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“Gazeta Nagô”: Contribuição aos estudos da comunicação interna e externa das casas religiosas afro-brasileiras. Estudo do “fuxico” 1 MARINHO, Roberval José Docente e pesquisador do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília 2 Resumo: Contribuição aos estudos da comunicação nas casas religiosas afro-brasileiras, tomando como campo de estudo o candomblé baiano que têm no "ejo" também conhecido como "fuxico" ou ainda comunicação "boca a boca", um sistema bastante eficaz de comunicação interna e externa das comunidades.A rede comunicacional que se estabelece para a propagação das notícias, o processo de recepção, interpretação e contribuição aos comunicados. A incorporação natural das distorções que acontecem nesse processo de comunicação. Abordagem de aspectos culturais históricos ágrafos, sua dinâmica, sua filosofia, sua intersecção e moldagem à cultura gráfica mundial hodierna. Sistemas que sobrevivem por modelagem e justaposição. Palavras-chave: Orisa; candomblé; cultura ágrafa; cultura gráfica; comunicação popular. O Candomblé ou a religião dos Orisa, Vodum e Nkise tem origem em tempo imemorial na Costa oeste do continente africano.Nessa região, compreendida entre os atuais países, Daome (Danhomei, significando “O ventre da cobra”), Sudão, Nigéria, Congo, Congo-Belga, Angola, Camarões, não se sabendo onde começou a sistematização do culto a esses deuses. Trata-se de religião espiritualista que pratica ritos propiciatórios à possessão humana por espíritos de humanos a exemplo de Baba Olukotun, Baba Ijikeokun, Baba Alapala, Baba Lapurio e outros; espíritos elementais, sendo dezesseis os mais conhecidos a exemplo de Ogun, Esu, Ososi, Obaluaiye, Osumare, Logun Ode, Osagia, Osalufan, Ifa, Sango, Oya, Osun, Iyemoja, Nana, Iyewa e Oba dentre outros; espíritos de animais como Kpo o Deus leopardo e Dan o Deus cobra e ainda espíritos de árvores como Iroko , Deus da Gameleira, Apaoka Deusa da Jaqueira e outros. 1 Trabalho apresentado à Sessão Temática 7: Comunicação e Cultura, do VII Colóquio Brasil-França de Ciências da Comunicação e da Informação. 2 Doutor em Arte e Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Graduado em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Professor adjunto IV aposentado da Universidade Federal da Bahia. Professor adjunto I da Universidade Católica de Brasília. QN 7, Conj.23, Casa 25 – Riacho Fundo I, DF. Tels.:®399-4055/©9975-5572 E-mail: [email protected]

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“Gazeta Nagô”: Contribuição aos estudos da comunicação interna e externa das casas religiosas afro-brasileiras. Estudo do “fuxico”1

MARINHO, Roberval José Docente e pesquisador do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília2 Resumo: Contribuição aos estudos da comunicação nas casas religiosas afro-brasileiras, tomando como campo de estudo o candomblé baiano que têm no "ejo" também conhecido como "fuxico" ou ainda comunicação "boca a boca", um sistema bastante eficaz de comunicação interna e externa das comunidades.A rede comunicacional que se estabelece para a propagação das notícias, o processo de recepção, interpretação e contribuição aos comunicados. A incorporação natural das distorções que acontecem nesse processo de comunicação. Abordagem de aspectos culturais históricos ágrafos, sua dinâmica, sua filosofia, sua intersecção e moldagem à cultura gráfica mundial hodierna. Sistemas que sobrevivem por modelagem e justaposição. Palavras-chave: Orisa; candomblé; cultura ágrafa; cultura gráfica; comunicação popular.

O Candomblé ou a religião dos Orisa, Vodum e Nkise tem origem em tempo

imemorial na Costa oeste do continente africano.Nessa região, compreendida entre os

atuais países, Daome (Danhomei, significando “O ventre da cobra”), Sudão, Nigéria,

Congo, Congo-Belga, Angola, Camarões, não se sabendo onde começou a

sistematização do culto a esses deuses.

Trata-se de religião espiritualista que pratica ritos propiciatórios à possessão

humana por espíritos de humanos a exemplo de Baba Olukotun, Baba Ijikeokun, Baba

Alapala, Baba Lapurio e outros; espíritos elementais, sendo dezesseis os mais

conhecidos a exemplo de Ogun, Esu, Ososi, Obaluaiye, Osumare, Logun Ode, Osagia,

Osalufan, Ifa, Sango, Oya, Osun, Iyemoja, Nana, Iyewa e Oba dentre outros; espíritos

de animais como Kpo o Deus leopardo e Dan o Deus cobra e ainda espíritos de árvores

como Iroko, Deus da Gameleira, Apaoka Deusa da Jaqueira e outros.

1 Trabalho apresentado à Sessão Temática 7: Comunicação e Cultura, do VII Colóquio Brasil-França de Ciências da Comunicação e da Informação. 2 Doutor em Arte e Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Graduado em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Professor adjunto IV aposentado da Universidade Federal da Bahia. Professor adjunto I da Universidade Católica de Brasília. QN 7, Conj.23, Casa 25 – Riacho Fundo I, DF. Tels.:®399-4055/©9975-5572 E-mail: [email protected]

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Na verdade a possessão de humanos por espíritos é fenômeno que sempre

aconteceu em todas as culturas, existindo muitos estudos a respeito e também uma

conclusão generalizada de que há muito a ser estudado, sabe-se muito pouco a respeito.

Acredita-se, como hipótese, que esse espiritismo teve uma prática mais sistematizada

em uma dessas regiões acabando por estabelecer-se como prática religiosa e tal religião

espalhou-se por toda a região da costa oeste da África.

Supõe-se ter sido levada através das migrações tribais, dos casamentos, das

guerras que faziam prisioneiros e escravos. Possivelmente também através do comércio

entre esses povos e de outros expedientes trans-culturais.

No que resultou uma variedade muito significativa de ritos, mitos e outras

manifestações religiosas e culturais.

Tem-se em termos lingüísticos uma língua básica ou tronco, multifacetada em

uma profusão de outras línguas e dialetos. No tronco Nagô têm-se mais de sessenta

dialetos, sendo o ioruba um deles. No tronco Jeje os segmentos mais conhecidos no

Novo Mundo são os Ewe, os Fon, os Marrin, os Savalu, os Dangbe, os Kevioso. E no

tronco Bantu; têm-se as línguas Kikongo e Kibundo dentre muitos dialetos.

Quando se estuda o Panteão dos deuses africanos, percebe-se que o Panteão dos

deuses Nagô é mais definido. Cada deus ou Orisa têm seus atributos divinos delineado

com mais clareza o que permite o estabelecimento de um perfil de mais fácil acesso por

parte do fiel.

A comunicação desse perfil mais claramente delineado possibilita uma maior

expansão do culto religioso a esses deuses, facilitando a sua compreensão e devoção.

A religião se espalhou por toda a costa oeste africana, ganhando conotações em cada

local, recebendo acréscimos, tornando-se culturalmente mais rica, tendo acontecido toda

sorte de composição cultural, por justaposição continuada.

O Candomblé tem um sistema de comunicação interna e externa “sui generis” de

extrema eficácia denominado de “Fuxico” ou ainda de “Gazeta Nagô”. A comunicação

externa se dá através de pontos de divulgação, tais como barbearias, salões de beleza,

restaurantes, barracas de comércio nas feiras livres e notadamente nas barracas que

vendem folhas e ervas que tem forçosamente por clientela adeptos do candomblé. O

sujeito que ali trabalha é via de regra uma pessoa bem informada, ou seja, que fica

sabendo pelos mais diversos meios sobre os acontecimentos, as festas e as obrigações

que estão por ocorrer nas diversas casas religiosas da cidade e até em outras cidades.Faz

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parte desse tipo de trabalho a recepção, a transmissão e a divulgação de todo tipo de

notícia. E essas pessoas tornam-se divulgadores desses acontecimentos, transmitindo

essas informações para um grande número de freqüentadores, fiéis, amigos e

conhecidos, ou seja para o mundo do candomblé.

Em Salvador, um dos mais importantes pontos de divulgação da cultura religiosa

do candomblé baiano é o restaurante “Alaíde do Feijão”, no Pelourinho.

A sua proprietária Alaíde, filha de Omolu, iniciada no santo por Mãe Chagui do

do Pero Vaz no bairro da Liberdade, é das mais bem informadas pessoas sobre os

eventos do candomblé baiano. O seu restaurante no Pelourinho é uma espécie de ponto

de encontro das pessoas mais representativas dos vários segmentos do candomblé da

Bahia.É uma espécie de gueto de pessoas do Ase, que ali comparecem quase que

diariamente para comer feijoada como se estivesse em sua própria casa, inclusive com

total liberdade para roer os ossos, fazer farofa com o toucinho, tudo acompanhado por

cerveja gelada, desfrutar do ambiente simples desprovido de qualquer luxo ou

refinamento, porém aconchegante, amigável, familiar e principalmente se informar

sobre “as novidades” do candomblé. Ali pode-se ter informações sobre festas,

obrigações e outros acontecimentos dos candomblés do bairro da Liberdade, reduto de

Casas Angola e Jeje, dos candomblés da Vasco da Gama, do Cabula e adjacências,

Mata Escura, Beru, Pau Miúdo, Brotas, Buraco da Jia, Susuarana, Engenho Velho, Pau

da Rola, Itapoã e outros sítios.

As casas mais antigas e tradicionais da Bahia, têm os seus calendários fixos e

outros eventos divulgados por todos os pontos ou divulgadores.

O Ile Ase Iya Naso Oka Bangbose Obitiku, conhecida popularmente como “A

Casa Branca do Engenho Velho”, ou como “O Engenho Velho” ou “O Candomblé da

Casa Branca” ou simplesmente “A Casa Branca”. A mais velha Casa de Candomblé do

Brasil, respeitabilíssima por sua ortodoxia e amada por todos por sua beleza e

seriedade.

O “Ile Ase Omim Iyamase”, a mais famosa casa de candomblé do Brasil,

conhecida como “O Gantois” ou ainda “O Kantuá”. Famosa devido a mais proeminente

figura do candomblé brasileiro de todos os tempos, Maria Escolástica Nazaré,

conhecida em todo o País como Mãe Menininha do Gantois.

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O Ile Ase Opo Afonja, também conhecido como “O Ase” ou ainda “O

Candomblé de São Gonçalo” conduzido há 28 anos por Iya Ode Kayode, Mãe Stela de

Ososi.

O “Ile Ase Mariwo Laje”, o famoso “Candomblé do Alaketu”, conduzido há

muitos anos pela Iyalorisa Oya Fumin, Olga Pacheco Régis conhecida como Olga do

Alaketu.

O Ile Ase Osumare, ou “O Candomblé de Seu Antonio das Cobras”, que tem

como Babalorisa Pese de Osumare.

O Ile Ase Maroketu, da proeminente Mãe Cecília, conduzido atualmente por

Mãe Pastora.

O Candomblé do “Pilão de Prata” ou “O Pilão” da família Bangbose, Babalorisa

Ayr José Bangbose, Iyalorisa Caetana Banbgose e Iya Kekere Hayde Bangbose.

O Candomblé do “Pilão de Cobre” ou “Candomblé do Cobre”, conduzido pela

Iyalorisa Walnísia de Aiyra.

O “Manso Banduquemque” nação Angola ou Candomblé do “Bate-Folha”,

fundado por Bernardino de Bamburusena e conduzido atualmente por “Seu Dudu” e

Ganguasensi ou Mãe Miúda.

O Manso Tumba Insaba Junsara, nação Angola, casa muito tradicional fundada

por Procópio e dirigida atualmente pela Mameto Iraildes.

O Manso Itumbensara, roça de Candomblé fundada pela famosa Mameto Maria

Neném, casa matriz das outras casas Angola e Congo.

O Zoogodo Vodoum Male Hunto Bafono Deka, a mais conhecida Casa de

Candomblé da Nação Jeje Marrin de Salvador Bahia, conhecida popularmente como o

Candomblé do Bogum. Por onde passaram respeitadíssimas “Done” como Emiliana do

Bogum, Mãe Runho, Posusi Romaninha e Gamo Lokosi.

O Candomblé da “Corcunda de Yaya”, que teve em Mãe Tança” a sua figura

mais proeminente.Candomblé da Nação Jeje Savalu, fundado pelo Dote Sinfrônio, que

foi sucedido por sua esposa Mãe Tança e que encerrou suas atividades após a morte

desta, tendo suas terras desapropriadas pelo governo para fazer uma estrada e conjuntos

habitacionais. Deu origem a duas casas conhecidas em Salvador, o Candomblé de

Hamilton no Curuzú e o Candomblé do Pau da Rola dirigido por Alberto.

O Candomblé “Ile Ase Oloroke”, Casa dedicada ao culto de Orisa das árvores,

como Orisa Oke, Orisa Oko, Orisa Iroko, Apaoka e outros e que teve em Mãe Maria

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Violão, em Pai Cristóvão de Ogun e Pai Waldomiro de Sango também conhecido como

Baiano as suas figuras mais conhecidas.

O Ile Ase Opo Aganju, que tem como Babalorisa Obarayn ou Rubelino de

Sango, Mãe Rosa como Iyalase e Ode Faromin como Baba Kekere. A mais antiga e

proeminente casa descendente do Ase Opo Afonja.

Cultura Ágrafa Versus Cultura Gráfica

O Homem desenvolveu o seu sistema de comunicação por milhares de anos,

sempre buscando a sobrevivência da espécie humana no planeta. Desvendar o universo,

descobrir seus enigmas e segredos, sistematizar esses conhecimentos no uso cotidiano e

transmitir tais conhecimentos para outras gerações de humanos.

A cultura ágrafa permaneceu nas comunidades humanas por muitos milhares de

anos. O homem desenvolveu outros segmentos da sua cultura comunicacional como a

fala, a formação de linguagem oral diversificada, linguagem gestual, linguagem

corporal e linguagem simbólica, até que surgiu a grafia na forma de escrita

propriamente dita, com os povos mesopotâmicos e os egípcios.

Presume-se que o homem observando a sua própria pegada na terra molhada,

aprendeu a discriminar o que seria o animal humano, distinguindo-o dos outros animais,

posteriormente aprendendo a distinguir muitos animais uns dos outros e até mesmo

distinguir homens uns dos outros, seu peso, seu tamanho etc.

No processo de leitura topográfica estabelecido foi dado um outro passo para a

consolidação da comunicação por esse meio gráfico, que foi a reprodução daquelas

formas ou pegadas com a finalidade exclusiva de comunicação entre seres humanos.

O passo seguinte foi a reprodução dessas formas ou pegadas através do desenho,

fazendo com que essas formas fossem representadas por traços, sinais, desenhos

gráficos.

De grande importância para o homem essa fase, pois significou a sua inserção

definitiva no ambiente virtual, no mundo dos significados, dos signos e símbolos.

Foi a partir dos desenhos das figuras existentes em cada comunidade e da

simplificação dos desenhos representativos de cada coisa que chegou-se à criação das

letras e de alfabetos.

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Cada letra é um signo gráfico abstrato, oriundo de uma forma figurada de algum

elemento da natureza, que é também representado por um som. A junção de letras leva

a formação de palavras designativas das coisas ou conceitos e conjuntos de palavras

leva ao discurso explicativo de comunicados mais completos.

A cultura humana é elemento abstrato, porém vivo e muito dinâmico. A cultura é

sempre avassaladora, dominadora e expansiva. A cultura faz conquistas e estabelece

domínios continuamente, estando sempre em expansão.

Quando se trata de cultura já estabelecida em grupo étnico ou econômico ou

outro qualquer tipo de agrupamento humano, as intersecções culturais, as fusões, as

adaptações e moldagens são constantes, resultando sempre em uma cultura dominante

com resquícios de outras culturas dominadas e que dará lugar no futuro a uma outra

cultura.

O problema com o qual o homem sempre se deparou foi o da preservação das

novas tecnologias e transmissão dessas para gerações vindouras.

Segundo CAMPUS (1990:56):

“O domínio da realidade, endereço último das práticas humanas, é agenciado graças ao vigor estruturante do compreender e do agir que, canalizado pelo discurso, elabora os sistemas gerais renováveis do mundo percebido e representado”.

Um processo cultural natural acabou por se estabelecer, o homem em uma

corrida para desvendar o planeta e a natureza com os seus incontáveis mistérios. Tais

mistérios são saberes referentes à própria sobrevivência humana. São soluções para

problemas, ou facilitadores para a permanência da espécie humana no planeta.

Cada descoberta implica em uma sistematização do uso do novo conhecimento

através da experimentação e incorporação ao acervo humano de saberes.

O acervo cultural de conhecimentos é muito vasto e tem sua dinâmica própria.

Incorpora os novos conhecimentos e expurga conhecimentos defasados pelo tempo.

As culturas ágrafas, são caracterizadas por um traço marcante de presentificação

da vida. Tem por filosofia que o conhecimento que é dinâmico, tem de ser usado de

forma também dinâmica na vida daquele que o possui, não podendo portanto ser

congelado.

Nos diz HERSKOVITS (1969:29) “Algumas das mais completas conquistas da

ciência encontram paralelos nos povos ágrafos. Citam-se com freqüência, a precisão do

calendário maia ou a habilidade arquitetônica das construções peruanas pré-hispânicas.”

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O conhecimento humano tem de caber na memória do seu possuidor sendo

adquirido por transmissão, investigação, experimentação e conclusão e incorporação.

Ainda HERSKOVITS (1969.29):

“...o homem ágrafo, tal como os que vivem em sociedades que conhecem a escrita, não é autômato nem infantil. É um homem prático, que aproveita as vantagens que se lhe apresentam, contanto que não estejam excessivamente afastadas dos padrões tecnológicos de sua cultura...”

O novo conhecimento deve ser interpretado e usado com base nessa

interpretação, pois assim tal conhecimento estará acrescido da contribuição individual

daquele possuidor. Ainda, o novo conhecimento deve ser incorporado à vida cotidiana,

sendo usado de forma imediata para a sobrevivência do sujeito e o bem estar seu e da

sua comunidade. Nesse sentido o conhecimento não funciona com o caráter de fórmula

aplicável a situações diversas. E sim conhecimento adaptável a partir de uma

interpretação, buscando atender a determinada situação. E isto é produção de saber na

vida cotidiana do sujeito e da sua comunidade. O conhecimento que não está sendo

usado, é visto como natural desaparecer. Ele não está em uso, não está vivo de acordo

com a visão de que a vida é dinâmica e a concepção religiosa é também igualmente

dinâmica.

De acordo com HERSKOVITS (1969:29):

“O retrato do homem ágrafo que podemos esboçar na base do estudo de sua tecnologia e cultura material é o de um indivíduo que trabalha arduamente, que recorre as habilidades adequadas para viver como deseja.”

A genealogia Nagô não faz referência a re-encarnação e sim concebe que a

matéria primordial é roubada da terra, o Orisa Onile. E o Orisa Iku, a morte, é o

encarregado de fazer essa reposição, devolvendo à terra, a matéria roubada.

Conseqüentemente a vida é uma corrida constante pela restauração do equilíbrio através

de negociações e trocas, para aplacar ou enganar Iku e Onile. Isto estabelece um grande

dinamismo nas negociações forçando novos meios, forjando a criação de novas formas

pessoais de negociação quando as já conhecidas não surtem mais efeitos.

A vida é para ser vivida com plenitude, harmonia e alegria, o que explica tanta

festa, comidas e bebidas. A vida deve ser uma celebração contínua, o céu, o nirvana é

aqui e agora. Não há nenhuma garantia de que espíritos de humanos terão acesso ao

Orum, espaço sagrado dos Orisa ou mesmo de que retornarão ao Aiye, mundo dos seres

vivos. Portanto deve-se viver intensamente a vida, desfrutando de tudo de bom que se

possa ter acesso, principalmente construindo um viver cheio de alegria e prazeres de

toda sorte, sem jamais sentir culpa.A alegria é um direito do ser humano, uma dádiva do

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Orisa Esu Odara, aquele que traz a alegria para o mundo, a sua grande contribuição

para a humanidade. Por extensão, a alegria é a maior contribuição dos povos africanos e

afro-descendentes para a cultura contemporânea mundial. Ara Dundun Kayode, o negro

traz a alegria.

Sociedades ágrafas em sua origem, não são dicotômicas. Não separam o bem do

mal, uma vez que o bem e o mal são circunstanciais para o ser humano e tal formulação

é muito própria de culturas ágrafas, dado o caráter imediato e transitório da vida.

O advento da escrita criou grandes avanços tecnológicos para a humanidade,

possibilitando que o conhecimento fosse transmitido por sinais gráficos e gráficos

virtuais, de mais fácil transporte e comunicação, permitindo que importantes tecnologias

para a sobrevivência humana, fosse disseminada por todo o planeta.

Nos diz FISCHER (1976,46) “A magia original veio a se diferenciar

gradualmente em ciência, religião e arte” do que depreende-se que a ciência, como um

dos três segmentos da cultura que explica o mundo, os outros dois são a religião e a arte,

teve desenvolvimento incomparável na cultura gráfica mundial, uma vez que suas

inúmeras fórmulas não se perdem, não são esquecidas, sempre serão encontradas em

algum depósito de conhecimentos e tecnologias.

A cultura gráfica, congela conhecimentos e de certa forma adia vivências uma

vez que tem acervo guardado, que pode ser utilizado e reutilizado sempre que for

preciso. A mente humana não necessita reter todo o conhecimento, porque sempre que

necessário pode-se buscar os conhecimentos arquivados em algum lugar. As bibliotecas,

os arquivos, os bancos de dados, a internet, os livros, etc. são na verdade extensões da

memória humana.

O indivíduo não precisa ter boa memória e sim ser um hábil capturador de

conhecimentos armazenados.

Claro que nesse sistema gráfico o acervo da cultura humana se tornou

incomensurável.

O embate entre o segmento cultural ágrafo e o segmento cultural gráfico na

atualidade, como não podia deixar de ser, dado o caráter dominante expansionista de

toda cultura, é de assimilação e ajustamento.

Nas comunidades religiosas afro-descendentes, mesmo mantendo-se as

principais características ágrafas da cultura, recorre-se freqüentemente às anotações, aos

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cadernos de segredos, para não esquecer receitas, rituais, fórmulas mágicas, mitos,

datas, etc.

Uma forte intersecção entre os dois segmentos ocorre resultando em um terceiro

sistema ainda em adaptação. Inclusive a comunicação com os Orisa e outras entidades

já se faz também através da escrita e de desenhos, haja vista os pontos riscados da

Umbanda, toda sorte de pedidos aos Orisa na forma de bilhetes, cartas, desenhos, fotos,

xerox, gravuras e outros exemplos. O que importa essencialmente é atingir da melhor

maneira possível um resultado imediato, a comunicação com o Orisa e ter suas

necessidades atendidas.

Entre o sistema ágrafo e o sistema gráfico apresenta-se diferenças culturais de

grande importância que são determinantes na filosofia cultural de cada grupo, influindo

diretamente no modo como cada sujeito se insere no mundo, como se relaciona com a

sociedade, com a vida, com o divino e como concebe o mundo.

O Sistema de Comunicação Interna e Externa do Candomblé Brasileiro; A

disseminação do saber.

A mensagem é emanada do Orisa principal daquela casa, que a comunica para a

sua principal interlocutora e autoridade máxima, a Iyalorisa Mãe de Santo ou

Babalorisa Pai de Santo. Este recebe o comunicado através do Jogo divinatório de Ifá,

Orisa da Comunicação entre os deuses e os homens, entre o mundo encantado dos

Orisa, o Orum e o mundo natural ou dos vivos, o Aiye.

A Iyalorisa interpreta o comunicado e o repassa para a Iya Kekere ou mãe

pequena, segunda autoridade da casa. Repassa também para a Iya Dagan, equivalente a

mãe administradora da casa.

Essas duas autoridades têm a função de interpretar o comunicado já interpretado

pela Iyalorisa e repassá-lo para as outras sacerdotisas sempre por ordem de idade

iniciática.

E cada sacerdotisa reinterpreta o comunicado e o repassa para outra sacerdotisa

mais nova, que por sua vez repete o mesmo procedimento, até o comunicado alcançar o

total daquela comunidade interna.Via de regra o comunicado inicial, sempre passível de

interpretações, acréscimos e adaptações é finalizado junto aos sujeitos receptores com

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sentido bastante diverso do sentido original. A poesia, a ficção e o estético possuem

valor igual ou maior que o valor da fidedignidade.

Popularmente se sabe que no candomblé “antiguidade é posto”. Isto também

possibilita o estabelecimento de uma rígida hierarquia religiosa, uma vez que é

impossível dentro da mesma casa haver mais de uma pessoa iniciada no mesmo

momento.

O comunicado é recebido, interpretado e repassado com os acréscimos da nova

interpretação. E sucessivamente transmitido por camadas de idade iniciática e de

importância honorífica, sempre a partir da interpretação que cada um faz com base no

seu repertório individual, suas habilidades interpretativas, sua capacidade dramática, sua

criatividade. É muito comum tais comunicados chegarem à base da comunidade com o

sentido inteiramente inverso do sentido original. E alguma interpretação mais

convincente do fato acaba por justificar a inversão. Geralmente atribui-se a culpa a Esu

o Deus dos mal-entendidos, das brincadeiras e peças pregadas.

Certa vez o Orisa da casa determinou um Ebo coletivo do Buji, da fruta jenipapo

verde, de proteção contra a morte.A primeira determinação seria que todos da casa

deveriam cortar um pedaço do jenipapo verde e com este fazer uma pequeníssima

mancha na testa,na nuca, em cada face, no lado externo das mãos, dos pés e na região

do coração. O comunicado foi se transformando, de pequena mancha virou três riscos,

virou cruz e outros signos gráficos.

Alguém tão brincalhão quanto Esu, deu um aviso contundente na cozinha

“...minha gente, a ordem que veio lá de cima (referência às autoridades da casa), foi de

que todo mundo tem de esfregar bem o jenipapo, principalmente as filhas de

Iyemanja...” O comunicado se espalhou pela comunidade dentro do sistema de

interpretação, acréscimos e passa adiante. No dia seguinte uma filha de Iyemanja

apareceu muito chorosa e foi motivo de risos generalizados, estava com manchas

escuras enormes pelo rosto e corpo, manchas que demoram cerca de uma semana para

desaparecer. Nunca se soube quem foi o autor do aviso.

Outros meios de comunicação são comumente usados, os sonhos, as

premonições, intuições e incorporações são freqüentes “media” de comunicações entre

o Orum e o Aiye, todos passíveis à toda sorte de interpretações e acréscimos, sempre

adequando-se ao contexto. “...bem que alguma coisa tava me avisando que isto ia

acontecer”.

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Os pressentimentos “...eu sabia que tinha uma alguma coisa estranha...estava

tendo arrepios constantes...”.

Muitas outras formas de comunicação dos deuses com os humanos como “olhar

no copo”, ou numa tijela com água. Olhar nas cartas, no tarô ou outro sistema similar,

qualquer meio de comunicação com os Deuses é de muita valia para a comunidade.

Compreende-se que os Deuses podem comunicar-se através de qualquer meio, aos

homens cabe ter inteligência interpretativa para poder aproveitar do melhor modo a

dádiva divina.

Esse comunicado, dependendo das mais diversas interpretações, ganha no seu

percurso contornos dramáticos, artísticos, poéticos, filosóficos e muitas vezes trágicos.

Ganham texto muitas vezes com personagens, dependendo da criatividade, imaginação

e interpretação de cada um.

Uma das finalidades desses acréscimos é a retenção da essência do comunicado.

Uma estória com início, meio e fim e que têm por base um ensinamento filosófico e

moral têm maior retenção na memória do grupo.

Nesse sentido é comum a atribuição de fatos acontecidos com membros da

comunidade serem atribuídos aos Orisa, conquanto possuam ensinamento filosófico

significativo para aquela comunidade. A estória fica preservada, sobrevive anexada aos

mitos daquele Orisa, o que explica muitas contradições entre os diversos mitos de um

mesmo Orisa.

Quando a comunicação deve ser feita oficialmente para a comunidade externa, a

Iyalorisa encarrega o Sarapenbe, sacerdote porta-voz da casa, ou encarregado das

comunicações externas da casa.Este deve visitar as principais autoridades da

comunidade externa, ou seja outros sacerdotes, governantes, polícia etc., levando o

comunicado de acordo com a interpretação da Iyalorisa e da sua própria.

Pelo sistema mais informal, os comentários chamados “boca a boca”, se

encarregam de difundir o comunicado pela grande massa da comunidade externa e

pode propagar-se de modo muito significativo, dependendo do apelo dramático e

espetacular da notícia. Uma essência primordial do comunicado é mantida, uma espécie

de “gancho” da notícia, para manter alto o interesse pela notícia. Então quando se trata

de um evento, pode-se esperar a casa cheia de gente, pois todos tomarão conhecimento

daquela notícia.

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Alguns pontos da cidade ou da comunidade externa servem como “média” de

propagação dessas notícias. Pontos de comércio e serviços populares como barbearias,

onde o profissional trabalha e desenvolve uma conversa de entretenimento do cliente,

passando-lhe as muitas novidades da comunidade e sendo igualmente informado de

outras tantas novidades. Bares, restaurantes, barracas de feira e notadamente as barracas

que vendem folhas e ervas, onde não acontece simplesmente a troca de mercadorias ou

serviços por dinheiro e sim obrigatoriamente também troca-se experiências de vida e

informações generalizadas sobre o candomblé. O sincretismo entre os Orisa, Os Vodum

e os Nkise, muito se deve às barracas de folhas, que unificam a informação sem fazer

distinção entre as diversas Nações. As folhas e ervas dada a sua magnitude no mundo do

candomblé,são vendidas e usadas quase igualmente entre as diversas nações de

candomblé no Brasil, devendo-se tudo isso ao complexo sistema de comunicação dessas

comunidades que fazem do Fuxico ou da Gazeta Nagô o seu principal “média” de

comunicação.

Observação: Esclarecemos que os termos na língua Yoruba foram mantidos com

a sua grafia estabelecida por acordo mundial em 1946.

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