gabriel feltran - o valor dos pobres

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495 Gabriel de Santis Feltran CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 72, p. 495-512, Set./Dez. 2014 O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo Gabriel de Santis Feltran* No Brasil, as periferias são o centro de duas figurações recentes e dicotômicas: a da violência urbana que pede mais repressão e a do desenvolvimento social, que transformaria pobres em “Classe C”. Este ensaio argumenta que a representação da “violência urbana” retirou o centro da “questão social” con- temporânea dos “trabalhadores”, deslocando-o aos “marginais”. A derrocada do universalismo inscrito nesse deslocamento enseja um governo seletivo que recorta a população em distintos graus de “vulne- rabilidade” e níveis de “complexidade” da intervenção estatal; como efeito colateral, emergem distintos regimes normativos nas periferias – por exemplo: estatal, do “crime” e religioso – que embora estejam sempre em tensão, encontram coesão no fato de regularem mercados monetarizados. O dinheiro passa a mediar a relação entre os grupos recortados e suas formas de vida que, sob outras perspectivas – a lei ou a moral – estariam em alteridade radical; o consumo emerge como forma de vida comum e a expansão mercantil, aposta de todos, conecta mercados legais e ilegais, inclusive fomentando a violência urbana que pretensamente controlaria. PALAVRAS-CHAVE: Periferias. Violência. Desenvolvimento. Dinheiro. Valor. * Doutor em Ciências Sociais. Professor do Departamen- to de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Coordenador Científico do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e pesquisador do Núcleo de Etnogra- fias Urbanas do CEBRAP. Agradeço o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), através do processo nº 2013/07616-7 (CEPID- CEM), bem como da bolsa de produtividade PQ2 do CNPq. Rodovia Washington Luis, km235. Cep: 13565-905. São Carlos – São Paulo – Brasil. [email protected] DOSSIÊ INTRODUÇÃO Em São Paulo, Deus é uma nota de cem. Racionais MC’s, 2002 Nos últimos anos, foi intenso o debate entre cientistas sociais que estudam a pobreza, a “questão social” e as políticas voltadas para a proteção social ou para a repressão da mar- ginalidade, bem como a criminalidade e a vio- lência. 1 Se nunca houve consenso na biblio- 1 Refiro-me às discussões que travamos entre colegas e estudantes, amigos e parceiros de trabalho que embasam esse ensaio, cujas ideias não são tão minhas quanto os equívocos que as acompanham. Agradeço aos pesquisado- res do NaMargem, CEM, NEU-CEBRAP, CEVIS, NECVU, NACI, PAGU e GEVAC, além de Ernesto Isunza, Neiva Vieira, Cibele Rizek, Carly Machado, Vera Telles, Adria- na Vianna, Daniel Hirata, Derek Pardue, Angelo Martins, Isabel Georges, Jacob Lima, Heitor Frugoli, Mariana Caval- canti, Bela Feldman Bianco, Leonardo Sá e Mariana Cor- tes, além de Daniel Cefaï, Gabriel Kessler, Patrick Le Galès, Marie Morelle, Salvador Maldonado e Nicolas Bautes pela intensidade das trocas intelectuais desses últimos anos. grafia brasileira especializada nesses grupos, 2 recentemente suas vertentes pendularam entre argumentos tão consistentes, quanto divergen- tes. De um lado, enfatizou-se a expansão da cidadania, comprovada pela maior cobertura das políticas e melhoria dos indicadores so- ciais (inclusive desigualdade de renda), mas também pela manutenção de marcos legais progressistas, consolidação da participação so- cial em conselhos, estabilidade da democracia institucional, além da enorme expansão das capacidades de consumo e crédito populares. 3 2 O lugar que os pobres ocupariam na democracia e nas cidades brasileiras, assim como a relação entre pobreza, desenvolvimento e cidadania, sempre foi tema central à bibliografia especializada, seja a de influência marxista (Kowarick, 1975; Oliveira, 1982), incluindo suas vertentes gramsciana (Dagnino, 1994, 2002; Silva, 1993) e thompso- niana (Telles&Paoli, 2000; Sader, 1988), seja a mais cultu- ralista (Durham, 2005; Caldeira, 2000) ou a de influência arendtiana (Telles, 2001) e habermasiana (Zaluar, 2004). 3 Exemplar dessa vertente é a intensa produção do Centro de Estudos da Metrópole, dedicada a embasar, questionar, contrapor ou oferecer hipóteses alternativas, sempre am- paradas em pesquisa empírica e utilizando métodos que vão da demografia à etnografia, uma série de argumentos correntes na bibliografia sobre o tema das desigualdades (Arretche, 2014), políticas sociais (Arretche, 2010; Mar- ques, 2010, 2012; Kowarick&Marques, 2011; Marques&- Bichir, 2011), relações de trabalho (Guimarães, 2009; 2012b), território, cidade e pobreza (Marques, 2012), para além das estratégias estatais de governo do social (Feltran, 2011; 2012; Marques, 2014) e relações raciais (Guimarães, 2012a), entre diversos outros temas.

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Sociologia

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    O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro como mediao para o confl ito social contemporneo

    Gabriel de Santis Feltran*

    No Brasil, as periferias so o centro de duas figuraes recentes e dicotmicas: a da violncia urbana que pede mais represso e a do desenvolvimento social, que transformaria pobres em Classe C. Este ensaio argumenta que a representao da violncia urbana retirou o centro da questo social con-tempornea dos trabalhadores, deslocando-o aos marginais. A derrocada do universalismo inscrito nesse deslocamento enseja um governo seletivo que recorta a populao em distintos graus de vulne-rabilidade e nveis de complexidade da interveno estatal; como efeito colateral, emergem distintos regimes normativos nas periferias por exemplo: estatal, do crime e religioso que embora estejam sempre em tenso, encontram coeso no fato de regularem mercados monetarizados. O dinheiro passa a mediar a relao entre os grupos recortados e suas formas de vida que, sob outras perspectivas a lei ou a moral estariam em alteridade radical; o consumo emerge como forma de vida comum e a expanso mercantil, aposta de todos, conecta mercados legais e ilegais, inclusive fomentando a violncia urbana que pretensamente controlaria. PALAVRAS-CHAVE: Periferias. Violncia. Desenvolvimento. Dinheiro. Valor.

    * Doutor em Cincias Sociais. Professor do Departamen-to de Sociologia da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar). Coordenador Cientfico do Centro de Estudos da Metrpole (CEM) e pesquisador do Ncleo de Etnogra-fias Urbanas do CEBRAP. Agradeo o financiamento da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), atravs do processo n 2013/07616-7 (CEPID-CEM), bem como da bolsa de produtividade PQ2 do CNPq.Rodovia Washington Luis, km235. Cep: 13565-905. So Carlos So Paulo Brasil. [email protected]

    DOSSI

    INTRODUO

    Em So Paulo, Deus uma nota de cem. Racionais MCs, 2002

    Nos ltimos anos, foi intenso o debate entre cientistas sociais que estudam a pobreza, a questo social e as polticas voltadas para a proteo social ou para a represso da mar-ginalidade, bem como a criminalidade e a vio-lncia.1 Se nunca houve consenso na biblio-

    1 Refiro-me s discusses que travamos entre colegas e estudantes, amigos e parceiros de trabalho que embasam esse ensaio, cujas ideias no so to minhas quanto os equvocos que as acompanham. Agradeo aos pesquisado-res do NaMargem, CEM, NEU-CEBRAP, CEVIS, NECVU, NACI, PAGU e GEVAC, alm de Ernesto Isunza, Neiva Vieira, Cibele Rizek, Carly Machado, Vera Telles, Adria-na Vianna, Daniel Hirata, Derek Pardue, Angelo Martins, Isabel Georges, Jacob Lima, Heitor Frugoli, Mariana Caval-canti, Bela Feldman Bianco, Leonardo S e Mariana Cor-tes, alm de Daniel Cefa, Gabriel Kessler, Patrick Le Gals, Marie Morelle, Salvador Maldonado e Nicolas Bautes pela intensidade das trocas intelectuais desses ltimos anos.

    grafia brasileira especializada nesses grupos,2 recentemente suas vertentes pendularam entre argumentos to consistentes, quanto divergen-tes. De um lado, enfatizou-se a expanso da cidadania, comprovada pela maior cobertura das polticas e melhoria dos indicadores so-ciais (inclusive desigualdade de renda), mas tambm pela manuteno de marcos legais progressistas, consolidao da participao so-cial em conselhos, estabilidade da democracia institucional, alm da enorme expanso das capacidades de consumo e crdito populares.3

    2 O lugar que os pobres ocupariam na democracia e nas cidades brasileiras, assim como a relao entre pobreza, desenvolvimento e cidadania, sempre foi tema central bibliografia especializada, seja a de influncia marxista (Kowarick, 1975; Oliveira, 1982), incluindo suas vertentes gramsciana (Dagnino, 1994, 2002; Silva, 1993) e thompso-niana (Telles&Paoli, 2000; Sader, 1988), seja a mais cultu-ralista (Durham, 2005; Caldeira, 2000) ou a de influncia arendtiana (Telles, 2001) e habermasiana (Zaluar, 2004).3 Exemplar dessa vertente a intensa produo do Centro de Estudos da Metrpole, dedicada a embasar, questionar, contrapor ou oferecer hipteses alternativas, sempre am-paradas em pesquisa emprica e utilizando mtodos que vo da demografia etnografia, uma srie de argumentos correntes na bibliografia sobre o tema das desigualdades (Arretche, 2014), polticas sociais (Arretche, 2010; Mar-ques, 2010, 2012; Kowarick&Marques, 2011; Marques&-Bichir, 2011), relaes de trabalho (Guimares, 2009; 2012b), territrio, cidade e pobreza (Marques, 2012), para alm das estratgias estatais de governo do social (Feltran, 2011; 2012; Marques, 2014) e relaes raciais (Guimares, 2012a), entre diversos outros temas.

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    De outro, denunciou-se o recrudescimento da insegurana e a militarizao da ordem urba-na, a criminalizao da pobreza e sua instru-mentalizao pelos mercados imobilirios e de segurana privada, a ampliao do encarcera-mento e a tendncia internao compulsria de usurios de drogas, bem como a incrimina-o do protesto social, atentados aos direitos civis.4 Os mesmos fenmenos empricos por exemplo, os debates em torno de mudanas no Estatuto da Criana e do Adolescente, legaliza-o das drogas, aes afirmativas, funk osten-tao ou mesmo a queda de homicdios em So Paulo podem ser tomados como indicadores de diagnsticos dos mais aos menos otimistas, tendo por base a consolidao da democracia ou o desenvolvimento econmico.

    Sem dvida, as perspectivas tericas, os locais de observao e mtodos empregados em cada vertente analtica conduzem a parte das divergncias em pauta, no mais das vezes muito saudveis ao amadurecimento do de-bate. Entretanto, sugiro que uma das causas centrais desse desentendimento a demasiada agregao analtica, que pressupe homoge-neidade emprica ainda que afirmemos o con-trrio, que categorias como pobreza, perife-ria ou classes populares carregam consigo. Essas palavras abrangem hoje, sem nos darmos conta, da vida de um catador de material reci-clvel de um taxista; de uma travesti que faz programa na rua a um pedreiro com trs carros na garagem; de meninas do interior trabalhan-do no Hooters para pagar faculdade na capital a um estudante secundarista cumprindo Liber-dade Assistida; de uma ingressante por Ao Afirmativa em uma boa universidade pblica a um morador de rua, ex-presidirio e usurio radical de crack; de um interno de Comunida-de Teraputica que busca livrar-se da cocana a um operrio txtil boliviano, quando no um

    4 De modos distintos, Telles&Cabanes (2006); Rizek&Oli-veira (2007); Cabanes, Georges, Rizek, & Telles (2011) ou Vieira&Feltran (2013), alm da produo recente do NE-CVU-UFRJ, do CEVIS-IESP/UERJ ou do Ncleo de Etno-grafias Urbanas do CEBRAP, sobretudo Rui, 2012; Fiore, 2013; Malvasi, 2012, so exemplares dessa vertente da bibliografia.

    vendedor ambulante nigeriano; de uma Agen-te Comunitria de Sade evanglica a um pe-queno empreendedor do ramo de automveis, participante do Rotary Club; de um seguran-a privado preto de 60 anos, nordestino, a um presidirio pardo de 19, favelado; de um policial, um mecnico desempregado ou um dono de desmanches clandestinos. Sabemos, entretanto, que todos esses sujeitos poderiam, hoje, morar em uma mesma rua num bairro considerado de periferia e, tomadas as catego-rias ocupacionais ou de renda, todos poderiam ser considerados integrantes das classes tra-balhadoras. As perspectivas de vida de cada um, seus pertencimentos territoriais, familiares e religiosos, seus cdigos de conduta e os pro-gramas sociais que chegam at eles, vindos de ONGs, governos ou igrejas, bem como os tipos de inscrio nos mercados e os modos como a violncia urbana toca suas vidas, sendo por eles administrada, so muito divergentes.

    Participando de uma srie de debates sobre as periferias, os pobres, a violncia, os movimentos sociais ou as transformaes ur-banas nos ltimos anos, dei-me conta de que nossos argumentos, vindos de diferentes reas e enfoques so, quase sempre, baseados em re-presentaes totalizantes sobre a periferia ou a pobreza. Mais recentemente, tenho perce-bido que quase sempre tomamos uma imagem particular a do integrante do Primeiro Coman-do da Capital PCC, do usurio de crack, do presidirio, ou a das famlias endividadas que compram carros ou apartamentos da MRV En-genharia, financiados pela Caixa como a par-te que representaria o todo das periferias, suas tendncias violentas ou de insero mercantil.

    Este artigo no toma como pressuposto da anlise, mas como objeto de reflexo esse modo totalizante e quase sempre dicotmico de perceber os pobres como recortados entre as perspectivas da violncia urbana e do desenvolvimento econmico. Assim, escre-vo a partir da minha experincia situada, ao mesmo tempo intelectual e poltica, vivida nos ltimos anos em inmeros debates sobre

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    as periferias sigo utilizando o termo como uma representao a compreender. A hetero-geneidade dos setores populares e os recortes populacionais neles produzidos pelos progra-mas sociais, pelas igrejas, pelo mundo do cri-me, so aqui pontos de partida da reflexo. A minha pesquisa nas periferias de So Paulo, portanto, no sua nica fonte de dados; a et-nografia (traduo de uma experincia vivida em texto) segue sendo, entretanto, o modo de conhecimento que a embasa.

    A argumentao pressupe fronteiras tensas entre setores populacionais das perife-rias, classificados como Classe C ou mar-ginais, mas, sobretudo, entre eles e grupos sociais mais abastados (entendidos por todos esses como playboys, madames ou ba-canas). So essas as duas linhas de conflito social que me interessa estudar, na base dos recortes populacionais. Os modos de gover-no desse conflito, que produz ordem social e urbana, tornam-se ento objetos privilegiados para a anlise. Como hiptese, penso que hoje o conflito social no seria apenas mediado pe-los valores cristos, pilar da coeso entre de-siguais no Brasil, ou pela ascenso do direito como mediador privilegiado (a lei, a ordem, a cidadania); tampouco seria redimido apenas no corao da lgica punitiva, exemplar do en-carceramento massivo e da criminalizao da pobreza que tenta assujeitar fora os descon-tentes. As estratgias governamentais contem-porneas parecem estar baseadas, justamente, na variao situacional de um repertrio de regimes de governo realmente existentes e re-lativamente autnomos (Silva, 1993; Feltran 2010, 2011, 2012; Grillo, 2013), que incluem essas estratgias e tantas outras, organizadas a partir de recortes populacionais to mais pre-cisos quanto possvel. Entre esses recortes es-sencializados em corpos e palavras, figura-se a ideia de que apartao nos planos da moral ou da lei. Entretanto, ntido que todos eles esto submetidos uma lgica mercantil for-malmente integrada pela monetarizao, o que produz uma forma de vida comum, desejvel

    por todos, centrada na expanso do consumo. Se so figurados como vivendo em universos morais distintos, trabalhadores e bandidos tro-cam bens e servios monetarizados entre si, na medida em que os mercados que operam encontram-se profundamente vinculados; po-liciais e traficantes tambm tm seus acertos, e s podem ser financeiros, para que o trfi-co possa operar com benefcio para ambos; playboys e manos adoram as mesmas motos e carros, submetendo-se a inmeras relaes diretas nas distintas posies dos mercados de trabalho e consumo que ocupam. Todos res-peitam a riqueza como signo de status. O di-nheiro objetivamente elevado ao estatuto de forma mediadora entre grupos populacionais em conflito, suplantando em muito a legitimi-dade da lei e da moral, que invariavelmente os afastariam.

    Esquadrinhar a populao e essencia-lizar os recortes produzidos, objetivando-os, seria a funo primeira da maquinaria de go-verno; a partir dessa classificao, pode-se pro-duzir valorao seletiva e desigual de recortes populacionais produzidos. O valor atribudo a cada recorte, devidamente objetivado nessas classificaes, pode, em seguida, ser moneta-rizado (Simmel, 1900).5 Lgica de mercado, portanto assim se faz com o solo urbano, que se recortam os nichos de mercado; assim tambm se deve agora recortar as populaes, tornadas ao mesmo tempo pblico-alvo de marqueteiros e programas de governo.6 Da o nexo constitutivo entre o governo seletivo da pobreza e o desenvolvimento mercantil, da o ideal de expanso de consumo aos pobres e sua integrao aos mercados como projeto po-ltico fundamental. a ampliao da circula-

    5 A reflexo inspirada pelas reflexes de Simmel (2014) e Arendt (2001) sobre a monetarizao dos objetos culturais, precedida pelo trabalho de tornar plausvel a pergunta quanto custa?, at ento impensvel para esses objetos, como hoje seria perguntar quanto custa seu filho?.6 Sintomtico, assim, que um Secretrio Municipal de Se-gurana, em conversa pessoal, tenha se referido por trs vezes ao Crack, possvel vencer como o nome fanta-sia de um programa nacional de Segurana Pblica. H muito os programas pblicos tm slogans formulados por marqueteiros, obedecendo s lgicas de fragmentao por nichos mercantis.

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    o de dinheiro, agora tambm relevante nas margens do social, a finalidade fundamental do repertrio varivel de regimes de governo da pobreza que recorta os pobres a partir da intensidade potencial do conflito que podem causar ordem mercantil.

    Para lanar essa perspectiva em debate, o artigo argumenta em trs sesses que: 1) a representao da violncia urbana retirou o centro irradiador da questo social contem-pornea dos trabalhadores, deslocando-o aos marginais; as polticas sociais afastaram-se do universalismo do direito social e, hoje, pen-sam a proteo social sobretudo tendo como pano de fundo a preveno violncia; torna-se plausvel, ento, a representao moral de um continuum entre os pobres, que tem, num polo, o bandido a encarcerar e, no outro, o consumidor ou o empreendedor a inserir via mercado; 2) nas prticas de governo, essa essencializao produz diferentes cortes no nvel da populao, objetivando distintas vul-nerabilidades sociais e ensejando graus varia-dos de complexidade da interveno; 3) esse modo de governo seletivo que associa tcnicas to dspares quanto transferncia condicionada de renda e encarceramento, para no falar de extermnio acabaria por favorecer, como efei-to colateral, a emergncia de um repertrio de regimes normativos nas periferias urbanas es-tatal, do crime e religioso todos regulando mercados monetarizados; a monetarizao, portanto, que passa a mediar centralmente a relao entre os grupos recortados, que, sob ou-tras perspectivas mediadoras a lei, a ordem, a moral estariam em alteridade radical; o de-senvolvimento centrado no consumo, portan-to, alado a forma de vida comum. Um tra-balhador no se confunde moralmente com um bandido, tampouco um policial tem a mesma posio frente lei, se comparado a um trafi-cante; ambos, entretanto, tm posies relativas muito prximas frente aos mercados de consu-mo. Como o dinheiro circula indiferenciada-mente por mercados legais, ilegais ou ilcitos, a expanso mercantil conecta estes sujeitos e, por

    isso, tambm media os acertos entre eles, que fazem os mercados ilcitos e de mercadorias po-lticas (Misse, 2006a) crescerem. Assim, a mes-ma mo que fomenta a expanso do consumo da nova Classe C fomenta a violncia urbana que pretensamente controlaria.

    A QUESTO SOCIAL NA RBITA DA SEGURANA PBLICA

    H um relativo consenso, na literatura, de que a questo social contempornea inci-de sobre um deslocamento decisivo, operado desde as revolues na Frana e nos Estados Unidos (Arendt, 1959, 1977), mas tornado vi-svel sobretudo ao longo das ltimas dcadas, no centro da narrativa moderna que teve por norma a extenso universal da democracia (Rancire, 1995; Agamben, 1998). Na socieda-de salarial, a questo social teria sido pautada pelo esforo de mediao pblica e estatal dos efeitos desiguais da acumulao capitalista, centrados na extenso nacional dos direitos ci-vis, polticos e sociais (Marshall, 1950) e com-preendidos como a contrapartida universal do assalariamento (Donzelot, 1984; Silva, 1993; Rosanvallon, 1995). O trabalhador era a figu-ra central a partir da qual se erigia o problema social e suas tentativas de soluo. Ainda que essa contrapartida no se universalizasse de fato, o horizonte normativo (cognitivo e pol-tico) da resoluo da questo social era for-mulado nos termos do bem estar social, dos li-mites mercantilizao das formas de vida, da internalizao do conflito de classe nos modos de conceber e administrar o Estado e na produ-o de comunidades nacionais que visassem homogeneidade interna. A alteridade radical, que justificava inclusive as guerras, passou a ser figurada no estrangeiro. O Estado protege seus cidados da ameaa externa.7 Integrao, 7 Se a noo de questo social havia se notabilizado, so-bretudo, no debate francs acerca do Estado de bem-estar (Ewald, 1986), o ndice das contradies da modernidade poltica e econmica (Telles, 1999) nos levava a um hori-zonte crtico, ainda que paradoxal, na medida em que os problemas advindos da modernidade deveriam ser supera-

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    insero ou incluso social, portanto, pauta-vam o problema social e os modos da inter-veno estatal na pobreza de modo a produzir uma comunidade, ainda que remetessem a um redesenho evidente das tecnologias do poder (Foucault, 1976).

    Castel (1999) demonstrou como essa equao foi desafiada nos pases europeus, so-bretudo na Frana, a partir dos anos 1980. Em novo cenrio, caudatrio da reestruturao produtiva e da reforma neoliberal do Esta-do, instalava-se o desmanche, pela base, das mediaes estatais que garantiam a efetivao de direitos, jogando para a defensiva a figura do trabalhador formal, antes referncia a atingir. A ascenso do precariado, em sua informalidade, fazia do desempregado estru-tural o signo da vulnerabilidade dos novos tempos. Se o cenrio descrito por Castel, no fi-nal dos anos 1990, seguiu metamorfoseando-se at os dias de hoje, isso se deu, sem dvida por radicalizao do mesmo vetor de transforma-o da questo social por ele descrito. Os mer-cados informais e os postos de trabalho prec-rio expandiram-se por todo o mundo, mesmo em cenrios de desenvolvimento econmico e baixssimo desemprego, como o brasileiro dos anos 2000. Mas tambm expandiram-se nota-velmente nas economias centrais (Ruggiero & South, 1997).

    No Brasil, a regulao da cidadania (San-tos, 1979) tambm apostou nessa chave e, no plano das prticas, mal chegou a lugares e pes-soas marcados por sociabilidade, linguagem e cdigos de conduta consideradas informais. Os classificados como pobres estariam imer-sos nas franjas da incompletude de processos estruturais da modernidade, da a atribuio de atraso que permeia as leituras, do senso comum s universidades, acerca dos setores populares. As prprias noes de excluso ou desfiliao, atestariam, assim, essa espcie de evolucionismo inscrito mesmo nessa formula-

    dos nos marcos da prpria teleologia moderna, pela criao e progressiva extenso dos direitos da cidadania. Cidadania seria, ento, uma medida nas relaes sociais (Telles, 1994).

    o crtica da questo social. O conflito social imanente s transfor-

    maes recentes, que frustram esse ideal de cidadania, mais radical que outrora, seja por vivenciarmos um momento de repactuao so-cial ampla, seja porque e essa a hiptese central aqui esse conflito no emana apenas, nem mais fundamentalmente, dos setores tra-balhadores, integrveis pela narrativa da ex-panso dos mercados e dos direitos. Embora o trabalho e os direitos sigam exercendo papis centrais no mundo das prticas sociais, o con-flito social se situa hoje representado central-mente na expanso e progressiva tematizao da violncia urbana, das drogas e da mar-ginalidade,8 que constroem sujeitos por defi-nio no integrveis. Se a luta por direitos do trabalhador, hegemnica nos anos 1980 e incio dos 1990, lanava a questo social a um plano poltico (Paoli, 1995), a oposio central na qual parece situar-se o conflito so-cial contemporneo , justamente, a clivagem moral que ope a figura do trabalhador, com-preendido ento como um homem de bem, partcipe da comunidade em seus anseios de progresso, daquela do bandido ou do droga-do, do noia, do presidirio, enfim, do ini-migo que, em sua simples existncia, ameaa essa mesma comunidade. Nas diferentes figu-raes do outro a combater, o conflito inscrito na questo social se plasma agora em torno de uma ameaa essencial ordem pblica, subje-tivada em corpos, territrios e palavras clara-mente definidos e internos aos territrios onde se vive. No mais os inimigos estrangeiros: a ameaa vem de dentro, vem de perto, o inimi-go interno.

    J no se trataria, apenas, de admitir a vulnerabilidade social de moradores de rua, presidirios ou usurios de crack, para, em seguida, pautar sua necessria reintegra-8 No , por exemplo, a esttica do trabalhador aquela que dita, atualmente, os critrios de pertencimento das gera-es jovens das periferias ao mundo social; expresses estticas muitssimo difundidas ali nas ltimas dcadas, como o rap ou o funk, demonstram uma partilha do sen-svel (Rancire, 1995) centrada em alteridade bastante mais radical que outrora (Bertelli, 2012; Feltran, 2013; Takahashi, 2013).

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    o (Melo, 2014). Trata-se de equacionar essa vulnerabilidade ao potencial risco que eles representam. Como contrapartida, a depender da performance moral de cada sujeito ou gru-po, oferecem-se doses (sempre tentativas, tra-ta-se de um momento de transio) da mistura proteo social e controle, expandindo direitos e privaes, atendimentos e disciplinarizao, postos de sade e criminalizao, autoridade legtima e represso violenta.9

    Por isso, verifica-se a proliferao con-comitante dos servios sociais, sempre focali-zados, e das estratgias de segurana pblica e privada, vigilncia e militarizao dos ter-ritrios urbanos, igualmente focalizados. No Brasil, a expanso do acesso casa prpria pelo Programa Minha Casa Minha Vida, por isso, est em plena sintonia com a retomada dos deslocamentos forados de indesejveis urbanos, seja s periferias longnquas, seja a prises, unidades e clnicas de internao, que incluem controle qumico pela psiquiatriza-o. Oferece-se suporte para a Nova Classe C que expande mercados e preconiza-se seu isolamento das fatias populacionais que de-sarranjariam seu avano. O problema aparece, apenas, quando se descobre que os empreen-dimentos em que a Nova Classe C vai viver esto situados em territrios nos quais no apenas a lei do mercado a que existe, e quando se vislumbra que essa nova classe no est as-sim to segregada do crime, do PCC ou de suas dinmicas, mas habita nos mesmos bair-ros. Quando se percebe que o outro a combater materializa-se, no poucas vezes, no prprio pai, irmo, marido, parente.

    A grade de inteligibilidade do problema social se desloca, explicitamente, da questo social ao problema da violncia, compreendi-do como problema associado entre criminali-

    9 A lgica vitoriosa dos governos de coalizao desde a transio democrtica brasileira no plano nacional, fi-gurando como sntese a co-presena de Sarney e MST, capital financeiro e economia solidria, ambientalistas e agronegcio, terceiro setor e evanglicos, por exemplo, favorece o tipo de esquizofrenia em sentido terico ca-racterstico dessas aes sociais (mas tambm ambientais, polticas, econmicas). sob esse signo que o governo contemporneo parece ser melhor compreendido.

    dade, drogas e pobreza. Mas h descompasso entre essa grade e o prprio plano das prticas que ela pretenderia descrever, o que fora as reclassificaes, oriunda da desconfiana fren-te a estatutos previamente bem estabelecidos, como a prpria ciso trabalhador versus ban-dido. H muito mais tons de cinza entre eles quando se nota que o mundo do crime nas periferias tambm tm legitimidade para res-guardar valores como paz, justia, liberdade e igualdade; que gera renda e produz postos de trabalho e pertencimento, quando no novas famlias (Feltran, 2011; 2013). Publicamente, e sobretudo entre as elites, a reclassificao do mundo muito mais lenta que nos cotidianos populares. Assim, na figurao pblica traba-lhadores e bandidos seguem sendo opostos pelo vrtice, e a normativa poltica fundamen-tal se desloca da integrao dos trabalhadores comunidade, em direo ao debate sobre segurana pessoal e patrimonial, calcada no controle de espaos e populaes de risco, que produziriam as ameaas evidentes (usurios de drogas, marginais, ladres, traficantes). J no se trataria da extenso universal dos di-reitos da cidadania (no se oferecem direitos a inimigos), tampouco da validade universal das garantias democrticas (a exceo tole-rada, pode mesmo se tornar regra, quando se trata de defender a sociedade). A conflitivi-dade social brasileira exige, portanto, recortes populacionais aos quais se vai dirigir um re-pertrio de modos de governo, que variam hoje da democracia substantiva ao extermnio. Esse mosaico de modos de gerir os pobres radical-mente distinto daquele ancorado no mito da democracia racial, da primeira metade do s-culo XX, ou nas subsequentes tentativas de in-sero social do trabalhador migrante nas cida-des, integrao regional ou extenso regulada dos direitos sociais aos excludos. Nos ltimos anos, o conflito social se expressa em cenrio aparentemente contraditrio: aumento das ta-xas da criminalidade acompanham aumento das taxas de emprego formal; polticas massi-vas de encarceramento so coetneas maior

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    proviso de servios sociais; megaoperaes de requalificao urbana esto sintonizadas com a internao compulsria de usurios de crack; ocupao militar de territrios de favela acom-panha consolidao de faces criminais.

    Esse cenrio paradoxal, portanto, asso-cia o desenvolvimento econmico e a moder-nizao de mercados altssima conflitividade social. Desagregar as populaes em que cada um desses regimes atua , portanto, funda-mental.

    No Brasil, traficantes, presidirios, mo-radores de rua e usurios de crack esto no cen-tro da tematizao pblica do problema social contemporneo nas capas de jornais e revis-tas, em todos os meios. No se pede que sejam tratados como cidados. Seu encarceramento, ou mesmo seu extermnio, so legitimados por parcelas consideradas includas e conectam-se diretamente, no plano dos debates pblicos, validao dominante das noes instrumen-tais de estado democrtico e desenvolvimento. Diferentes trabalhos vm demonstrando que bandidos, favelados, drogados e traficantes, pontos de gravitao do problema social bra-sileiro hoje, h muito j so figurados publica-mente nos termos da alteridade radical (Misse, 2010; Grillo, 2013; Lyra, 2012; Biondi, 2010); a bibliografia internacional demonstra proces-sos correlatos em diferentes pases (Das; Poole, 2002; Jensen, 2008; Bourgois, 2012). Tendo os inimigos no seu centro, e desmoralizadas as narrativas de integrao social universal, ou mesmo de luta poltica legtima em torno dos direitos comuns, o social passa a ser concebi-do como cerceado por um conflito irredutvel, que o restringe e lhe refora as fronteiras: h sempre um lado de dentro e um lado de fora da vida social, que portanto j no se confun-de com vida nacional. Essa figurao choca-se com o centro da modernidade poltica inscrita na frmula democrtica. em termos polti-cos, portanto, que a questo social mereceria ser recolocada: trata-se de uma redefinio do que a vida da nao, da comunidade poltica.

    nos termos morais da representao da vio-lncia urbana, entretanto, que ela tem sido difundida.

    A VIOLNCIA URBANA E AS POL-TICAS SOCIAIS10

    Luiz Antonio Machado da Silva j nos alertou, h duas dcadas, para o erro de utili-zar a noo de violncia urbana como uma categoria de anlise. Seria preciso, ao contr-rio, tomar essa representao como parte do problema a compreender, na medida em que construo histrica e que constitui, em seu uso rotineiro, o que pretensamente descreve (Silva, 1993). Michel Misse j verificou a cen-tralidade dessa afirmao para todo o campo de estudos sobre o crime e a violncia, bem como os supostos que ela evidencia e os desdo-bramentos analticos que ela prope, vlidos tambm para quem estuda as periferias (Misse, 2006a). Alm disso, ensinou-nos que a primei-ra das cinco teses equivocadas sobre crimina-lidade urbana no Brasil a de que a pobreza a causa da criminalidade, ou do aumento da violncia urbana (Misse, 2006b, 2010).

    Para dialogar com essa produo com o mnimo de rigor, parece-me ser preciso, cen-tralmente, evitar a reificao dos conceitos em pauta, que os figura como dados da rea-lidade. No existe uma violncia urbana em si mesma. A representao da violncia ur-bana constitui-se fundamentalmente de um processo de associao arbitrria entre concei-tos e fenmenos distintos, ao longo do tempo, que s comporiam um nico fenmeno que, ao se reificar por mecanismos diversos de objetivao apreendido como realidade e, por isso, se torna realidade.11 Em nosso caso,

    10 Esta seo sintetiza e desenvolve argumentos j publica-dos, separadamente, em Feltran (2013a, 2014).11 Assim, nossas relaes vo se desenvolvendo sobre a base de um saber mtuo, e esse saber sobre a base da rela-o real, como dois elementos indissociavelmente entrela-ados que, pela sua alternncia dentro da interao, fazem com que essa aparea como um dos pontos em que o ser e a representao fazem empiricamente perceptvel sua uni-

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    nessa representao esto conectados fenme-nos e conceitos to dspares quanto criminali-dade, drogas ilegais, mercados ilcitos, armas de fogo, faces, quadrilhas, corpos pardos e pretos, territrios urbanos e pobreza. Se o rigor analtico pede que cada um desses conceitos seja tratado considerando-se as distines evi-dentes que carregam, nessa representao, ao contrrio, eles so umbilicalmente indiferen-ciados. Cada um e a totalidade deles poderia, alm do mais, significar uma faceta do nexo mais amplo, quando no tomado simplesmente como um sinnimo, da violncia urbana. As palavras chegam mesmo a se indiferenciar: em So Paulo, durante minha pesquisa de campo foram muitas as situaes em que dizer violn-cia era o mesmo que dizer trfico, crime ou PCC , bem como a ideia de que qualquer programa social que se dedique a um jovem favelado seria, evidentemente, de preveno violncia.

    No importa se as drogas atravessam as classes e se o trfico transnacional; nos significados da violncia urbana ambos se corporificam em morros e favelas, numa cor de pele, numa idade, numa esttica que pede para ser contida. No importa se pases como a ndia tenham imensa pobreza e taxas de homicdio muitssimo mais baixas que pases como os Es-tados Unidos. Nem importa que os trabalhado-res do trfico nas favelas estivessem desarma-dos durante os anos 2000, em So Paulo. O ne-gcio do trfico segue sendo representado como algo to violento que pde equivaler legalmente a crimes hediondos, numa escalada de deman-da por punio. No importa, ainda, que o cri-me dependa da lei que o tipifique, e seja sempre muito mais amplo do que o conjunto de atos que se utilizam de violncia; o dispositivo da violncia urbana faz com que crime seja reduzido ao ato violento, cometido por to so-mente uma raa (aquela construda pela racia-lizao dos pobres), definida agora com base na esttica dos jovens das periferias. No importa, tampouco, que as economias legal e ilegal se-dade misteriosa (Simmel, 2010, p.30-31).

    jam hoje interdependentes; cr-se, porque seria implausvel pensar fora da chave bipolar legal versus ilegal contida nessa representao, que o crescimento econmico formal diminuiria os mercados globais da informalidade e da ilegali-dade. No o que acontece em termos transna-cionais, menos ainda o que aconteceu no Bra-sil, nas ltimas dcadas (Telles, 2011).

    Se conceitos e fenmenos to dspares aparecem nesse regime discursivo como na-turalmente conectados, os sujeitos e espaos que materializariam esta conexo, conferindo-lhe concretude inquestionvel, sero alados a tpicos da representao da violncia ur-bana. Sua existncia fsica seria a demonstra-o emprica de como todos os elementos ar-rolados efetivamente se combinam na prtica. Sabotage, um rapper com muita melanina na pele e muita histria na favela, cantou o que Michel Misse (2010) descreveu nos termos da sujeio criminal: J no sei qual que / Se me vem, do r!. A figura do noia, habitante das cracolndias, igualmente relevante para se notar como os dispositivos da droga (Fiore, 2012; 2014) e da violncia se reificam em cone-xo. Mesmo sendo empiricamente uma parcela muito minoritria dos usurios da substncia (Rui, 2012) aquela que faz dela um uso to radi-cal que chega ao ponto de viver nas ruas, ela imediatamente acionada como imagem pbli-ca indelvel ao se pronunciar a palavra crack. Toma-se a parte pelo todo, mas no por acaso: essa pequena parte permite, justamente, a na-turalizao imediata de todos os elementos nos quais a representao da violncia se baseia indignidade, sujeira, desordem, crime, vio-lncia, maldade, abjeo, imoralidade, risco, ameaa. Se a imensa maioria dos jovens de pe-riferia no est no crime, e se a imensa maio-ria dos que est no crime no comete crimes violentos, , da mesma forma, essa minscula parcela criminal e violenta a que representar toda a periferia quando se toma a violncia ur-bana como grade de inteligibilidade.

    Essa representao compe, assim, uma fronteira cognitiva que define os limites at

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    os quais os significados das palavras podem ser distendidos. No interior desse dispositivo a palavra crime no pode, por exemplo, ser esticada a ponto de se considerar que nele ha-bitem sujeitos com fala e ao legtimas. Nesta representao, a lei define o crime como seu oposto e, como ela pressupe-se como vlida para todos, em dado territrio, no plaus-vel pensar de outro modo. O fundo valorativo que acompanha a expresso violncia sem-pre negativo (Misse, 2006b). A representao da violncia urbana opera, ento, nos limi-tes dos sentidos previamente determinados da apreenso de sujeitos e territrios que expres-sariam, nas suas essncias, manifestas univo-camente em suas aes, a violncia que a sig-nifica. No plausvel, no interior dessa repre-sentao, romper com essa valorao central que passa, ento, a significar os conceitos do entorno, reificveis a cada nova situao em que so mobilizados. A palavra crime, entre-tanto, mesmo negativada na significao domi-nante pautada pela lei e ordem estatais, pode significar fonte de normatividade altamente positiva entre parcelas bastante relevantes da populao brasileira (Hirata, 2010; Malvasi, 2012). Isso implica que se devem considerar esses enunciados nas situaes potenciais de palavra, absolutamente dissensuais, em que aparecem usualmente. Dissenso que no reme-te apenas a argumentos, mas ao argumentvel, ou seja, aos distintos parmetros pelos quais se pode conceber o mundo.

    A tematizao pblica da violncia ur-bana representaria, assim, um modo ativo de produzir realidade e lhe ofertar contedos, o que, ao mesmo tempo, oculta aquilo que existe no mundo, formulado de modo alheio aos seus prprios termos. O que no plausvel nos ter-mos desta representao s pode, portanto, ser considerado inexistente: o mundo do crime fazer homicdios diminurem nas periferias de So Paulo, nos anos 2000, por exemplo. O que no se fala publicamente, entretanto, se comen-ta em privado. Entre os muito pobres, sobretu-do, mas no apenas em So Paulo, o termo cri-

    me foi ganhando significados outros ao longo das ltimas quatro dcadas. A acumulao do conflito em torno do sentido dessas palavras fez do crime, em situaes determinadas das periferias, um contraponto normativo e figu-rativo relevante representao da violncia urbana. A funo dessas duas representaes me parece, hoje, centrada na tentativa de pro-duzir cortes precisos na populao, de modo a distribuir no tecido social um repertrio de regimes governamentais diferentes a depender de com quem se est falando.

    A nova gerao de polticas sociais j foi concebida sob a gide da violncia urba-na. Atua recortando o social em diferentes grupos, que solicitam diferentes estratgias de interveno. Em pesquisa de campo, a mesma travesti classificada como trabalhadora do sexo pelas polticas de sade se tornou mo-radora de rua quando atendida pelo Centro de Referncia Especializado para Populao em Situao de Rua CREAS Pop, e usu-ria de drogas quando internada em uma cl-nica evanglica de recuperao (Martinez et. al., 2014). Suas identidades, em cada caso, pediram doses muito distintas da equao as-sistncia e represso, que, no entanto, sempre estiveram presentes. Assim ocorreu em mui-tssimos outros casos que temos estudado: os programas voltados aos marginalizados distri-buem essa equao a partir de um continuum imagtico que tem, num polo, a figura do pe-rigo a ser francamente controlado e, no outro, a do novo consumidor vido por mercados em expanso, seja pelo crdito, seja pelo aumento da renda; entre esses polos, h distintos nveis de vulnerabilidades que indicariam diferen-tes complexidades de casos (Breda, 2013), esquadrinhados pelos cadastros, reunies de assistentes sociais, psiclogos, educadores, terapeutas ocupacionais, s vezes advogados (Matsushita, 2012). Em todos os casos, bus-ca-se encaminhar o adolescente em conflito com a lei, a famlia desestruturada, o vicia-do, o portador de necessidades especiais, o morador de rua, aquele que tem distrbios

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    mentais, e com maior nfase os sabidamente potenciais criminosos, para outros programas de atendimento (encaminhamento profissio-nal, proteo familiar, sade, educao, aten-dimento psi, controle disciplinar, controle qumico, internao). Quando eles escapam da chamada rede socioassistencial, e no raro que o faam, esses mesmos indivduos passam por unidades de conteno, prises ou, mais raramente, mas no desprezivelmente, so as-sassinados. Estudos recentes com moradores de rua e jovens inscritos em mercados crimi-nais demonstram que, mesmo com tantos re-cursos para atendimentos, ainda mata-se mui-to (Vianna & Farias, 2011; Silva, 2014).

    Matar, entretanto, um ltimo recurso. O argumento contra a hiptese repressiva, conhecido no domnio da sexualidade, parece tambm valer para muitas situaes produzi-das por aquilo que se poderia chamar, em lin-guagem foucaultiana, de dispositivo da vio-lncia urbana.12 Nunca os marginais, assim como o sexo, na modernidade, estiveram to visveis, nunca foram to tematizados, nunca houve tantas polticas voltadas para eles. Ar-mas de fogo, bandidos com o rosto coberto, po-liciais, drogas apreendidas e corpos estirados no cho povoam noticirios espetaculares e conversas de bar. Violncia talvez seja o grande tema da cinematografia nacional e internacio-nal. Incitar a tematizao da violncia para, em seguida, classific-la. Nunca se apostou tanto no encarceramento daqueles que se classifi-cam como sendo seus artfices: homens jovens e pretos, pardos ou favelados, que levaram a s-

    12 Michel Foucault (1997) argumenta que o dispositivo da sexualidade moderna no estaria centralmente preocupa-do em reprimir o sexo, de forma inespecfica; da a profu-so de discursos modernos que, ao contrrio, o instigam ainda hoje, das tardes de domingo s noites de sbado. Interessaria mais ao poder legitimar uma instncia sobe-rana, disciplinar, governamental a partir da qual se pu-desse classificar legitimamente a sexualidade: descrev-la, categoriz-la, hierarquiz-la. A administrao moderna do sexo se nutriria dessa operao de captura e reificao ins-critas no ato de nomear, tambm ato de moralizar. O sig-nificado dos nomes se rotinizaria como parte da natureza; normalizaria aquele sexo plausvel de ser integrado vida familiar e produtiva, distinguindo-o daquele a ser banido da moral dominante, no limite da legalidade. Do quarto es-curo dos pais de famlia aos mais abjetos puteiros, o dispo-sitivo da sexualidade agiria classificando, para governar.

    rio a incitao orgistica por consumo de car-ros, motos e mulheres, dinheiro fcil, cerveja e vida loka. Tnhamos 45 mil presos no estado de So Paulo, em 1996; hoje, eles so mais de 200 mil. A chamada populao carcerria se-gue crescendo, com metas precisas, e sua m-dia etria ultrapassa pouco os 20 anos de idade. Se, acima, pensamos a priso como a continui-dade da assistncia social, nessa chave, seria preciso inverter o raciocnio: aqueles que no merecem o encarceramento, e devem demons-tr-lo cotidianamente, que podem aceder a programas sociais. A assistncia parece ser, no plano cognitivo, a continuidade do controle, da conteno, da internao, da priso.

    O outro fundamental da ordem pblica j no o desempregado, que pede integrao social por querer ser trabalhador, por ter ndole e religio de trabalhador. Nosso outro agora o bandido, o inimigo pblico que precisa ser contido.

    A guerra aparece mais e mais no lxico e na lgica das polticas estatais. Toda guerra, entretanto, enseja organizao nos diferentes lados em conflito. Tambm dentro e fora da ca-deia surgem instncias administrativas e pol-ticas como o Primeiro Comando da Capital e o governo capilar das igrejas evanglicas, outras instncias de poder bastante presentes nos ter-ritrios em questo. As polticas estatais, aque-las produzidas pelo crime (Feltran, 2012; Sil-va, 2014) e por igrejas coexistem nas prticas, nos territrios, mas se querem autnomas uma frente s outras, no plano das representaes (Machado, 2013; Vital, 2014; Fromm, 2013).

    CONFLITO, REGIMES NORMATIVOS E DINHEIRO

    Nos ltimos anos, tenho trabalhado a hiptese inspirada em Machado da Silva acerca da coexistncia de regimes normativos distintos nas periferias de So Paulo, proviso-riamente chamados de estatal, evanglico, cri-minal (Feltran, 2010, 2011, 2012; Silva, 2014;

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    Fromm, 2013). So regimes que tentariam ad-ministrar a ordem das periferias urbanas, pro-gressivamente autonomizando seus discursos frente aos concorrentes e, ao mesmo tempo, negociando mais acirradamente os consenti-mentos ativos, imposies, hibridizaes e tro-cas entre eles no mundo das prticas. Regimes que irradiam discursos e orientam prticas desde locais muito especficos como igrejas evanglicas de diferentes denominaes; pon-tos de venda de drogas, cadeias e mercados criminalizados; escritrios de postos de sade, escolas, ONGs e entidades sociais, todos locais bastante relevantes nas periferias. Pastores, irmos do PCC e funcionrios pblicos ri-tualizariam, em suas crenas e valores, a nor-matividade e dimenso de totalidade da lei de deus, dos cdigos do Partido e do proceder, das funes administrativas e regulatrias es-tatais. Mas seus cotidianos e prticas se hibri-dizariam profundamente, produzindo snteses pouco esperadas se olhadas pela perspectiva de cada normatividade.13 Pouco trabalhei, en-tretanto, sobre os modos internos de opera-o das moralidades em cada regime o que implica em sensos de justia e parmetros de ao diferentes e muito pouco pensei sobre as consequncias do fato desses trs regimes operarem mercados monetarizados, tentarem regul-los, estimulando seu crescimento e nutrindo-se deles para sua prpria expanso. Mercados legais, mercados criminais, merca-dos religiosos. Mercados que, se no se tocam na perspectiva moral ou legal, do ponto de vis-ta monetrio esto absolutamente conectados. A seguir, seguem algumas pistas nessa direo, seguramente ainda muito preliminares, aber-tas ao dilogo e a revises constantes. Inicio pelos sensos morais e de justia que parecem operar em cada um dos regimes apontados. Em

    13 No apenas ladres evanglicos ou acertos entre poli-ciais e criminosos, mas hbridos entre as normas religio-sas e criminais, por exemplo (Marques, 2012). Hibridis-mos entre distintos regimes, nas prticas, so constantes nas periferias sincretismo religioso, fuso de ideologias polticas etc. A Teologia da Libertao, associando mate-rialismo histrico e cristianismo, por exemplo, foi extre-mamente bem sucedida por ao menos duas dcadas no Brasil.

    seguida, procuro pelas relaes que esses sen-sos de justia produzem, com relao aos mo-dos de circulao monetria que os conectam, sem produzir snteses entre eles.

    O regime estatal tem como mote a arma-dura legal republicana e mobiliza categorias como lei, ordem, e seus correlatos direito, cidada-nia e democracia como grandes mediadores normativos para o conflito social. Seus discur-sos seriam operados tanto por agncias estatais por meio de instituies e polticas pblicas, quanto por ONGs e movimentos sociais, regu-lamentadas formalmente pelo legislativo, pro-duzidas como ideal de justia pelo judicirio e operadas idealmente por mercados assim re-gulados. As aspas se referem, sobretudo, dis-tncia entre o que os princpios tericos dessas noes indicam, e o que elas operam pratica-mente, sobretudo nas periferias urbanas. Nes-sa equao centrada na noo de pblico, ou norteada por seus princpios universalistas, brotam, de um lado, programas de segurana pblica como as UPPs, o Choque de Ordem, as Operaes Saturao, todas as polcias civis e militares, bem como a ordem estatal, mais e mais militarizada, como Daniel Hirata (2010), Cibele Rizek (2013) lembram. Ordem que, de outro lado, oferece a chave de inteligibilidade para as outras polticas estatais de gesto do conflito social figurado nas periferias: progra-mas focalizados de sade, educao, profissio-nalizao, moradia, cultura, esporte, as polti-cas urbanas mercantilizadas ou as mirades de projetos sociais que abundam nos territrios urbanos considerados to pobres quanto vio-lentos. Entidades to distintas quanto escolas e postos de sade, sindicatos e ONGs, centros culturais, de lazer e esporte, quando voltados para atender os pobres, passam a justificar suas aes como de preveno violncia. A representao de que, sem esses programas, meninos das periferias estariam prestes a agir violentamente contra outros setores sociais justifica, de modo notvel, a premncia e a relevncia das sempre novas formas de ao social nas periferias. O Pronasci tem frentes

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    repressiva e assistencial associadas, a UPP tem como correlata a UPP Social, a segurana tem como contrapartida os direitos sociais, no o oposto. Essa equao, evidentemente, faz questo de desconhecer, para deslegitimar, for-mas outras de organizao familiar, comunit-ria, social ou poltica, criadas nos cotidianos dos prprios pobres, muitas delas com longa tradio, que, no entanto, seguem existindo e balizando prticas e valores compartilhados por muitos.

    Os debates agonsticos face a face, muito presentes em todos os setores sociais, mas que gozam de legitimidade desproporcionalmente superior no mundo popular, respondem lgi-ca moral muito distinta daquela do direito le-gal, sobretudo por no serem pautados por re-gras formais ou por instituies pretensamente legtimas por definio. A dimenso narrativa contar o que houve muito mais presente neles do que a dinmica conceitual da legis-lao formal. Julga-se em conjunto sobre algo que aconteceu, a partir de narrativas performa-das pelos interlocutores. So debates pautados por valores morais, portanto, quase sempre inspirados na religiosidade crist velho-tes-tamentista (olho por olho, dente por dente). Nesses inmeros debates cotidianos em torno da definio do que o certo nas periferias e universos populares, busca-se uma definio prtica e sempre situacional, que no ritualiza cdigos pr-estabelecidos mas valores compar-tilhados. Valores que quase nunca so defini-dos abstratamente a priori, mas que so signifi-cados durante e aps as performances cotidia-nas, individuais e coletivas, permitindo que se delibere pela justeza das condutas e reputao dos sujeitos. Valores que fundam comunida-des, e imaculveis em princpio, como respei-to, humildade e igualdade no so abstra-es ou princpios gerais, mas ao contrrio, so percebidos como sendo (ou no) concretizados cotidianamente em atos comentados, fofoca-dos, avaliados (Marques, 2010).

    O conjunto de atitudes reconhecidas re-correntemente pelos pares como direcionadas

    para o certo, em So Paulo, d sentido prtico a palavras como proceder, procedimento ou correr pelo certo, que ensejam a subjetivao de homens e mulheres considerados, respei-tados, cabulosos e humildes simultanea-mente, em espaos sociais especficos. Adal-ton Marques (2010) e Karina Biondi (2014) foram, talvez, os pesquisadores que melhor estudaram esse senso compartilhado de jus-tia, muito explicitamente louvado no mun-do do crime paulista, que tm por inteno final no apenas evitar os desfechos violentos, no limite espreita, mas tambm propor um universo social no qual esses valores, nunca reificveis absolutamente, fossem as balizas para uma vida comum. Ousaria dizer que nesse modo, no republicano e inteiramente performtico, no estatal (e mesmo contra o Estado, com Pierre Clastres) e que opera por princpios postos a prova a cada situa-o (Cefai), que indivduos conhecidos como crentes e trabalhadores das periferias, mas tambm como ladres e bandidos, definem em suas vidas o que certo na resoluo de seus conflitos; esse modo de resoluo pode ser mais ou menos institucionalizado, sacrali-zado ou ritualizado, e seguramente tem como pano de fundo o universo cristo (Takahashi, 2013). Percebe-se, assim, por que que a re-ligiosidade evanglica e pentecostal, e mesmo a moralidade estrita do crime podem ser to mais pervasivos, e expandirem-se tanto mais do que a lei e a ordem estatais nos universos perifricos. Trata-se da disputa entre gramti-cas morais legtimas localmente, contrapostas a idiomas estatais concebidos, majoritariamente, como exgenos, elitistas ou mesmo equivoca-dos moralmente. Wittgenstein, nas Investiga-es Filosficas, pensa o sentido como produzi-do apenas no uso situacional das palavras, no como contido em sua semntica. Os sentidos do certo, do justo e do belo nas periferias so, sem dvida, afeitos a essa interpretao.

    Mas os regimes normativos citados estatal, evanglico, do crime no atuam apenas na dimenso moral ou administrativa

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    dos territrios estudados, produzindo cdi-gos de conduta e sensos de justia. Todos eles operam tambm mercados monetarizados que tambm mediam relaes de conflito poten-cial, muitas vezes muito fortes, como aqueles entre policiais e traficantes que, como no encontram na lei ou nas moralidades modos de mediar suas interaes necessrias, encon-tram no dinheiro um modo objetivo de dirimir suas diferenas: os pagamentos de acertos (ou arregos, como se diz no Rio de Janeiro), que variam de valor e so negociados de for-mas distintas entre policiais e operadores de mercados ilegais. Misse (2006a) j demonstrou como a circulao das mercadorias polticas, como essa, modula as sempre tensas relaes entre a ordem legal e a operao cotidiana, funcional a essa mesma ordem, dos mercados informais, ilegais e ilcitos. Grillo (2013), Hi-rata (2010), Silva (2012) demonstram que sua interpretao perfeitamente aplicvel a ou-tros contextos.

    As periferias urbanas brasileiras foram fundamentais acumulao mercantil e aos livres mercados, direta ou indiretamente, seja nas perspectivas de Kowarick (1975) ou Oliveira (1982), que notam agudamente a ex-trao de sobrevalor na prpria forma de urba-nizao, seja mais recentemente na instalao profcua das formas mais flexveis de acumula-o capitalista de fronteira (os mercados ilci-tos como o narcotrfico, o contrabando e o rou-bo de carro, altamente lucrativos dada a muito menor mediao institucional). Os trabalhos de Galdeano (2013) e Crtes (2013) indicam como a lgica empreendedora atravessa evan-glicos, bandidos e atores estatais, transfor-mando todos eles tambm em operadores de mercados, dos mais diversos. A segurana pri-vada, na rua Conde de Sarzedas em So Pau-lo, mas tambm os cultos miditicos descritos por Birman (2012) e Machado (2012) susten-tam-se em formas mercantis. A habitao so-cial contempornea a ponta da operao de mercados financeiros transnacionais (Shimbo, 2013). Os garotos armados estudados por Lyra

    (2013) trabalham para o trfico transnacional. Assim tambm os policiais da base da corpora-o ou os agentes prisionais, quando negociam com seus desafetos nas biqueiras e cadeias, fazem dinheiro circular em diferentes escalas e situaes das mais s menos legtimas (Hira-ta, 2010, 2011, 2013). A expanso do consumo popular, estimulada centralmente, radicaliza a objetivao de inmeros conflitos sociais. Reduzir os fenmenos tratados ao economi-cismo analtico seria desconhecer a crtica da qual partimos, muitos dos autores com os quais dialogo aqui, para pensar as margens da cidade. No reconhecer as formas evidentes de monetarizao aqui presentes, inclusive como regulao dos conflitos entre diferentes regi-mes normativos, seria talvez ainda mais gra-ve. Miagusko (2013) demonstra a escalada de violncia letal que se d, numa favela carioca, quando um traficante decide, unilateralmente, que deixaria de pagar os arregos a policiais. Sem o dinheiro na mediao desse conflito, ele se torna muito mais letal. Sem pagamento de salrios, um conflito trabalhista se torna gra-vssimo. Muitos trabalhadores da droga, reven-dedores de contrabando, donos de desmanche, pastores e irmos do PCC so, tambm, em-presrios; todos os que se relacionam com eles, cotidianamente, alimentam pelo trabalho e pelo consumo a circulao de moeda, em fran-ca expanso nas periferias brasileiras. A am-pliao da renda popular, do salrio mnimo, do crdito e dos programas de transferncia de renda so parte do desenvolvimento, tambm, de mercados ilegais, informais e ilcitos.

    Essas trs equaes de mediao de po-tenciais conflitos a lei, o certo, o dinheiro que em ltima instncia administrariam a violncia e produziriam ordem, nem sempre conseguem faz-lo. O social tem sido marcado por alterida-de cada vez mais radical, porque a lgica que garantiria a expresso poltica da pluralidade social cada vez mais minoritria. Cindido entre regimes normativos cada vez mais aut-nomos, o conflito que hoje interessa perscru-tar no o conflito de opinies elaboradas a

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    partir de um mesmo pano de fundo epistmi-co, um mesmo regime normativo, uma mesma comunidade. A grade de inteligibilidade da guerra entre grupos recortados da populao, que j no compem uma nica comunidade moral ou legal, mas apenas uma comunidade mercantil, parece fazer cada vez mais sentido para compreender os conflitos contemporne-os. Quando nem a lei, nem o que considera-do certo podem mediar a relao entre cortes populacionais e seus modos progressivamente autnomos de conceberem a si e aos outros, o dinheiro que aparece como nico modo objetivo de mediar suas relaes. Ao invs de politizar a questo social ou os pilares da vida comunitria, portanto, parece-me que o hbri-do dessas equaes de mediao o dinheiro tem, ao contrrio, elevado em muito a inten-sidade do conflito latente entre as formas de vida que, hoje, se elaboram nos cortes biopol-ticos que esquadrinham as cidades brasileiras. Valores, costumes e crenas comuns no se apresentam mais como fundamento de coeso de grupos sociais; o dinheiro parece ser a apos-ta para ocupar esse lugar. Dinheiro suficiente para a mediao entre esses recortes pode ini-bir as manifestaes violentas do conflito que os cinde, segrega, separa. Um momento de cri-se econmica nos faria ver a violncia de sua expresso no mediada.

    A grade de inteligibilidade pblica da questo social, no Brasil contemporneo, deslocou-se da integrao dos pobres por um projeto de desenvolvimento nacional que se faria pela expanso dos mercados de trabalho e da cidadania, para outra chave, a da gesto do conflito social e urbano, que agora seria causado pelos pobres, pela monetarizao das relaes sociais entre grupos progressivamente distintos. Cabem no projeto de nao aqueles que so funcionais ao mercado monetarizado. O diagnstico do nosso problema social, por-tanto, mudou to radicalmente que as polti-cas voltadas para san-lo tiveram seu sentido invertido. Se h duas ou trs dcadas pde-se pensar o conflito social como fundamental-

    mente causado por desigualdade e ditadura, a serem superadas estruturalmente, hoje trata-se de fomentar o mercado que desenvolveria o pas e controlar a violncia que emergeria dos pobres e cria obstculos ao nosso progres-so material. As polticas sociais, os discursos pblicos acerca da pobreza e seus territrios, as estratgias de gesto estatal, no governa-mental e religiosa do conflito social pautam-se agora pela lgica instrumental da eficincia mercantil, do custo-benefcio, em tendncia de objetivao agressiva das relaes sociais. Colocar milhares de presos para trabalhar qua-se de graa, dentro das cadeias, considerado um programa social de ponta, pelos gover-nos e empresrios. Todos saem lucrando. Gerir o social , portanto e fundamentalmente, ex-pandir os mercados. O carto do Bolsa-Famlia paradigmtico as polticas sociais do futuro fomentam a incluso mercantil.

    Constata-se, no entanto, que se o merca-do das drogas alavanca a economia, viciados em estgio avanado, vagabundos e mora-dores de rua se beneficiam dele, mas no se integram. Alguns so ainda piores: mesmo operando mercados altamente lucrativos, no se conformam com seus lugares e se tornam violentos (traficantes, ladres, membros de faces criminais). , portanto, fundamental associar ao dispositivo mercantil uma cunha de destituio do direito a ter direitos, ope-rada pela incriminao seletiva, que encontra altssima legitimidade social. Expandir os mer-cados e incriminar os sujeitos que criam pro-blemas sem nunca reprimir a circulao de valor pelos mercados que eles operam com-pem, portanto, faces da mesma moeda. O tr-fico de drogas ou o roubo de carros, por exem-plo, no so reprimidos em suas dimenses de negcio, em seus mercados. A represso se faz aos pequenos traficantes ou ladres que, quan-do incriminados seletivamente e colocados em unidades de internao ou prises, cedem seus postos de trabalho para que outros, como eles, faam o mesmo mercado e a mesma lgica de controle social seguirem operando.

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    Da a emergncia das duas figuraes contemporneas da pobreza a do consumidor a integrar e a do bandido a encarcerar. Ambas compem um mesmo dispositivo que produz e tenta remediar a questo social contempo-rnea. Antes de tomar esse mundo social como dado, parece-me imperativo refletir sobre os pressupostos cognitivos que o produzem. Que distores neste mundo seria preciso conceber para que um cidado de 15 anos, funcionrio de uma micro-empresa varejista de So Paulo, pos-sa ser chamado de trabalhador quando passa madrugadas revendendo, sem garantias traba-lhistas ou proteo das organizaes contrrias ao trabalho infantil, cocana para quem quer comprar? Que deslocamento cognitivo seria preciso realizar para que seus modos de conce-ber o mundo sejam considerados aptos a serem enunciados e ouvidos publicamente, sem que isso represente defesa de bandido? Parece-me que a esse deslocamento no modo de pensar o social, empiricamente cada vez mais longnquo pela tendncia de objetivao monetarizada do lao entre pessoas e grupos, que o trabalho in-telectual um dos poucos que ainda resiste mediao monetria poderia contribuir.

    Recebido para publicao em 08 de julho de 2014Aceito em 15 de agosto de 2014

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    O VALOR DOS POBRES: a aposta no dinheiro...C

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    THE VALUE OF THE POOR: the gamble that cash money can mediate contemporary social

    conflict

    Gabriel de Santis Feltran

    In contemporary Brazil, the urban periphery have two recent and dichotomous figurations: the cause of urban violence that calls for more repression and the core of the development which can turn poor people into middle class. This essay argues that the representation of urban violence displaced the center of contemporary social question from the worker to the marginal people. The collapse of universalism involved in this shift entails a selective government that categorizes the population in varying degrees of vulnerability and levels of complexity of state intervention; as a side effect, different regulatory regimes emerge on urban peripheries - e.g., state, crime and the religious - that although always in tension, have cognitive cohesion based in monetized markets. The money seems to mediate the relationship between forms of life which, from other perspectives - legal or moral - would be in radical alterity; consumption emerges as a form of common life and mercantile expansion, above all, connects legal and illegal markets, including fostering urban violence that development allegedly would control.

    KEY WORDS: Urban outskirts. Violence. Development. Money. Value

    Gabriel de Santis Feltran - Doutor em Cincias Sociais. Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar). Pesquisador do Centro de Estudos da Metrpole (CEM) e do Ncleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEBRAP). Atualmente pesquisa as dinmicas sociais e polticas das periferias urbanas, com foco nos grupos marginalizados e no mundo do crime em So Paulo. Coordenador do NaMargem - Ncleo de Pesquisas Urbanas e do Projeto As margens da cidade, que integra o CEPID/CEM - FAPESP. Publicaes recentes: Sobre anjos e irmos: cinquenta anos de expresso poltica do -crime- numa tradio musical das periferias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 1, p. 43-72, 2013; Entre palavras e vidas: um pensamento de encontro com margens, violncias e sofrimentos. Entrevista com Veena Das. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 5, p. 335-356, 2012; Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gesto do homicdio em So Paulo (1992-2011). Revista Brasileira de Segurana Pblica, v. 6, p. 232-255, 2012.

    LA VALEUR DES PAUVRES Parier que largent peut servir de mdiation pour le conflit social

    contemporain

    Gabriel de Santis Feltran

    Au Brsil, les banlieues sont au centre de deux types de reprsentations rcentes et dichotomiques: la de la violence urbaine quappelle davantage de rpression, tandis quune base lide de nouvelles classes moyennes. Cet article soutient que la representation de la violence urbaine a conduit un dplacement du foyer de la question sociale contemporaine de lancienne figure du travailleur vers celle du marginal. Leffondrement de luniversalisme inscrit dans ce changement saccompagne dun mode de gouvernement dcoupant la population de manire slective en fonction de divers coefficients de vulnrabilit. Corollaires de ces volutions, de nouveaux rgimes normatifs mergent dans les periferias, par exemple le monde du crime, le pentectisme et lautorit tatique. Si le dveloppement de ces diffrents rgimes conccurents nourrit un certain nombre de tensions, il apporte cependant une source de cohsion spcifique base sur le fait que chacun de ces regimes rgule des marchs montaires. Llargent apparat comme mdiateur des formes de vie qui, envisags sous dautres points de vue - ceux de la loi ou de la morale -, seraient dfinis sous le registre de laltrit radicale. La consommation apparat ainsi comme une forme de vie commune et lexpansion mercantile connecte marchs lgaux et illgaux et contribue nourrir la violence urbaine quelle est pourtant rpute contrler.

    MOTS-CLS: Banlieues. Violence. Dveloppement.. Argent. Valeur.