, elas se sentem ofendidas

quando isso acontece, sobretudo as meninas) se manifesta e vai até o quadro corrigir o

“erro”, como se aquilo a tornasse menos dentro de sua condição biológica, como se,

junto aos nomes, estivessem evidentes também as práticas que caracterizam um menino

e uma menina (como são fortes as representações!).

Figura 3: Chamadinha Fonte: Arquivo Pessoal

Está presente uma suposta homogeneização da cor rosa (apresentada na figura

3), e ausente qualquer intenção de amenizar as diferenças entre os gêneros, já que a

insistente bifurcação nos obriga a estar de um lado. Nessa imagem, meninos e meninas

estão lado a lado, mas nesta posição não é possível contemplar o outro, precisamos estar

juntos, frente a frente, interagindo. Não só em representações, não só nas ideias.

Também nas ideias, pois, de acordo com Chauí (1980) as desigualdades não serão

superadas somente com teorias, já que nasceram nas práticas sociais, de onde também

poderão se extinguir.

E esta separação sai da representação e vai para as filas de meninos e meninas na

entrada, na decida para o lanche, na ida à biblioteca, na ida ao parquinho, na subida de

volta para a sala e na saída da escola. Até aqui com a presença de um adulto. Mas

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quando este não está presente, as crianças se mantêm da mesma forma em suas

brincadeiras (meninas se maquiando e meninos dirigindo o caminhão) e em suas formas

de representar o outro (“as meninas não são rápidas igual a gente). E assim, ainda dentro

da escola, meninas e meninos vão assumindo seus “devidos postos”.

Conclusão

As representações visuais são fundamentais na disseminação de ideias. E na

escola, tão comuns, podem não ter significado imediato para o observador, mas foram

construídas dentro de um conjunto de significações, que de tão repetidas deixaram de

provocar pensamentos, foram neutralizadas e naturalizadas. Por isso, para análise das

imagens foi preciso mais que um olhar observador: um olhar que observa e pesquisa.

Caso contrário só alcançaríamos o que é perceptível a olho nu (a obviedade das cores), e

deixaríamos escapar a materialização e naturalização de uma ideia binária, a

circunscrição de lugares, a distinção dos gêneros e a especificação de comportamentos.

É um equívoco, no entanto, atribuir somente à escola a construção dessas

ideologias. Escola e sociedade constroem-se numa relação de reciprocidade. Mas

acreditar numa neutralidade é ingenuidade. Dessa forma, a expectativa do trabalho é

contribuir na discussão sobre as diferenças entre gêneros materializadas em artefatos

didáticos/pedagógicos, que para a superação dessa dicotomia terão a mesma função:

contribuir para propagação de um conhecimento, de uma cultura . Não naturalizando,

mas reconstruindo outros significados. Não se trata, assim, de mudar somente o campo

visual, mas também as ideias que o sustentam, pois de acordo Chauí (1994), há um

“entrelaçamento do físico-material e da significação”.

Referências Bibliográficas

AMORIM, Marília. Cronotopo e Exotopia. In. BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: Outros

conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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Dicionário inFormal. Significados de Exotopia. Disponível em: http//www.dicionarioinformal.com.br/exotopia/. Acesso em 03 de maio de 2014.

DUBOIS, Philippe. O Ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller. Campinas – SP: Papirus, 1993. 5ª edição FURLAN, Cássia Cristina; SANTOS, Patrícia Lessa dos. Além das aparências: gênero e corpo no cotidiano da educação física escolar. Trabalho apresentado no Seminário Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades e Deslocamentos, na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC, 2010.

LOURO, Guarcira Lopes. Gênero e Sexualidade: Pedagogias contemporâneas. Proposições, v. 19,n2. maio/ago.2008 MATURANA, Humberto. Uma abordagem da educação atual na perspectiva da biologia do conhecimento. In: Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. .