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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ciência, objeto da história Gabriel da Costa Ávila Belo Horizonte 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANASPROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ciência, objeto da h is tór ia

Gabriel da Costa Ávila

Belo Horizonte2015

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Gabriel da Costa Ávila

ciência, objeto da h is tór ia

Tese apresentada ao Programa de Pós­Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História.

Linha de Pesquisa: Ciência e Cultura na História

Orientador: Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé

Belo Horizonte2015

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112.1A958c2015 Ávila, Gabriel da Costa

Ciência, objeto da história [manuscrito] / Gabriel Ávila. ­ 2015. 213 f. Orientador: Mauro Condé. Tese (doutorado) ­ Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. Ciência – História ­ Teses. 3 Historiografia ­ Teses. I. Condé, Mauro Lúcio Leitão. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

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Não afirmamos, por exemplo, que Aristóteles é tão bom quanto Einstein; o que se afirma e argumenta é que “Aristóteles é verdadeiro” é um juízo que pressupõe certa tradição, é um juízo relacional que pode mudar quando a tradição subjacente for mudada. Pode existir uma tradição para a qual Aristóteles é tão verdadeiro quanto Einstein, mas existem outras tradições para as quais Einstein é muito desinteressante e não merece ser examinado.

Paul Feyerabend, 1978

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AGRADECIMENTOS

Escrever os agradecimentos é uma tarefa árdua para quem não é poeta (nem comerciante, que “Agradece ao amigo cliente pela preferência”). Agradecer devidamente fica mais difícil, pois demanda tempo e inspiração. Por isso agradeço como quem se desculpa por não poder agradecer melhor aos que são mais importantes.

Agradeço imensamente a Mauro Lúcio Leitão Condé pela orientação atenta e pelas intervenções preciosas. A confiança que Mauro me transmitia garantiu a essa pesquisa uma segurança talvez impossível de ser conquistada sem o seu inestimável apoio. Ao professor Carlos Maia, um entusiasta das nossas investidas pela teoria e pela historiografia das ciências e fonte inesgotável de energia intelectual.

Xs professorxs e colegas do Scientia – em especial Anny Jackeline, Betânia Gonçalves, Bernardo Jefferson, Carol Vimieiro e Reinaldo Bechler – que mostraram, desde a minha chegada à UFMG em 2009, que um grupo de pesquisa pode ser um local de intensas trocas intelectuais e afetivas. Uma bolsa da CAPES (Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) financiou essa pesquisa durante seus primeiros três anos. Sem ela, talvez esta tese fosse apenas uma expectativa. Justamente enquanto acabo de escrevê­la os cortes se abatem sobre essa política pública, comprometendo o projeto de inclusão social, formação cidadã e produção de conhecimento – um projeto que está ele mesmo imbricado em algumas questões que surgem na tese. Ele herda a ambição da utopia Iluminista, pensa assim garantir o progresso da ciência e da sociedade. Agradeço a Edilene Oliveira, que teve participação decisiva no sucesso de empreitadas como o ENAPEHC e o EPHIS.

Xs professorxs Yurij Castelfranchi, Patrícia Kauark, José Newton Coelho, Kátia Baggio, Regina Horta e Miriam Hermeto, que ajudaram a tornar a FAFICH a minha segunda casa em Belo Horizonte. Essa casa estava sempre habitada por amigxs e foi muitas vezes o ponto de partida para aventuras nas Minas Gerais. Agradeço a Adriano, Douglas, Fabi, Georginho, Mariana, Raul, Rodrigo Osório e Warley. Pezzonia, Katy e Anita deixaram saudade e a vontade de se ver de novo, em Campinas ou em Lisboa. Fran, Paloma e Valéria, Barudinha, Ju e Gu reforçaram sempre a certeza de que amar é um ato político nessa vida ordinária que a gente leva.

À Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e aos colegas do Centro de Artes, Humanidades e Letras, que me acolheram nas margens do Paraguaçú. Especialmente aos amigos Antonio Liberac, Denis Correa, Eliazar da Silva, Nuno Gonçalves, Roberto Duarte, Sérgio Guerra e Wellington Castellucci. Xs alunxs que torceram pelo sucesso desta tese.

Xs amigxs soteropolitanxs Fábio Freitas, Dimitri Marques, Dimitri Tavares, Juliana e Rafael.

Xs que respeitaram minha angústia com o fim da tese e que me fizeram rir dela com elxs. Marcelinho, Julienne e Pi, Rodrigo e Raquel, Wolninho, Augusto e Fernanda, Rafa, Costinha, Rita e Giuia. Marcelo e Adelma, Nice, Heleni e Roberto, Paulo.

A Ana Marília, cuja importância quando medida em léguas marítimas seria suficiente para atravessar algumas vezes o Atlântico. Cujo amor não pode ser medido de nenhuma maneira linear.

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Resumo

Esta tese se ocupa de um exame historiográfico da história das ciências ao longo dos últimos cem anos, aproximadamente. Tal percurso segue a tensão entre os fatores “internos” e “externos” como formas de organizar a narrativa histórica sobre a ciência, de demarcar a fronteira entre ciência e não­ciência, de compreender a dinâmica da mudança científica e de articular as suas funções sociais. Este texto está também interessado nas relações que se estabeleceram entre os modos de produção do conhecimento científico, as Políticas de Ciência e Tecnologia e a escrita da história das ciências. Tendo essas frentes de investigação como guia, o trabalho destaca quatro períodos históricos apontando para as suas principais características historiográficas e para as maneiras que atitudes distintas em relação ao passado da ciência legitimam determinados pactos entre ciência, Estado e sociedade (mas também resistem e contestam outros). Primeiro, o período clássico da “querela do internalismo versus externalismo” entre os anos 1930 e 1960. O segundo momento é o surgimento de uma “tradição kuhniana”, isto é, a profundidade e a direção das transformações sofridas pela história das ciências sob o impacto do célebre ensaio de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas. Os dois últimos períodos são abordados através da análise de dois livros representativos de movimentos mais amplos. O Leviathan and the air­pump de Simon Schaffer e Steven Shapin foi tomado como um exemplo da historiografia produzida nos anos 1980, momento de amplas transformações nas relações entre ciência e Estado e de intenso diálogo com os science studies e com o conceito de tecnociência. Finalmente, o livro Objectivity, de Lorraine Daston e Peter Galison, serviu de suporte para uma análise dos principais elementos da historiografia das ciências na virada do século XX para o XXI – destacando como esse livro propõe a historicidade radical da ciência. A pesquisa do processo de disciplinarização da história das ciências lida simultaneamente com a transformação da ciência em objeto da história e as suas implicações.

Palavras­chave: História das Ciências, História da historiografia, Século XX.

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Abstract

This thesis examines the historiography of sciences in the last hundred years or so. Such trajectory will follow the tensions between “internal” and “external” factors as ways to organize the historical narrative about science, to demarcate between science and non­science, to understand the dynamics of scientific change, and to articulate its social functions. This text is also interested in the relations stablished between the modes of production of scientific knowledge, the Science and Technology Policy, and the writing of the history of sciences. Being guided by these research goals, the work highlights four historical periods pointing to their main historiographical characteristics and to the ways that different attitudes about the past of science legitimize certain agreements between science, State, and society (but also resist and contest others). First, the classical period of the “internalist versus externalist quarrel” from the 1930’s to the 1960’s. The second moment is the rising of the “Kuhnian tradition”, that is, the depth and direction of the changings suffered by the history of sciences under the impact of Thomas Kuhn’s famous essay The structure of the scientific revolutions. The two last periods are seen through the analyses of two books that represent wider movements. Simon Schaffer and Steven Shapin’s Leviathan and the air­pump was taken as an example of the historiography produced in the 1980’s, a moment of huge transformations in the relations between science and the State and of intense dialogue with the science studies, and with the concept of technoscience. Finally, the book Objectivity, by Lorraine Daston and Peter Galison, served as a stand to an analysis of the main outlines of the historiography of sciences at the turn of the twentieth to the twenty­first century – stressing how this book proposes the radical historicity of science. The research over the process of disciplinarization of the history of sciences deals simultaneously with the transformation of science in an object of history and their implications.

Keywords: History of sciences, History of historiography, Twentieth Century.

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Sumário

Introdução.......................................................................................................................9

Parte I. A ordem dos fatores........................................................................................20

1. A centralidade da teoria...................................................................................20

2. Ordem social, ordem cognitiva........................................................................49

Parte II. Da Big Science à tecnociência......................................................................77

3. A comunidade científica como solução política..............................................77

4. O passado da tecnociência.............................................................................101

5. O self e a comunidade....................................................................................142

Conclusão ou ciência, objeto da história...................................................................186

Referências Bibliográficas..........................................................................................199

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Introdução

Uma das estratégias recorrentes de deslegitimação dos discursos com pretensão

à verdade, na Modernidade Ocidental, é o “desmascaramento ideológico”. Trata­se de

revelar, na “essência” de um discurso – por baixo da “mera retórica” de veracidade,

necessidade ou cientificidade –, um argumento de fundo teológico ou (como ocorre com

mais frequência na contemporaneidade) político. Obedece à estratégia da denúncia,

voltada para os inimigos e apontando para as “imposturas intelectuais”. Pauta­se no

vocabulário do desvio, do erro, da distorção; trata­se, em uma palavra, de uma

abordagem assimétrica, na definição de David Bloor (2009). Nesta pesquisa, evito ao

máximo essa assimetria.

Nesta tese, parto do pressuposto que toda obra de história das ciências guarda,

em seu discurso, um conteúdo de Política de Ciência e Tecnologia. Todo texto de

história das ciências endossa, critica ou propõe um pacto entre a ciência e o Estado;

estabelece um modo de relação entre a ciência e a sociedade. Como toda história, a

história das ciências fala do seu tempo e para ele; sua condição política não pode (e nem

deve) ser eliminada, não é um motivo para queixumes ou tentativas de correção em

busca da “objetividade” e da “neutralidade”. Ressaltar essa condição não significa, para

a perspectiva adotada, apontar para uma fonte de perturbação na produção do

conhecimento histórico. Esse é um ponto de partida: é dele que se seguirão as análises

desenvolvidas aqui. A leitura das tensões entre “fatores internos” – racionais,

cognitivos, intelectuais – e “fatores externos” – sociais, culturais, econômicos, políticos

– na história das ciências será feita a partir desse registro.

A definição do que vem a ser ciência, incluindo aí o que foi a ciência no

passado, é sempre uma definição política com sérias implicações. Tal definição autoriza

e legitima certas práticas discursivas e epistêmicas, ao mesmo tempo em que nega e

proíbe outras; inclui e exclui sujeitos e grupos; delega direitos e deveres; impõe

condutas e estabelece relações de força; garante acesso a recursos. Enfim, instaura um

campo de positividades específicas de cada definição. Mesmo a historiografia das

ciências mais recente, que evitou uma definição rigorosa e sistemática do seu objeto, o

fez tomando uma posição neste embate. Com efeito, a falta de uma definição clara já se

configurava como uma tomada de posição. Ao negar as variadas definições – que, como

veremos, quase nunca concordavam entre si – formuladas na primeira metade do século

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XX e substituí­las por um conjunto de proposições que deixa em aberto pontos antes

considerados fundamentais, a historiografia contemporânea dilui a rigidez das fronteiras

entre o “interno” e o “externo” na ciência; põe em xeque essa divisão e, com ela,

modelos de história e filosofia das ciências que a criaram e a legitimavam. Os critérios

que garantem cientificidade a uma prática social são buscados cada vez menos em

epistemologias normativas ou logicistas e cada vez mais na cultura e na história. A

recusa a uma definição formal de ciência é acompanhada de uma guinada em direção

aos usos locais e condicionamentos pragmáticos. Com isso, visavam intervir em certos

circuitos políticos e estruturas sociais nos quais essa imagem de ciência circulava

(STENGERS, 2002; LAKATOS, 1998; PESTRE, 1996).

Não seria um exagero muito grande afirmar que a questão da demarcação entre

ciência e não­ciência figurou como o principal problema da filosofia das ciências na

primeira metade do século XX. A busca por critérios satisfatórios para estabelecer os

fundamentos da ciência e sua distinção de outros campos da vida social alimentou

algumas das mentes mais poderosas do século e fundou as principais correntes

filosóficas do período. Foi também em torno desse problema que muito do debate

crítico se desenvolveu. A corrente principal da nascente sociologia da ciência dedicou­

se a estabelecer os critérios que diferenciavam a ciência de outras esferas da vida social

e garantiam a sua autonomia em relação a elas. Na historiografia, o problema da

demarcação também conheceu a sua forma de manifestação, sob a rubrica da “querela

internalismo x externalismo”. Como pretendo apontar adiante, essa historiografia não é

apenas fruto da discussão filosófica; em ambos os campos esse debate surge a partir da

mesma configuração histórica e, em especial, da condição da ciência e sua relação com

o Estado em dois momentos distintos: na euforia epistemológica da virada do século

XIX para o século XX e na consolidação da Big Business Science após 1945.

Obviamente, os desenvolvimentos na filosofia, na sociologia e na história das ciências

se retroalimentavam na forma de convergências ou acalorados contrapontos.

A demarcação do campo da ciência não é uma preocupação exclusiva dos seus

analistas. Ela interessa diretamente aos próprios cientistas e aos formuladores e

administradores de Políticas de Ciência e Tecnologia. Esses grupos gastam grande parte

do seu tempo com esforços para garantir a especificidade da ciência em relação a outras

atividades técnicas ou intelectuais e proteger as fronteiras do seu território social e

epistêmico. Parte expressiva da historiografia das ciências nas últimas décadas tem

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refletido sobre as formas através das quais os atores sociais envolvidos na produção de

conhecimento científico desenham os contornos de um espaço no interior do qual a

prática da ciência é possível1. Isso explica, em parte, o sucesso da expressão

comunidade científica na historiografia e em várias modalidades de discursos sobre a

ciência. No entanto, não acredito que devamos insistir em dois tipos de demarcação: o

analítico, sustentado por filósofos, historiadores, sociólogos, e o prático, fruto da

atividade dos próprios cientistas (GIERYN, 1983). O trabalho analítico é uma atividade

prática. Em algumas circunstâncias, visa endossar e reforçar a visão dos cientistas,

garantindo­lhe outras instâncias de legitimidade, outros conjuntos de argumentos de

defesa; em outras, visa criticá­las, atacá­las, substituí­las, reformá­las.

Vista sob esse ângulo, a história da demarcação, a história da delimitação e

atribuição de funções aos fatores “internos” e “externos” da ciência é um aspecto crucial

da história do conceito de ciência. No entanto, não será através da análise conformada

pelos métodos dessa disciplina venerável que é a história dos conceitos, à maneira de

Koselleck (2006), que prosseguirei. Apesar disso, prossigo achando profundamente

inspiradora a ideia de que “na multiplicidade cronológica do aspecto semântico reside

[...] a força expressiva da história” (KOSELLECK, 2006, p. 101). O jogo entre o espaço

de experiência e o horizonte de expectativa se realiza também no discurso, essa trama

heterogênea eivada pelas relações de força que atravessam o tempo no qual é criado e

consumido. Como prossegue o autor: “[o]s momentos de duração, alteração e futuridade

contidos em uma situação política concreta são apreendidos por sua realização no nível

linguístico” (KOSELLECK, 2006, p. 101). O reconhecimento da pertinência desses

argumentos não significa uma adesão a essa perspectiva, nem nos impede de criticar a

persistência da polarização entre linguagem e mundo presente na concepção de

Koselleck, que implica na cisão tão marcada entre história dos conceitos e história

social (embora, de acordo com o autor, uma se sirva da outra). De qualquer modo, esta

não é uma história do conceito de ciência, embora me utilize fartamente dessa história e

pretenda contribuir para algum aspecto da sua compreensão.

Ainda tratando da relação entre a dimensão simbólica e a dimensão material, é

preciso aqui realizar a crítica da perspectiva de certa vulgata marxista, fundada na

divisão rígida e estreita entre base e superestrutura. Nesta versão mecanicista, as

1Esse é um aspecto muito importante do livro de Simon Schaffer e Steven Shapin, Leviathan and the air­pump, que será abordado no quarto capítulo deste trabalho.

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manifestações linguísticas, assim como os demais “produtos intelectuais” (arte, cultura,

ideias) – excetuando­se, na maioria das vezes, as ciências naturais – fazem parte da

superestrutura, vista como mero epifenômeno, determinado pela base, que seria a

organização material da vida e da sociedade, a esfera das forças produtivas

(WILLIAMS, 2005). Assim, o discurso seria mero reflexo de uma estrutura econômica

e social que o ultrapassa e o determina. O marxismo vulgar guarda um curioso

paradoxo: se trata de um pensamento social que afirma a irrelevância de todo

pensamento social, sendo a superestrutura apenas um reflexo ideológico do modo de

produção dominante. Daí deriva parte da insistência radical desse marxismo na sua

“dimensão científica” (mais precisamente, cientificista), colocando­se em contraposição

ao pensamento de caráter ideológico e mistificador e à “ciência burguesa”.

Essa visão, da qual parecemos já ter nos livrado há muito tempo, ainda aparece

para nos assombrar.

É evidente que o materialismo histórico acentua o caráter historicamente

dependente do pensamento, como também a sua dimensão prática. “A produção das

ideias, das representações, da consciência está em princípio diretamente entrelaçada

com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real”

(ENGELS e MARX, 2009, p. 31). No entanto, nesse último caso, não se trata de uma

redução do pensamento a um efeito da estrutura social. Encarada de forma a repelir todo

mecanicismo e todo dogmatismo, o materialismo histórico torna­se uma tese

sociológica extremamente fértil, que ocupará uma posição importante na nossa tradição

intelectual e que servirá de inspiração constante neste trabalho.

Teria muitas outras dívidas teóricas para confessar. Essa digressão, no entanto,

não serve apenas para prestar um tributo, mas para ressaltar a concepção do discurso

como uma prática social. Como um campo de batalhas. Um lugar demarcado por sua

própria ordem, mas que não escapa à historicidade. É desta maneira que o discurso

histórico sobre as ciências será visto neste texto. É assim que os textos de história das

ciências aqui analisados serão lidos, obras entrelaçadas com o seu tempo, expressão

semântica da historicidade e práticas de intervenção na realidade social (CERTEAU,

2006; FOUCAULT, 2012). Esta perspectiva, obviamente, nutre­se da história da

historiografia. É nesse campo que procuro me inscrever, oferecendo um olhar reflexivo

sobre as obras de história das ciências e enfatizando a condição de historicidade

presente nessas obras. A reflexividade, no entanto, não pode ser sinônimo de auto­

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referência, de isolamento circular. Assim, procuro nesta tese cobrir o percurso da

história das ciências durante grande parte do século XX e adentrar na primeira década

do XXI. Essa abertura cronológica, contudo, será contrabalançada pelos recortes

temáticos e bibliográficos. O problema que tratarei aqui será referente aos “fatores

internos” e “externos” na explicação da dinâmica da ciência, é em torno desse recorte

que gira a maior parte das preocupações teóricas que serão abordadas. Este trabalho

propõe uma nova cronologia para o debate entre internalismo e externalismo, o que

implica uma visão um pouco diferente do material avaliado. Em relação a ele, a escolha

feita nesta tese foi a de priorizar alguns livros específicos (especialmente na medida em

que a discussão avança) e restringir o debate a uma tradição específica no interior da

história das ciências; os livros analisados aqui participaram daquilo que chamei de

“tradição kuhniana” e foram influenciados pelos desenvolvimentos dos science studies.

Esta tese procura também se engajar no combate por uma história das ciências

efetivamente histórica, um projeto que acompanha a guinada historicista na

epistemologia e que implica necessariamente na historicidade da ciência. Felizmente,

nos últimos anos, esse movimento tem crescido em quantidade e qualidade. Em muitos

livros e artigos que têm sido publicados no Brasil e fora dele, especialmente nas últimas

duas décadas, ressalta­se a impossibilidade de produzir conhecimento fora da história, a

dependência da ciência em relação à história, a dimensão constitutiva da historicidade

para os saberes. Posturas semelhantes às que defendo nesta tese. Beneficiei­me muito

dessa bibliografia, incluindo aí trabalhos que surgiram enquanto essa pesquisa era

desenvolvida. Em especial, destaco aqui o livro ainda inédito de Mauro Condé (No

prelo), “Um papel para a história”, que destaca a emergência da historicidade das

ciências e os obstáculos à efetivação desse processo em diferentes momentos e tradições

intelectuais do século passado e situa no encontro entre Ludwik Fleck e Ludwig

Wittgenstein uma chave frutífera para compreender a ciência em sua historicidade sem

recorrer às soluções relativistas. É preciso também ressaltar que este trabalho se

desenvolve em constante diálogo com o projeto levado a cabo há muitos anos pelo

professor Carlos Alvarez Maia, principalmente seus dois últimos livros, História das

ciências: uma história de historiadores ausentes (2013) e Estudios de historia, ciencias

y lenguaje (2011), este último vertido para o português quando esta tese já se

encontrava em sua fase final de escrita. A “história da história” proposta por Maia

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realiza um esforço relevante para afirmar a plena historicidade da ciência e integrar a

história das ciências ao território disciplinar da história.

Além dessas referências mais próximas, dois trabalhos se aproximam daquilo

que pretendi fazer aqui. Primeiro, a Introduction à la philosophie des sciences, de Hans­

Jörg Rheinberger (2014) que, apesar do nome, é um ensaio sobre a historicização da

epistemologia no século XX. Em segundo lugar, o livro Making natural knowledge, de

Jan Golinski (2005), que oferece um balanço temático das contribuições da nova

historiografia das ciências e do papel do construtivismo de uma maneira bastante

simpática às posições apresentadas. Por fim, é preciso fazer menção ao livro A nice

derangement of epistemes, de John Zammito (2003), um trabalho que cobre

praticamente o mesmo período abarcado nesta tese e lida com autores e problemas

bastante semelhantes, embora defenda uma posição muito diferente da que os autores

listados acima apoiam e se esforce em mostrar as fraquezas filosóficas dos argumentos

dos estudos sobre a ciência “pós­positivistas” e os seus perigos intelectuais, defendendo

a necessidade de um conhecimento objetivo na ciência e na sua história.

Ao contrário da maioria dessas obras, no entanto, não pretendo aqui sugerir

como a história das ciências deve ser praticada para garantir a consecução dos objetivos

que defendo. O texto não tem caráter propositivo, nem há nenhum modelo que possa ser

retirado dele. Nos capítulos a seguir, tento traçar a história da disputa entre

internalismo e externalismo, extrapolada para além dos limites tradicionalmente

imputados a ela (embora não se opondo a eles). Ao longo dos anos 1970 parece haver

uma superação da “querela internalismo x externalismo” com a ascensão de uma nova

historiografia das ciências. O tópico passa a ser tema de curiosidade historiográfica. O

processo de pacificação da disputa a partir da obra de Thomas Kuhn, A estrutura das

revoluções científicas, encerrou a polarização entre os grupos. Não há mais internalistas

ou externalistas2. Defendo que as questões em jogo na disputa não foram efetivamente

superadas na historiografia até o começo do século XXI.

Em publicação anterior, havia dado pouca atenção à querela, me referindo a ela

como meramente submissa ao que chamei de estratégia positivista, seguindo a

formulação de Alan Chalmers (1994). Afirmava ainda que a disputa se restringia a um

espaço epistemológico extremamente limitado e que ambos os lados em disputa

2 Pelo menos, não no mainstream da História das Ciências. A adesão a uma dessas correntes, hoje, é interpretada como sinal de amadorismo (SHAPIN, 1992).

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concordavam em pontos cruciais sobre o papel da história na explicação do

conhecimento científico. Localizava as principais contribuições teóricas do período fora

da disputa e não advindas dela. Por fim, considerava­a superada pela renovação

historiográfica dos anos 1970 (ÁVILA, 2013). Embora não fosse equivocada em sua

tese geral, essa descrição era apressada e simplista, não era o meu objetivo explorar essa

historiografia. Neste texto, tenho a possibilidade de rever com mais vagar esse tema,

tornando mais complexa a sua interpretação.

O meu principal desiderato, aqui, é explorar os papéis desempenhados pela

articulação entre “fatores internos” e “fatores externos” na historiografia contemporânea

das ciências. Essa consideração deve levar em conta como as transformações na visão

dessa questão se relacionam diretamente com o ambiente no qual a história das ciências

é produzida, os públicos a quem se destina o seu consumo, as formas de circulação

desses discursos. Como já afirmei acima, a investigação é conduzida a partir do

pressuposto que a história das ciências não se contenta em explicar o passado, mas

responde também a questões colocadas pelo presente. O recorte escolhido não perde de

vista uma preocupação mais geral dessa pesquisa, que é a de compreender as diferentes

maneiras pelas quais as ciências foram tomadas como objeto da história nas últimas

décadas do século XX.

Para realizar o que aqui se propõe, o texto se dividirá em duas partes. Na

primeira parte, composta por dois capítulos, realizo uma leitura dos modos de

delimitação e articulação dos fatores internos e externos na vigência da querela entre o

internalismo e o externalismo em sua datação clássica. A releitura da querela será

pautada pela “função política” da história das ciências em um momento, entre as

décadas de 1930 e 1950, de afirmação da importância da ciência no interior dos Estados

nacionais. O primeiro capítulo tratará das principais características historiográficas e

ideológicas do internalismo em meio a discussões sobre as nascentes Políticas de

Ciência e Tecnologia. O internalismo será analisado como uma forma de historiar as

ciências que rejeitava a postura positivista dos primeiros praticantes da disciplina no

final do século XIX e início do XX. É certo que os historiadores adeptos dessa corrente

concebiam a ciência como teoria, como uma aventura intelectual; mas eles apontavam

para uma compreensão das teorias do passado em seus próprios termos e assim

reivindicavam o combate à teleologia e ao anacronismo. Não se trata de medir o grau de

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historicidade conferido à ciência por tal ou qual corrente, mas de perceber as condições

específicas de historiar as ciências possível em cada configuração histórica.

No Capítulo 2, complementando a leitura iniciada no capítulo anterior, abordarei

o externalismo. Aqui, destaco duas principais vertentes, com relevantes diferenças

historiográficas e ideológicas. A primeira, mais antiga e também mais duradoura, é a

interpretação marxista da história das ciências. Tratava­se, naquele período, de um tipo

de abordagem que visava construir um modelo interpretativo para a história das ciências

capaz não apenas de explicar essa história, mas de utilizá­la para a apropriação social da

ciência e para a transformação profunda do mundo. A história dessa vertente não pode

ser devidamente examinada sem uma avaliação conjunta das disputas ideológicas que se

agudizam depois do surgimento da União Soviética. O externalismo marxista se opõe

tanto ao positivismo quanto ao internalismo. A história social das ciências que emerge

daí estará profundamente comprometida com esses debates.

A sociologia de Robert Merton será a matriz da segunda vertente de

externalismo abordada no capítulo. Formulada nos EUA no final dos anos 1930 e

exerceu domínio na sociologia das ciências até os anos 1960 e influenciou

decisivamente a história das ciências no período. Essa abordagem ofereceu resistência

ao marxismo e à sociologia do conhecimento teutônica das primeiras décadas do século

passado. A partir de uma perspectiva funcionalista e inspirada em Weber, o

externalismo mertoniano restringiu o acesso de qualquer elemento externo ao interior do

conhecimento científico, que permaneceria autônomo. As famosas normas mertonianas,

que formavam o ethos do cientista, serviam para organizar socialmente a pesquisa, não

tendo qualquer interferência no resultado cognitivo daquilo que era produzido. A

avaliação do internalismo e do externalismo realizada nesses dois capítulos será

vinculada a outras disputas, em especial à tensão entre liberalismo e socialismo (sem

que uma se reduza à outra). Pretendo aqui mostrar a formação clássica da querela.

A Parte II aborda o aspecto mais original dessa pesquisa. Nela, ressalto a

sobrevivência e as transformações das dimensões interna e externa na nova

historiografia. Essas transformações ocorrem em contato com um novo modo de

produção do conhecimento científico e com um novo ambiente social, econômico e

político no qual as críticas à ciência vão crescer na mesma medida em que cresce a sua

importância. No Capítulo 3, trato do surgimento de uma “tradição kuhniana” na história

das ciências. Para isso, será preciso realizar uma leitura da principal obra de Thomas

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Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, e de algumas das suas apropriações. O

texto de Kuhn será lido a partir de dois aspectos principais. Um desses aspectos é a

vinculação da teoria da ciência elaborada por Kuhn ao complexo industrial­militar­

científico que caracterizou a Big Science no pós­guerra (em especial nos EUA). A

autonomia garantida à comunidade científica será o elo entre essas duas esferas. O

segundo aspecto será a alegada superação da disputa entre internalismo e externalismo

realizada por Thomas Kuhn. A dialética entre “ciência normal” e “ciência

revolucionária” será avaliada como uma espécie de combinação entre momentos

internalistas (embora a noção de paradigma seja mais ampla que a de teoria) e

momentos externalistas, de abertura para a confluência de fatores extracientíficos que

ajudam a forjar um novo paradigma. Em seguida, tento avaliar a apropriação da obra de

Kuhn pela sociologia e pela história das ciências das décadas de 1970 e 1980. Uma

apropriação que não se dá pela replicação de um modelo, mas pela adesão a certos

insights sociológicos presentes na abordagem kuhniana que fez com que a ideia de

atribuir “um papel para a história” na explicação do desenvolvimento da ciência se

tornasse um dos princípios da historiografia que emerge no final da década de 1970.

No Capítulo 4, a análise será centrada no livro de Steven Shapin e Simon

Schaffer, Leviathan and the air pump. Esse livro, publicado originalmente em 1985, foi

escolhido pela sua importância para o desenvolvimento da historiografia e pela sua

preocupação explícita com a superação da divisão das causas explicativas das mudanças

nas ciências em internas e externas, uma das tônicas da produção do período que viu a

ascensão meteórica dos science studies ao posto de fonte prioritária de análises das

ciências. O sucesso do Leviathan em um momento de profundas transformações na

historiografia das ciências – mudanças para as quais colaborou diretamente – será

comparado com as transformações no modo de produção de conhecimento científico e

suas relações com o Estado em um período de ascensão do modelo neoliberal. Pretendo

retomar algumas injunções que marcam o período e conformam a história das ciências:

a hegemonia dos science studies, o fim da polarização geopolítica e ideológica do

período da Guerra Fria e a consolidação do capitalismo em escala global (e suas

implicações para a relação entre ciência e Estado). Ao contar a história da emergência

da ciência moderna no século XVIII através de uma série de tecnologias (social,

material, literária), os autores acionam dispositivos discursivos similares aos que são

utilizados para explicar a tecnociência, a fusão entre ciência, tecnologia, economia e

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governamentabilidade típica do final do século XX. Aproximam duas temporalidades

distintas e usam o presente como chave de compreensão do passado. Assim, ao abordar

período marcado pela consolidação da nova historiografia e pelo fim do pacto

representado pela obra de Kuhn, o capítulo deverá ressaltar como as abordagens

surgidas nos anos 1980 se apropriam da história das ciências e a reconfiguram.

O quinto capítulo deverá avançar em direção a um período ainda mais recente.

Avança para a última década do século XX e avalia o peso que a “ressaca” que as

Guerras da Ciência produziram na escrita da história das ciências depois da euforia

epistemológica advinda das décadas de 1970 e 1980. O acirramento dos debates e a

seriedade das acusações dirigidas aos pressupostos que guiavam a nova historiografia

das ciências gerou um momento de reflexão, uma crise interna, uma suspeita em torno

dos fundamentos que legitimavam as abordagens mais influentes. Em face das

transformações produzidas nesse cenário, qual o destino dos fatores internos e externos?

A resposta será buscada através da análise de outra obra considerada relevante:

Objectivity, de Lorraine Daston e Peter Galison. Esse livro, publicado já na segunda

metade da década de 2000, será o fio que conduzirá na jornada por essa complexa

trama, chegando por fim a uma visão das coordenadas historiográficas que localizam a

atual produção da história das ciências. Nesse capítulo, a questão da historicidade do

conhecimento científico será avaliada a partir das opções teóricas e narrativas que

informam o Objectivity. Por se tratar de uma obra muito recente, o seu exame será feito

a partir de uma perspectiva um pouco diferente daquela presente nos capítulos

anteriores. Ainda não sabemos os desdobramentos que ela produzirá, ainda não é

possível medir plenamente o seu impacto. A hipótese que sustento é que o livro marca o

fim de uma maneira de escrever a história das ciências. Isso terá reflexos na forma como

os fenômenos internos e externos aparecem e se relacionam. Poderíamos colocar o

problema da seguinte maneira: se a historiografia das ciências obteve finalmente

sucesso em incorporar­se à historiografia tout court, a discussão sobre a demarcação

pode ser abandonada, não faz mais sentido falar em fatores internos e externos. A

ciência é compreendida como uma expressão cultural completamente imersa no tecido

social.

Ao examinar diversas soluções para a questão da historicidade do conhecimento

científico experimentadas ao longo do século XX, não pretendo escrever uma história

teleológica da gradual incorporação das ciências ao campo dos objetos da história

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através da evolução das técnicas de análise dos historiadores das ciências,

progressivamente libertados da visão de uma ciência ahistórica, abstraída da corrosão da

temporalidade pelas mãos da lógica e da racionalidade universais. Pretendo que o

tratamento historiográfico dado às ciências em determinado momento e por determinado

autor ou grupo de autores seja entendido como produto das suas condições sócio­

históricas específicas.

Desse modo, esta tese pretende se configurar como uma análise das formas pelas

quais a história das ciências – em sua conformação disciplinar ao longo do século XX e

início do XXI – forjou o seu objeto em constante tensão com o ambiente intelectual e

político que estava imersa. Sem dúvida uma pretensão um tanto ambiciosa que exige

um olhar panorâmico; no entanto, a opção por examinar obras específicas

(especialmente na Parte II) reduz sensivelmente o alcance dos argumentos que defendo.

Grande parte da historiografia das ciências produzida no período será deixada de fora do

texto. Pretendo que esta tese seja (a começar pelo título) mais uma afirmação da

capacidade dos argumentos de tipo histórico contribuírem para uma leitura do

conhecimento científico. Uma leitura que apenas a história das ciências pode fornecer e

que considero indispensável (embora não seja excludente, nem possua o monopólio da

explicação) para a compreensão efetiva da atividade científica e o exercício da

cidadania em tempos de sociedade do conhecimento.

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Parte I: A ordem dos fatores

1. A centralidade da teoria

Louis Pasteur morreu, em 1895, como um herói nacional francês, com direito a

funeral de Estado e enterro na catedral de Notre Dame de Paris. Um ano depois da sua

morte, no entanto, seus restos mortais foram transferidos para a cripta construída no

subsolo da ala oeste da mansão onde residiu e onde funcionava o seu famoso

laboratório3. Esse aposento fornece um material extremamente relevante para

compreender o imaginário sobre a ciência na Europa da segunda metade do século XIX

– um imaginário que se estende às primeiras décadas do século XX. Trata­se de um

pequeno salão de teto abobadado, suas paredes estão cobertas com mosaicos em estilo

bizantino cujas figuras narram episódios da vida do grande gênio ou objetos que

simbolizam as suas conquistas científicas. Um homem segura um cão raivoso ao lado de

seringas, microscópios e bactérias; à esquerda e à direta, uma lista das suas grandes

realizações; no alto, três anjos exibem as virtudes teologais – “fé”, “caridade”,

“esperança” – enquanto um quarto traz consigo “ciência”4. No centro desse espaço,

uma tumba de mármore liso e negro guarda o corpo do Dr. Pasteur. Ao fundo, num

pequeno altar, estão sepultados os corpos da sua esposa, Marie Pasteur, e de seu

colaborador e sucessor, Émile Roux. Um visitante distraído poderia imaginar que se

trata de um espaço religioso, um local de culto e adoração. Ali está o corpo do santo,

nessas paredes, os milagres que operou em vida e os pios valores que pregava. Talvez o

engano seja apenas o de identificar o catolicismo como essa religião. Pois é o progresso

a religião do século XIX.

É nesse século que um dos mais célebres adeptos da religião do progresso, o

filósofo Auguste Comte5, propõe um programa para o estudo das sucessivas realizações

do espírito humano na conquista de conhecimentos positivos, a história das ciências

3 Essa casa abriga hoje o Museu Pasteur e está localizada no centro do enorme Instituto Pasteur de Paris. O laboratório localizado no subsolo foi permanentemente modernizado e continua em funcionamento.4Foi, charité, espérance e science, em francês.5 É significativo dessa atitude “religiosa” que Comte seja autor do Catecismo positivista e fundador da Igreja Positivista (ou Religião da Humanidade).

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(COMTE, 2008). O surgimento da história das ciências está ligado a essa visão de

progresso. Esse primeiro período não deve ser negligenciado ou tratado meramente

como uma “pré­história” da disciplina, como um momento de tentativas cegas de

estabelecer linhas de investigação. Também não é necessário – para atingir os

propósitos dessa tese – recuar indefinidamente em busca dos “pioneiros”, dos

“precursores” ou das “origens” desse movimento. A minha intenção aqui é apontar

como essa etapa lança bases que não serão abandonadas facilmente, como algumas

características definidas ainda no século XIX permanecem na história das ciências

praticada posteriormente. Farei isso assinalando um ponto que reaparecerá diversas

vezes ao longo desse estudo, em suas várias manifestações.

A história das ciências se estabelece fora da história tout court. Esse aspecto será

um dos traços definidores da nossa disciplina. Conquanto hoje essa característica possa

desempenhar um papel extremamente benéfico ao situar a história das ciências na

confluência entre diversos saberes, produzido em uma encruzilhada institucional e

epistemológica e constituindo­se em um dos seus pontos fortes, ela representava uma

das principais fontes de agitação, de críticas e tentativas de “refundação”. Entre o final

do século XIX e as primeiras décadas do seguinte, a história das ciências não exibia essa

componente multifacetada que adquiriria ao longo da construção da sua identidade

disciplinar. Algumas das limitações epistemológicas que identificamos nesse período (e

que se incorporam em certas tradições dessa disciplina) estão diretamente relacionadas a

essa condição. Não ignoramos que a corrente principal da historiografia no século XIX

– ocupada em construir a ciência da história – certamente considerava incluir a ciência

no rol das histórias que deveriam ser escritas, seguindo a recomendação feita por

Francis Bacon no começo do século XVII (KOSELLECK, 2013, p. 187). No entanto, os

historiadores profissionais deram pouca atenção ao tema, se é que deram alguma.

Essa “história de historiadores ausentes” – na expressão do professor Carlos

Maia (2013) – foi uma criação de filósofos. Comte, na França, e William Whewell, na

Inglaterra, são os nomes tradicionalmente associados a essa fase6. Este último foi

suficientemente claro ao afirmar que não se trata de “uma simples narração dos fatos da

história da Ciência, mas [de] uma base para a Filosofia da Ciência” (WHEWELL, 1875,

p. 8)7. Ela não é um fim em si mesma. Claro que o campo da filosofia é grande o

6 Não custa lembrar que foi Whewell que cunhou o termo scientist, em 1833. O surgimento “tardio” dessa palavra aponta para a efetiva centralidade da ciência na vida cultural e intelectual moderna como um fenômeno do século XIX.

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suficiente para admitir posturas diversas, às vezes opostas e irreconciliáveis. Seria útil

perguntar que tipo de filosofia engendra a história das ciências. De maneira geral, esses

sistemas filosóficos possuíam um compromisso com a ciência que será transferido para

a história das ciências. Ela existe em função do seu objeto. Sobre isso, Paul Tannery

escreve em 1904:

Na vida da humanidade, a ciência desempenha doravante um tal papel que sua história merece evidentemente ser estudada e ensinada da mesma maneira que o são, por exemplo, a história da arte ou aquela da literatura. A evolução de um modo especial da atividade do espírito humano não pode, com efeito, ser negligenciada vis­à­vis outras, considerando que esse modo foi, desde a origem, um dos fatores essenciais para o progresso da civilização. (TANNERY, 2008, p. 67)8.

Essas duas marcas de nascença, autonomia em relação à comunidade dos

historiadores profissionais e compromisso com a ciência, ecoarão por muito tempo.

Como resume Carlos Alvarez Maia, apontando para a conexão constitutiva entre elas:

Em linhas gerais, o distanciamento disciplinar da história das ciências do continente História ocorreu graças a uma contaminação sofrida por sua proximidade com as ciências historiadas. E esse contágio propagado pelas ciências naturais contamina também a disciplina história, porém produzindo um movimento na direção oposta. Se, por um lado, a história das ciências aproxima­se das ciências e incorpora os seus mitos, por outro lado, a história afasta­se dessas ciências, e o faz incorporando também os mesmos mitos. [...] O resultado dessa incorporação da mitologia cientifista é que a história não toma para si as ciências naturais por considerá­las como não­históricas (MAIA, 2013, p. 12).

Se tanto historiadores das ciências quanto historiadores tout court colaboraram

para a ausência da historicidade no estudo das ciências (por respeito à metafísica

cientificista), não seria suficiente (nem, talvez, necessário) ela ser praticada por

historiadores. É necessário um abalo nessa metafísica para possibilitar o surgimento de

uma “história histórica das ciências” e para o seu alojamento na historiografia

profissional. A possibilidade de conferir historicidade às ciências não foi sempre uma

preocupação para seus historiadores, ela surge em um momento específico e sofre

diversas transformações (CONDÉ, 2015). O exame desse processo mostra como a

história das ciências participa ativamente na construção das condições históricas que

7 No original: “not merely a narration of the facts in the history of Science, but a basis for the Philosophy of Science”. Tradução minha. 8 No original: “Dans la vie de l’humanité, les sciences jouent desórmais un tel rôle que leur histoire mérite évidemment d’être étudiée et ensignée au même titre que le sont, par example, l’histoire de l’art ou celle de la littérature. L’évolution d’un mode spécial de l’activité de l’esprit humain ne peut, en effet, être négligée vis­à­vis dês autres, alors que ce mode a été, dês l’origine, un des facteurs essentiels du progrès vers la civilisation”. Tradução minha.

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permitem o seu exercício pleno, pelo menos de acordo com as formas que hoje

aceitamos coletivamente como os critérios de pertencimento ao campo. Mas ela não

realiza esse movimento sozinha, se insere em uma textura social complexa na qual a

historicidade da ciência emerge como fenômeno. As condições para a ocorrência desse

processo só terão lugar a partir dos anos 1970, como tentarei mostrar na Parte II desta

tese.

Mas não anteciparei essa história. Por enquanto, retomarei o fio da

historiografia, enfocando o primeiro movimento bem sucedido de institucionalização e

disciplinarização da história das ciências, que ocorre por volta da Primeira Guerra

Mundial9. George Sarton, que foi o seu primeiro personagem de destaque, via na

história da ciência (e, nesse caso, o uso do singular é fundamental) a história de toda a

humanidade, uma história cujo escopo cronológico e geográfico se estendia quase

indefinidamente por todas as eras e civilizações. Principalmente, seguindo a filosofia

positiva de Auguste Comte, identificava a história das ciências com o progresso da

humanidade; a ciência seria o mais poderoso fator de evolução humana10. E

estabeleceu para ela um programa que priorizava o conteúdo cognitivo11. Nos Estados

Unidos em 1915, por exemplo, a história das ciências era uma atividade regular, embora

não constituísse propriamente uma disciplina acadêmica. Já existiam nesse país pelo

menos 176 cursos nessa área, espalhados em 113 instituições. Em sua grande maioria,

se tratavam de cursos sobre ciências particulares, ministrados por cientistas amadores no

campo da história e voltados para a formação dos novos membros de determinada

especialidade (MERTON e THACKRAY, 1972, p. 483). O que faltava, lá como em

todo lugar nessa época, era um esforço de sistematização desse conhecimento e de

profissionalização dessa atividade. Coube a Sarton levar essa tarefa adiante.

O propósito dessa história é o de investigar os fatos e ideias científicas, retraçar

o progresso da mente humana (SARTON, 1948, pp. 29­55). Ao mesmo tempo em que

enfatizava a humanidade como personagem, seu foco estava nos “grandes heróis”, nos

gênios, homens à frente do seu tempo, cujos sacrifícios serviram ao avanço da

civilização (SARTON, 1918, p. 197). É significativo que, para Sarton, a Introdução aos

9 Não podemos esquecer a criação de uma cátedra de Histoire Générale des Sciences no Collège de France, em 1892 (LAFFITTE, 2008).10 Para Sarton, seria Comte o fundador da história das ciências e o que primeiro forneceu à expressão uma “conception claire et précise, sinon complète” (SARTON, 1913, p. 9). 11 Apesar de ser, por vezes, considerado um representante da vertente externalista. Cf. MARKOVA, 1977, p. 21.

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estudos históricos de Langlois e Seignobos, representantes máximos da escola metódica

na França, figure entre os grandes tratados sobre o método histórico (SARTON, 1952,

p. 72). De outra parte, Sarton (1948, pp. 32­40) não hesitava em ressaltar o aspecto

“orgânico” do desenvolvimento da ciência, querendo com isso dizer que as interações

contínuas entre a ciência e a arte, a tecnologia, a religião, o direito, a política e a

indústria produziam influências recíprocas. Apesar disso, insistia ao historiador das

ciências que “o objetivo do seu trabalho é essencialmente estabelecer as conexões entre

as ideias científicas” (SARTON, 1948, p. 33)12.

Ainda em 1919, na revista Isis, da qual é o fundador, o historiador belga

escreveu uma espécie de apelo ao mundo do pós­guerra no qual a história das ciências

ocupava um papel fundamental. É nessa disciplina que se baseava sua proposta de um

“Novo Humanismo”, na medida em que a ela poderia proporcionar uma mistura entre o

“espírito histórico” e o “espírito científico”, entre vida e conhecimento, entre beleza e

verdade (SARTON, 1919, p. 319). A história das ciências, nesse texto emblemático que

é War and civilization, seria uma das curas para o abatimento moral e o ceticismo

provocados pela guerra. Ao ressaltar a neutralidade da ciência através do exame da sua

história, poderíamos livrá­la da acusação de crimes de guerra e atribuir essa

responsabilidade à sociedade. Poderíamos também retomar a história da civilização em

seus momentos mais elevados, aqueles das grandes realizações científicas. Por fim, o

alegado espírito da troca livre e desinteressada da ciência, da colaboração internacional

em busca da verdade independentemente das colorações políticas, cabia na imagem de

um mundo que buscava reconciliação e reconstrução (SARTON, 1919).

Ao compartilhar certa concepção de ciência e fazer a sua história, Sarton se

integrava em um projeto intelectual em curso, mas também mirava o futuro. Ao

incorporar toda a civilização em um grande encadeamento intelectual progressivo, em

um esforço coletivo de buscar a verdade que superava as divisões étnicas, nacionais e

políticas e as integrava (sem, contudo, apagá­las), essa história das ciências projetava

um futuro diferente do mundo despedaçado e em conflito que havia atingido o seu ápice

na Primeira Guerra Mundial (ou assim parecia, antes do profundo trauma que seria a

Segunda Grande Guerra).

12 No original: “the aim of his work is essentially to establish the connecting links between scientific ideas”. Tradução minha.

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O maior esforço de George Sarton, contudo, não foi o de fundar um estilo de

escrita da história das ciências, mas o de inaugurar propriamente uma disciplina. Ele

forneceu uma identidade profissional e cognitiva para o campo (MERTON e

THACKRAY, 1972). Criou as instituições, as carreiras, os temas de pesquisa, as

ferramentas intelectuais. Imaginou uma função social e intelectual para a sua

empreitada. Foi um incansável propagandista da causa da história das ciências.

Paradoxalmente, falhou em fazer com o que o seu programa de pesquisa fosse levado

adiante. Não deixou seguidores ou criou uma “escola”13. Seu legado foi o de criar um

ambiente para o desenvolvimento da história das ciências, especialmente nos EUA.

O surgimento dessa disciplina na paisagem de divisão intelectual do trabalho

relaciona­se à vertiginosa ascensão da ciência ao posto de fundamento máximo da

Modernidade Ocidental, que ocorre entre meados do século XIX e início do século XX

e da qual emana a euforia epistemológica e o cientificismo que marcam algumas das

mais relevantes investigações sobre a ciência no período14. À história das ciências

cabia, assim, legitimar o papel central desempenhado pela ciência, identificá­la com o

progresso e com o que há de mais fundamental e precioso no projeto de Modernidade

do Ocidente. Um tipo de legitimação diferente daquele desempenhado pela filosofia,

que estava, nesse momento, empenhada em dissecar a linguagem da ciência e depurá­la

da metafísica através da análise lógica dos enunciados científicos, em busca de um

fundamento filosoficamente rigoroso para o conhecimento científico. A história das

ciências recorre à forma narrativa para relatar a trajetória épica dos heróis do saber, os

grandes homens, responsáveis por conduzir a tocha do progresso e afastar a escuridão.

Ela “internalizou os valores e reproduziu os ideais metafísicos dessas ciências” (MAIA,

2013, p. 13). Se a história é responsável por, entre outras coisas, forjar subjetividades,

construir a identidade dos homens e mulheres em relação à temporalidade, a história das

13 Na sua famosa entrevista, Thomas Kuhn relata o isolamento de Sarton em Harvard e o modo como ele afastava qualquer interessado em pesquisar a história das ciências, exigindo um grau de erudição absurdamente elevado, uma disciplina férrea e um compromisso monástico.14 Sentimento semelhante pode ser identificado também em relação às realizações técnicas (e tecnológicas) do período. As profundas transformações decorrentes do mundo industrial afetam todas as áreas da vida. Os diversos relatos de observadores e pensadores da época sobre as incríveis mudanças nas comunicações e nos transportes, cujo emblema é o sistema de ferrovias em rápida expansão por todo o mundo ocidental, estão quase sempre impregnados de “excitação, autoconfiança e orgulho” (HOBSBAWM, 2005, p. 97). Não foi à toa que a locomotiva se tornou um dos símbolos do progresso. Mesmo críticos desse projeto de modernidade, como Marx e Engels, não deixaram de reconhecer os espantosos progressos da “civilização burguesa”. Esse movimento arrastou também os Estados europeus, que investiam na construção de obras faraônicas na área de infra­estrutura, embora com implicações diferentes daquelas que avaliamos aqui para a Política de Ciência e Tecnologia.

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ciências não escapa a esta sina. Ela seleciona um determinado aspecto da identidade

coletiva no tempo, a relação com o conhecimento científico, e constrói daí a sua

identidade.

Simultaneamente, esse processo de afirmação, legitimação e cristalização da

posição epistemologicamente privilegiada da ciência, “coincide” com a expansão de

sistemas baseados na ciência no interior dos Estados nacionais. Justamente por essa

época começa a se configurar um movimento que buscava instaurar um novo pacto

entre ciência e Estado. Inaugura­se um processo de construção da Política de Ciência e

Tecnologia como parte das obrigações inegociáveis do Estado, processo que se

aceleraria enormemente após o fim da Segunda Guerra Mundial.

A prevalência de dois modelos ideais e opostos de escrita da história das ciências

é uma característica que dominou a paisagem intelectual desse campo disciplinar entre

as décadas de 1930 e 1970. Esses dois modelos, internalismo e externalismo, travaram

uma intensa disputa na qual colocavam em questão as condições que tornavam

possíveis uma narrativa histórica sobre as ciências. Ao iniciado no ofício, cabia

posicionar­se em um dos lados da disputa.

Nesse período, parecia bastante evidente aquilo que pertencia ao âmbito interno

das ciências e aquilo que se chamava de externo. O “lado de dentro” das ciências seria

composto por pensamento e ideias, teorias e teoremas, fórmulas e conceitos, hipóteses e

leis, resultados experimentais. Em suma, o conteúdo cognitivo. Do “lado de fora”, por

sua vez, fariam parte as instituições de pesquisa, as agências de fomento e o suporte

material no qual o conteúdo se expressa (periódicos especializados, livros), as

comunidades científicas e suas normas, as formas de sociabilidade e comunicação dos

resultados; mas também a estrutura econômica e social, os regimes políticos, a cultura, a

religião, as artes. Em uma palavra, o contexto.

Para interpretar algumas das marcas distintivas da identidade disciplinar da

história das ciências na primeira metade do século XX, quero destacar aqui a sua

relação com esse projeto global para a ciência. Quero conectar as práticas intelectuais

desses historiadores ao conjunto de práticas sociais em relação às ciências. Para tanto, é

preciso dar um passo arriscado – que poderia cair na perspectiva assimétrica que tanto

evito – e recolocar algumas questões estratégicas. O que se ganha com a concepção que

emerge do internalismo? Quem se beneficia do externalismo? Que modelos de pacto

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entre ciência e Estado são construídos, sancionados, reforçados e que modelos são

criticados e denunciados pela história das ciências de uma ou de outra matriz?

Não se trata de uma simples redução da perspectiva internalista, de uma história

intelectual das ciências, aos valores do liberalismo e da lógica do mercado; ou da

história social das ciências, externalista, ao socialismo e à planificação. Não se trata de

perceber essas vertentes como mero verniz historiográfico de atitudes ideológicas em

relação às ciências. Trata­se de perceber como essas correntes emergem no interior de

um campo de possibilidades específico, como elas são fruto de configurações sócio­

históricas que as determinam e com a qual estabelecem variadas formas de relação, que

podem ser de reforço ou de contestação.

Para isso, é preciso apontar para os principais traços que caracterizavam a

relação entre a ciência e o Estado nas primeiras décadas do século XX de modo a

conectá­la a esse projeto global para as ciências do qual a historiografia das ciências

também faz parte.

No período anterior à Segunda Guerra Mundial, ciência e tecnologia não eram

objeto de políticas públicas sistemáticas. Obviamente, são bem conhecidos os esforços

que fizeram os Estados nacionais para financiar e apropriar­se dos conhecimentos

científicos em áreas estratégicas, principalmente desde o final do século XVIII, e os

esforços de filósofos naturais e cientistas para tornar estratégicas suas ciências e

arregimentar o Estado para a sua causa. “A ‘racionalização’ progressiva da sociedade

depende da institucionalização do progresso científico e técnico”, afirma Habermas

(1987, p. 45, grifo meu)15. No entanto, não devemos superestimar o lugar da ciência

nos projetos de organização do Estado antes do século XX, mesmo em países de

capitalismo mais avançado, como Inglaterra, Prússia, Alemanha (depois de 1871) e

França. A literatura que trata das Políticas de Ciência e Tecnologia geralmente marca

em 1945 o início dessa atividade (ABIR­AM, 1982; MOSELEY, 1978; SALOMON,

1977; VELHO, 2011)16.

Russel Moseley descreve minuciosamente, por exemplo, os arranjos instáveis

que acompanharam a instalação e consolidação do National Physical Laboratory, do

15 O tom desse famoso ensaio, Técnica e ciência como “ideologia”, é de crítica à função dessa racionalização no interior das sociedades capitalistas industriais. O trecho citado aparece logo no primeiro parágrafo para resumir a posição de Max Weber em relação à modernização; Habermas não compartilha integralmente da posição de Weber, mas parece concordar com essa afirmação.16 Ver também a revista Science and Public Policy.

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Reino Unido, nos primeiros anos do século XX (o laboratório foi fundado em 1900).

Mostra como vários personagens históricos – indivíduos e instituições – foram

arregimentados e se comportaram em relação ao papel do Estado na condução da

pesquisa científica. O Estado não foi iluminado pelo espírito do progresso e passou a ter

fé na ciência. Havia várias forças sociais em disputa, manifestações de interesses

variados e argumentos conflitantes, vitórias e derrotas no âmbito dos projetos sociais (e

intelectuais) em jogo.

Os esforços de um grupo coeso e importante de físicos (apoiados pela Royal

Society, por exemplo), que manipulava basicamente dois tipos de argumentos para

justificar o investimento dos fundos públicos britânicos em uma “instituição de

pesquisa”. De um lado, ressaltavam o papel fundamental da ciência para a atividade

industrial, destacando a produção de padrões de medida rigorosos, o estabelecimento de

constantes físicas precisas e a execução de testes das propriedades físicas de materiais

comumente utilizados na indústria. De outro lado, citavam frequentemente as

experiências internacionais (especialmente na Alemanha) e a suposta velocidade com a

qual outros países adquiriam vantagens industriais e econômicas resultantes da pesquisa

científica, explorando o clima de preocupação com a competição industrial

internacional (MOSELEY, 1978).

Mediavam, assim, uma ligação entre a pesquisa de ligas metálicas, calor e

eletromagnetismo e a posição ocupada pelo Reino Unido no quadro do desenvolvimento

das nações.

De outra parte, esse projeto encontrava, quando foi inicialmente apresentado,

pouca receptividade e resistências declaradas. O governo reclamava insistentemente dos

custos e se resguardava na ortodoxia liberal (que começava a mostrar suas primeiras

fissuras), encontrando eco em setores influentes da “opinião pública”. Os laboratórios

privados e as Universidades pediam a limitação clara das atividades da nova instituição,

preocupados com a sobreposição de funções e a disputa por espaço social. Nesse

conjunto intrincado, o projeto de um laboratório público de física foi aos poucos

ganhando terreno, aliando­se a setores influentes do governo (MOSELEY, 1978). As

frequentes dificuldades na liberação de recursos para o National Physical Laboratory,

no período compreendido entre 1900 e 1914 “refletiam a inabilidade do governo de

apreciar o valor da pesquisa orientada para a indústria” (MOSELEY, 1978, p. 238, grifo

meu)17. Não seria o caso de perguntarmos pelos motivos históricos dessa

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“inabilidade”? A história das ciências não deve tomar como problemático algo que hoje

nos parece evidente, a necessidade de se investir recursos públicos na pesquisa

científica?

Situação semelhante foi descrita para o Império Germânico quando da criação

do Instituto Imperial de Física e Tecnologia (Physikalisch­Technische Reichsanstalt) em

188718, após um longo processo de propostas e contrapropostas que durou quase quinze

anos (PFETSCH, 1970). Apesar da existência de um número considerável de

“instituições científicas” bancadas pela Prússia ou pelos pequenos estados que

formavam a Confederação Germânica e que foram mantidas com subsídio estatal depois

da unificação alemã de 1871, a criação de uma instituição pública com o objetivo de

centralizar a padronização de medidas e a engenharia de precisão encontrou resistências

importantes. Setores liberais do governo imperial se mostravam contra a ideia de um

organismo público voltado a corrigir as imperfeições do setor industrial privado. Ao

mesmo tempo, um grupo de cientistas via com receio a criação do Instituto, pois

percebiam sua função centralizadora como uma ameaça à liberdade de pesquisa, além

de uma possível sobreposição de funções que, segundo esse grupo, poderiam ser

supridas pelas instituições já existentes (especialmente as universidades) ou pela própria

iniciativa privada que tivesse interesse no estabelecimento de padrões mais rigorosos.

Os defensores do projeto – uma aliança inusitada de forças políticas comumente

em conflito (industriais, trabalhistas e monarquistas conservadores) –, por sua vez,

afirmavam que o desempenho da economia alemã seria positivamente impactado, que a

manutenção da ortodoxia liberal frente ao novo contexto internacional seria um erro e

que o Estado poderia exercer uma intervenção compensatória e reguladora em casos de

cenários negativos e como prevenção a estes. Aos cientistas descontentes, respondiam

argumentando que atribuir ao governo imperial a obrigação da manutenção de pesquisa

orientada para a indústria (e a economia, de modo mais geral) liberaria forças para

serem alocadas em outros tipos de investigação nas universidades, além de tratarem de

problemas cujos investimentos necessários ultrapassavam as possibilidades da grande

maioria das instituições envolvidas em pesquisa científica à época (PFETSCH, 1970).

17 No original: “reflected the inability of the government […] to appreciate the value of industrially oriented research”. Tradução minha.18 Esse instituto serviu constantemente de modelo de sucesso para o National Physical Laboratory britânico, já citado, e para o National Bureau of Standards dos Estados Unidos, fundado em 1901.

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Os princípios liberais poderiam ser reforçados por membros do governo

contrários à proposta – que pregavam maior rigor nos gastos públicos e condenavam a

natureza centralizada da instituição proposta –, ou flexibilizados por alguns dos seus

frequentes defensores, como os capitães da indústria, por perceber em instituições desse

tipo uma forma de fazer com que o Estado assumisse os custos de conduzir pesquisas

que poderiam ter resultados benéficos para as suas empresas. O grande inventor e

industrial Werner Von Siemens, por exemplo, escreveu um memorando para o

parlamento Imperial, em 1887, no qual explicita a relação linear entre pesquisa

científica, progresso tecnológico, melhoramento da indústria e avanço econômico

(PFETSCH, 1970, p. 571­572). Assim, a promoção da ciência era apresentada por seus

defensores como meio para um fim, a manutenção da posição de destaque econômico

do Império Germânico no mercado mundial. O sucesso no estabelecimento dessa

instituição foi, em parte, resultado do sucesso desse argumento.

Uma variação um pouco mais sofisticada dessa ideia foi utilizada também nas

tentativas de estabelecimento de um sistema de financiamento público da pesquisa

científica na França do período entre guerras. Lá, uma campanha orquestrada a partir do

começo dos anos 1920 por cientistas de prestígio – como Marie Curie e sua filha Irène,

Frédéric Joliot­Curie, Paul Langevin e Jean Perrin – tentava convencer o governo da

necessidade de investir seus recursos na pesquisa. A educação superior e as

Universidades já contavam com apoio estatal desde meados do século XIX, garantindo

a formação superior, especialmente voltada para as áreas economicamente estratégicas

(assim como na maioria dos países europeus no período). No entanto, os cientistas

formados nessas instituições tinham poucas opções para viver de ciência, escolhendo

entre a docência ou a indústria. As pesquisas conduzidas nesse período eram bancadas

por meio de atividades filantrópicas ou com fundos pessoais de cientistas mais

abastados. Esse sistema era considerado insuficiente e responsável pela má situação da

ciência francesa, que via seus históricos rivais, Inglaterra e Alemanha, ultrapassarem­na

(WEART, 1979).

O apoio à ciência não surgia como uma necessidade apenas para os liberais que

buscavam reverter os investimentos em benesses econômicas para a iniciativa privada.

A defesa das aplicações práticas da ciência nas atividades econômicas, no caso francês,

fazia parte de uma ideologia de esquerda mais ampla, explícita nesse grupo de

cientistas, que herdara do Iluminismo uma forte crença na ciência como maior

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expressão do espírito humano e possuía um componente utópico expresso na

possibilidade da ciência produzir riqueza e bem­estar suficientes para acabar com as

desigualdades (desde que gerenciada para tanto). Essa visão encontrou espaço no

governo com a vitória do Cartel des Gauches, uma coalizão de várias tendências da

esquerda francesa, nas eleições de 1932. Esse novo ambiente político preparou o terreno

para a criação do CNRS em 1935, na época chamado Caisse Nationale de La Recherche

Scientifique19, uma instituição de escopo bem mais amplo do que o National Physical

Laboratory ou o Instituto Imperial de Física e Tecnologia, que empregou várias

centenas de cientistas envolvidos apenas em atividades de pesquisa antes da Segunda

Guerra Mundial (WEART, 1979). Com a ascensão da Alemanha nazista e o início da

guerra, no entanto, esses argumentos se tornam praticamente irrelevantes. A ciência

tinha caráter de urgência e seus recursos provinham agora das verbas militares e de

defesa.

Do outro lado do Atlântico Norte, a situação era consideravelmente distinta. O

sistema de patronagem privada foi extremamente bem sucedido entre 1900 e 1939 –

com as instituições filantrópicas que retiravam recursos das fortunas dos Rockefeller e

dos Carnegie, por exemplo – e garantia a maior parte do financiamento da ciência nos

Estados Unidos (KOHLER, 1991).

Foram as transformações estruturais que ocorreram nas ciências e nos Estados

nacionais entre o último quartel do século XIX e o fim da Segunda Guerra Mundial que

modelaram uma nova forma de articulação entre o poder público e a pesquisa científica

e levaram à substituição da antiga “patronagem” estatal por aquilo que se pode

propriamente chamar de Política de Ciência e Tecnologia (ABIR­AM, 1982, p. 342).

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o Estado estava iluminado pelo espírito do

progresso e exibia, orgulhoso, a sua fé na ciência. Essas transformações não atingem

apenas os Estados, mas também o mercado. O crescimento dos setores farmacêutico,

elétrico e químico, baseados em conhecimentos técnicos e científicos, era marcante nas

economias mais dinâmicas do período, beneficiando­se do rápido crescimento do

número de profissionais especializados (fruto das políticas educacionais desses Estados

desde a segunda metade do século XIX) e demandando, por sua vez, um maior

investimento na ciência e na tecnologia.

19 O CNRS assumiu a atual nomenclatura em 1939, após a sua fusão com o Centre National de la Recherche Scientifique Appliquée.

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A consolidação dessa nova situação passa pela consideração da ciência como

uma ferramenta indispensável para o progresso material, uma concepção que já estava

disponível e frequentava os circuitos eruditos há vários séculos.

A articulação da ciência como um “saber­fazer”, que visava não apenas o

conhecimento da natureza, mas o seu domínio e transformação é um dos mitos de

fundação da Modernidade, inaugurado na filosofia de Francis Bacon. “Conhecimento é

poder” é o slogan desse programa que aproxima ciência e técnica, verdade e utilidade.

Essa locução destacada vincula­se à ascensão de valores ligados à burguesia mercantil,

como a valorização de uma dimensão mais ativa diante do mundo, seja através da

recuperação das artes mecânicas como fonte de conhecimento, seja pelo

estabelecimento do trabalho como fundamento legítimo do poder econômico e político,

em contraposição aos direitos de berço e aos privilégios nobiliárquicos (OLIVEIRA,

2010; JAPIASSÚ, 2001; ROSSI, 1989; ZILSEL, 2000).

A ciência não comporta apenas essa dimensão ativa, de dominação da natureza

(o deslizamento da forma inquérito do domínio jurídico para o científico,

magistralmente explorado por Foucault [1999], aponta para uma postura quase tirânica

frente à natureza). Existe outra dimensão de importância capital que opera

discursivamente na chave da pureza, da ingenuidade e do arrebatamento diante da

natureza. Nesse modo, o cientista se transfigura em uma criança curiosa que brinca e se

encanta com fenômenos naturais (CASTELFRANCHI, 2008, pp. 189­190). Qualquer

aspiração ao poder e à dominação é aí uma invasão, um atentado à liberdade da

pesquisa. Esses dois modos de caracterizar a atividade científica estiveram

constantemente imbricados em um tipo de relação que não é meramente de legitimação

mútua (do tipo: “deixe­me brincar, pois o resultado será importante” ou “não me

envolva em questões políticas, estou apenas exercendo a pura curiosidade”). Muitas

pesquisas foram efetivamente guiadas por um princípio (um ethos?) de pureza e

desinteresse. Essa duplicidade é uma das responsáveis pelo sucesso da ciência em

conquistar a hegemonia ideológica na Modernidade. É também responsável por gerar

certo sentimento de ambiguidade e contradição, como expressou Irène Joliot­Curie

(S/D, p. 19) em uma emissão radiofônica no final dos anos 1930:

Creio que o que caracteriza realmente um trabalho de Pesquisa Científica é que ele destina a satisfazer uma curiosidade desinteressada; circunstância paradoxal, é também esse gênero de

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trabalho que tem, finalmente, as consequências práticas mais sensacionais.20

A guinada operativa da ciência, no entanto, não conseguiu se estabelecer para

além das práticas discursivas de cientistas e filósofos. É só a partir da segunda metade

do século XIX que as promessas dessa ideologia científica começam, timidamente, a

frutificar21. Nesse período, então, ela pode ser atualizada, articulada a novos

argumentos e evidências e reconfigurada para que funcione no novo contexto social. A

ciência liberava a sua potência e se qualificava para ocupar uma nova posição, central,

na estrutura social.

O suporte a esse novo lugar social da ciência vem das rápidas mudanças

atravessadas desde meados do século XIX – como a utilização significativa de insumos

químicos na indústria, a utilização da eletricidade, os avanços médicos proporcionados

pela microbiologia. Nos primeiros anos do século XX, a euforia epistemológica

alcançava patamares elevados com as revoluções que ocorriam naquela que era a

ciência paradigmática por excelência, a Física. A física quântica e, principalmente, a

teoria da relatividade levaram os temas esotéricos da pequena comunidade científica

para audiências mais amplas. Não havia, aparentemente, como ficar imune à sedução da

ciência, aos seus poderes. Finalmente, as promessas de abundância pareciam prestes a

se concretizar. A qualquer momento, o antigo desejo dos alquimistas se realizaria pelas

mãos dos seus (pretensos) inimigos ideológicos22.

Os poderosos Estados nacionais europeus não seriam convencidos apenas por

bons argumentos. Era preciso que a materialidade das lâmpadas elétricas, micróbios e

radiografias fossem arregimentados para as fileiras da campanha da ciência. Ao mesmo

20 No original: “Je crois que ce qui caractérise réellement um travail de Recherche Scientifique, c’est qu’il est destine à satisfaire une curiosité désintéressée; circonstance paradoxale, c'est aussi ce genre de travail qui a finalement les conséquences pratiques les plus sensationnelles”. Tradução minha.21 O termo “ideologia” não aparece aqui no sentido que alguns marxistas lhe atribuem, como “falsa consciência”; está mais próximo de um estilo de pensamento ligado a uma posição social, como na definição de Karl Mannheim (1986). Ao reduzir a ideologia ao seu caráter ilusório, mistificador, submisso aos critérios do falso e do verdadeiro, a sua capacidade de mobilização do mundo se enfraquece. Contudo, é preciso notar certa ambiguidade do termo na obra do sociólogo húngaro. Ideologia aparece como: a) um sentido mais restrito, sistema de representação “conservador”, destinado à manutenção da ordem social, em oposição à utopia, que é um conjunto orientado para o futuro, para a mudança social, contendo uma função transformadora; e também b) uma dimensão já referida de visão de mundo socialmente dependente, a “ideologia total”, que engloba ideologias e utopias particulares (MANNHEIM, 1986; LÖWY, 2000). 22 Claro que essa leitura do processo revolucionário no âmbito das ciências físicas no período compreendido entre 1895 e 1905 parte de uma concepção simultaneamente racionalizada e mitificada de um processo que se desenvolve de maneira mais complexa, recalcitrante e devedora de desenvolvimentos anteriores do que a imagem de uma revolução profunda nas maneiras como vemos o Universo (KRAGH, 1996, p. 61)

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tempo, é muito provável que tais “evidências” não tivessem tanto impacto caso não

fossem articuladas por um imaginário tão poderoso, que por tanto tempo fermentou na

mentalidade ocidental.

Esse imaginário adquire uma expressão radical no cientificismo. É preciso

realizar aqui um breve desvio para explicar esse conceito. O cientificismo pode ser

definido a partir de algumas características: 1) a identidade entre ciência e

conhecimento, que concebe a ciência como a única forma possível de conhecer o

mundo, a única ferramenta intelectual preparada para atingir a verdade; 2) do ponto

anterior decorre a concepção da ciência como uma forma epistemologicamente superior

a outros tipos de interpretação ou explicações da realidade; 3) outra decorrência é que a

ciência, e apenas ela, é capaz de explicar toda a realidade – não há nada digno de valor

epistemológico fora da ciência; 4) por ser a única expressão intelectual verdadeira (ou,

ao menos, capaz de atingir a verdade), a ciência é a única forma de nos guiar

objetivamente na realidade e, por isso, tem garantida também uma superioridade moral.

Esse último ponto é muito relevante, pois ele se vincula a uma concepção da função

social da ciência. Como veremos no Capítulo 5 desta tese, os “defensores da ciência”

nos anos 1990 vão interpretar os “ataques à ciência” como “ataques à civilização

ocidental”.

O cientificismo é uma atitude filosófica que atribui certa onipotência à ciência,

outorgando­lhe o domínio completo do campo intelectual e um forte componente de

autoridade moral. Peter Schöttler (2013) traça uma genealogia política desse conceito e

identifica seu surgimento no terço final do século XIX. Concentrando sua análise no

espaço discursivo francês, esse historiador vai analisar a emergência do conceito no

interior das disputas entre ciência e religião que se acirram às vésperas do século XX e

se espraiam até o começo da Primeira Guerra Mundial. A acepção pejorativa do termo

já data desse momento e uma das tarefas dos propagandistas de uma visão científica do

mundo foi a de incorporar o termo ao seu vocabulário e conferir­lhe um significado

positivo. A invenção do cientificismo era, assim, uma reação conservadora, tentando

mostrar que a ciência não era capaz de suprir a humanidade de certas necessidades

espirituais e que ela não poderia responder a determinadas questões existenciais de

cunho metafísico. A sua incorporação ao vocabulário dos cientistas e seus partidários e

publicistas não conseguiu esvaziar o conceito do seu conteúdo pejorativo, seu uso

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permanece tendo, quase sempre, um tom de denúncia dos abusos da ciência, indicando

uma postura dogmática.

Apesar disso, essa atitude perante o mundo teve imenso sucesso no século XX,

será um dos traços da visão de mundo hegemônica. Ele surge ora como um otimismo

exagerado em relação ao potencial da ciência em resolver os problemas sociais (muitas

vezes problemas gerados pela própria ciência), ora como um dos fundamentos da

tecnocracia e de totalitarismos. O cientificismo surgirá nesta tese como um “desastre

ideológico” (MAIA, 2013, p. 30), um elemento que aparecerá frequentemente não

apenas como um obstáculo à transformação da ciência em objeto da história, mas como

uma ameaça à democracia e ao pleno exercício da cidadania.

Retornando à corrente principal da narrativa, é fundamental notar que

disciplinarização e a institucionalização da história das ciências ocorre simultaneamente

à transição entre esses modelos e a organização da Política de Ciência e Tecnologia, no

seio da reativação desse imaginário sobre a ciência.

Analistas da Política de Ciência e Tecnologia têm ressaltado as formas pelas

quais a concepção dominante de ciência “modela” as relações entre ciência e Estado

(VELHO, 2011). A história das ciências seria um dos agentes de transformação dessa

concepção da qual essas políticas seriam o resultado. Escolher uma maneira de escrever

a história das ciências é uma forma de atuar politicamente, interferir na agenda pública.

No entanto, não devemos supervalorizar o papel da história das ciências nessa

transformação que ocorre entre fins do século XIX e início do XX. Em primeiro lugar,

porque o seu surgimento como disciplina autônoma é concomitante às mudanças às

quais tenho me referido; em segundo lugar, porque a sua produção não circulava muito

além do seu próprio campo e áreas intelectuais afins, ela não possuía (e ainda não

possui) capilaridade suficiente para influenciar decisivamente na alteração da imagem

da ciência em todo o corpo social ou mesmo nos grupos responsáveis pelas tomadas de

decisão, capazes de alterar a Política de Ciência e Tecnologia.

As apropriações e releituras que caracterizam a ideologia da ciência

normalmente acabam por remeter­se a um tipo de visão do passado das ciências

incessantemente criticada por Thomas Kuhn: a imagem “de manual”, utilizada como

ilustração com fins pedagógicos e que transmite uma imagem oficial, anacrônica e

hagiográfica do empreendimento científico. De qualquer maneira, a maioria dos

historiadores das ciências atuantes à época não estava muito disposta a apresentar uma

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imagem diferente dessa. A relevância funcional dessa mitologia para o edifício

científico foi enfatizada pelo próprio Thomas Kuhn (2001, pp. 173­182). A alegação

frequente de desmistificação da ciência não passava de correções pontuais que

mantinham intacta essa estrutura narrativa e, principalmente, a imagem de ciência dela

decorrente. Como já afirmei acima, a história das ciências nesse período não foi

praticada por historiadores profissionais, sendo muitas vezes uma atividade diletante de

cientistas ou realização de filósofos (KUHN, 2011a, p. 127; MAIA, 2013).

Por ora, é importante considerar que a história das ciências não é apenas

produtora de uma imagem da ciência, ela é também consumidora de concepções que

circulam em determinada configuração sócio­histórica, funcionando como espaço de

reverberação, formulação e legitimação de certos interesses sociais. A história das

ciências, nessa perspectiva, passa de agente de transformação da imagem da ciência no

tecido social para uma posição mais passiva, de reprodutora de imagens e valores

produzidos alhures.

Por outro lado, apesar dessas ressalvas, poderíamos argumentar que a história

das ciências fornece um dos únicos acessos “autorizados” para a ciência do passado,

através do uso controlado e sistemático das fontes originais, o que pretensamente

garantiria precisão e objetividade. Desse modo, o surgimento da história das ciências

como disciplina autônoma e regida por normas de erudição e coerção do discurso

responde à participação cada vez maior da ciência na construção da “identidade

ocidental” a partir de meados do século XIX. A ciência, não estando mais restrita aos

seus praticantes, mas espraiando­se por todas as esferas da sociedade, precisa ter seu

desenvolvimento histórico compreendido, domesticado e regulado por formas

socialmente sancionadas de discurso. A escrita da história das ciências seria um

exercício reflexivo, de auto­conhecimento, uma racionalização de certas características

do sujeito moderno com vias à tomada de consciência e ao auto­controle.

A história das ciências realiza a seu tempo aquilo que Reinhart Koselleck

apontou em sua análise do surgimento da ciência da história. A conquista da autonomia

intelectual da história, das suas condições de cientificidade e da sua função no

vocabulário político se constroem simultaneamente e “a gênese do moderno conceito de

História coincide com a sua função social e política” (KOSELLECK, 2013, p. 186)23.

23 A sequência dessa passagem citada é significativa da postura do historiador alemão em relação à determinação social do conhecimento, uma postura diversa da que adoto aqui. Para ele, “a gênese do

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Mais adiante nesse texto, o autor enfatiza que:

Nações, classes, partidos, seitas e outros grupos de interesse podiam – e até deveriam – recorrer à História, na medida em que a derivação genética da posição que o respectivo grupo defendia lhe dava o direito à existência dentro do campo de ação político ou social (KOSELLECK, 2013, p. 188).

Assim, a produção de sentido e a orientação temporal se apresentam como

funções fundamentais (embora não exclusivas) na emergência da história das ciências.

Duas formas de encarar essa disciplina – como interferência política e como reflexão

identitária – estão entrelaçadas.

Tendo ressaltado isso, pretendo investigar de que maneiras a historiografia – ao

avaliar a ciência do passado – dialogou com o seu presente? Como a historiografia

transitava entre duas imagens de ciência e as colocava em diálogo por meio da sua

narrativa, as aproximava e distanciava, enxergava traços de continuidade e pontos de

ruptura, intercambiava valores e objetivos, projetava expectativas e experiências?

Especificamente, para o que aqui me interessa, como a articulação entre fatores

“internos” e “externos”, a demarcação do espaço epistêmico, social e institucional da

ciência se relacionava com a condição da ciência no presente da escrita?

Antes de prosseguir a análise com uma leitura do modo internalista de escrever

história da ciência, é preciso tecer duas considerações. Em primeiro lugar, a questão não

pode ser posta na forma de uma redução. Interpretações internalistas admitem a

relevância de fatores externos e vice­versa. Essas duas formas de encarar a história das

ciências estão completamente de acordo no estabelecimento das fronteiras entre o que é

intrínseco à ciência e aquilo que lhe é estranho, exterior. No entanto, o ponto no qual

essas correntes divergem se dá na relação estabelecida entre os fatores, no papel que

cada tipo de fator desempenha no “resultado”, no conhecimento científico efetivamente

produzido. Quem é o motor das transformações da ciência, o “conteúdo” ou o

“contexto”?

Em segundo lugar, não pretendo fazer um inventário de autores em seus

respectivos grupos. No início desse capítulo, caracterizei o internalismo e o

externalismo como “modelos ideais”, o que acarreta em uma posição que não considera

os historiadores como pertencendo completamente a uma ou outra dessas correntes.

moderno conceito de História coincide com a sua função social e política – sem naturalmente se limitar a ela”. Com isso, ele entendia certa validade duradoura das formulações teórico­científicas da história à despeito da sua vinculação a um lugar social de produção.

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Assim, o foco da minha investigação estará nos argumentos mobilizados em favor de

uma ou outra vertente, na forma como esses tipos de visão conformam uma narrativa

histórica e como eles constituem práticas discursivas que emergem em diálogo com

outras formas de considerar o lugar da ciência na trama histórica que chamamos de

sociedade. Obviamente, me servirei de exemplos que se utilizam efetivamente desses

argumentos para a explicação da história das ciências; esse corpus textual, no entanto,

não nos permite rotular os autores.

Comecemos então por aquele que considero o argumento axial da explicação

internalista: a centralidade da teoria. Herbert Butterfield caracteriza a ciência moderna

como uma nova “atividade mental” conduzida, em seus traços essenciais, por homens

sem acesso a novas observações ou novas evidências, mas que estavam dispostos a

pensar de maneira diferente sobre dados já conhecidos, situá­los diante de um novo

enquadramento teórico (BUTTERFIELD, 1982, p. 11­12). Ao examinar a história da

química com vistas a estabelecer as razões que retardaram a sua entrada no rol das

ciências modernas, o professor Butterfield assevera que “a experimentação e nem

mesmo os progressos da técnica foram suficientes por si sós para estabelecer a base

sobre a qual se pudesse construir o que chamamos ‘ciência moderna’”

(BUTTERFIELD, 1982, p. 193)24. Assim, a explicação para a derrocada da alquimia se

dá pelo seu fracasso em se adaptar à estrutura de pensamento da nova ciência e a

química do flogisto é apresentada como uma teoria conservadora, que usou diversos

malabarismos intelectuais para adequar­se aos dados conflitantes de modo a retardar o

surgimento de um corpo teórico condizente com a nova “estrutura mental” que já

revolucionara áreas como a mecânica e a astronomia (BUTTERFIELD, 1982, 193­

210)25. O grande professor de Harvard, Bernard Cohen, que sempre valorizou o lugar

24 No original: “La experimentación e incluso los progresos de la técnica no fueran suficientes por si solos para estabelecer la base sobre la que se pueda construir lo que llamamos ‘ciencia moderna’”. Tradução minha.25 Certamente, Herbert Butterfield é um personagem que ainda não recebe o merecido destaque na historiografia das ciências. Ele é corretamente reconhecido pelas suas críticas ao “presentismo” do que chamou de história whig (uma tese que discutirei logo adiante). No entanto, ele é um dos primeiros historiadores de formação a encarar seriamente a história das ciências e seu papel no estabelecimento desse campo do conhecimento como uma disciplina autônoma na Inglaterra é pouco conhecido e frequentemente ignorado. Assim como a sua defesa – que se liga diretamente à sua crítica teórica ao “presentismo” – de que a história das ciências fosse praticada por pessoas com formação em história. O domínio dos conteúdos científicos não garante aos historiadores das ciências a perícia necessária para a sua prática. O conhecimento histórico é também essencial e exige o domínio de técnicas e ferramentas intelectuais tão sofisticadas e complexas como aquelas da ciência. Conversamente, ele chama a atenção para a importância de estudar a ciência (em especial a revolução científica) como exigência para compreender a história da Europa (BUTTERFIELD, 1950; MAYER, 2000).

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da experimentação na nova física dos séculos dezesseis e dezessete enfatiza que “a

importância do pensamento abstrato [...] foi muito mais revolucionário para a ciência

que o telescópio” (COHEN, 1988, p. 114). Para esse autor, apesar da relevância das

experiências efetivas levadas a cabo por Galileu ou Tycho Brahe, foram as experiências

de pensamento que criaram, em última instância, a moderna ciência. Mesmo Thomas

Kuhn – que mais tarde será responsável pela pretensa superação da polarização entre

internalismo e externalismo na história das ciências – insere o seu primeiro livro, A

revolução copernicana, de 1957, no rol dos estudos de história intelectual sobre a

ciência dando clara ênfase às teorias, valores e conceitos científicos, considerando que a

“Revolução Copernicana foi uma revolução de ideias” (KUHN, 1990, p. 19).

Os exemplos com variações desse argumento poderiam se estender longamente.

Não é o caso. Creio ser fundamental apenas apontar para a formulação mais direta e

mais consistente desse argumento, uma formulação que encontramos enunciada e

defendida convictamente por Alexandre Koyré.

O historiador russo­francês, grande entre os grandes, que participara, em sua

terra natal, da revolução de 1905 e da revolução de fevereiro de 1917, insiste em

diversas ocasiões que a história das ciências é a história do pensamento humano, um

movimento de ideias. Ele considera, na sua interpretação anti­positivista (e,

consequentemente, anti­empirista), a predominância da razão sobre a experiência,

chegando a afirmar que a filosofia experimental não conduz a parte alguma (KOYRÉ,

2011b)26. Advogado da descontinuidade, ele assevera que “as grandes revoluções

científicas do século XX, tanto quanto as revoluções do século XVII ou do século XIX,

embora naturalmente assentadas sobre a descoberta de fatos novos – ou na

impossibilidade de verificá­los –, são fundamentalmente revoluções teóricas” (KOYRÉ,

2011b, p. 80). No seu texto fundamental sobre as Perspectivas da história das ciências

o nosso autor afirma, em tom de polêmica com as posições externalistas (que serão

discutidas adiante), que “não é a estrutura social do século XVII que nos pode explicar

Newton, nem é a da Rússia de Nicolau I que pode lançar alguma luz sobre a obra de

Lobatchevski” (KOYRÉ, 2011e, p. 424). E o autor prossegue (assumindo o idealismo

que lhe cabe):

a ciência, a ciência de nossa época, como a dos gregos, é essencialmente theoria, busca da verdade e que, por isso, que ela tem

26 Lembremo­nos também da leitura que o autor faz das relações entre técnica e ciência, especialmente quando se refere ao surgimento do telescópio e do relógio (KOYRÉ, 1990, pp. 59­89).

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e sempre uma teve vida própria, uma história imanente, e que é somente em função de seus próprios problemas, de sua própria história, que ela pode ser compreendida por seus historiadores (KOYRÉ, 2011e, p. 424).

Na chave com que os homens do começo do século XX liam a história da

ciência moderna, a da oposição entre empirismo e racionalismo, o internalismo se

inscreve explicitamente na tradição desse último. O foco na teoria não é apenas uma

questão metodológica, não estamos simplesmente diante da escolha de um olhar que

poderia ser diferente e que é complementar com outras abordagens – como alguns

autores quiseram nos fazer crer. Trata­se de uma concepção de ciência que se relaciona

com outros argumentos importantes.

Um desses argumentos, fundamental nas explicações de viés internalista, surge

do esforço de evitar estabelecer uma linearidade evolutiva entre as ciências do passado e

as do presente. Thomas Kuhn parece encontrar aí o principal traço que define essa

perspectiva, “o historiador [de tendência internalista] deveria pôr de lado a ciência que

conhece. A sua ciência deveria ser apreendida dos livros e revistas do período que

estuda, e deveria dominar estes e as tradições intrínsecas que exibem” (KUHN, 1989,

pp. 148­149).

Penso que existem duas fontes principais para essa postura na história das

ciências.

Na Inglaterra, o influente ensaio de “psicologia dos historiadores” (que

chamaríamos hoje de teoria da história) escrito em 1931 por Herbert Butterfield sobre a

interpretação whig da história desempenhou um papel decisivo27. Nesse livro, a

concepção de história qualificada como whiggish é saturada de julgamentos de valor,

pensada a partir dos termos do presente, descontextualizada do seu próprio tempo

(BUTTERFIELD, 1931). O processo histórico é narrado pela via da polarização entre os

heróis (que supostamente defenderiam posições mais progressistas, próximas às do

historiador) e os vilões (agentes da reação, obstáculos à efetivação de forças

irrefreáveis). Seria, em suma, uma historiografia teleológica e anacrônica. Em seu lugar,

Butterfield propõe aos historiadores que analisem o passado em seus próprios termos, os

problemas do passado são problemas postos pelas circunstâncias específicas de cada

27 Na Inglaterra, desde meados do século XVII, o vocabulário da polarização político­ideológica se articula através dos termos Tory, tendência conservadora e Católica, e Whig, mais liberais e de religião protestante. A sobrevida dessas denominações no Reino Unido ainda é forte. No começo do nosso século, o então primeiro­ministro Tony Blair (do Partido Trabalhista, que acolhe muitos whigs) foi jocosamente apelidado, por críticos à esquerda, de Tory Blair devido à suposta guinada conservadora do seu governo.

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tempo histórico. Avaliando a Reforma Protestante, o autor explica que “a questão entre

protestantes e católicos no século XVI foi uma questão do mundo deles e não do nosso

mundo” (BUTTERFIELD, 1931, p. 23)28.

Embora não tratasse especificamente de história das ciências, as lições de

Butterfield foram bastante assimiladas e discutidas nesse campo. Para os seus

defensores, elas deveriam implicar num tratamento que não visse as realizações

científicas do passado como desenvolvimentos em direção ao conhecimento

contemporâneo; não devemos procurar, por exemplo, sinais de uma Ciência ou de um

Método Científico latente em pensadores do passado, como se essas “entidades”

possuíssem existência transhistórica e apenas esperassem pela sua completa libertação

do obscurantismo e da ignorância (BUCHDAHL, 1962, pp. 71­72). Alguns críticos, por

sua vez, vêem um componente whiggish indissociável da escrita da história das

ciências. Argumentam que o progresso da ciência só pode ser avaliado corretamente a

partir de uma dimensão presentista e anacrônica que julga os avanços do conhecimento

em termos qualitativos (sabemos “mais” e “melhor” que antes) (ALVARGONZÁLEZ,

2013).

A segunda fonte, desenvolvida na França e transferida para os EUA, é o anti­

positivismo historiográfico e filosófico de Alexandre Koyré. Também ele insistiu no

princípio de que a ciência do passado deve ser compreendida e explicada nos seus

próprios termos. Ao comentar esse aspecto da obra de Koyré, Georges Canguilhem

(2012, p. 7) aponta que “a história das ciências não é progresso das ciências derrubado,

isto é, a colocação em perspectiva de etapas ultrapassadas cuja verdade de hoje seria o

ponto de fuga”. Em diversas passagens, Koyré reforça esse argumento e convida os

historiadores a não tomar como evidente o conhecimento que possuem da ciência. Pelo

contrário, a atitude do historiador deve ser a de enxergar as transformações na ciência

como um gesto difícil e doloroso de destruição de determinada visão de mundo. Sua

crítica às traduções das obras de Copérnico e Galileu, por exemplo, se dá nesse registro,

e o autor enfatiza os perigos de projetarmos os nossos hábitos, nosso valores, nossas

concepções (através da nossa linguagem) em um texto produzido sob a égide de

concepções bastante diversas (KOYRÉ, 2011d, p. 283). A ciência é engendrada em

conjunto com uma visão de mundo, “todo método científico implica uma base

28 No original: “The issue between Protestants and Catholics in the sixteenth century was an issue of their world and not of our world”. Tradução minha.

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42

metafísica ou, pelo menos, alguns axiomas sobre a natureza da realidade” (KOYRÉ,

2011b, p. 62).

Um antecedente notável desse princípio é o famoso livro As bases metafísicas da

ciência moderna, que tem a sua primeira edição publicada nos Estados Unidos em 1925

e no qual o filósofo Edwin Burtt parte da filosofia para fazer uma leitura histórica sobre

os fundamentos da moderna concepção de mundo não em sua filosofia moral ou ético­

social, mas em seus filósofos naturais, questionando como o pensamento e a obra de

personagens como Copérnico, Kepler, Descartes, Boyle, Galileu e Newton contribuíram

para moldar a corrente principal do pensamento moderno (BURTT, 1983). Alexandre

Koyré e Thomas Kuhn reconheceram o débito que possuíam com esse trabalho.

Esse princípio de investigação afasta uma concepção redutora do internalismo

como uma história da marcha das ideias científicas “puras” (que caracterizaria mais

apropriadamente uma versão do positivismo). Certamente, o foco do internalismo está

no pensamento, nas ideias, é uma história intelectual. Está longe, no entanto, de ser

apenas um conjunto de narrativas cientificistas, herméticas, ensimesmadas nos aspectos

técnicos.

Consideremos, por exemplo, Alexandre Koyré, que passou para a tradição

historiográfica – em parte devido a sua própria auto­identificação – como internalista

(talvez o maior representante desse grupo) e que, certamente, apresenta uma das

melhores defesas dessa perspectiva. No entanto, para Koyré (mas não apenas para ele),

a ciência está em constante intercâmbio com o contexto intelectual – religião, filosofia,

metafísica, estética (ideias transcientíficas, de acordo com Koyré) – formando um corpo

indissociável de conhecimento, uma visão de mundo, que tem na ciência um dos seus

aspectos centrais e deve ser levado em consideração pelo historiador interessado em

compreender a ciência moderna (KOYRÉ, 1991, pp. 201­214). A professora

Francismary Alves da Silva chama a atenção para a forma como o autor dos Estudos de

História do Pensamento Científico conecta as ideias científicas com outras dimensões

da vida social através do conceito de unidades (ou estruturas, ou estilos) de pensamento

(SILVA, 2013, pp. 161­166).

Esse sistema deve ser considerado em sua integridade, reforçando o papel dos

“erros” em determinada concepção de ciência e explicando a sua incidência em termos

históricos, como parte de uma estrutura mental auto­limitada, nas quais as

possibilidades de explicação do mundo natural não são indefinidas. Os erros que

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43

parecem evidentes ao observador contemporâneo são, muitas vezes, frutos da natureza e

dos limites da visão de mundo na qual determinada ciência se desenvolveu ou certa

descoberta foi realizada, não podem ser tomados automaticamente como sinais de

incapacidade ou incompetência dos cientistas da época (KOYRÉ, 2011; RUPERT

HALL, 1988). Foi através de um gigantesco esforço do pensamento humano, em luta

contra concepções poderosas, que essas noções tomadas como “simples” ou naturais

puderam ser assim percebidas, em processos de reforma ou revolução no qual

participaram homens (e aqui o marcador de gênero é muito importante) que construíram

o universo mental da Modernidade. Assim, o estudo cuidadoso e que suspende os

julgamentos de valor em relação às ciências do passado fornece um acesso precioso

para a compreensão da visão de mundo na qual esses conhecimentos emergem e do qual

eles fazem parte. A história das ciências não deveria focar meramente naqueles pontos

dos conhecimentos passados que são transmitidos às novas gerações e que chegam à

nossa cultura científica como “verdades” (STUMP, 2001, p. 244).

Trata­se, digamos, de uma “contextualização de primeiro grau” de uma

consideração de “historicidade parcial” do conhecimento científico, solidário com

outros produtos do pensamento, mas não com “fatores” sociais, econômicos ou

políticos.

Essa consideração encaminha a questão para a relação entre fatores internos e

externos na explicação da história das ciências que as abordagens internalistas nos

proporcionam. Trata­se do problema da causalidade histórica: quais as causas para as

transformações (ou para as permanências) da ciência? Esse não é, evidentemente, um

problema menor e não receberá aqui o tratamento exaustivo e minucioso que o tema

merece. Não retomarei toda a tradição que (desde Aristóteles) considerou em detalhe os

diversos tipos de causas, nem tampouco abordarei a acidentada e vacilante trajetória da

causalidade na teoria da história. Meu interesse está nas formas específicas como essa

vertente historiográfica abordou a questão e propôs (muitas vezes implicitamente) um

modelo de explicação, focando na emergência dos fatores intrínsecos e extrínsecos à

ciência na construção desse modelo.

A historiografia desse período possuía uma fixação na revolução científica dos

séculos XVI e XVII. Mais propriamente, ela constituiu esse objeto da forma como o

conhecemos. Apesar da ocorrência eventual da expressão desde o século XVIII, o

conceito de revolução científica, seus principais personagens, suas principais

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características e sua posição na história da “civilização ocidental” são uma invenção

(heterogênea e conflituosa) da historiografia das ciências desenvolvida em meados do

século XX (COHEN, 1989; SILVA, 2015; SHAPIN, 1998). A revolução científica é um

conceito historiográfico. Ele opera como um marcador do surgimento da ciência

moderna. E é principalmente à explicação desse objeto que o internalismo irá se voltar,

se dedicando a compreender esse fenômeno no tempo em que ocorreu (entre os séculos

XVI e XVIII) e no lugar que ocorreu (a Europa Ocidental) ao mesmo tempo em que o

construíam.

Já sabemos que, segundo essa abordagem, a ciência moderna é um fenômeno

predominantemente teórico e sistemático, uma nova concepção de mundo que engloba

uma metafísica subjacente. Resta saber quais as suas origens, de onde ele teria surgido,

o que teria provocado tamanha transformação? Em uma palavra: quais são as causas da

revolução científica? Essa é uma questão que praticamente não aparece de forma

explícita, deve ser buscada indiretamente (o externalismo, como veremos, fará dessa

exploração das causas uma divisa mais evidente).

A ciência moderna é um produto da gradual, lenta e difícil destruição do sistema

filosófico dominante na Idade Média, o sistema aristotélico e escolástico, a passagem,

nos diz Koyré repetidas vezes, do “Mundo do ‘mais ou menos’ ao Universo da

precisão”. De forma sucinta, define­se a nova física a partir de duas características: em

primeiro lugar, trata­se da destruição da imagem (de origem grega) do Cosmos

hierárquico, ordenado, dividido em supralunar e sublunar, animista, colocando em seu

lugar a ideia de um Universo aberto, homogêneo, mecanicista no qual a astronomia (que

lidava com os corpos celestes) e a física (dos corpos terrestres) podem se unir em torno

de um mesmo empreendimento; em segundo lugar, abandona­se uma física “sensível”,

preocupada com os fenômenos imediatos, com os fatos do “senso comum” em prol de

uma ciência que exige abstração, de fenômenos que ocorrem no espaço abstrato da

geometria euclidiana, instaura­se a matematização da natureza e, portanto, da ciência.

Essa substituição não representa, no entanto, apenas a criação de uma nova visão

de mundo, mas a recuperação de certas tradições da antiguidade clássica – sobretudo

aquela derivada de Platão, mas também Arquimedes, Euclides e todo um conjunto de

acepções filosóficas mais matematizante (além de Galeno, para a medicina) – e a

permanência de alguns desenvolvimentos intelectuais que tiveram lugar na Europa

desde o século XIII – como os estudos sobre o movimento e a elaboração da teoria do

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impetus. Ao mesmo tempo, isso não impede que os historiadores continuem falando em

revolução, uma revolução “intelectual” ou do “espírito”, transformação profunda nas

“estruturas mentais” ou nos “sistemas de pensamento”. A mente humana está

completamente transformada em seus fundamentos depois da revolução científica.

Sabemos que as tradições e as influências nunca são tomadas da mesma forma

como se manifestavam em sua formulação “original”, são sempre adaptadas ao novo

ambiente no qual se manifestam, transformadas de acordo com novas necessidades e

interesses, utilizadas de forma mais ou menos flexível. Assim, a revolução científica é

narrada como uma constante tensão entre continuidade e ruptura, permanência e

mudança.

Koyré parece representar bem essa tensão: critica duramente a tese continuísta

de Pierre Duhem e Alistair Crombie, considerando a revolução científica, acima de

tudo, uma ruptura com o mundo medieval e antigo (KOYRÉ, 2011b), afirma que

“Galileu é impossível antes de Arquimedes” (KOYRÉ, 1990, p. 59). Nessa mesma

passagem, Koyré faz uma afirmação que nos soa completamente anti­histórica: Podemos, sem duvida, interrogar­nos por que razão a antiguidade não produziu um Galileu... Mas isso equivale a retomar o problema da paragem, tão brusca, do magnífico ímpeto da ciência grega: por que motivo cessou o seu desenvolvimento? Por causa da ruína da polis? Da conquista romana? Da influencia cristã? Talvez. Todavia, nesse intervalo, Euclides e Ptolomeu puderam muito bem viver e trabalhar no Egipto. Realmente, nada se opõe a que Copérnico e Galileu lhes tivessem sucedido directamente (KOYRÉ, 1990, p. 60).

No entanto, a elucidação do problema das causas da mudança científica parece

explicar esse trecho. O que está em jogo é a retomada de certas atitudes intelectuais

presentes na ciência grega (em parte dela, pelo menos) e o seu desenvolvimento e

elaboração em direções específicas. O contexto social, político e econômico não fazem

mais que o papel de um meio no qual se propaga o pensamento; meio que pode ser um

obstáculo ou que pode favorecer o seu desenvolvimento. Os mais de mil anos que

separam Arquimedes da Renascença não tiveram outro papel, segundo essa

interpretação, senão o de impedir o avanço do pensamento matemático sobre a natureza

(eventualmente, reconhece­se a pequena contribuição de certos desenvolvimentos

técnicos medievais). O domínio completo de uma corrente de pensamento que associava

aristotelismo e cristianismo foi um fato paralisante de uma linha que, em outras

condições intelectuais, poderia ter se estendido muitos séculos antes. O caráter

fundamentalmente qualitativo e impreciso da ontologia e da metafísica hegemônicas do

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medievo impediu mesmo de perceber a quantificação, a matematização e o domínio da

precisão como ferramentas intelectuais válidas para o estudo da natureza.

Desse modo, a revolução científica é, nas interpretações internalistas, resultado

da destruição da ontologia aristotélica, um processo que se inicia no Renascimento –

mas que apenas se completará no século XVII, com Descartes, Galileu e Newton (que

as substituirão por outro sistema) –, fruto da revolta contra a escolástica e da

insatisfação com a autoridade constituída. O humanismo renascentista fornecerá um

ponto de partida crucial, posto que “a grande inimiga da Renascença, do ponto de vista

filosófico e científico foi a síntese aristotélica e pode dizer­se que sua grande obra foi a

destruição dessa síntese” (KOYRÉ, 2011a, p. 44). O processo que conduz à ciência

moderna se origina de uma reação às concepções medievais dominantes e um retorno à

“civilização clássica” (é o que o Renascimento fará no mundo das letras e das artes, mas

não no da ciência) e, sobretudo, da possibilidade de pôr em questão essa autoridade que

conseguiu se impor durante mais de um milênio.

Ao mesmo tempo esse primeiro passo, destrutivo, era uma condição necessária,

mas não suficiente. Entre a destruição do antigo sistema e a elaboração de um novo foi

preciso recorrer a referências intelectuais diversas daquelas que sustentavam a

concepção até então dominante. Por isso, outro fator decisivo foi o acesso a uma

“biblioteca maior, mais variada e mais excitante”, como nos diz Rupert Hall (1988, pp.

48­49). A redescoberta da tradição a que fiz referência acima foi certamente decisiva e

não é em vão que Koyré considera Galileu um platônico e a revolução científica a

“desforra de Platão”. Apesar disso, a ciência moderna não é arquimediana ou platônica,

mas cartesiana, galileana e newtoniana. Como pertinentemente nos lembra Koyré (2006,

p. 9):

Não podemos esquecer, ademais, que a “influência” não é uma relação simples; pelo contrário, é bilateral e muito complexa. [...] Em certo sentido, talvez o mais profundo, somos nós mesmos que determinamos as influências a que nos submetemos...

Os homens que começaram o processo de construção de uma nova metafísica, da

qual sairia uma nova ciência – homens como Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e

Copérnico – não estavam apenas seguindo a pista deixada por autores antigos. Eles

estavam buscando nesses autores elementos para situar uma insatisfação que tem

origens muito mais teológicas (que é, por sua vez, uma das bases fundamentais da

metafísica medieval) que científicas. O novo Universo que constroem é erigido

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inicialmente em nome de uma nova concepção da divindade, nasce de uma ideia sobre

Deus (KOYRÉ, 2006). Assim, os fatores aventados para explicar as transformações no

nosso conhecimento são de ordem intelectual. De certa maneira, é uma afirmação da

tese de que a filosofia engendra ciência. Questões teológicas, ontológicas e metafísicas

estiveram na base da construção de um novo modo de produção do conhecimento

científico. As causas da revolução científica não são apenas científicas, mas não

poderiam sê­lo, já que um dos princípios interpretativos fundamentais do internalismo é

a sua consideração da ciência no interior de um sistema de pensamento mais amplo.

Porém, restam perguntas subsequentes: por que o aristotelismo durou tanto

tempo? Por que foi destruído e substituído nessa época? Por que escolher essas

influências (Platão, Arquimedes, Pitágoras, etc.) e não outras disponíveis? Perguntas

que o internalismo (como, de resto, qualquer concepção informada por uma filosofia

idealista da história) não poderia responder. Para fazê­lo teria que recorrer a explicações

positivistas (“porque essas teorias se mostraram corretas, passaram no teste empírico”)

ou sócio­políticas (“porque respondiam a questões demandadas pela estrutura política

do período, se relacionavam com a estrutura social na qual aparecem”). Em resumo,

quando perguntado “de onde vem as ideias?”, o internalismo se cala.

A caracterização do internalismo a partir dos argumentos apontados acima me

parece mais próxima da prática efetiva dessa historiografia do que uma definição

redutora que circulou amplamente – seja durante a vigência da querela, por seus

detratores, seja depois, quando o pequeno interesse em compreender o tema para além

da mera menção como corrente historiográfica superada deixava pouco espaço para uma

leitura mais atenta. Nessa acepção, o internalismo seria a um tipo de história cujas ideias

científicas seriam consideradas em si mesmas. Seria algo próximo da “reconstrução

racional”, colocando a história das ciências em uma posição completamente submissa

em relação à filosofia, que forneceria “metodologias normativas segundo as quais o

historiador reconstrói a ‘história interna’ e desse modo fornece uma explicação racional

do desenvolvimento do conhecimento objectivo” (LAKATOS, 1998, p. 21). A história

das ciências seria o “laboratório da epistemologia”, um conhecimento instrumental

(embora importante) a serviço de problemas formulados alhures pela filosofia da

ciência. No entanto, o próprio Lakatos sabia que essa sua definição de história interna

não estava de acordo com o que geralmente faziam os historiadores (LAKATOS, 1998,

p. 63).

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48

Com efeito, tal concepção tem pelo menos um problema: ela não poderia ser

encontrada nas narrativas do período, não há mais do que vestígios historiográficos que

teriam que ser isolados e descontextualizados para que essa proposição faça sentido.

Trata­se de um “espantalho” facilmente atacável por aqueles que se opõem ao

internalismo e que é utilizado muitas vezes por defensores dos argumentos elencados

acima para fugirem de certa carga negativa que o termo recebeu depois dos anos 1970,

uma tentativa de “salvar” esses autores e argumentos, como faz, por exemplo, James

Stump (2001) em relação a Alexandre Koyré.

Penso que os argumentos internalistas não precisam ser salvos, mas

compreendidos como uma contribuição crucial para a consolidação teórica e

institucional da história das ciências e como um conjunto de práticas intelectuais

dotadas de historicidade, produtos do seu tempo. Foi Koyré quem forneceu o modelo

intelectual de história das ciências que cresceria aproveitando os espaços intelectuais

abertos por George Sarton. O seu modo de interpretação, conscientemente limitado,

coloca os “fatores internos” no centro da explicação histórica, já que são eles que

definem a ciência e que ela possui uma lógica imanente. A ciência não pode ser

explicada por algo que não a constitui, deve ser buscada naquilo que ela é e não naquilo

que ela não é.

Manterei em suspenso, por enquanto, a discussão sobre o modo como percebo as

condições específicas de historicidade do internalismo e me voltarei para o

externalismo. No próximo capítulo, depois de analisar essa vertente da história das

ciências como um campo plural, retornaremos ao problema das correlações entre a

escrita da história das ciências e as formas de organizar a ciência na trama social a partir

da querela entre explicações “internas” e “externas”.

2. Ordem social, ordem cognitiva

O externalismo será dividido em dois grandes grupos: marxista e mertoniano.

Dedicarei mais atenção ao primeiro tipo, que oferece uma oposição – teórica e política –

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mais interessante ao internalismo e à filosofia das ciências do período e que me parece

mais influente nos desenvolvimentos posteriores da história das ciências. Além disso, o

modelo marxista é mais antigo. A versão elaborada por Merton, cujo sucesso não deve

ser menosprezado, será abordada em seguida. Defenderei que ela se propõe a combater

mais o marxismo que o internalismo. Assim, duas formas diferentes interpretar os

fatores externos são colocadas em disputa – uma disputa centrada no papel que a

“dimensão social” exerce na determinação (ou não) do conteúdo da ciência, mas que

guarda um consenso em relação ao que conta como “fator externo”.

Ao ressaltar a tensão entre a sociologia da ciência mertoniana e a histórial social

das ciências de inspiração marxista, apontarei para o entrelaçamento entre posturas

políticas e filiações ideológicas, atribuições quanto às funções sociais da ciência e

atitudes metafísicas diante dela, argumentos epistemológicos. Esses elementos não

podem – é importante que se repita – sujeitar­se à mera redução da ciência à política sob

a pena de oferecer uma interpretação insuficiente do processo que pretendemos analisar.

Não há como identificar onde reside definitivamente o fundamento do conhecimento

científico, não há como definir um ponto fixo a priori (“a” sociedade ou “a” ideologia,

de um lado; “a” natureza ou “as” ideias, de outro) de onde podemos derivar as demais

características da ciência como mera expressão, como efeito.

Por fim, esse se capítulo se encerra com uma aproximação entre o internalismo e

o externalismo para ressaltar as suas diferenças e, principalmente, apontar para a

existência de uma concepção de ciência que é – em aspectos determinantes – comum

aos dois modos de explicação discutidos.

A história da emergência da interpretação marxista da história das ciências e do

seu texto fundador já está bem estabelecida. Trata­se da participação da delegação

soviética liderada pelo destacado teórico marxista e revolucionário russo Nikolai

Bukharin no II Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia,

ocorrido em Londres em 1931. Os textos dos autores soviéticos foram publicados na

Inglaterra logo após o evento na coletânea Science at the crossroads e tiveram um

impacto decisivo sobre alguns cientistas próximos ao marxismo interessados em

questões históricas e políticas da ciência. Alguns desses jovens cientistas se tornariam

depois importantes representantes da vertente externalista, como John Bernal ou Joseph

Needham. O texto mais influente desse livro foi, sem dúvida, The social and economic

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roots of Newton’s Principia, comunicação apresentada naquele congresso pelo físico e

historiador soviético Boris Hessen29.

O propósito do texto é a “aplicação do método do materialismo dialético e da

concepção do processo histórico criado por Marx para analisar a gênese e o

desenvolvimento da obra de Newton, em relação com o período em que viveu e

trabalhou” (HESSEN, 1985, p. 31). Para isso, nosso autor se apóia principalmente nos

escritos do jovem Marx e na interpretação que lhes dá Lênin. Porém, sabemos que as

interpretações e os usos da concepção materialista da história são – como em qualquer

grande sistema filosófico – bastante variáveis. O rótulo “marxista” não explica muito

sobre um texto ou sobre um personagem, especialmente no clima turbulento da União

Soviética dos nos 1920 e 1930. Desde os primeiros anos do século XX, os marxistas

russos já haviam produzido um considerável volume de reflexões sobre a lição do velho

mestre, segundo a qual a estrutura social determina as formas de consciência. Diversos

autores, entre eles Lênin e Plekhanov – filosoficamente mais sofisticado e

historiograficamente mais relevante –, discutiram e ampliaram a concepção materialista

da história. O marxismo soviético dos anos 1920 estava particularmente interessado

nessa temática, em busca de interpretações para a própria história da Rússia e da

revolução (nos anos 1930 a situação era consideravelmente diferente, como mostrarei

adiante).

Diante disso, devemos nos perguntar que usos Hessen fez desse instrumental,

como realizou a sua leitura e o que isso significava para a história das ciências?

Para a consecução do seu objetivo, Hessen parte de uma análise dos problemas

de ordem técnica impostos pela transição do feudalismo para o mercantilismo na Europa

(seleciona três eixos principais: transporte, indústria e guerra) e se pergunta quais os

problemas científicos que estão na base das questões da época. Estes seriam problemas

de mecânica, justamente a área mais importante das ciências físicas no período. Diante

disso:

Comparando os principais problemas técnicos e físicos da época com os das investigações que dominavam a física no período em que estudamos, chegamos à conclusão de que estes temas eram determinados, principalmente, pelas tarefas econômicas e técnicas que a burguesia em ascensão colocava em primeiro plano (HESSEN, 1985, p. 44, grifo meu).

29 Ambos, Hessen e Bukharin, foram figuras notáveis na vida intelectual soviética dos anos 1930. Os dois foram presos e executados (em 1936 e 1938, respectivamente) pela ditadura stalinista.

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Não devemos, de acordo com o autor, precipitarmo­nos na crítica fácil ao

“determinismo econômico” dessa abordagem. Algumas páginas depois, ele nos lembra

que

Seria, entretanto, uma grande simplificação, e mesmo vulgarização, de nosso objeto se deduzíssemos diretamente da economia e da técnica cada problema que tenha sido estudado por um físico, cada tarefa que tenha resolvido (HESSEN, 1985, p. 53).

Os determinantes – termo fundamental para o marxismo – são de várias ordens:

religiosos, políticos, jurídicos, filosóficos etc. Assim, passa a examinar a luta de classes

na Inglaterra na época de Newton para deduzir que o pertencimento do eminente

cientista à determinada classe social (filho de pequenos fazendeiros, protestante, whig)

teve influência direta no seu sistema filosófico, impedindo­o adotar um materialismo

consequente e levando­o a adotar preceitos idealistas e teológicos na explicação do

mundo físico. Da mesma forma explica a incapacidade de Newton de deduzir, do seu

próprio sistema de mecânica, a lei da conservação da energia. Apesar de reconhecer a

concorrência de outros fatores que não os econômicos, Hessen o faz a partir da rígida e

esquemática divisão entre a “base” e a “super­estrutura”; entre a economia e os produtos

culturais e intelectuais, política, direito, arte, ciência. Uma interpretação típica do

marxismo soviético dos anos 1920 (HESSEN, 1985, p. 53; FREIRE, 1993).

Em sua análise, Boris Hessen coloca a ciência não apenas como um produto do

seu tempo, mas também como um elemento fundamental na evolução das forças

produtivas, determinado pela classe que dirige a mudança na estrutura do modo de

produção (HESSEN, 1985, p. 79). O capitalismo mercantil dos séculos XVI e XVII,

com a sua sociedade burguesa nascente só poderia ter criado uma ciência preocupada

em favorecer os interesses da sua classe. É por isso que – por exemplo – essa ciência se

desenvolve fora das Universidades e contra elas, que ainda mantinham uma postura

reacionária, aristotélica e aristocrática, praticando uma “ciência oficial”, visto que eram

“centros científicos do feudalismo, não apenas portadoras das tradições feudais como

também suas ativas defensoras” (HESSEN, 1985, P. 44). Do ponto de vista

historiográfico temos aí duas teses fundamentais para o desenvolvimento da corrente

externalista. A primeira nos informa que as demandas técnicas de uma época criam

conhecimento científico, os problemas de ordem prática que tem que ser resolvidos pela

sociedade (ou pelas classes dominantes) em determinado período pautam as atividades

dos filósofos naturais e cientistas (ao menos, ditam­lhe o rumo). A segunda tese,

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consequência da anterior, encerra a ciência no horizonte da sua época, enquadrando­a na

necessidade histórica ditada pelas formas de intercâmbio material dos homens em um

momento histórico específico, da qual se torna uma forma específica de consciência

histórica atuando no interior de limites estruturais últimos (MÉSZÁROS, 2009, pp. 9­

19; FREUDENTHAL e MCLAUGHLIN, 2009, pp. 1­41). A ciência é uma atividade

altamente carregada de ideologia (no sentido marxista do termo).

“Apenas na sociedade socialista a ciência se tornará patrimônio de toda a

humanidade” (HESSEN, 1985, p. 85). Somente o proletariado, que não tem nada a

perder (“a não ser os seus grilhões...”) e não precisa ocultar a realidade, pode criar uma

“história verdadeira e genuína da natureza e da sociedade” (HESSEN, 1985, p. 32)30.

Essa perspectiva abrirá caminho para que, no Ocidente, os historiadores marxistas

possam analisar a ciência do passado nesses termos e também projetar as ciências do

futuro por meio da planificação.

Contudo, a história que nos conta Hessen não avança nas relações entre o

conteúdo cognitivo da física newtoniana e as determinações históricas da sua produção,

apesar de apontar as relações entre a visão filosófica de Newton e seus pressupostos

religiosos e políticos. As afirmações genéricas sobre o problema e a questão da

impossibilidade da formulação do princípio da conservação da energia estão muito

distantes da grandiosidade científica da obra de Newton, não atingem o seu núcleo. Pelo

contrário, Hessen parece se contentar em apontar as correlações entre os temas dos

Principia e os problemas técnico do período, deixando intactas as soluções específicas

adotadas e como elas poderiam se relacionar quando analisadas do ponto de vista do

materialismo dialético (HESSEN, 1985, pp. 50­53; FREIRE, 1993, 1954). Será que

Hessen foi incapaz de ir mais longe? Será que não é possível atacar os problemas

técnicos de uma teoria, relacionando­os com as forças produtivas, as classes

dominantes, a luta de classes etc.? O conteúdo técnico é intransponível e, no limite, a­

histórico?

Muitos críticos do artigo de Hessen, dentro e fora do espectro do marxismo,

julgaram corretamente encontrar aí a sua grande limitação31. No entanto, em seu

30 Essa visão, apesar de tudo, não carrega o otimismo exagerado de Lênin que, analisando a “crise das ciências” nos primeiros anos do século XX, afirmara que “a física contemporânea está a dar à luz. Está a dar à luz o materialismo dialético” (LÊNIN, 1982, p. 237).31 O próprio Marx escreveu muito pouco sobre as ciências naturais (sabemos da sua grande admiração por Charles Darwin e, através das correspondências trocadas principalmente com Engels, do seu interesse eventual por astronomia). Em uma de suas passagens mais conhecidas sobre o tema, no Capital, ele

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brilhante artigo The social­political roots of Boris Hessen, o professor Loren Graham

nos fornece uma interpretação muito perspicaz e profunda sobre esse trabalho,

inserindo­o no contexto mais amplo das discussões sobre a ciência na União Soviética e

sobre a posição que nela se encontrava Boris Hessen. Graham recupera a trajetória de

Hessen no período anterior à viagem à Londres em 1931 e explica como suas

preocupações se voltavam principalmente para a defesa da teoria da relatividade e da

mecânica quântica nos circuitos científicos soviéticos. No entanto, essa havia se tornado

uma atividade realmente perigosa, visto que a classe dirigente emergente após a guerra

civil russa (1918­1921) – que começava a vasculhar as teorias científicas em busca de

ideologias burguesas em seu projeto de reconstrução total da ciência a partir do

materialismo – considerava essas teorias como fruto da ciência burguesa e imperialista.

Não apenas julgavam­nas equivocadas do ponto de vista científico, mas interpretavam­

nas como filosoficamente e politicamente danosas, abstrações vazias carregadas de

misticismo burguês, montadas para destruir o materialismo. Após 1929, o cerco se fecha

sobre os defensores de Einstein e Bohr, muitos são perseguidos, expurgados, presos.

Hessen, um defensor de primeira linha da revolução, estava sob suspeita. Em

seus textos, ele buscava reconciliar o marxismo com a física contemporânea.

Concordava com as origens imperialistas e burguesas dessas teorias e com as

implicações filosóficas anti­materialistas que elas acarretavam, mas defendia que

deveria haver uma separação entre esses aspectos da ciência e seu valor de verdade; o

reconhecimento das origens filosóficas e sociais não­materialistas dessa ciência não

deveria ser motivo para descartar o seu conteúdo físico. Essa posição colocava­o em

dificuldade, tendo sido censurado publicamente, em 1930, por suas ideias “metafísicas”

e “idealistas”. Assim, para Graham, a participação de Hessen no Congresso de Londres

foi uma chance de se redimir, assumindo uma posição mais ortodoxa, mais próxima do

“marxismo oficial” e, ao mesmo tempo, inserir uma mensagem sutil. Por isso ele retoma

Newton, tido em alta conta nos círculos científicos dominantes da União Soviética e

demonstra como o seu programa de pesquisas estava diretamente vinculado aos

indica que: “A necessidade de calcular os movimentos do Nilo gerou a astronomia egípcia e com ela o domínio da casta sacerdotal como dirigente da agricultura” (MARX, 1996, p. 142, grifos meus). Assim, ele apenas reconhece a capacidade das questões práticas de engendrar certos tipos de conhecimento e de propor temas à investigação do mundo natural, mas não ataca a questão do conteúdo desse conhecimento e sua relação com esses mesmos problemas. É nas suas análises mais metodológicas sobre a relação entre estrutura social e formas de consciência ou sobre a concepção materialista da história que os marxistas encontram chaves analíticas para avançar nesse problema.

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interesses da burguesia mercantil e como a sua filosofia estava eivada de idealismo e

teologia, reflexos da luta de classes na época da Revolução Inglesa e da posição adotada

por Newton nessa conjuntura.

Hessen procede em relação a Newton como esperava que seus colegas, de volta

à União Soviética, procedessem em relação a Einstein e Bohr. Por isso ele evita associar

o conteúdo da física newtoniana à sua posição na luta de classes e nas relações sociais

de produção, recusa­se a considerá­lo mera ideologia. Ao analisar em bases marxistas a

mecânica clássica, ele não retira as mesmas conclusões que seus pares da intelligentsia

soviética retiravam para a análise que faziam da relatividade e da mecânica quântica.

Assim, o famoso ensaio de Hessen adquire um significado bastante diferente. Ele

continua sendo um marco para as interpretações marxistas (Hessen era efetivamente um

marxista militante) da história das ciências, mas deve ser visto também como uma

estratégia de defesa diante das acusações que sofria na União Soviética, ao assumir um

tom mais próximo daquele que era esperado dos intelectuais comprometidos com o

novo regime, e como um recurso à história para elaborar um argumento que tornassem

viáveis as suas posições científicas. A separação do valor de verdade de uma teoria dos

seus condicionamentos históricos e sociais – que surge, em uma primeira leitura, como

uma limitação involuntária – se torna, depois da cuidadosa avaliação do contexto da sua

produção levado a cabo por Loren Graham, uma atitude deliberada (GRAHAM, 1985,

pp. 705­722).

Sabemos que todo esse contexto permaneceu desconhecido durante mais de

cinquenta anos e que o texto de Boris Hessen passou à tradição e influenciou toda uma

geração de historiadores da ciência no Ocidente que ignorava a maior parte dessas

condições de produção. Por outro lado, era bem conhecida a assombrosa ascensão da

União Soviética. Desde 1917, o espectro de uma Modernidade alternativa assombrava a

Europa, afirmando­se como uma sociedade superior à civilização capitalista e destinada

a triunfar sobre esse sistema. O surgimento desse colosso oriental – que prometera

realizar para a humanidade aquilo que a Revolução Francesa havia deixado inacabado e

que transformara um país com uma estrutura econômica e social extremamente arcaica e

um governo nos moldes do Absolutismo em uma potência industrial aparentemente

imune à grande depressão que assolara os países capitalistas – causou preocupação nas

potências europeias ao mesmo tempo em que atraiu uma parcela significativa da

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juventude universitária do continente para as fileiras do comunismo (HOBSBAWM,

2006, pp. 63­89; HILL, 1967)32.

O regime instaurado após a revolução de outubro na Rússia tinha grande

interesse no campo das Políticas de Ciência e Tecnologia. De acordo com Loren

Graham, “nenhum governo anterior na história foi tão abertamente e energicamente a

favor da ciência” (GRAHAM, 1967, pp. 32­33)33. Os soviéticos apostaram na

modernização do país com uso das ciências naturais e no seu poder de transformar

radicalmente a sociedade soviética, não apenas através do uso da tecnologia e da ciência

na indústria e na economia, mas também na construção de uma cultura despida de todo

“misticismo”, de um “novo homem”. Não só a direção da economia devia ser

organizada com base em princípios científicos, mas toda a vida social deveria ser

“racionalizada”.

Por outro lado, a própria atividade científica deveria ser reorganizada para se

adequar aos moldes do comunismo e à construção da nova sociedade. Assim, nos

últimos anos da década de 1920 é implementado na URSS um processo de planificação

do trabalho científico com vistas a aperfeiçoar a utilização dos seus recursos. Esse

fenômeno ocorre quase em simultaneidade com o fim da Nova Política Econômica

(NEP, na sigla em russo) adotada após a guerra civil e o início da coletivização e da

industrialização forçada que marca a ascensão de Stalin ao poder. Essas mudanças

acabaram dando fim a um período, entre 1922 e 1928, de relativa liberdade de pesquisa.

A íntima relação entre técnica e ciência defendida pelo marxismo oficial, o pavor à

abstração vazia e a ênfase na ciência como peça importante na estrutura produtiva

colocavam o controle da ciência como uma atividade prioritária para o Estado soviético.

Além disso, a convicção de que a ciência era fruto dos interesses da classe dominante e

uma expressão do estado das forças produtivas – ligada ao domínio da necessidade –

fazia com que ela fosse vista como socialmente dirigida e, portanto, dirigível

(GRAHAM, 1967, pp. 32­79).

32 É verdade que a Rússia, desde a década de 1860, se inseria timidamente no processo de modernização, com o surgimento de algumas indústrias, a construção de ferrovias e instalação de linhas de telégrafo financiadas por capital estrangeiro. A distância para as economias mais dinâmicas da Europa era, contudo, gigantesca. Em relação à estrutura política, o czar Nicolau II repetia frequentemente que governava por “direito divino” e repelia qualquer tentativa de ampliação da participação da sociedade nas decisões estatais.33 No original: “No previous government in history was so openly and energetically in favor of science”. Tradução minha.

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Isso explica também porque o controle da ciência tinha como um objetivo

fundamental a destruição da “ciência burguesa” e a edificação de uma “ciência

socialista”, que passava pela recuperação de uma suposta tradição genuinamente

materialista presente na ciência moderna.

Esses objetivos, porém, não estavam apenas restritos aos interesses oficiais da

URSS. Espraiaram­se para além de Moscou e fizeram parte das aspirações de diveros

historiadores das ciências de matriz marxista. Entre eles, um dos mais importantes foi o

inglês John Desmond Bernal. Como muitos historiadores das ciências da sua geração,

Bernal era um cientista natural de formação. E um dos grandes, tendo trabalhado com os

principais nomes da ciência do seu tempo e circulado pelas instituições científicas mais

importantes da Grã­Bretanha, como a Royal Society, da qual foi membro desde 1937. É

considerado uma das figuras capitais da ciência britânica do século XX. Suas pesquisas

na área de cristalografia foram fundamentais para os desenvolvimentos da físico­

química e da bioquímica posteriores, fornecendo algumas das técnicas utilizadas ainda

hoje e possibilitando as pesquisas que conduziriam, por exemplo, à dupla hélice do

DNA. Em 1945, recebeu a Royal Medal, maior condecoração da ciência britânica por

suas contribuições à cristalografia, e o Prêmio Stalin da Paz (depois rebatizado de

Prêmio Lênin da Paz, em meio ao processo de desestalinização do período Khrushchev)

em 1953 (HODGKIN, 1980). Especula­se que o prêmio Nobel não lhe foi concedido

por suas convicções ideológicas.

Segundo Gary Werskey (2007, pp. 404­405), foi o impacto causado pela

delegação soviética no já mencionado Congresso de História da Ciência e da Tecnologia

que possibilitou a conversão de Bernal e de um grupo de jovens cientistas ao marxismo.

Eles faziam parte de uma geração de desiludidos com o capitalismo liberal na esteira do

fim da Primeira Guerra Mundial e da crise de 1929 e com a incapacidade desse modelo

político e econômico de utilizar a ciência em benefício da sociedade. Em oposição ao

pessimismo britânico, os soviéticos anunciavam uma sociedade que não havia sido

afetada pela crise e na qual a ciência estaria alcançando seu auge e direcionando seus

esforços para o bem­estar coletivo. Essa perspectiva implicava em uma nova abertura

para as Políticas de Ciência e Tecnologia, fortemente influenciada em uma leitura

sociológica e embasada em um conceito de história (e de história das ciências)

completamente diferente daquele a que estavam acostumados os intelectuais ocidentais.

Não tratarei aqui da sociologia da ciência inaugurada por Bernal no seu clássico de

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1939, The social function of science. Lidarei prioritariamente com a sua grande

compilação de história das ciências elaborada após a Segunda Guerra Mundial e

publicada pela primeira vez em 1954 sob o título de Science in history.

Bernal chegou à história (e também à sociologia) das ciências através da

militância política. Utilizava deliberadamente a história das ciências, como Hessen antes

dele e como muitos marxistas do seu tempo e depois, para afirmar a incapacidade

estrutural do capitalismo de distribuir igualmente as riquezas e proporcionar uma

sociedade mais justa. Sua interpretação prioriza as interferências mútuas entre ciência e

sociedade, inscrevendo­se no campo da história social – que já possuía uma larga

tradição na Inglaterra e que justamente nesse período se renovava à luz do materialismo

histórico e se agrupava em torno da New Left Review34.

A história social das ciências, distintiva da corrente externalista, mantinha seu

foco nas maneiras como a ciência servia antes de tudo à transformação do mundo

material. A abordagem de Bernal dá um tom funcionalista ao processo, a ciência possui

um papel social a desempenhar, surge como uma demanda derivada de problemas de

ordem técnica e econômica, está sempre à serviço de um modo de produção. Desse

modo, o autor critica duramente a noção de “ciência pura” e a ênfase nas suas

características abstratas:

De fato, o ideal da ciência pura – a busca da Verdade por si mesma – é a afirmação consciente de uma atitude social que fez muito para impedir o desenvolvimento da ciência e ajudou a colocá­la nas mãos de obscurantistas e reacionários (BERNAL, 1954, p. 17)35.

Assim, o papel da história das ciências é o de desvendar a dimensão social das

teorias, expor as correlações entre estas e a estrutura social vigente, inserindo a ciência

na função que lhe cabe em determinado momento histórico. Ao longo de toda a história

humana, da Idade da Pedra à Era Atômica, Bernal constrói um padrão de

desenvolvimento da ciência. Os longos períodos de relativa inatividade entrecortados

por surtos de transformação intensa não estão associados ao surgimento de indivíduos

capazes de revolucionar o conhecimento disponível, elevando­o a outro patamar, não

34 Esse grupo, que incluía autores da importância de Eric Hobsbawm, Edward Thompson, Christopher Hill, Raymond Willians e Perry Anderson, se tornaria a maior força de renovação da historiografia inglesa do século XX. Sua relação com essa história das ciências que se desenvolvia, apesar da afinidade ideológica, não era muito próxima. Christopher Hill tratou do papel da ciência no seu livro Origens intelectuais da revolução inglesa e Hobsbawm, em parte por sua relação pessoal com Joseph Needham, incluiu capítulos sobre ciência nas suas Eras.35 No original: “Indeed, the ideal of pure science – the pursuit of Truth for its own sake – is the conscious statement of a social attitude which has done much to hinder the development of science and has helped to put it into obscurantist and reactionary hands”. Tradução minha.

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são gênios “à frente do seu tempo”. Os saltos que ocorrem no conhecimento da natureza

estão diretamente ligados à criação de novos modos de produção, à ascensão de uma

nova classe dominante e ao surgimento de novas demandas técnicas e econômicas (para

o favorecimento dessas classes e não da sociedade como um todo). A ciência não é a

busca pela verdade, mas a busca por soluções.

O caráter classista da ciência é explicado não apenas em termos de domínio

político e econômico, mas pela própria maneira como a ciência e a sociedade se

estruturam historicamente. Devido ao seu caráter formal e à exigência de domínio de

certas habilidades intelectuais – leitura e escrita, matemática – restritas a certas camadas

da sociedade, a ciência não poderia ser praticada indistintamente. Além disso, a

possibilidade de dedicar tempo às atividades científicas antes da sua profissionalização

na segunda metade do século XIX era um privilégio das camadas dominantes. Dessa

característica seguem dois resultados. Em primeiro lugar, isso implica em um avanço

mais lento, já que muitos dos que poderiam contribuir com o seu talento para o

desenvolvimento do conhecimento são excluídos da prática da ciência. Em segundo

lugar, o conhecimento produzido e (mais importante) as suas aplicações práticas

tendiam a aumentar a exploração (BERNAL, 1954, p. 394). Segundo o autor, os

períodos mais frutíferos de desenvolvimento científico ocorrem justamente quando a

barreira entre classes sociais diferentes diminui ou é abolida (BERNAL, 1954, pp. 867­

873).

Dessa concepção conclui­se que a ciência é regida por fatores externos, as

causas das suas transformações escapam ao seu alcance, residem na tensão dialética

entre forças produtivas e relações de produção, embora ela possa retroalimentar essa

tensão (e geralmente o faz). A história das ciências seria a história de como o

conhecimento da natureza se acomoda a uma nova situação histórica, como ele é

moldado por forças estruturais às quais ela não pode controlar, das quais participa como

expressão super­estrutural e como parte integrante da reprodução de certos modos de

produção. A função social da ciência lhe é determinada de fora. É um instrumento

essencial para a manutenção (ou transformação) das estruturas sociais. Desse modo, a

melhor alternativa para o desenvolvimento da ciência é a planificação (defendido por

Hessen e aparentemente bem sucedido na URSS entre os anos 1930 e 1950). O modelo

de ciência planificada só encontraria oposição das classes dominantes e seus

representantes intelectuais (que, de acordo com essa perspectiva, já dirigia a ciência

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para os seus interesses) ou por aqueles que, sob o impacto traumático da utilização

maciça de ciência e tecnologia nos esforços de guerra e incapazes de imaginar uma

sociedade diferente, viam o planejamento apenas como gerador de sofrimento e

destruição (BERNAL, 1954, pp. 582­585).

No entanto, a narrativa produzida por Bernal parece não conseguir demonstrar o

efeito dos fatores externos, da estrutura econômica e social de determinada época

histórica, na sua respectiva estrutura cognitiva – assim como Boris Hessen, com a

diferença significativa de que o físico russo evitou esse passo deliberadamente,

enquanto Bernal se esforça para demonstrar essa dependência. Com a exceção de alguns

exercícios pouco satisfatórios, como a relação entre o lugar central ocupado pelo Sol na

astronomia copernicana e a metáfora do le Roi Soleil das monarquias absolutas36, ou, o

que me parece bastante interessante, embora incompleto, a associação entre a estrutura

rígida, hierárquica, fechada e imobilista da astronomia aristotélica com a sociedade

feudal e a nova imagem do universo indefinido, aberto, dinâmico e homogêneo

vinculada a uma sociedade capitalista; em ambos os casos, as formações sociais

poderiam ser definidas quase nos mesmos termos das suas concepções astronômicas

(BERNAL, 1954, pp. 279­344). De maneira geral, as mudanças econômicas e técnicas

indicam a direção que deve ser seguida pela ciência, mas não o ponto no qual ela

chegará. Para Bernal, e esse é um argumento decisivo para a concepção externalista da

história das ciências, o que há de mais importante para se compreender na ciência

encontra­se do lado de fora das mentes dos cientistas. Não se busca a abstração (o

método), mas as suas origens materiais.

De qualquer modo, será apenas nos anos 1970 e 1980 que a historiografia

começará a avançar nesse problema, partindo sobretudo de estudos de caso mais

detalhados.

Ao mesmo tempo, na descrição apresentada para o método da ciência, Bernal

mantém uma postura bastante tradicional, próxima de abordagens empiristas

filosoficamente pobres. Embora considere que o método científico seja uma abstração

da forma de organização institucional da ciência, o autor limita­se a considerar o

método científico como um caso especial das operações do senso comum, requeridas

não mais em situações cotidianas de sobrevivência e intercâmbio material, mas nas

36 Embora a referência explícita a este epíteto só tenha sido utilizada no reinado de Luis XIV, um século após a publicação do De revolutionibus orbium coelestium.

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situações específicas de investigação dos fenômenos naturais. Assim, observações e

experimentos, leis, hipóteses e teorias, aparelhos, classificação e medição e mesmo a

linguagem da ciência são derivadas do uso comum. A diferença entre as suas utilizações

habituais e científicas está simplesmente no maior controle às quais essas operações são

submetidas. A justificável preocupação com a afirmação de uma história social das

ciências e a óbvia impossibilidade de tratar de todos os temas relevantes em uma mesma

obra – além da necessidade de uma definição que seja elástica o suficiente para permitir

falar de ciência em todas as épocas históricas – parece resultar na pouca atenção

dedicada aos procedimentos internos da ciência.

No entanto, as grandes críticas ao projeto de Bernal não decorrem da sua

abordagem historiográfica, mas da opção política que a informa. Foi a defesa

intransigente da planificação como única forma de garantir o progresso – o que na Grã­

Bretanha ficou conhecido como “bernalismo” – que provocou as mais acesas reações. Já

em 1938, um grupo de cientistas britânicos liderados por Michael Polanyi – um

polímata húngaro que emigrara para a Europa ocidental depois da anexação da Hungria

à URSS – e John Baker criou a Society for Freedom in Science (SFS) como resposta ao

surgimento, no interior da British Association for the Advancement of Science, de uma

divisão dedicada a fornecer orientações sociais para o progresso da ciência. Para os

líderes da SFS, o “bernalismo” constituía, do ponto de vista teórico, um ataque à ciência

pura – já que a nobre ciência seria reduzida apenas à busca um tanto mesquinha por

necessidades econômicas e materiais – e, de uma perspectiva mais prática, um perigo à

autonomia intelectual e à liberdade dos cientistas de decidirem o tópico das suas

pesquisas e a maneira adequada de conduzi­las (FULLER, 2007; POLANYI, 1964;

WERSKEY, 2007, pp. 412­413).

As fortes contradições que polarizavam a Europa naqueles anos imediatamente

anteriores à Segunda Guerra (e que foram momentaneamente suspensos na união contra

o inimigo comum, o nazi­fascismo) ainda não haviam alcançado a escala global que

marcariam o período da Guerra Fria, mas já se manifestavam claramente na ciência e

nas formas de interpretar a sua história. O próprio Polanyi, por exemplo, insistiria que

existem certos elementos na ciência que são tácitos, não são passíveis de sistematização

ou formalização e dependem profundamente de julgamentos e compromissos pessoais.

Essa tese servia imensamente na batalha pela “liberdade” contra a planificação. A

dimensão tácita impede a compreensão completa de todas as operações envolvidas na

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criação científica. Essa compreensão parcial, por sua vez, impede o controle dessas

operações e a sua devida planificação. A inserção de um componente impossível de ser

racionalizado não visava atacar a racionalidade da ciência, mas as pretensões socialistas

de “racionalização da sociedade”. A ideia de uma dimensão tácita na atividade científica

seria depois parcialmente apropriada por outros autores, como Thomas Kuhn ou Harry

Collins.

Outro autor da “tradição marxista” que devemos mencionar aqui, por sua

importância na formulação de uma explicação da ciência que leve em conta a sua

dimensão social, é Edgar Zilsel37. Em trabalho recente, Mauro Condé (2015, pp. 35­42)

toma a chamada “tese de Zilsel” como uma síntese da corrente externalista. A

elaboração dessa tese se dá de maneira fragmentária, uma vez que trajetória pessoal

desse historiador e filósofo austríaco (participou do Círculo de Viena) que migrou para

os Estados Unidos com a ascensão do nazismo e a iminente anexação da Áustria pela

Alemanha, não permitiu uma sequência na sua carreira acadêmica. Ao contrário de

outros intelectuais que fugiram do nazismo, Zilsel teve dificuldades em encontrar um

posto em uma universidade norte­americana, tendo conseguido produzir alguns artigos

durante o período que contou com uma bolsa de estudos. Cometeu suicídio em 1944.

Deixou uma produção relativamente pequena, composta principalmente de textos

curtos. Minha análise estará fundada em uma breve exploração da “tese de Zilsel” a

partir de dois artigos: The sociological roots of modern science e The Genesis of the

concept of physical law, ambos publicados em 1942.

Nesse último texto, o autor faz uma história da criação do conceito de “lei

natural” passando em revista uma vasta literatura. Atravessa toda a cultura ocidental,

usando fontes da antiguidade – escritos tão diversos quanto Anaximandro e a Bíblia,

com citações marginais ao monoteísmo egípcio, mas também Platão, Aristóteles e

Arquimedes –, abordando a concepção medieval e chegando, finalmente, aos

fundadores da ciência moderna. Ao longo desse percurso, a apresentação das ideias dos

autores é eventualmente pontuada com observações sobre a “importância das mudanças

sociais para a história das ideias” (ZILSEL, 1942, p. 267, n. 79)38. O objetivo central

do texto é mostrar que o conceito, embora apareça de forma embrionária em alguns

37 Diferentemente de Boris Hessen ou John Bernal, Zilsel não pretendia “aplicar” o materialismo histórico marxista à análise das ciências. A sua história social das ciências é tributária direta da interpretação marxista sem, contudo, resumir­se a ela.38 No original: “the importance of social changes to the history of ideas”. Tradução minha.

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textos e possua certas raízes antigas cuja origem pode ser traçada, vai adquirir a forma

atual a partir da combinação de elementos que somente se torna possível em

determinado contexto social.

A transformação da metáfora jurídica e teológica em um conceito central para a

moderna concepção de ciência, a transformação de uma noção vaga e ambígua em um

conceito denso e preciso é obra de um novo ambiente social. O difícil deslocamento do

terreno da teologia para o terreno da filosofia natural é uma tarefa que se inicia em

Descartes, se prolonga na primeira geração da Royal Society e ganha com Newton uma

forma mais precisa. É a partir da imensa repercussão da obra de Newton que o conceito

de “lei natural” se instala definitivamente na concepção de natureza e a metáfora

jurídica é abandonada em favor de uma noção estritamente científica (ZILSEL, 1942,

pp. 267­274). O entrelaçamento desses campos discursivos (teologia e filosofia natural)

é uma marca desse período; com efeito, poderíamos dizer que a divisão entre esses

campos e a sua autonomização também é uma marca desse período, algo que para a

sociedade moderna parece bem estabelecido e evidente. No caso do conceito de “leis

naturais”, esse processo pode ser expresso na visão de Deus como um legislador que, no

momento da criação do mundo, enunciou as leis que regem a natureza e que ela é

obrigada e obedecer.

Depois de se ocupar ao longo de trinta páginas com a descrição dessa trajetória,

Zilsel propõe explicar porque esse conceito surgiu em determinado tempo e lugar e

assumiu determinada forma. Antes de passar à explicação, ele afirma que não é

suficiente apontar para a força da tradição religiosa como fonte de concepções

metafísicas presentes na ciência. Afinal de contas, a noção de “lei natural” não decorre

diretamente da experimentação e da percepção de regularidades nos fenômenos; pelo

contrário, ela é anterior e imprime na observação a busca incessante por regularidades,

por vezes difíceis de constatar, exigindo soluções matemáticas complexas. Se não basta

recorrer à teologia (ou ao domínio das ideias, em geral), como podemos explicar o

surgimento desse conceito? É aí que Zilsel expõe a sua interpretação externalista. É na

configuração do Estado que devemos buscar a solução. A forma política do capitalismo

nascente, o Absolutismo, necessita de uma concepção diferente de lei e fornece o

modelo para a noção de natureza. A própria noção religiosa do “reino de Deus” –

inspiração teológica para a ciência moderna – decorre dessa transformação do Estado

feudal pulverizado e dos laços sociais que o sustentam para o Estado moderno

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centralizado. O domínio da lei racional é uma necessidade do capitalismo mercantil e do

Estado moderno, ele determina a visão de mundo dos filósofos naturais desse período.

Essa explicação macro­sociológica da noção de “lei natural” é um exemplo do projeto

mais amplo desenvolvido por Zilsel. A sua expressão geral será desenvolvida no texto

que passo agora a analisar: The sociological roots of science.

O problema que motiva esse artigo é comum à grande parte da história e da

sociologia das ciências dos anos 1930 e 1940. Por que a ciência só se desenvolve

plenamente na Europa Moderna? Que motivos impedem a realização completa de uma

atividade científica em outras civilizações? Distanciando­se do positivismo, o autor faz

uma importante ressalva:

Estamos muito inclinados a considerar a nós mesmos e a nossa civilização como o auge natural da evolução humana. Dessa pressuposição se origina a crença de que o homem simplesmente se torna mais e mais inteligente até que um dia alguns grandes investigadores e pioneiros apareceram e produziram a ciência como o último estágio de uma ascensão intelectual linear. Portanto, não se percebe que o pensamento humano se desenvolve de maneiras variadas e divergentes – entre as quais uma é científica. Esquecemos como é extraordinário que a ciência tenha surgido especialmente em certo período e sob certas condições sociológicas (ZILSEL, 2000, p. 936, grifo meu).39

De acordo com esse argumento, a principal tarefa da pesquisa histórica das

ciências é investigar quais são essas condições e como elas determinam as formas de

conhecimento necessárias e possíveis. Em Zilsel, essas condições dizem respeito –

como já apontei em relação ao conceito de “lei natural” – à estrutura social do início da

Era Moderna. Dois conjuntos principais de argumentos são mobilizados. Em um plano,

se encontram as profundas mudanças sociais que marcam a passagem do feudalismo

para o capitalismo: as cidades se tornam os centros de produção de cultura; a tecnologia

se desenvolve rapidamente, acarretando na maior utilização de máquinas para a

produção e para a guerra; a competição econômica estimula o individualismo e a crítica

da autoridade constituída; o restabelecimento da atividade mercantil impõe a

necessidade de contar e calcular, obriga a retomada da matemática e da racionalidade

quantitativa para fins práticos; essa racionalidade dissolve os antigos vínculos

39 No original: “We are only too inclined to consider ourselves and our own civilization as the natural peak of human evolution. From this presumption the belief originates that man simply became more and more intelligent until one day a few great investigators and pioneers appeared and produced science as the last stage of a one­line intellectual ascent. Thus it is not realized that human thinking has developed in many and divergent ways – among which one is the scientific. One forgets how amazing it is that science arose at all and especially in a certain period and under special sociological conditions”. Tradução minha.

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tradicionais e cria novas formas de interação social monetizadas, mediadas pelas trocas

mercantis (ZILSEL, 2000, pp. 936­938; CONDÉ, 2015, pp. 37­38). A despeito da

validade dessas asserções – a bibliografia das décadas posteriores aos textos de Zilsel

tem reavaliado, por exemplo, a importância das cidades ou a extensão do renascimento

comercial para a formação do mundo moderno (WOOD, 2001, pp. 21­35) –, o que deve

ser ressaltado é a conexão necessária que o autor estabelece entre as estruturas sociais e

as formas de produzir conhecimento. Apesar de reconhecer que, nesse tipo de leitura,

determinada visão das características da sociedade moderna implicará em uma noção

específica de que tipo de conhecimento pode ser produzido, o que nos importa aqui é

perceber uma estratégia narrativa e explicativa.

Em outra escala, uma mudança complementar criará as demandas sociais e as

condições de emergência da ciência moderna. Classes sociais que mobilizavam

racionalidades distintas vão se colocar em contato e produzir um tipo de prática social

que identificamos com a ciência. Ao analisar as transformações ocorridas entre os

séculos XIV e XVII, Zilsel vai mostrar como o estabelecimento de uma sociedade

burguesa irá romper com certas barreiras sociais e intelectuais que impediam a

realização da ciência. Em especial, sua atenção se volta para as formas de interação

entre três “estratos sociais” produtores de formas diferentes de conhecimento. O saber

da escolástica, encastelado nas universidades e solidamente fundado sobre a autoridade

de autores antigos (Aristóteles, principalmente) e dos “Doutores da Igreja” (Agostinho

de Hipona, Tomás de Aquino). O humanismo renascentista, que se volta contra a

escolástica e propõe uma retomada de certas tradições antigas esquecidas ou proibidas

pelo saber oficial. Sua condição social e profissional difere do primeiro grupo: esses

autores surgem nas cidades italianas nos séculos XIV e XV, muitos são funcionários

letrados das cortes ou da administração pública ou, em um período posterior, literatos

que vivem do patronato de nobres ou famílias abastadas. Da sua posição social deriva –

afirma Zilsel – os seus objetivos intelectuais. A sua sobrevivência depende, em grande

medida, do sucesso dos seus escritos, da força dos seus argumentos; é através desses

escritos que os patronos ampliam sua fama e mantém o apoio às atividades desses

homens. Esses dois grupos, apesar de opostos, compartilham posturas fundamentais. No

âmbito da cisão entre artes liberais e ofícios mecânicos, entre atividades intelectuais e

trabalhos manuais, eles se posicionam fortemente a favor da proeminência das artes

liberais. Essa é também uma divisão de classes, já que o trabalho manual era

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considerado menor, inapropriado para a nobreza e as classes dominantes. O terceiro

grupo é o representante do “saber fazer”, dos ofícios mecânicos. São os artesãos,

marinheiros, carpinteiros, arquitetos, escultores, mineiros, construtores de navios,

barbeiros, cirurgiões, boticários, ourives etc. Esses inventores com pouca educação

formal (muitas vezes analfabetos) desenvolveram diversas técnicas, artefatos e

“trabalharam em silêncio pelo avanço da tecnologia e da sociedade moderna” (ZILSEL,

2000, p. 941)40. Dentre estes, Zilsel (2000, pp. 940­941) destaca um grupo superior de

artesãos que demandava maiores conhecimentos, são os “artistas­engenheiros”, cujo

maior representante é Leonardo da Vinci. Esses seriam os “predecessores imediatos dos

cientistas” (ZILSEL, 2000, p. 942)41.

Pra que os predecessores se tornassem cientistas, era preciso fazer confluir

características desses diferentes grupos; isso é, era necessário o surgimento de um novo

grupo capaz de realizar essa aproximação. A questão é resumida por Zilsel (2000, p.

945):

No geral, a ascensão dos métodos dos trabalhadores manuais às fileiras dos scholars academicamente treinados no final do século XVI é o evento decisivo na gênese da ciência. O estrato superior poderia contribuir com formação lógica, erudição e interesse teórico; o estrato inferior acrescentou espírito causal, experimentação, medição, regras quantitativas de operação, negligência à autoridade escolar e cooperação objetiva.42

Esse é um processo sociológico. As barreiras que precisavam ser rompidas para

produzir esse novo conhecimento eram barreiras sociais. A pergunta inicial (“por que a

ciência só se desenvolve na Europa Moderna?”) se transforma em outra questão: que

condições sociais existiam nesse ambiente social que permitiram o surgimento de um

programa científico pleno? A busca por condições externas ao desenvolvimento das

ideias é o motor da explicação. A “tese de Zilsel” então, é que as relações sociais de

produção no capitalismo tornam possível a emergência da ciência (CONDÉ, 2015, p.

40; ZILSEL, 2000, p. 946). “A ascensão da ciência é normalmente estudada por

historiadores que estão interessados principalmente na sucessão temporal das

40 No original: “worked in silence on the advance of technology and modern society”. Tradução minha.41 No original: “the immediate predecessors of science”. Tradução minha.42 No original: “On the whole, the rise of the methods of the manual workers to the ranks of academically trained scholars at the end of the sixteenth century is the decisive event in the genesis of science. The upper stratum could contribute logical training, learning, and theoretical interest; the lower stratum added causal spirit, experimentation, measurement, quantitative rules of operation, disregard of school authority, and objective co­operation”. Tradução minha.

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descobertas científicas. Mas a gênese da ciência pode ser estudada também como um

fenômeno sociológico” (ZILSEL, 2000, p. 946)43.

Em meio à tão vigorosa oposição e mesmo depois da crise do marxismo no final

da década de 1950, o insight da leitura marxista, que se contrapunha tanto ao

positivismo quanto ao internalismo, foi extremamente importante para o

desenvolvimento da história das ciências. A tese geral de que a ciência, em seus

aspectos mais teóricos ou técnicos, é um produto do meio social se tornaria um dos

princípios da historiografia das ciências nas décadas seguintes e seria reelaborada por

diversos autores e correntes teóricas.

No entanto, os marxistas não foram os únicos que contribuíram para a

apreciação mais cuidadosa dos fatores externos à ciência. Outra grande contribuição

veio dos escritos do sociólogo Robert King Merton, considerado o fundador da

sociologia da ciência nos Estados Unidos. Seu programa de investigação foi dominante

entre o final dos anos 1930 e os anos 1960, justamente no período que se atribui à

vigência da querela entre o internalismo e o externalismo. As famosas normas

mertonianas e o seu papel na formação do ethos da ciência são objeto de debate, crítica

e revisão por parte de estudiosos da ciência ainda hoje. Entre 1938 e 1942, Merton

publicou três textos que rapidamente inauguraram uma nova área de pesquisa e se

tornaram referências obrigatórias para as discussões sobre ciência e sociedade: são eles

Science, technology and society in Seventeenth Century England, A ciência e a ordem

social e A ciência e a estrutura social democrática.

O modelo elaborado por Merton era em grande medida uma tentativa de refutar

simultaneamente a história marxista das ciências e a sociologia do conhecimento

praticada na Alemanha e que teve Karl Mannheim como um dos principais

representantes. Essas duas interpretações possuem em comum a tentativa de relacionar

ordem social e ordem cognitiva.

Em uma série de artigos escritos desde a metade dos anos 1920 e especialmente

no seu Ideologia e utopia, publicado em alemão em 1929, o sociólogo de origem

húngara formulou uma análise sociológica do pensamento e desenvolveu uma teoria da

determinação social do conhecimento explorando a relação entre conhecimento e

existência de forma bastante sofisticada. Mannheim se voltou contra a epistemologia

43 No original: “The rise of science is usually studied by historians who are primarily interested in the temporal succession of the scientific discoveries. Yet the genesis of science can be studied also as a sociological phenomenon”. Tradução minha.

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tradicional e sua forma de interpretar o conhecimento de forma independente do seu

contexto de produção; tentou demonstrar que o conhecimento não se desenvolve de

forma autônoma a partir da “natureza das coisas” ou de uma “lógica interna”, mas que

sofre influência decisiva de fatores externos, inclusive no seu conteúdo, alcance e

intensidade (MANNHEIM, 1986, pp. 289­290). Como sabemos, Mannheim preservou

as ciências naturais dessa leitura, que se aplicaria ao pensamento social, às teorias

políticas, às “ciências culturais” (na terminologia alemã) e à filosofia. No entanto,

apontou para as limitações na epistemologia praticada no mundo germanófono dos anos

1920 e 1930 – criticando as suas pretensões fundacionalistas – e apontando um caminho

para a investigação sociológica do pensamento. Para Karl Mannheim, era ingênua a

pretensão da epistemologia de se constituir como um conhecimento anterior à ciência,

que lhe ditaria os limites e lhe estabeleceria as bases. A epistemologia está sempre

atrasada e se constrói a partir dos princípios valorizados por determinado conjunto de

conhecimentos. Ela é a justificação filosófica a posteriori (ÁVILA, 2012; MAIA, 1992,

2013; MANNHEIM, 1952, 1986).

A distinção entre sociologia da ciência e sociologia do conhecimento não é

apenas uma questão semântica. Em 1937, Merton publicou um artigo sobre a sociologia

do conhecimento na revista Isis. Nesse texto, o sociólogo recenseia uma série de livros

sobre o tema (embora concentrado nos trabalhos de Mannheim), fazendo­lhes severas

críticas. Essa perspectiva estaria levando as implicações epistemológicas da

dependência do conhecimento em relação à posição social a um “nível excessivo e

estéril” (MERTON, 2013, p. 95). Tal programa – indica Merton, recorrendo a um

argumento que seria repetido ao longo do século XX – terá que lidar com o problema da

verdade da própria perspectiva. “Como pode então Mannheim reivindicar validade para

seu próprio pensamento?” (MERTON, 2013, p. 105). Se se afirma que todo pensamento

social é dependente do grupo social que o gerou e corresponde a uma racionalização dos

interesses desse grupo, como garantir a verdade dessa afirmação? “A racionalidade

circular dessas doutrinas é clara” (MERTON, 2013, p. 98). Alcançamos assim o que

imagina ser o ponto fraco de todo relativismo, a ausência de um ponto axial exterior ao

discurso no qual ele possa estar fundado, que possa garantir­lhe sustentação. Esse

critério fundacionalista, no entanto, é justamente aquilo que a sociologia do

conhecimento (e muitas outras abordagens que compartilham as premissas “relativistas”

ou “historicistas”) toma por problemático.

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A disciplina “fundada” por Merton, por sua vez, não pretendia tornar o

pensamento objeto de investigação sociológica. O principal pressuposto dessa

sociologia da ciência é examinar como as diferentes ordens sociais interferem no ritmo

do desenvolvimento da ciência (MERTON, 2013, p. 159). A ciência só teria sucesso

quando praticada em determinadas condições sociais, quando combinada com

instituições que não atentem contra o seu avanço. A compreensão desses processos é

vista como essencial para garantir a construção de um programa de ação em defesa do

desenvolvimento do conhecimento científico autônomo. De modo a realizar esse

objetivo, a ciência era analisada em seus aspectos institucionais, para os quais a

contribuição de Merton e dos seus partidários foi enorme. Em seu estudo seminal sobre

a ciência inglesa do século XVII, originalmente produzido como tese de doutorado na

Universidade de Harvard, o sociólogo explora essa relação entre o desenvolvimento da

ciência e a estrutura social em busca dos elementos que forneceram as condições

culturais e materiais favoráveis à atividade científica naquele contexto (MERTON,

1970).

No que tange ao último conjunto de condições (que já eram objeto de

investigação de “materialistas”), Merton reconhece uma importância relativa – e

quantitativa – das demandas técnicas, econômicas e militares para o direcionamento da

ciência. “De modo geral, entre 30 e 60 por cento das pesquisas da época [o século XVII

inglês] parecem ter sido, direta ou indiretamente, influenciadas desse modo”

(MERTON, 2013, p. 90). Seguindo bastante de perto a correlação aventada por Boris

Hessen entre problemas técnicos e problemas científicos e desdobrando alguns

apontamentos indicados em The social and economic roots of Newton’s Principia ao

longo de vários capítulos do seu livro, Merton enfatiza também a distância entre as

conclusões do físico russo e as suas, quando lidando com questões muito semelhantes.

A racionalização que permeia o capitalismo, defende o sociólogo, é um estímulo à

ciência e à tecnologia que está ausente de outros tipos de sociedade (MERTON, 1970,

p. 142­143). Nessa passagem, Merton não se refere diretamente à URSS, mas a

necessidade de marcar o limite da influência do “provocativo ensaio” de Hessen no seu

próprio trabalho indica a plausibilidade dessa inferência.

Além da clara diferença ideológica (ou por causa dela), há uma substancial

diferença de interpretação. Em primeiro lugar, Merton insiste na existência de uma larga

parcela da atividade científica que se desenvolve de forma completamente independente

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das pressões práticas, a “ciência pura” (expressão que o autor ajudou a difundir). Ela

seria estatisticamente dominante e ocuparia uma posição de destaque intrínseca no

desenvolvimento da ciência (MERTON, 2013, pp. 81­91). A hipótese defendida pelos

marxistas, de que a ciência seria totalmente ou predominantemente o fruto de pressões

sociais, é classificada como “extremista” (MERTON, 2013, p. 81). Além disso, em

segundo lugar, mesmo onde a importância dos fatores extrínsecos é reconhecida, a

forma como ela se relaciona com o conteúdo da ciência é substancialmente diferente.

Quanto ao conjunto de condições culturais, que havia sido tratado por autores

que interpretavam a história de forma “idealista”, Merton analisa detidamente a conexão

entre ethos protestante e ciência moderna (as semelhanças com Max Weber são

conscientes e declaradas), tomando como objeto privilegiado a formação da Royal

Society na segunda metade do século XVII44. Trata­se da parte mais original do seu

livro e uma de suas grandes contribuições ao estudo histórico e sociológico das ciências.

A análise detida dos valores que compõem a base teológica da visão de mundo

protestante aponta para uma correlação direta e não acidental com aspectos

fundamentais do espírito científico que emerge na época moderna (MERTON, 1970, pp.

55­79). A combinação de racionalismo e empirismo seria encontrada, articulada e

justificada de modo quase idêntico na religião reformada e na investigação do mundo

natural; a concepção de que o conhecimento de Deus se daria através do conhecimento

do mundo, que é a sua obra, marcava fortemente os escritos de teólogos e filósofos

naturais; a defesa da capacidade individual e do livre exame do texto sagrado contra as

interpretações baseadas na autoridade da Igreja era simétrica à defesa da livre

investigação da natureza em detrimento da autoridade da doutrina aristotélica. A

integração valorativa entre protestantismo e ciência é evidenciada em praticamente

todos os pontos que as definem. Além disso, Merton investiga a filiação religiosa dos

membros da Royal Society (e do “colégio invisível” que a antecedeu) de forma bastante

perspicaz e fundamentada não se contentando apenas com uma mera filiação nominal,

mas observando a ocorrência de aspectos doutrinários nos escritos desses autores

(MERTON, 1970, pp. 112­136).

44 É importante notar que Merton não é meramente um weberiano. A sua sociologia da ciência é bastante eclética e incorpora contribuições metodológicas de diversos autores cujas ideias circulavam em Harvard nos anos 1930, como o italiano Vilfredo Pareto e sociólogo russo, fundador do Departamento de Soiologia da Universidade de Harvard, Ptirim Sorokin (SHAPIN, 1988).

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Essa análise, contudo, é fortemente marcada pela circunscrição da pesquisa aos

aspectos institucionais da ciência. O protestantismo seria um dos responsáveis pelo

aumento do interesse pela ciência e à sua valorização na Inglaterra. A emergência

desses valores daria um ímpeto à investigação do mundo natural, mas não determinaria

a sua forma ou conteúdo (MERTON, 1970; SHAPIN, 1988, p. 595).Eles são a base

historicamente necessária (mas não indispensável) para a emergência da ciência. De

maneira semelhante ao que faria Alexandre Koyré uns poucos anos depois, Merton

considera que a visão de mundo religiosa fornecia uma metafísica adequada para a nova

filosofia natural. A referência bibliográfica comum, que parece ser a fonte dessa

concepção em Merton e Koyré (que aprofunda, refina e complexifica bastante essa

tese), é o livro de Edwin Burtt (1983). Na ética protestante, a ciência encontraria as

suposições básicas na qual pode erigir o seu sistema de conhecimentos. No entanto, a

sua influência se encerra nisso.

Avaliando essa tese, Steven Shapin (1988) desenvolve o argumento de que o

protestantismo desempenhava, na obra de Merton, um papel funcional no

desenvolvimento da ciência; um papel que poderia ser ocupado por outros “fatores

culturais” e que não era exclusivo do ethos protestante. Ao enfatizar o funcionalismo e

o ecletismo dessa abordagem, Shapin tenta proteger Merton do estigma de externalista.

No entanto, essa leitura parece enfraquecer a originalidade da posição mertoniana ao

ignorar deliberadamente a dimensão da integração valorativa entre ciência e

protestantismo.

Na versão mertoniana do externalismo, os fatores externos só podem ser a causa

da dimensão social da ciência. E o papel dessa dimensão social é deliberadamente

restringido: a sociedade funciona apenas como facilitadora ou inibidora do

desenvolvimento de ideias que possuem uma dinâmica própria. Há uma interdição

consciente e explícita das tentativas de utilizar fatores externos para explicar aspectos

internos da ciência (MARCOVICH e SHINN, 2013; MERTON, 2013, pp. 126­145,

SHAPIN, 1988, pp. 594­596). A ciência só é objeto de sociologia naquilo que ela tem

de instituição social. Definida como conhecimento, ela está fora do alcance do

sociólogo, o seu aparato conceitual é da alçada do epistemólogo. Merton não se

preocupa em fornecer uma definição tipicamente sociológica para o conhecimento

científico, aceita aquela formulada pelo positivismo lógico, se posiciona

confortavelmente em relação à divisão entre “contexto da descoberta” e “contexto da

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justificação” como fora estipulada por Hans Reichenbach (ÁVILA, 2012; MAIA,

2013).

Terry Shinn e Pascal Ragouet (2008) descrevem a sociologia da ciência “pré­

kuhniana” derivada dos trabalhos de Merton como “diferenciacionista”. É um tipo de

abordagem que enfatiza a diferença entre a ciência e outras dimensões da vida social,

considerando­a uma entidade epistemologicamente superior. Trata­se de uma sociologia

que compartilha com a ciência muitas pressuposições metafísicas típicas da primeira

metade do século XX. Essa avaliação poderia facilmente ser estendida para setores da

história das ciências praticadas à época. A sua tarefa seria demarcar as diferenças entre

o conhecimento científico e outros produtos intelectuais e investigar as condições

sociais que garantem a manutenção dos valores supostamente necessários para o seu

progresso. Com efeito, a própria discussão sobre as relações entre ciência e sociedade –

quando não pautadas pela via dos benefícios sociais da ciência e da tecnologia, vista

como seu produto direto – seria sintoma de que algo está errado nessa relação. A

sociologia da ciência seria uma espécie de “disciplina de crise”: necessária somente para

explicar o que vai mal, como certas influências sociais conduzem a ciência ao erro,

como determinados tipos de sociedade impedem o avanço do conhecimento (por mais

que, formalmente, se esforcem em promover a ciência) e como restabelecer o virtuoso

caminho da pureza, da separação, da autonomia.

É imbuído desse objetivo que Merton analisa a ciência moderna de modo a

depreender dela o seu ethos, as prescrições morais e técnicas que derivariam dos

métodos da ciência e se estabeleceriam como um costume cuja função seria a de

garantir a eficiência da investigação (MERTON, 2013, pp. 181­185). Como sabemos,

esse ethos é composto basicamente por quatro imperativos institucionais: o

universalismo é a submissão dos enunciados científicos a critérios impessoais de

avaliação e a completa recusa de vincular a fonte de produção de uma alegação de

verdade à sua validade (não pode haver “ciência nacional”, nem “ciência proletária”); o

comunismo é a noção de que as descobertas científicas não pertencem ao cientista que a

nomeia, o conhecimento científico é patrimônio comum de toda a comunidade científica

e de toda a humanidade (o que entra em conflito com o processo de patentes e direitos

autorais que começava a ter um papel importante na época em que Merton escrevia); o

desinteresse, garantido pelo caráter público da ciência e pela responsabilidade dos

cientistas diante dos seus pares, não deve ser confundido com um altruísmo ou com um

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alto padrão moral que supostamente caracterizaria os cientistas, mas é uma norma cuja

função é assegurar a estabilidade institucional; por fim, o ceticismo organizado é uma

estratégia metodológica e existencial de suspensão do julgamento, é o exercício da

dúvida e da imparcialidade diante dos fatos, a negação de suposições a priori

(MERTON, 2013, pp. 181­198).

Assim, tanto os estudos de sociologia histórica quanto as proposições de caráter

mais normativo de Merton visam expurgar das análises histórico­sociológicas sobre a

ciência quaisquer tentativas de atacar o conteúdo da ciência. Não se trata apenas da

circunscrição disciplinar da sociologia e da história das ciências, da divisão social do

trabalho intelectual que traça os limites de determinado campo de investigação; trata­se

também da demarcação simultânea do próprio objeto de pesquisa. O conhecimento

científico não pode ser tratado sociologicamente nem historicamente posto que ele é

independente do seu contexto. Em resumo: a ciência, naquilo que ela tem de essencial,

não é objeto da história.

Esse argumento, tornado mais explícito nos trabalhos de Robert Merton,

acompanha todo o desenrolar do processo de formulação das diretrizes programáticas da

história das ciências na primeira metade do século passado. O momento de cristalização

dessa disciplina se dá sob a égide desse princípio e a própria formulação do vocabulário

do internalismo e externalismo nesse campo é fruto dessa escolha. A esse respeito, faço

duas observações.

Em primeiro lugar, a ideia de uma prática autocentrada e mais ou menos infensa

às perturbações de outros fenômenos não é exclusividade da ciência ou da sua história.

Na literatura, nas artes, no direito e na filosofia, o problema de compreender a relação

entre o conteúdo da produção e o seu contexto teve um papel importante. De forma mais

geral, o trabalho de estabelecimento de fronteiras é vital para a individuação de qualquer

prática cultural. Estipular o que é intrínseco e o que é extrínseco é um mecanismo de

definição generalizado. Isso pode explicar em parte porque o problema adquiriu a

centralidade das discussões teórico­metodológicas da história das ciências precisamente

no momento da sua afirmação no rol das especialidades do saber humano. O discurso

das fronteiras, do interno e externo, é um discurso que lida com uma dupla legitimidade:

a da disciplina (a história das ciências) e a do objeto (as ciências).

No entanto, além da forma genérica do papel da linguagem da diferenciação em

diversas atividades socialmente organizadas, existem as evidentes singularidades que

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marcam cada processo, determinadas pelas especificidades de cada campo. No caso da

história das ciências, falamos da necessidade de afirmação da própria ciência nas

sociedades contemporâneas, a emergência de uma série de discursos que articularam

uma poderosa rede cujo nó central que supostamente mantinha firme a civilização

ocidental era a ciência moderna. A supremacia do cientificismo.

Em segundo lugar (e fruto desse processo de afirmação das ciências no século

XX), a forma assumida pela historiografia das ciências não foi “natural” ou meramente

“inevitável”. Ela é fruto da seleção de um repertório de possibilidades de enunciação. O

que, por sua vez, implica na interdição de certas iniciativas que desviavam desse

projeto. É o caso da já mencionada sociologia do conhecimento de Karl Mannheim e da

epistemologia histórica de Ludwik Fleck. O itinerário dessas propostas e o papel ativo

da afirmação da polarização entre internalismo e externalismo como modos válidos de

análise da história das ciências em detrimento de outras possibilidades narrativas foi

primorosamente analisado em um trabalho recente de Carlos Alvarez Maia (2013). As

tentativas de adicionar historicidade ao conteúdo cognitivo da ciência foram duramente

combatidas, derrotadas e condenadas a um silêncio do qual só foram resgatadas três

décadas mais tarde. Elas ressurgirão a partir da inflexão gerada pelo surgimento do livro

de Thomas Kuhn em 1962 e do “programa forte” da sociologia do conhecimento

científico em meados dos anos 1970.

Apesar da importância dessas contribuições, tomadas como um dos problemas

centrais da análise de Carlos Maia, devemos atentar para os significados da hegemonia

das explicações a­históricas da história das ciências, para os motivos da vigência

daquilo que esse autor chama de hiato historiográfico. A manutenção dessas

interpretações não é um erro histórico, fruto da incompetência dos autores que

produziam no período (nem dos que defendiam a historicidade por não conseguir com

que ela vingasse, nem dos que a negavam). Se uma dimensão mais normativa da teoria

da história não pode se furtar a recriminar essas formas historiográficas (internalistas e

externalistas) por manterem – de forma deliberada ou inconsciente – a historicidade

apenas do lado de fora da ciência ou por se contentarem com uma forma parcial de

historicidade (por exemplo, uma relação direta da produção de conhecimento científico

com a temporalidade dos produtos cognitivos combinada com uma independência em

relação aos “fatores externos”), uma das tarefas de uma história da historiografia é

compreender porque a história das ciências assumiu aquela configuração no período.

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Seria um equívoco negar à história das ciências praticada sob as rubricas de

externalismo ou internalismo a condição de história, seja através da justificativa de que

elas negam a historicidade do seu próprio objeto, seja porque não há uma “comunidade”

dos historiadores da ciência, um circuito profissional de praticantes. Essa postura

empobrece o debate e reforça os argumentos dos que defendem que a história das

ciências não é história, mas um campo à parte epistemologicamente e

institucionalmente, posto que comprometido com os valores do objeto historiado. Ao

reconhecer nessas correntes o estatuto de conhecimento histórico (sem a arrogância de

quem “garante” as condições ou estipula os critérios definidores do estatuto

epistemológico de certa prática intelectual) e avaliar as condições que possibilitaram o

surgimento e a estabilização de certos tipos de discurso sobre o passado das ciências (ou

sobre as ciências do passado, o que não é a mesma coisa) estamos reforçando a

historicidade da própria história, a transitoriedade dos critérios através dos quais se

julga o trabalho historiador.

O vocabulário teórico utilizado pela história das ciências entre as décadas de

1930 e 1970 foi forjado em meio à ampla afirmação da ciência como expressão máxima

da civilização e o seu cultivo como obrigação do Estado, uma noção que crescia no

imaginário ocidental desde meados do século anterior. Corresponde a uma necessidade

de demarcação e criação identitária exigida por setores da sociedade que percebiam na

ciência, cada vez mais, uma dimensão importante da sua constituição e que se

articulavam em torno de um projeto de difusão dessa concepção da ciência e da sua

relevância fundamental. As transformações desse ideal científico após a Segunda

Guerra Mundial – como a percepção do potencial destrutivo da ciência e o

recrudescimento de grupos que se opunham à forma como se organizou o complexo

militar­industrial­científico nos anos subsequentes ao conflito (em especial nos EUA) –

repercutiram de forma mais consequente na historiografia apenas a partir dos anos

196045.

Nesse sentido, no curso de um processo de divisão social do trabalho intelectual,

a história das ciências supre pelo menos duas funções de importância capital para o

projeto de consolidação de certo ideal de ciência. Em primeiro lugar, institucionaliza­se

45 A historiografia do final dos anos 1940 e dos anos 1950 não deixou de referir­se à ameaça nuclear, porém, em geral, sua resposta era pela necessidade de mais história das ciências como forma de educar o público e os decision­makers para reforçar a divisão entre ciência pura e ciência aplicada e, com isso, fazer com que utilizassem a tecnologia da “melhor forma possível”.

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como uma disciplina com um forte interesse na compreensão do papel da ciência na

modernidade ocidental (daí a sua ênfase na revolução científica) e na criação de um

passado que legitimasse o seu lugar privilegiado na paisagem dos saberes. Embora

considerassem científicas quaisquer tentativas de apreender a “natureza” que fossem

(alegadamente) racionais e sistemáticas (como a astronomia das antigas civilizações

babilônicas ou egípcias), esses autores estavam diretamente preocupados com o suposto

salto qualitativo ocorrido na forma de compreender a natureza durante a revolução

científica na Europa dos séculos XVI e XVII, ou seja, no estabelecimento do “método

científico”. Essa história das ciências expressava a profunda crença não apenas na

existência do método científico como também na sua prioridade epistêmica sobre outras

formas de investigação acerca do mundo natural.

Ainda nesse processo, era importante recuperar o viés crítico, aberto e libertador

que a ciência possuía nos séculos XVI, XVII e XVIII, geralmente tratando­o como

essencial à própria definição de ciência e identificando­o com o método científico. No

entanto, trata­se agora de um contexto completamente diferente, de uma configuração

histórica na qual a ciência começa a ocupar o lugar de hegemonia (se não de

monopólio) no interior dos Estados do capitalismo desenvolvido (e na URSS). O

recurso à história da ciência moderna e o reforço da imagem (já há muito transformada)

da ciência como permanentemente dinâmica e aberta a contestações, avessa a

argumentos de autoridade (baseando as suas afirmações em “verdades”), essencialmente

antidogmática, servia para legitimar o seu lugar de fundamento da organização da vida

social. Elas cristalizam, entre o público erudito (mas não só para esse grupo), certos

estereótipos sobre a ciência e os cientistas e se aproximam sobremaneira das narrativas

míticas que julgam destruídas pela ciência que veneram.

Possui também uma função teórica (sobre a qual as posições conflitantes

efetivamente divergem). Nem o internalismo e nem o externalismo se preocuparam em

fornecem uma concepção completa de história ou uma teoria exaustiva da ciência.

Transpuseram para a forma de conhecimento que desenvolviam uma série de conceitos

e valores elaborados em outros ambientes intelectuais (especialmente na filosofia ou nas

próprias ciências, de onde saíram muitos autores que produziram no período),

adaptando­os aos seus padrões intelectuais. Isso não significa que repetiam

acriticamente noções estranhas à sua forma de produção de conhecimento, mas que

compartilhavam essas noções, tomavam como não­problemáticos certos valores em

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relação à ciência. Mais do que isso, a história das ciências era um participante ativo no

processo de consolidação e capilarização de uma determinada imagem de ciência. O

ponto em disputa encontra­se justamente naquilo que esse corpus textual produziu de

mais original: teorias da mudança científica. É o ponto de fuga para o qual convergem

questões de teoria da história, de teoria da ciência e da própria ordem social em torno do

problema da causalidade. Qual a causa de uma nova teoria, de um novo objeto de

pesquisa, de uma nova técnica de medição astronômica? Em suma: qual a causa de uma

transformação histórica? Não é difícil perceber, ao final desse percurso, em que diferem

as interpretações que tem nos ocupado ao longo desses dois capítulos.

Ao ressaltar essa perspectiva, endosso o argumento de que as formas de lidar

com questões de ciência são também formas de encarar a sociedade e as disputas

políticas. Como já afirmei, a história das ciências é sempre um empreendimento

engajado nas causas do seu tempo. Embora as escolhas teóricas sejam por vezes

influenciadas pelas divisões entre os dois grandes sistemas político­econômicos do

século XX, o socialismo e o liberalismo (com o eco das polarizações de outras ordens,

como entre idealismo e materialismo ou entre iluminismo e romantismo), as propostas

não são meras reelaborações das filiações políticas dos seus autores. Para além das

discussões ideológicas, entre a “liberdade individual” do cientista e a necessidade de

planejar o avanço da ciência de acordo com os “interesses da sociedade”, há um grande

consenso ideológico (e metafísico) em torno do cientificismo. Nenhuma agenda política

poderia vingar (talvez sequer ser concebida) sem o apelo à autoridade da ciência.

Parte II: Da Big Science à tecnociência

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3. A comunidade científica como solução política

Conforme aprendemos com a narrativa padrão da historiografia das ciências, a

querela entre o internalismo e o externalismo foi supostamente ferida de morte pela

proposta teórica apresentada por Thomas Kuhn e agonizou até morrer esquecida no final

da década de 197046. De Bourdieu a Latour, as tentativas de teorizar as ciências em

décadas mais recentes têm oferecido alternativas à velha dicotomia, sempre tentando

superar ou ultrapassar a divisão entre externo e interno, considerada superficial e

infrutífera para a compreensão dos fenômenos que designamos por ciência. O que

ofereço aqui, no entanto, não é nem uma descrição do cortejo fúnebre, nem uma

autópsia dos fatores internos e externos. Pelo contrário, minha intenção é perseguir os

seus traços; perceber como eles foram reconfigurados pela historiografia contemporânea

em um momento de profundas transformações no capitalismo, nas ciências e nas formas

de interpretá­las.

Meu ponto de partida é a publicação de A estrutura das revoluções científicas;

com isso, a escolha metodológica está demarcada, pois é a historiografia que se

enquadra na “tradição kuhniana” que será o alvo das análises empreendidas nos

próximos capítulos desta tese. Por “tradição kuhniana” entendo a produção histórica que

– realizando uma leitura eminentemente sociológica da contribuição de Thomas Kuhn –

tomou para si a herança de estabelecer “um papel para a história” na explicação efetiva

das ciências. Como ficará mais claro no decorrer dos capítulos, os historiadores (em sua

grande maioria) não seguiram o modelo de história das ciências delineado na Estrutura,

a obra não se tornou um manual de como abordar o passado das ciências47; não se pode

46 Até os anos 1980, proliferam as análises que consideram a contribuição kuhniana um ponto de inflexão não apenas para a história das ciências, mas para a filosofia das ciências (REISCH, 1991) e para a sociologia das ciências (MARTINS, 1972). A partir da década de 1990, começam a surgir mais fortemente as abordagens que reconsideram o alcance da ruptura efetuada por Kuhn e passam a buscar – como é o caso aqui para a questão dos fatores internos e externos – continuidades com a tradição historiográfica e filosófica anterior (REISCH, 1991; FULLER, 1992; MAIA, 1996). Na seção especial da revista Social Studies of Science dedicada ao cinquentenário da Estrutura, a maioria dos autores ressalta a importância da obra ao mesmo tempo em que a identifica como uma reelaboração (por vezes ingênua) das ideias de Fleck, Polanyi, Conant, Wittgenstein, Koyré ou Peter Winch (Cf. COLLINS, 2012; DEAR, 2012; PICKERING, 2012; TURNER, 2012; SISMONDO, 2012). Há mesmo quem julgue que o principal feito de Kuhn foi colaborar (involuntariamente) com a epistemologia popperiana (SPRINGER DE FREITAS, 1998).

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falar de uma “historiografia kuhniana” do mesmo modo que se fala, por exemplo, de

uma “historiografia marxista”. Por isso a escolha da expressão “tradição kuhniana”, que

deve refletir mais uma inspiração, um tipo de leitura conscientemente enviesado e

seletivo. Que incluí certamente a apropriação de certos princípios metodológicos, mas

que se atém principalmente à proposta de elaboração de uma nova imagem para a

ciência e para o papel da história nesse processo.

Supostamente, essa historiografia recusava a divisão entre internalismo e

externalismo e, principalmente, o lugar secundário reservado para a história das ciências

na estratégia determinada pelo positivismo lógico do Círculo de Viena desde os anos

1920 e 1930; uma posição que a historiografia produzida sob a égide da divisão entre

internalismo e externalismo não conseguiu romper48. Especificamente, tratarei dessa

historiografia a partir de dois livros. No capítulo seguinte deste trabalho, o foco será o

texto de Simon Schaeffer e Steven Shapin, Levianthan and the Air­pump, publicado em

1985. Serão os problemas historiográficos apontados por essa obra que nos servirão de

guia. A partir deles, abrirei espaço pela historiografia das ciências da década de 1980 e

da primeira metade dos anos 1990, inserindo na discussão e na análise autores que

compartilham sensibilidades historiográficas e que forjaram parte importante (talvez

hegemônica) da disciplina nesse período. No capítulo 5, que encerra a Parte 2, realizarei

uma leitura similar tendo como foco o livro Objectivity, de Lorraine Daston e Peter

Galison.

De modo a avaliar a inovação proporcionada pela interpretação kuhniana em

relação ao problema dos fatores internos e externos, seus possíveis contatos com o

modo de produção das ciências no período em que foi escrito e, posteriormente, o

quanto a historiografia que reivindicou a sua herança constituiu também uma ruptura

com essa interpretação, farei uma breve incursão pela contribuição kuhniana. A

intenção aqui não é desenvolver uma interpretação original da Estrutura ou do

momento de sua produção; apenas, de forma mais modesta, retomar alguns dos

argumentos oferecidos por autores que realizaram importantes leituras da contribuição

47 Felizmente, levando em consideração as críticas que Kuhn dirige aos manuais.48 Para esses autores, Kuhn conseguiu derivar diretamente da avaliação das práticas científicas do passado uma nova imagem da ciência, mais “relativista”, embora, simultaneamente, mais “realista”. Seus críticos irão alegar, pelo contrário, que ele partiu de uma concepção filosófica relativista em relação às ciências e tentou aplicá­la ao material histórico (sobre a distinção entre relativismo aplicado e relativismo derivado, cf. OLIVA, 2012).

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de Kuhn à historiografia das ciências, ressaltando aqueles aspectos mais relevantes para

o propósito desta pesquisa49.

Um dos pontos que diversos autores enfatizam – com certa ironia – ao relatar o

surgimento da obra de Kuhn é que A estrutura das revoluções científicas foi concebida

para figurar na International Encyclopedia of Unified Sciences, um projeto editorial

idealizado por Otto Neurath no final dos anos 1930 e organizado primordialmente por

membros do Círculo de Viena que haviam emigrado para a Inglaterra e os EUA com a

ascensão do nazismo na Áustria. O Comitê Organizador (Committee of Organization)

incluía, entre outros, Otto Neurath (editor­chefe), Rudolf Carnap e Phillip Frank. No

Comitê Consultivo (Advisory Committee), nomes como Hans Raichenbach50 e Herbert

Feigl, além de Niels Bohr, Bertrand Russel, Alfred Tarski e Ernest Nagel e outros

importantes filósofos e cientistas da época51.

O ambicioso projeto foi publicado entre 1938 e 1970, ano em que foi

interrompido e permaneceu incompleto. Bem ao espírito do empirismo lógico, a

enciclopédia pretendia contribuir para a compreensão dos mais diversos campos

científicos, da sua história, sociologia e fundamentos filosóficos, além de ditar­lhes um

plano geral de desenvolvimento (REISCH, 1994)52. A estrutura das revoluções

científicas correspondia ao segundo número do segundo volume, dedicado aos

Fundamentos da Unidade da Ciência. Talvez essa inserção explique em parte o

didatismo e esquematismo da obra e também a surpresa do autor, explícita no posfácio à

segunda edição, ao rebater as leituras que consideravam sua aproximação relativista.

Kuhn pensava o seu trabalho como internalista no campo da historiografia e,

49 Como sabemos, a bibliografia sobre Kuhn e, especificamente, sobre a Estrutura, é assustadoramente gigantesca (uma busca por “Thomas Kuhn” no Google Scholar, por exemplo, retorna aproximadamente 51.800 resultados; se usarmos “The structure of scientific revolutions” como palavras­chave da busca, 62.400 resultados. Para efeito de comparação, uma busca por “The logic of scientific discovery” gera 18.600 resultados). Aqui sigo parcialmente os argumentos historiográficos desenvolvidos pelo professor Carlos Alvarez Maia (1996; 2001; 2013), especialmente em dois aspectos: a) o papel desempenhado pela nova forma de gestão estatal da ciência e da tecnologia nos EUA na concepção de história das ciências presente na obra de Thomas Kuhn e b) a consequência de “domesticação” e subordinação da atividade historiadora que essa nova estrutura científica acarretou. Devo muitas das ideias presentes nessa seção aos estudos de Steve Fuller (1992; 1997; 2000) sobre a obra de Thomas Kuhn e sua relação com os problemas da science policy estadunidense do pós­Guerra. 50 Que não foi membro do Círculo de Viena, mas de sua “filial” alemã, o Círculo (ou Escola) de Berlim, e cujas influências decisivas no programa do positivismo lógico são inegáveis.51 A lista completa dos membros foi consultada na edição norte­americana de 1970 de A estrutura das revoluções científicas. Cf. KUHN, 1970.52 O projeto da enciclopédia foi sempre inconstante, repleto de atrasos, interrupções e toda ordem de problemas. Ele nunca conseguiu se firmar como uma série coerente de publicações, a maioria do que foi produzido acabou tendo vida própria na forma de monografias (como foi com A estrutura das revoluções científicas).

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filosoficamente, como uma continuidade em relação ao projeto do positivismo lógico,

embora seguindo uma direção diferente53.

A leitura da obra de Kuhn como um manifesto revolucionário em favor de uma

imagem de ciência diametralmente oposta à oferecida pelo empirismo lógico foi

formulada à revelia do autor. Essa é, obviamente, uma chave de leitura possível – e não

temos nenhuma razão para atribuir ao próprio Kuhn qualquer tipo de prioridade

interpretativa sobre a sua obra, a auto­exegese é uma avaliação entre outras – que serviu

para ancorar as pretensões de ruptura da geração subsequente à de Kuhn (especialmente

a sociologia do conhecimento científico e a “guinada pragmática” da filosofia da

ciência)54. A contribuição original e transformadora da teoria kuhniana da ciência não

pode ser descartada. Neste trabalho, a obra de Kuhn é tomada como um ponto de

inflexão, uma abertura para novas formas de investigação histórica das ciências que, ao

mesmo tempo, traz consigo marcas de velhas formas supostamente abandonadas. A

dinâmica histórica permite o convívio, nem sempre pacífico, de continuidades e

rupturas. Como conceber a história sem encarar a presença das tradições mortas –

sempre apropriadas, reelaboradas – a oprimir o cérebro dos vivos?

Tão importante quanto perceber a inserção da Estrutura em um poderoso projeto

intelectual é apontar as condições históricas da sua produção. Perceber a combinação

entre a tradição filosófica do positivismo lógico e as profundas transformações sociais

do período pós­guerra talvez ajude a compreender a posição ambígua de Thomas Kuhn,

a tensão presente na sua obra que possibilitava leituras tão díspares.

O livro de Kuhn foi gestado nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial e

nos primeiros anos da Guerra Fria, quando a forma geral do capitalismo consolidava sua

feição keynesiana. A reestruturação dos Estados nos países centrais buscava soluções

tanto para a falência do liberalismo clássico (experimentada duramente durante a crise

dos anos 1930), quanto para a alternativa comunista que assomava no leste (DAHL e

LINDBLOM, 1971). Assim, o que se seguiu foi uma combinação de Estado, mercado e

instituições democráticas que variou de formas de “liberalismo embutido” até bem

53 A correspondência trocada entre Carnap e Kuhn, por ocasião do convite para contribuir para a Encyclopedia of Unified Sciences, mostra como o principal filósofo do Círculo de Viena concordava com grande parte da teoria da ciência esboçada na Estrutura (REISCH, 1991). 54 Steve Fuller (1992) traça brevemente a trajetória dessa interpretação a partir da primeira resenha publicada sobre a obra de Kuhn, ainda em 1964. Muitos autores destacaram a contrariedade de Thomas Kuhn em ter sido tomado como precursor do construtivismo, da sociologia do conhecimento científico e dos science studies (CONDÉ e OLIVEIRA, 2004; GOLINSKI, 2005; ZAMMITO, 2004).

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sucedidas experiências de Estados de bem­estar social, conferindo taxas elevadas de

crescimento aos países desenvolvidos com relativa distribuição da riqueza em

praticamente todo o mundo desenvolvido. Essa forma “híbrida” de organização política

e econômica dos Estados teve também impacto nas Políticas de Ciência e Tecnologia.

Com efeito, a ciência desempenhou um papel fundamental no sucesso da manutenção

do bom desempenho da economia capitalista global no período e também se beneficiou

desse crescimento. Segundo Carlos Alvarez Maia (2013, p. 41): “Uma fórmula que

resume bem as mudanças historiográficas nesse quadro seria: ‘existe uma história das

ciências para 0,2% do PIB e outra para 2,7%’”.

O novo pacto entre ciência e Estado – formulado nos EUA ainda em meados dos

anos 1940 e largamente exportado – foi tão bem sucedido porque conseguiu sintonizar­

se com a virada em direção a um Estado de bem­estar social, no qual o confortável

crescimento permitia financiar a ciência a taxas crescentes baseado na confiança de que

ela proporcionaria ainda mais bem­estar, sem exigências imediatas. Em um livro

marcado pelo excessivo otimismo em relação ao papel da ciência (não apenas na criação

de “produtos” capazes de resolver os problemas sociais, mas na forma de organização

da ciência como modelo que torna obsoletas as instituições democráticas modernas), o

cientista político Don K. Price afirma que “a ciência está começando a alterar a relação

básica entre o poder político e econômico” (PRICE, 1965, p. 24)55.

Apesar dessa confiança, é preciso notar que o monstruoso aparato científico­

militar­industrial montado pelos EUA para o esforço de guerra gerava todo o tipo de

sentimento duvidoso, desde o orgulho nacionalista até o pânico das teorias da

conspiração caipiras56. Obviamente, essas reações não eram sem propósito. Os

acontecimentos de Auschwitz e Hiroshima dependiam diretamente da participação de

cientistas e engenheiros. No mesmo ano que A estrutura das revoluções científicas é

publicada, a Crise dos Mísseis de Cuba reacende nos corações e mentes de todo o

mundo a paranoia nuclear e o medo do holocausto global pelas mãos dos governos

armados de tecnologias de destruição em massa57.

55 No original: “science is beginning to alter the basic relation of political and economic power”. Tradução minha. 56 Lembremos, por exemplo, da adaptação da Guerra dos Mundos por Orson Welles, que levou milhares de pessoas, que acreditavam estar ouvindo a transmissão real de uma “invasão marciana”, à histeria coletiva em 1938.57 O historiador Eric Hobsbawm resumiu formidavelmente esse espírito: “Nenhum período da história foi mais penetrado pelas ciências naturais nem mais dependente delas do que o século XX. Contudo, nenhum

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Depois da guerra, essa imensa estrutura foi mantida e redirecionada para a

pesquisa básica em praticamente todas as áreas, com óbvia predileção para “setores

estratégicos”. A Guerra Fria foi decisiva para manter essa mentalidade e sustentar essa

agenda política. O principal documento para compreender esse processo de

reorganização no âmbito das Políticas de Ciência e Tecnologia é o chamado “Relatório

Bush”, encomendado diretamente pelo presidente Franklin D. Roosevelt ao físico e

engenheiro Vannevar Bush ainda em 1944, já com o objetivo de planejar o

direcionamento dessa estrutura após o fim da guerra (CASTELFRANCHI, 2008, pp.

29­36; STOKES, 2005, pp. 16­25). Quando da encomenda, Bush ocupava uma

importante posição na administração e formulação de Políticas de Ciência e Tecnologia

e já estivera à frente de diversas instituições de pesquisa ligadas ao governo. Durante a

Segunda Guerra, ele foi um dos responsáveis por formular as diretrizes que

aproximaram pesquisa científica e esforço bélico, ocupando um papel decisivo no

Projeto Manhattan e dirigindo o Office of Scientific Research and Development

(Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento Científico). Suas credenciais e sua posição

privilegiada o tornavam apto para uma tarefa de tamanha envergadura. Mobilizando o

aparato que estava ao seu alcance, Vannevar Bush instituiu comissões que o ajudaram a

compor o relatório.

Obviamente, o sucesso dessa empreitada não pode ser atribuído exclusivamente

à competência do Dr. Bush ou da sua equipe, mas às condições históricas singulares que

conformavam as Políticas Públicas de Ciência e Tecnologia após a Segunda Guerra

Mundial.

Sugestivamente intitulado Science – The endless frontier, o relatório ficou

pronto em julho de 1945, depois da morte do presidente Roosevelt (foi entregue ao seu

sucessor, Henry Truman) e poucos meses antes do fim da guerra. De forma exemplar,

ele sintetizou a mentalidade científica do período e definiu as linhas gerais da Política

de Ciência e Tecnologia que seria seguida pelos EUA e copiada por vários países do

Ocidente. Uma análise desse importante documento me parece útil para enraizar o livro

de Thomas Kuhn em sua historicidade; afinal, é contra esse pano de fundo que ele

emerge e ganha notoriedade. O objetivo não é a comparação desses dois textos, tão

distintos nos seus objetivos, públicos, espaços de circulação e apropriação, mas uma

período, desde a retratação de Galileu, se sentiu menos à vontade com elas” (HOBSBAWM, 2006, p. 504).

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avaliação das visões de ciência que eles apresentam. Se, em grande parte, o trabalho de

Kuhn pretendia utilizar a história das ciências contra a visão dominante de ciência à

época, não só nos debates filosóficos, mas entre cientistas e no “senso comum”; se, da

mesma forma, tal conceito de ciência tinha “implicações profundas no que diz respeito à

sua natureza e desenvolvimento” (KUHN, 2001, p. 20), devemos perceber essa imagem

de ciência em sua expressão política mais efetiva.

Nesse sentido, o texto do Dr. Bush não pretende apresentar nenhuma grande

novidade no que tange especificamente à imagem da ciência58. Ele capturou ideias

relativamente consolidadas e se aproveitou de um momento extremamente propício.

Yurij Castelfranchi caracteriza esse personagem como um dos principais representantes

da “visão cowboy” da ciência. Um modelo no qual “cabe ao Estado estimular a abertura

de novas fronteiras do conhecimento científico, enquanto a iniciativa privada tem o

papel de colonizar os novos faroestes cognitivos e torná­los produtivos”

(CASTELFRANCHI, 2008, p. 29)59.

Um golpe certeiro. O presidente dos Estados Unidos da América, o país que saiu

da Segunda Guerra Mundial como o mais poderoso do mundo, entregou­lhe de bandeja

a oportunidade para que ele, Bush, colocasse a ciência no centro desse império. De

maneira quase inocente, o presidente Roosevelt pergunta, na carta que solicita o

relatório: como a experiência acumulada pelos institutos de pesquisa criados para a

guerra poderia servir, em tempos de paz, para incrementar a saúde da Nação, gerar

novos empregos e elevar o padrão de vida (ROOSEVELT, 1944)? Ora, tudo que uma

pessoa na posição de Vannevar Bush poderia querer se realizava e a resposta não

poderia ser outra: dê­nos o recurso que a ciência fará o resto! Para isso, no entanto, era

preciso recorrer a uma poderosa retórica, já há muito versada em cantar a superioridade

da ciência e dar­lhe nova roupagem. Não era preciso, a aquela altura do século XX, criar

novos argumentos para convencer quem quer que fosse que a ciência era importante e

poderosa e que o progresso científico era essencial para o bem estar da população e a

segurança nacional. O que era preciso era criar um argumento inescapável que

mostrasse como a ciência era uma responsabilidade social direta do Estado e,

58 De acordo com David Hollinger (1990, p. 902), “Bush was merely codifying two popular beliefs that dominated American discourse about science and society in the 1920s and 1930s”. Poderíamos estender esse argumento e afirmar que Bush manipulava argumentos muito mais antigos e geograficamente difusos presentes na “tradição Ocidental”. 59 O vocabulário do faroeste já estava presente nos documentos que compõem o Relatório Bush, com referências aos “pioneiros” e as “fronteiras” (ROOSEVELT, 1944; BUSH, 1945).

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simultaneamente, como não se poderia interferir na autonomia da pesquisa científica;

isso foi feito de maneira irretocável.

A ciência deveria ser maciçamente financiada pelo Estado seja pela formação de

instituições próprias (no caso americano, muitas delas ligadas ao Departamento de

Defesa e ao Pentágono) ou pelo apoio à iniciativa privada (universidades e institutos de

pesquisa). Seu desenvolvimento ocorre de maneira lenta e desinteressada por meio da

pesquisa básica (qualquer semelhança com o ethos mertoniano não é coincidência). O

estudo de temas e fenômenos aparentemente distantes da experiência cotidiana pode

trazer benefícios inesperados e deve ser preservado. A liberdade de pesquisa e a

autonomia dos pesquisadores é um valor supremo. O progresso da ciência é fruto da

atividade livre de intelectos livres, trabalhando em áreas de sua própria escolha e

predileção. Além disso, o incentivo deve ser constante para que as novas gerações

ingressem, em número cada vez maior, em carreiras científicas. A pena para o

desrespeito a esses princípios poderia ser altíssima, colocando em risco a soberania e a

segurança nacional e, em última instância, o futuro da humanidade; afinal, “sem

progresso científico nada que for conquistado em outras direções poderá assegurar

nossa saúde, prosperidade e segurança enquanto nação no mundo moderno” (BUSH,

1945).

Outro ponto fundamental é a cadeia linear seguida pelo desenvolvimento da

ciência. A pesquisa básica leva à ciência aplicada e essa leva à tecnologia. Ao travar a

busca desinteressada e curiosa pela verdade, onde quer que ela leve, interrompe­se o

fluxo natural do desenvolvimento que tem, no seu extremo, os avanços necessários à

saúde, à indústria, etc. Para garantir o bem­estar público, a ciência deve ser preservada e

incentivada em seu percurso de desenvolvimento. O determinismo do relatório é

impressionante, com sua insistência na relação automática entre as três “fases” do

desenvolvimento científico e delas para a promoção do bem comum. A citação seguinte

é bastante representativa do tom da argumentação e do seu conteúdo:

Os avanços na ciência, quando colocados em prática, significam mais empregos, salários maiores, jornadas de trabalho menores, colheitas mais abundantes, mais tempo para a recreação, para o estudo, para aprender a viver sem o trabalho mortalmente fatigante que tem sido a sina do homem comum há eras. Os avanços na ciência também trarão padrões de vida mais elevados, levarão à prevenção ou à cura de doenças, permitirão a preservação dos nossos recursos naturais, que são limitados, e nos darão meios de nos defender de agressões. Mas para atingir esses objetivos – garantir um alto nível de emprego,

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manter uma posição de liderança mundial – o fluxo de novos conhecimentos científicos deve ser contínuo e substancial (BUSH, 1945).

Para que o automatismo derivado dessa concepção não acarretasse em um

controle direto da atividade científica por parte da burocracia estatal desejosa de novas

aplicações práticas dos avanços científicos em ritmo cada vez maior (o que geraria, por

sua vez, índices cada vez maiores de frustração com a incapacidade da ciência de

responder na velocidade necessária aos incessantes problemas sociais), era preciso

limitar o controle externo ao mínimo possível60. A proposta de Vannevar Bush prescreve

a criação de um órgão central de administração da pesquisa científica controlado pelos

próprios cientistas (chamada no relatório de National Research Foundation e que seria

criada, depois de uma intensa disputa política travada no parlamento americano, sob o

nome de National Science Foundation [NSF]). Carlos Alvarez Maia (2013) mostra

como essa disputa, que se arrastou ao longo de cinco anos, gira primordialmente em

torno do poder de decisão no interior da futura NSF61. O desenrolar desse processo

evidencia “a difusão do mito da ciência ‘pura’, no qual a ciência teria um crescimento

dependente só de seus parâmetros internos” (MAIA, 2013, p. 44). E o autor prossegue,

afirmando que:

Esse mito traz como corolário uma ciência ‘neutra’, que não deveria sofrer coerções sociais. Decorre daí a ação política dos cientistas em luta corporativa pelo poder de gerir sua autonomia. Nessa luta, os cientistas atuam sob o modelo de uma ‘comunidade’: uma fraternidade de iguais (MAIA, 2013, pp. 44­45).

A comunidade científica deve ser “protegida” da sociedade, que aparece apenas

como uma fonte de atrasos para o avanço da ciência. Qualquer intromissão de não

cientistas nos assuntos da ciência é visto como potencialmente danoso ao progresso que

os cientistas tão diligentemente lutam para atingir em benefício dessa mesma sociedade

(HOLLINGER, 1990, p. 902).

Um exemplo bem acabado dessa visão apareceu na revista Science em sua

edição de janeiro de 1961. The moral un­neutrality of science, transcrição de um

discurso proferido por Charles Pierce Snow (famoso por sua reflexão sobre as “duas

60 A discrepância entre as promessas de progresso ilimitado e a capacidade limitada da ciência em fornecer respostas efetivas levou a muito descontentamento e frustração em certos setores sociais. Nas ocasiões mais delirantes, às suposições de que “o governo” ou “os militares” mantinham em segredo as realizações tecnológicas relevantes (armamentos absurdamente poderosos, vírus mortais e coisas do gênero). 61Segundo Donald Stokes (2005, p. 86): “o projeto organizacional de Bush foi derrotado, ao passo que a sua ideologia triunfou”.

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culturas”) na reunião anual de 1960 da American Association for the Advancement of

Science (AAAS)62. O tom do texto é o da polarização entre os cientistas (“o grupo

profissional mais importante do mundo atual” [SCIENCE, 1961, p. 256]63) e o “resto

do mundo”. O seu objetivo é retirar os cientistas da posição subalterna de “soldados sem

uniforme” no sistema de Pesquisa & Desenvolvimento da Big Science eivada pelas

tensões da Guerra Fria e colocá­los no topo da cadeia de comando. Esse período é

marcado pelos debates em torno das atribuições de autoridade e poder decisório no

âmbito da pesquisa científica. De um lado, alguns setores do establishment político e

econômico – diante da centralidade da ciência nos projetos de poder dos Estados

nacionais – passam a considerar a ciência “importante demais para ser deixada aos

cientistas” (CASTELFRANCHI, 2008, p. 36). Do outro lado, os cientistas buscavam

operações discursivas que legitimassem a sua autonomia e a sua autoridade exclusiva

para legislar e julgar sobre temas de ciência. A transformação do cientista (e do físico,

em especial) em “recurso militar” e a subsequente sujeição à regras externas de conduta,

à disciplina militar de obediência e hierarquia, seria um abandono (imperceptível) da

plenitude da vida científica. Embora Snow enfatize que não há distinção conceitual

entre produzir armas de destruição em massa ou medicamentos – a diferença é

estritamente moral (SCIENCE, 1961, p. 258)64. A estratégia que o autor emprega é

uma aguerrida defesa da disciplina moral dos cientistas que dispensaria qualquer tipo de

controle externo65. São duas as fontes dessa moral: a busca da verdade como motor da

investigação e, uma vez bem sucedida essa busca, a certeza do conhecimento66. Tudo

que a sociedade deve fazer em retribuição pelo gesto abnegado de altruísmo – além do

pagamento de vultosas somas de dinheiro público – é simplesmente deixar com que os

cientistas resolvam por si mesmos como gerir os seus recursos.

62 Sobre o papel da AAAS na domesticação da história das ciências nos EUA, ver MAIA, 2001. Os cientistas radicais dos anos 1970, de modo a marcar o caráter elitista e corporativista dessa instituição, apelidaram­na de AAA$ (LÉVY­LEBLOND e JAUBERT, 1973, p. 20). 63 No original: “the most important occupational group in the world today”. Tradução minha.64 Esse ponto ecoa a seguinte questão: existe moral dos cientistas, mas não moral da ciência.65 Um exemplo curioso (para nós, pelo menos) que Snow utiliza para defender a virtude dos cientistas é a sua convicção de que os cientistas se divorciam menos do que outros grupos profissionais com o mesmo nível de educação e renda (SCIENCE, 1961, p. 256)66 Aqui, Snow recorre a um procedimento logicamente inconsistente (especialmente para alguém tão imbuído de cientificismo), mas sociologicamente recorrente e revelador: a passagem da denotação à prescrição. Mesmo que aceitemos que os cientistas sejam capazes de enunciar verdades sobre certos aspectos da realidade, não teremos nenhuma garantia lógica que essa verdade nos ajude a agir sobre a realidade. Essa conexão só funciona no interior de uma cultura cientificista, em que a moral é percebida como decorrente da “verdade” e essa, por sua vez, é independente da moral.

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Apontar para a relação entre a mitologia cientificista da “comunidade” e a

posição política da ciência nos EUA do pós­guerra é fundamental para uma

compreensão historiográfica da obra de Kuhn (e terá um papel relevante no problema

dos fatores internos e externos, com os quais estamos preocupados aqui).

Outra fonte importante para a compreensão do ambiente no qual é forjado o

discurso kuhniano sobre as ciências é a sua atividade docente no interior do programa

de General Education in Science da Universidade de Harvard. Foi através desse

programa que Kuhn afastou­se da sua formação original (nessa época ele já finalizava o

seu doutoramento em física), teve contato com a história das ciências e desenvolveu as

ideias que dariam origem à Estrutura (que ele chega a descrever, defensivamente, como

“uma tentativa de explicar a mim mesmo e a amigos como me aconteceu de ter sido

lançado da ciência para a sua história” [KUHN, 2001, p. 10]). Esse novo plano de

ensino de ciências foi elaborado sob o comando do químico, historiador da ciência,

administrador e policy maker James Bryant Conant67. Ao mesmo tempo em que a

proposta de uma nova Política de Ciência e Tecnologia era elaborada, uma tentativa de

transformação na educação científica no ensino superior dos EUA reforçava o

argumento da centralidade da ciência na promoção de progresso social – a Universidade

de Harvard foi o centro irradiador dessa iniciativa (em grande parte frustrada). Nesse

modelo, todas as formações superiores deveriam receber cursos básicos de ciências para

incutir nas novas gerações uma imagem de respeito e admiração pelas ciências e

determinado conjunto de valores que se supunha ser parte da visão científica de mundo.

Em suma: era preciso imbuir a elite intelectual americana de certo “espírito científico”.

Conant tinha a firme convicção de que o estudo histórico das ciências deveria ser parte

integrante desse esforço de criação de uma cultura científica. Especialmente após a

Segunda Guerra Mundial, essa seria uma das formas de combater o medo e a

desconfiança contra a ciência, fomentando uma atitude positiva. Sabendo que a elite

formada por Harvard seria responsável pelos grandes cargos administrativos nas esferas

pública e privada, Conant pretendia criar “especialistas em julgar especialistas”

67Conant teve uma carreira múltipla e bem sucedida. Foi presidente da Universidade de Harvard entre 1933 e 1953, trabalhou na administração dos laboratórios federais durante a Segunda Guerra Mundial (estando envolvido inclusive com o Projeto Mannhatan), foi enviado para a Alemanha Ocidental nos anos 1950, desenvolveu projetos de avaliação da educação nos EUA e propôs diversas reformas (geralmente de cunho liberal) no sistema educacional. Foi também autor de diversas obras de história das ciências e editor das importantes Harvard Case Studies in the History of Science. Além disso, Conant foi o mentor de Thomas Kuhn na sua transição da física para a história das ciências.

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(CONANT apud FULLER, 2000, p. 23)68. Assim, se tratava de fornecer uma espécie

bastante particular de alfabetização científica, de um tipo que mantivesse os futuros

financiadores da pesquisa a uma distância respeitosa da atividade cotidiana dos

cientistas69.

Segundo Steve Fuller (2000), a teoria da ciência desenvolvida por Thomas Kuhn

relaciona­se diretamente com a sua longa prática pedagógica nesse programa. A seleção

cuidadosa de estudos de caso retirados preferencialmente do período anterior à metade

do século XIX revelava uma tendência a distanciar­se da ciência contemporânea e tratá­

la como mera continuidade de um padrão estabelecido em qualquer atividade digna de

ser adjetivada de científica. As gigantescas diferenças de organização social, impacto

político e mobilização de recursos materiais envolvidas na prática da ciência no século

XVII e no século XX eram virtualmente apagadas. A ciência normal, seja ela praticada

por Newton ou por Bohr, é sempre resolução de quebra­cabeças. Isso não significa que

Kuhn desconsiderasse a existência da Big Science (ele mesmo foi recrutado para um

laboratório militar durante a Segunda Guerra Mundial); ela simplesmente não era levada

em conta como relevante para a forma de produção de conhecimento científico.

A elaboração do conceito de ciência normal parece guardar uma imagem de

ciência como portadora de um modelo de desenvolvimento bastante estável ao longo de

vários séculos, mas que, simultaneamente, adapta­se perfeitamente ao modo de

produção de conhecimento científico do pós­guerra. Assim, uma ciência industrial e

especializada, firmemente apoiada na divisão do trabalho intelectual entre as diversas

comunidades de especialistas, mantém as características “essenciais” que fazem com

que ela um empreendimento tão bem sucedido. Embora a mentalidade científica esteja

sujeita a mudanças radicais por meio das mudanças de paradigma, a estrutura da

comunidade científica permanece. E é a comunidade e não a mentalidade que garante o

sucesso da ciência.

O par conceitual dominante de Kuhn, “comunidade” e “paradigma”, oferece

uma superação bastante limitada para a questão dos fatores internos e externos. O que se

apresenta como alternativa – o “sincretismo” da obra de Kuhn – é uma “sociologia

internalista” (ou uma “história social dos fatores internos”) na qual noções

68 No original: “experts in judging experts”. Tradução minha.69Carl Sagan nos relata a sua experiência com o currículo de educação integral inserido na reforma da Universidade de Chicago no começo dos anos 1950, na qual “a ciência era apresentada como parte integrante da magnífica tapeçaria do conhecimento humano” (SAGAN, 2006, p. 15).

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“irracionalistas” – como fé, compromisso, dogma e conversão – são utilizados para

compreender uma organização e uma dinâmica social que se desenvolve exclusivamente

no interior da comunidade científica70. Politicamente, podemos extrair dessa descrição a

implicação da autonomia radical da comunidade científica (FULLER, 1992, p. 257;

STENGERS, 2002, pp. 13­15). As influências externas seriam acionadas nos momentos

de crise, nos quais, juntamente com o novo paradigma, se configura uma nova

comunidade que é forjada em meio a pressões sociais, culturais, políticas e assimila

questões “externas”. Na Estrutura, Kuhn apenas tangencia esse tema e, de forma não

muito diferente do que encontramos nas descrições de alguns autores internalistas, e

oferece um tipo de justificativa que tem a seguinte estrutura: “os fatores externos

participam de alguma maneira, mas esse trabalho não é sobre eles”. Em um trecho

largamente citado, ele aponta alguns “elementos históricos significativos” que

contribuíram para a crise na astronomia ptolomaica e a ascensão do paradigma

copernicano e afirma que: “numa ciência amadurecida [...] fatores externos [...]

possuem importância especial na determinação do momento de fracasso do paradigma”

(KUHN, 2001, p. 97)71.

Apesar do caráter historiograficamente e filosoficamente relevante do papel

desempenhado pelas revoluções na abordagem kuhniana, é a ciência normal que

desempenha um papel central na produção de conhecimento científico. Nos (geralmente

longos) períodos de ciência normal é que as banais atividades de resolução de quebra­

cabeças permitem um domínio maior do terreno coberto pelo paradigma. É durante

esses períodos que há efetivamente progresso.

Tratando dessa questão no último capítulo da Estrutura, ao apresentar a sua

conhecida concepção “darwiniana” e anti­teleológica de progresso72, Kuhn discute

algumas definições do progresso científico e as suas possibilidades nos regimes normais

70 Essa “sociologia internalista” influenciou decisivamente a configuração do campo da sociologia do conhecimento científico, em especial a primeira geração dos “laboratory studies”, que estudavam etnograficamente o trabalho dos cientistas, focando principalmente naquilo que eles fazem quando fazem ciência – nas práticas que delimitam a “comunidade”. 71 Para Kuhn, esse debate não diz respeito apenas à escolha entre internalismo ou externalismo como eixo explicativo das mudanças científicas, mas também à discussão positivista da distinção entre “contexto da descoberta” e “contexto da justificação”, que Kuhn classifica como “extremamente problemática” (KUHN, 2001, p. 28). O autor retornaria a essa discussão em um artigo do início da década de 1970 no qual tenta esclarecer justamente esse ponto da sua argumentação na Estrutura e coloca no centro do debate a resistência dos “contextos” a um teste empírico efetivamente histórico. Nesse texto, ele volta a afirmar que “outros fatores relevantes [para a escolha entre teorias] se encontram fora das ciências” (KUHN, 2011, p. 344). 72 De uma maneira bastante similar às “conjecturas e refutações” de Sir Karl Popper.

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e revolucionários de atividade científica. Na ciência normal “o progresso parece óbvio e

assegurado” e, mais do que isso, “a comunidade científica está impossibilitada de ver os

frutos do seu trabalho de outra maneira” (KUHN, 2001, p. 205). Isso deriva diretamente

das especificidades da comunidade científica, que lhe garantem maior competência e

eficácia na resolução dos problemas legítimos postos pelo paradigma e, portanto,

capacidade de progredir no interior daquilo que é percebido como prioridade.

Durante os períodos de crise e revolução, a concepção de progresso é bastante

diferente e depende de um recurso à história do campo de conhecimento em questão.

Uma revolução só pode ser percebida como gerando progresso quando, depois de

resolvida, os membros do novo paradigma dominante percebem­no como a única forma

de solucionar uma série de problemas que esse próprio paradigma indica como

relevantes (uma “história reescrita pelos poderes constituídos”, nas palavras de Kuhn

[2001, p. 209]). Retrospectivamente, atribuem às suas realizações a capacidade de

avançar onde seus antecessores estagnaram e traçam uma linha de evolução contínua e

inexorável da sua disciplina desde os precursores (geralmente em algum lugar da

Antiguidade) até os praticantes contemporâneos. A única forma das revoluções serem

vistas como progresso é negando a existência de revoluções tais como Kuhn as concebe

e apelando para a imagem teleológica tradicional de ciência que a sua teoria pretende

substituir. Conforme afirma o autor em outra passagem:

Grande parte da imagem que cientistas e leigos têm da atividade científica criadora provém de uma fonte autoritária que disfarça sistematicamente – em parte devido a razões funcionais importantes – a existência e o significado das revoluções científicas (KUHN, 2001, p. 174. Grifo meu).

Desse modo, Kuhn não vê nenhum problema na manutenção dessa imagem

pelos praticantes de determinada ciência e a justifica pelo seu papel na manutenção da

coesão da comunidade e na sua “utilidade pedagógica” (KUHN, 2001, p. 10). “É pelo

fato de o paradigma não ser objeto de um recuo crítico que os cientistas abordam com

confiança os fenômenos mais desconcertantes”, afirma Isabelle Stengers (2002, p. 14).

O que aparenta ser um jogo equilibrado entre “interno” e “externo” é um juízo de valor

bastante claro: ciência se produz apenas dentro da comunidade funcionando em regime

normal.

É preciso ressaltar também que a alegada superação “sincrética” operada por

Thomas Kuhn não questiona a definição dos fatores. Pelo contrário, a metáfora da

comunidade garante uma delimitação rigorosa daquilo que é do âmbito “interno” e

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daquilo que é “externo”. O paradigma impõe rígidas fronteiras, sempre patrulhadas. O

(pretenso) isolamento da comunidade em relação à sociedade – resultado da forma

específica como ela se configura – deve ser defendido e preservado, pois é o que garante

à ciência a sua capacidade de progresso. Mesmo nos momentos em que estamos diante

de uma situação de acúmulo irreversível de “anomalias” capazes de pôr em xeque a

viabilidade de um paradigma dominante, a especificidade da comunidade científica

justificaria a sua exclusiva autoridade na escolha entre teorias rivais. Kuhn é taxativo

em relação a esse ponto e considera que “a própria existência da ciência depende da

delegação do poder de escolha entre paradigmas a membros de um tipo especial de

comunidade” (KUHN, 2001, p. 210).

A vitória da comunidade científica73, expressão cuja popularização devemos a

Michael Polanyi (e que está ausente do relatório Bush, por exemplo), como conceito

explicativo central é também a vitória da corporação dos cientistas em sua luta por

afirmação e conquista do poder. A escolha de Thomas Kuhn por essa solução entre as

formas possíveis de narrar a história das ciências marca a sua relação com o seu tempo

histórico (MAIA, 2013, pp. 50­53). Considero que essa avaliação reforça a posição da

história da historiografia em sua busca pelas condições de produção do discurso

histórico; especificamente, serve ao argumento que sustento nesta tese e que considera a

história das ciências uma forma de intervenção política na arena pública. Obviamente,

isso não significa que a obra de Kuhn é mera reprodução historiográfica da acomodação

entre esquerda e direita no âmbito do Estado de bem­estar, como uma forma de

“internalismo embutido” que projeta inadvertidamente no passado as questões do

presente. Essas tensões, embora participem da construção da escrita da história, não

estão sozinhas. É preciso considerar que há um gesto ativo de interferência, uma espécie

de consciência de que descritivo e normativo não são tão facilmente discerníveis. E

claro, não há razão para que se deixe de lado o esforço legítimo de escrever o passado

das ciências (se estivermos lidando com um autor sério). Um esforço que só pode se

realizar por meio da mobilização de recursos teóricos, linguísticos e políticos já

disponíveis, que só pode ser pensado enquanto participante de um conjunto

73 A origem da expressão “comunidade científica” é incerta. Alguns atribuem a sua cunhagem ao próprio Polanyi (FULLER, 1992, p. 260). David Hollinger (1990, p. 899) data o seu surgimento um século antes, sendo “comunidade científica” um conceito central na filosofia da ciência de Charles Pierce desenvolvida nos anos 1860 e 1870, embora enfatize o seu desaparecimento do vocabulário das discussões sobre ciência nos EUA até o seu retorno (reconfigurado), na década de 1960, quando se torna uma expressão de circulação corriqueira.

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considerável de normas de conduta (intelectual, diga­se) socialmente estabelecidas

(embora nem sempre com a participação ou anuência de todos os setores sociais) em

meio a amplos processos de resistências, conflitos, negociações, imposições.

Se a leitura que apresentei de Thomas Kuhn parece tão desfavorável à efetiva

historicização do conhecimento científico, o que restou do “papel para a história”?

Como atribuir a esse autor um papel tão significativo na guinada que marcou a análise

das ciências no último quartel do século XX?

Por mais que os esforços de revelar uma continuidade entre a obra de Kuhn e a

filosofia do Círculo de Viena tenham chegado a conclusões importantes e que devem

ser levadas em conta, é fundamental retomar uma leitura “revolucionária” da sua obra.

A tentativa de posicionar a virada em direção às concepções renovadas de ciência em

algum momento dos anos 1970 (ou nos anos 1930, com Fleck e Mannheim) – longe da

influência direta de Thomas Kuhn – era um sinal de maturidade do campo dos science

studies, uma tentativa de ocultar a figura do “precursor” e “andar com as próprias

pernas”. Uma avaliação que tem por objeto a história da historiografia, contudo, não

pode realizar tal operação sob pena de não compreender o papel que a ambiguidade de

Kuhn desempenhou em seus “discípulos”.

Kuhn frequentemente referiu­se à ambiguidade na leitura da Estrutura a um

“mal entendido”, que ele tomava como indício da “comunicação parcial” entre

paradigmas incomensuráveis. Ele indica esse tipo de situação tanto em relação à

filosofia da ciência que o precedeu, quanto em relação aos desdobramentos na

sociologia, na filosofia e na história das ciências que alegavam uma herança kuhniana.

A resposta ao primeiro grupo aparece principalmente quando Kuhn reage às críticas que

lhe foram dirigidas por Sir Karl Popper, Stephen Toulmin, Paul Feyerabend e outros

importantes filósofos da ciência durante o famoso Quarto Colóquio Internacional de

Filosofia da Ciência, em 1965. Nessa ocasião ele chega a “postular a existência de dois

Thomas Kuhn” (KUHN, 2006, p. 156) que teriam escrito dois livros diferentes embora

com o mesmo nome e utilizando as mesmas palavras. Em relação aos seus “seguidores”,

Kuhn parece ainda mais impaciente, considerando muitas das ideias surgidas nas

décadas posteriores à publicação da Estrutura e por ela influenciadas (especialmente o

“programa forte”) como “inadmissíveis”, “desvairadas” e “absurdas” (KUHN, 2006, pp.

115­151; CONDÉ E OLIVEIRA, 2002).

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Não penso que as ambiguidades de interpretação da obra de Kuhn sejam um

mero mal entendido. Não precisaríamos ir muito longe nos estudos linguísticos, na

teoria literária ou nos debates sobre história do livro e da leitura para afirmar a

centralidade do leitor nas práticas de leitura. As possibilidades de leituras diferentes de

um mesmo texto dependem diretamente de quando ele é lido, por quem e em que

condições. Não há uma essência única a ser extraída do texto, uma ideia transferida da

mente do autor para o papel e que de lá só poderia ser retirada pela correta

interpretação74. Dessa forma, não acredito ser possível julgar como maus leitores

aqueles que consideram a obra de Kuhn um ponto de inflexão na sociologia (que, com a

ascensão da comunidade científica ao papel de grande unidade criativa, teria acesso ao

interior da produção de conhecimento científico), na história (cujos argumentos seriam

indispensáveis para a compreensão de uma atividade científica) e na filosofia das

ciências (ela também obrigada a realizar uma “virada historicista” caso quisesse

continuar a entender a ciência).

Pelo contrário, acredito ser necessário entender a leitura que a geração posterior

à Kuhn realizou da sua obra e que permitiu que essa geração se considerasse

representante da “tradição kuhniana” de análise da ciência. Como lidaremos largamente

com a historiografia que se origina dessa tradição, apontarei aqui, apenas brevemente,

como a filosofia e a sociologia das ciências reagiram ao aparecimento de A estrutura

das revoluções científicas e porque esse texto foi considerado relevante nessas áreas.

É na corporação dos filósofos da ciência que a Estrutura causa o primeiro

impacto, ainda nos anos 196075, embora não se tratasse propriamente de um livro de

filosofia das ciências. Era um trabalho que pretendia fornecer subsídios para a

renovação da filosofia das ciências e da epistemologia a partir de implicações teóricas

retiradas da historiografia das ciências produzida nas décadas de 1940 e 1950

(especialmente os escritos de Alexandre Koyré), uma abordagem capaz de modificar a

imagem de ciência corrente à época (KUHN, 2001, pp. 19­22 e 27­28; 2011, pp. 27­44).

Segundo Paul Hoyningen­Huene, um dos mais importantes intérpretes da obra de

Thomas Kuhn, a Estrutura ganhou evidência entre os filósofos justamente por desafiar

74 Do mesmo modo, não precisamos nos alongar na discussão sobre os limites da interpretação. Limites que não são dados pelo próprio texto. Se há, virtualmente, infinitas possibilidades de leitura de um texto é porque as possibilidades de injunção entre o texto, o leitor e o contexto são também, virtualmente, infinitas.75 Vide o já mencionado Quarto Colóquio Internacional de Filosofia da Ciência.

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as convicções estabelecidas pela filosofia das ciências (HOYNINGEN­HUENE, 2013,

p. 24). O autor enumera alguns aspectos, como: a crítica da ideia teleológica e

cumulativa do progresso das ciências; o abandono do método científico como um

conjunto coerente de critérios a partir dos quais é possível a prática da ciência; a

refutação do racionalismo crítico de Popper pela ênfase no caráter “tradicionalista”,

“conservador” e “dogmático” da ciência normal; o deslocamento do agente produtor de

conhecimento científico, que passa da dimensão individual, do cientista para a dimensão

coletiva da “comunidade científica” (HOYNINGEN­HUENE, 2013, pp. 24­25)76.

No entanto, nesse momento, as contribuições kuhnianas não foram assimiladas,

mas atacadas, rotuladas de relativistas, irracionalistas e – o que para nós é muito

relevante – historicistas (LAKATOS e MUSGRAVE, 1979; STENGERS, 2002, pp. 12­

13). Na filosofia das ciências, a obra de Thomas Kuhn é a maior expressão de um

movimento que causaria, nas palavras de Ian Hacking, uma “crise de racionalidade” na

disciplina (HACKING, 2012, p. 59)77. Essa crise seria derivada da incapacidade dos

filósofos de perceberem a ciência como fruto de um processo histórico78. Uma

incapacidade que é decorrente da ênfase na ciência como um conhecimento que possui

acesso privilegiado à realidade e segue certas regras, o método científico, que garantem

o seu isolamento da sociedade. Sem a pretensão de reduzir um conjunto filosófico que é

extremamente sofisticado, podemos afirmar que a ciência era vista como uma entidade

epistemologicamente superior, um conjunto de enunciados objetivos fundados na

observação e pairando sobre a confusão dos assuntos mundanos. Essa imagem era

76 É preciso esclarecer dois pontos em relação a esse argumento. Em primeiro lugar, já apontei acima como vários estudos tem aproximado as concepções kuhnianas daquelas elaboradas pelos empiristas lógicos ou pelos popperianos. Em segundo lugar, outros autores haviam produzidos críticas filosoficamente mais substantivas aos pressupostos da filosofia das ciências e não tiveram o mesmo impacto que Thomas Kuhn. Dez anos antes da Estrutura, em 1951, Quine (uma das grandes influências filosóficas de Kuhn) publicou o seu brilhante ensaio “Dois dogmas do empirismo”, no qual desmonta pacientemente um pressuposto básico da filosofia das ciências desde pelo menos meados do século XIX (transformado em bandeira filosófica pelo Círculo de Viena): a radical oposição entre ciência e metafísica (QUINE, 2010, p. 37­71). O seu trabalho, no entanto, não circulou para além dos ambientes profissionais da filosofia das ciências e áreas correlatas e não provocou escândalo. O impacto de Kuhn parece estar mais relacionado ao que ele propõe (vagamente) do que ao que ele critica. 77 A obra de Kuhn é fruto de um amplo processo de transformação na compreensão das ciências. Não é um evento isolado. Entre outros filósofos preocupados com as implicações filosóficas da história das ciências nos anos 1960, podemos citar Stephen Toulmin, Paul Feyerabend e Imre Lakatos (apesar das evidentes diferenças entre as teorias da ciência desenvolvida por cada um e a relação entre história e filosofia da ciência nas respectivas teorias).78 Esse argumento refere­se muito mais à filosofia das ciências de matriz germânica e anglo­saxã, na tradição que remonta à lógica, ao empirismo e ao pragmatismo. O caso francês, por exemplo, é bastante diverso. Ao sul do Canal da Mancha e Oeste do Reno, a relação entre filosofia e história das ciências, naquilo que se chamou de epistemologia histórica, é mais antiga e mais independente da inflexão kuhniana (fazem parte dessa tradição autores como Bachelard, Koyré, Canguilhem e Duhem).

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incompatível com a noção de historicidade, uma vez que “as filosofias tanto de Carnap

quanto de Popper não levam em consideração nem o tempo nem a história”

(HACKING, 2012, p. 65).

Essa certamente seria uma imagem que agradaria Thomas Kuhn, posto que sua

obra teria atingido o principal objetivo, o de modificar a imagem dominante de ciência

de uma maneira certamente semelhante à descrição do processo de transformação dos

paradigmas. A estrutura das revoluções científicas pode ser lida como uma coleção de

fragmentos históricos que funcionam como anomalias, desvios na imagem cumulativa

do progresso científico, causando uma crise no modo normal de operação da filosofia

das ciências. Desse modo, a geração precedente, presa ao antigo modelo, não seria

capaz de avaliar a profundidade das mudanças que ocorriam, cabendo à nova geração de

filósofos a construção de um novo mundo para que pudessem habitar.

Não devemos levar muito longe a analogia entre a teoria kuhniana do

desenvolvimento científico e a trajetória da sua própria contribuição à filosofia das

ciências79. A insistência nesse procedimento levaria à afirmação, certamente

insustentável, da existência de uma filosofia das ciências funcionando no interior de um

paradigma80. Aqui, lanço mão dessa imagem apenas para reforçar a inflexão causada

nesse campo, a transformação em grande parte das pesquisas realizadas em filosofia das

ciências, que se desviam do seu “curso normal” e passam a ser orientadas de modo a

refutar ou confirmar as teses levantadas na Estrutura81.

É essa a contribuição “revolucionária” de Kuhn (mas não apenas dele) para a

filosofia: a passagem de uma concepção normativa e sincrônica para outra

(pretensamente) descritiva e processual (HOYNINGEN­HUENE, 1992, p. 487). Ian

Hacking, um importante filósofo das ciências contemporâneo, é um dos autores que

parece bastante convencido de que a intervenção de Thomas Kuhn teve um efeito

profundo na filosofia das ciências. “[V]ejam só como nos tornamos historicistas”,

afirma ele, com alguma satisfação, e prossegue asseverando que o “discurso da filosofia

79Outros autores recorreram à metáforas semelhantes, citando a Estrutura como self­exemplifying revolutions (LYNCH, 2012) ou como uma performance do próprio argumento central (JASANOFF, 2012).80 Curiosamente, alguns dos membros influentes do Círculo de Viena tentaram dar uma feição “científica” à sua filosofia.81 Alberto Cupani refere­se à inevitabilidade da obra de Kuhn na filosofia das ciências mesmo depois de passados tantos anos da sua publicação (CUPANI, 2013, p. 13).

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da ciência foi transformado desde a obra de Kuhn. Não mais demonstraremos nosso

respeito pela ciência destoricizando­a” (HACKING, 2012, p. 77).

A relação entre a história e a filosofia das ciências, no entanto, nunca foi tão

próxima e tão consensual como sugeria Hacking; apesar da disseminação,

especialmente nos Estados Unidos, de programas de Pós­Graduação em História e

Filosofia das Ciências a partir dos anos 1970 e de alguns esforços para que se tornassem

uma disciplina unificada. O próprio Thomas Kuhn (2011, p. 45) posicionava­se

favorável à manutenção da separação entre essas disciplinas, sugerindo um aumento na

comunicação entre elas, mas não a sua fusão.

Essa tensão causada pela obra de Thomas Kuhn na filosofia das ciências causou

desconforto no autor, que via nos filósofos interlocutores privilegiados e como o

público preferencial do seu livro (que, não obstante, era um livro de história das

ciências). Em parte devido a esse desconforto, Kuhn passou grande parte da sua carreira

discutindo o seu próprio trabalho com filósofos, refinando seus argumentos a partir de

leituras filosóficas, justificando as suas investigações históricas à luz de uma teoria do

conhecimento mais abrangente (Cf. KUHN, 2006).

A relação de Thomas Kuhn com a sociologia das ciências é sensivelmente

diferente – embora não menos desconfortável e ambígua. Ao citar Fleck, ainda no

“Prefácio” da Estrutura, Kuhn se refere à necessidade de colocar as suas ideias no

“âmbito da Sociologia da Comunidade Científica” (KUHN, 2001, p. 11, grifo meu). Já

no seu famoso posfácio de 1969, ao tentar esclarecer a confusão causada pela

polissemia do conceito de paradigma e isolar a sua ocorrência em dois sentidos

principais, o autor se refere explicitamente a um sentido sociológico do termo, definido

como “toda constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros

de uma comunidade determinada” (KUHN, 2001, p. 218)82. Ao mesmo tempo, apesar

de ter sido educado em Harvard e da sua relativa familiaridade com a discussão

mertoniana sobre a sociologia das ciências, essa tese não parece ter exercido grande

influência sobre a visão kuhniana da ciência83. A forma como Kuhn possibilitou a

82 Podemos também argumentar que o paradigma é a contrapartida epistemológica de um conceito mais claramente sociológico como o de “comunidade científica” (cuja importância para a obra de Kuhn está além de qualquer suspeita). Embora seja a partir desse conceito, como argumentei acima, que Kuhn isola a ciência da sociedade mais ampla, garante a sua autonomia e assegura o caráter “racional” da escolha de teorias. A comunidade científica kuhniana é o que permite à referida “sociologia internalista”.83 Sal Restivo e Randall Collins (1983, pp. 190­191) consideram que Kuhn herdou o funcionalismo de Merton.

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abertura de um novo campo de investigações para os sociólogos – apesar das indicações

apontadas aqui – é algo mais ou menos oblíquo na sua obra. Como sabemos, o próprio

Thomas Kuhn combateu duramente as consequências da abertura que lhe atribuíam

(KUHN, 2006, pp. 133­151; CONDÉ e OLIVEIRA, 2002; OLIVEIRA, 2004). Apesar

de todos esses sinais contraditórios, não é possível negar que a obra de Kuhn

representou uma inflexão na leitura sociológica das ciências84.

Ainda no começo da década de 1970, o sociólogo português (radicado na

Inglaterra) Hermínio Martins chamava a atenção para a disjunção entre a sociologia da

ciência, cuja matriz principal deriva de Robert Merton, e a sociologia do conhecimento,

desenvolvida por Karl Mannheim, e tentava mostrar como a obra de Kuhn – vinda de

fora da sociologia – contribuía para a superação dessa fissura e para a reabertura de

problemas propositalmente abandonados pelos sociólogos (MARTINS, 1972, pp. 13­

19)85. Já neste século, Terry Shinn e Pascal Ragoeut atribuíram à Kuhn o papel de

“autor de encruzilhada”, sendo responsável por empreender um duplo ataque: de um

lado, contra Merton e, de outro, contra o Círculo de Viena. Com isso, Kuhn iria detonar

os fundamentos da perspectiva sociológica “diferenciacionista” – que, como já defini no

capítulo anterior, enfatiza a superioridade epistêmica da ciência e procura explicar os

fatores institucionais e sociais (como o ethos mertoniano) capazes de criar ou preservar

essa especificidade – e fornecer subsídios para a fundação da corrente

“antidiferenciacionista” – que, como sugere o nome, tratam a ciência com uma atividade

humana entre outras, produto da cultura, socialmente construída, sem superioridade

hierárquica em relação às diversas manifestações sociais (RAGOUET e SHINN, 2008,

pp. 47­57).

Assim, a “nova sociologia da ciência” retém alguns pontos da teoria da ciência

de Thomas Kuhn, a saber:

(1) Que as comunidades científicas são complexos inseparavelmente sociais e cognitivos;

(2) Que os cientistas são, tal como todo ator social, arraigados a representações preconcebidas da natureza;

84 Esse ponto foi defendido, de forma independente, por autores escrevendo em situações diferentes, a partir de referenciais teóricos diferentes, com objetivos diferentes e posturas diferentes em relação ao valor da contribuição kuhniana.85 Sua avaliação, no entanto, parecia mais preocupada com o estatuto epistemológico da sociologia, a sua cientificidade, diante da teoria kuhniana (ecoando a distinção entre “ciências pré­paradigmáticas” e ciências “paradigmáticas” e a existência de um paradigma monopolista e excludente como sinal de maturidade de um campo científico).

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(3) Que eles decidem a propósito de sua adesão paradigmática em função de razões externas à lógica e

(4) Que o conhecimento científico não pode escapar das ciências sociais, como tinham proposto os sociólogos funcionalistas (RAGOEUT e SHINN, 2008, p. 56­57)

O mais notório expoente dessa nova sociologia da ciência é o programa forte da

sociologia do conhecimento científico, proposto na segunda metade dos anos 1970 no

âmbito do Science Studies Unit da Universidade de Edimburgo86. Os principais autores

envolvidos nesse projeto ressaltaram o impacto da abordagem kuhniana. Recentemente,

David Bloor reconheceu a publicação da Estrutura como um importante estímulo para a

renovação da sociologia das ciências e afirmou que “Kuhn contou a história da ciência

em termos sociológicos” (BLOOR, 2009, p. 433)87. A melhor caracterização da

herança kuhniana na sociologia das ciências da década de 1970 permanece sendo

Thomas S. Kuhn and Social Science. Essa pequena introdução de Barry Barnes é, ao

mesmo tempo, uma defesa da teoria kuhniana da ciência (especialmente contra as

filosofias de Lakatos e Popper) e um convite à sua utilização na sociologia (não apenas

no estudo das ciências, mas na investigação mais ampla da cultura, do conhecimento e

da cognição). Barnes não parece ter dúvida do papel profundamente renovador

desempenhado por essa teoria.

Muitas teorias do conhecimento são peças morais situadas em um cosmos maniqueísta. A fonte da luz é a experiência; seu agente, a “razão”. A fonte da escuridão é a cultura; seu agente, a autoridade. [...] Verdade, validade, racionalidade, objetividade figuram entre os muitos filhos da luz vestidos de branco; erro e irracionalidade, costume, convenção, dogma e muitos outros estão vestidos de preto. O princípio motor desse drama é o conflito incessante entre as duas forças opostas e irreconciliáveis. [...] Kuhn, no entanto, não é nenhum maniqueísta. (BARNES, 1982, pp. 22­23, grifo meu)88

Não, Kuhn não é maniqueísta e mostra como autoridade, razão, experiência e

dogma são todos elementos que desempenham papéis importantes no desenvolvimento

do conhecimento científico; a boa ciência não se produz sem que se combinem esses

elementos aparentemente irreconciliáveis. A teoria kuhniana – da forma como foi

86 Alguns autores referem­se a esse grupo como Escola de Edimburgo (Cf. PESTRE, 1996; GOLINSKI, 2005)87 No original: “Kuhn told the history of science in sociological terms”. Traduçãominha.88 No original: “Many theories of knowledge are morality plays set in a Manichean cosmos. The source of light is experience; its agent ‘reason’. The source of darkness is culture; its agent authority. [...] Truth, validity, rationality, objecivity are to be seen among the many white­apparelled children of the light; error and irrationality, custom, convention, dogma and many others are dressed in black. The moving principle of the drama is the unremitting conflict of the two opposed and irreconcilable forces. [...] Kuhn, however, is no Manichean”. Tradução minha

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interpretada por Barnes – descreve a ciência como algo que é convencional e,

simultaneamente, é uma forma de conhecimento da natureza. Assim, por exemplo, uma

descoberta científica não é um evento, a revelação de algo que estava invisível ou

escondido, pronto e à espera do cientista; a descoberta é um processo que depende tanto

da natureza (a “coisa a ser descoberta”) quanto da sociedade, que transforma o seu

modo de perceber o ambiente que a cerca. A noção da descoberta como evento, embora

desempenhe uma função na pedagogia científica, estabelece uma violação da história

das ciências89. A sociologia, por meio da análise do tipo de comunidade que realiza a

descoberta, é requerida para dar conta de uma abordagem mais realista das ciências

(BARNES, 1982, pp. 41­45).

Finalmente, quero destacar um ponto que interessa sobremaneira à discussão

encampada nesta tese: o problema das fronteiras da ciência (que nos remete à questão

do internalismo e externalismo). Aqui, o papel da sociologia ganha enorme relevância.

A citação é bastante esclarecedora:

A fronteira entre científico e não científico deve ela mesma ser uma convenção, gerada por processos sociais. Consequentemente, entender onde essa fronteira realmente incide requer não a formulação de qualquer princípio de demarcação, mas antes o estudo empírico daqueles processos sociais que tornam a fronteira visível e a sustentam (BARNES, 1982, p. 90).90

Esse ponto deixa claro o tipo de leitura da obra kuhniana que foi realizado pela

nova sociologia das ciências. Provavelmente, Kuhn tenderia a concordar (não sem

ressalvas) com a primeira afirmação; dificilmente encamparia a segunda afirmação com

os argumentos que lhe subjazem e o projeto sociológico que ela desenha. Essa, contudo,

é uma das novidades da sociologia do conhecimento científico no que diz respeito ao

debate entre internalismo e externalismo, ela problematiza mais frontalmente e mais

profundamente essa divisão, não toma como garantida a separação entre conteúdo e

contexto. Antes, passa a questionar essas categorias.

Para concluir, é importante ressaltar dois pontos. Em primeiro lugar, como

espero ter deixado claro nas páginas precedentes, a formulação kuhniana não apresenta

89 Apesar de notar para a importância da posição kuhniana, Barnes a considera extremamente cautelosa e conservadora, sugerindo que se abandone o conceito de descoberta caso o objetivo seja estudar efetivamente o funcionamento das ciências (BARNES, 1982, p. 45)90 No original: “The boundary between the scientific and the non­scientific must itself be a convention, generated by social processes. Hence to understand where this boundary actually falls requires, not the formulation of any principle of demarcation, but rather the empirical study of those social processes whereby the boundary is made visible and sustained”. Tradução minha.

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mais do que breves sugestões sobre o tratamento sociológico para as ciências. Não há o

desenvolvimento de diretrizes a serem seguidas ou de um programa de pesquisa. O que

Kuhn faz é chamar a atenção para a importância de uma abordagem sociológica do

conhecimento científico, tarefa que será levada a cabo pela geração que surge na década

de 1970. Consequentemente, em segundo lugar, a abertura proporcionada por essa

leitura não bastou para essa sociologia, ela se formou na confluência de diversas

abordagens. A estrutura das revoluções científicas é um marco, um catalisador de um

conjunto de condições intelectuais e históricas disponíveis naquele momento –

obviamente, sem a sua contribuição, o destino dos estudos sociais das ciências seria

bastante diferente.

4. O passado da tecnociência

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101

Neste capítulo, passarei à análise do Leviathan and the air­pump. O objetivo é

perceber como as estratégias narrativas dos autores se conectam a um novo momento na

produção da ciência, como a historiografia responde às transformações que marcaram os

anos 1970 e 1980 e o fim do pacto cristalizado na solução proposta por Thomas Kuhn.

O livro em questão foi forjado nesse ambiente e guarda fortemente as marcas desse

debate. É a mais importante obra historiográfica a incorporar o novo modelo

sociológico desenvolvido a partir daquilo que chamei de “tradição kuhniana”. Steven

Shapin, um dos autores desse livro, fez parte do Science Studies Unit e esteve

diretamente engajado nos debates sobre a sociologia o conhecimento científico. Por

isso, as questões teóricas e implicações políticas desse programa serão analisadas em

mais detalhe ao longo do texto. Como argumentarei adiante, o livro não é uma aplicação

retrospectiva da sociologia do conhecimento científico. Trata­se de uma obra de

história, o que implica uma especificidade que levaremos em conta. Para chegar a essas

questões, começarei por identificar certo mal­estar intelectual em relação às ciências

que surge no final da década de 1960 e se fortalece nos anos 1970.

Uma das condições históricas que contribuíram fortemente para o surgimento de

disciplinas (ou a reconfiguração de disciplinas mais antigas) que se organizam em torno

de uma nova visada teórica em relação às ciências – como a sociologia do conhecimento

científico, os science studies e certa vertente da história das ciências – foi o crescimento

(em quantidade e em intensidade) de atitudes críticas ao modo de produção de ciência

após a Segunda Guerra Mundial. E o pior, essas críticas vinham de grupos sociais

anteriormente alinhados ao establishment científico: filósofos, intelectuais e até

cientistas naturais. Essas críticas, por sua vez, identificavam uma mudança na estrutura

das ciências com a formação dos complexos industriais­militares­científicos que

caracterizaram o surgimento da Big Science e direcionam­se a essa estrutura91. No

entanto, essa crítica não pretendia defender a neutralidade do conhecimento científico

em face dos interesses militares, geopolíticos ou econômicos – como fizeram Vannevar

Bush ou C. P. Snow. Com efeito, seu interesse é o oposto disso, uma tentativa de

91 Do ponto de vista do “imaginário”, há também uma frustração evidente na geração criada na cultura científica do pós­guerra. Todas as imagens promissoras de maravilhas tecnológicas incessantemente bombardeadas pela indústria cultural de massa (da Inteligência Artificial ao Teletransporte) não se cumpriram e pareciam não figurar mais no horizonte de expectativa. Obviamente, elas tiveram um efeito importante de manter altas as taxas de adesão ao mito do progresso crescente e indefinido da ciência, à dimensão prometeica, à retórica do “milagre”.

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desmascarar o discurso da neutralidade como uma estratégia ideológica. Herbert

Marcuse é bastante claro nessa questão afirmando que

não existem dois mundos: o mundo da ciência e o mundo da política (e sua ética), o reino da teoria pura e o reino da prática impura – existe apenas um mundo no qual a ciência, a política e a ética, a teoria e a prática estão inerentemente ligadas (MARCUSE, 2009, p. 160).

Nesse pequeno texto, convenientemente intitulado A responsabilidade da

ciência, o filósofo alemão atinge um ponto que considero central: a transformação da

função social da autonomia da ciência. Se no surgimento da ciência moderna a retórica

da cisão entre a ciência e os valores sociais tinha uma função progressista e

emancipatória, no século XX esse procedimento acarretava numa posição conservadora,

em favor de um aparato repressivo e do potencial aniquilamento da espécie humana.

Essa transformação pode ser encarada como análoga ao processo de mutação da

burguesia, que passa de classe revolucionária (entre os séculos XVII e XIX) para classe

conservadora (a partir de meados do século XIX). Publicado originalmente em 1966, o

texto é marcado pelo temor de uma catástrofe nuclear de grandes proporções – uma

preocupação onipresente no período. As duras críticas de Marcuse prosseguem.

Sua própria “indiferença quanto aos valores” torna a ciência cega para o que acontece com a existência humana. Ou, formulando isso de modo diferente, e um pouco menos caridosamente, a ciência livre de valores promove cegamente certos valores políticos e sociais e, sem abandonar a teoria pura, a ciência sanciona uma prática estabelecida. O puritanismo da ciência transforma­se em impureza. E essa dialética levou à situação na qual a ciência (e não apenas a ciência aplicada) colabora na construção da mais eficiente maquinaria de aniquilamento da história (MARCUSE, 2009, p. 162).

No entanto, ainda sobra espaço no argumento do autor – talvez o ponto de

chegada da sua reflexão – para uma valorização da ciência. A oposição entre

cientificismo e irracionalismo, ou entre tecnofobia e tecnofilia, é simplesmente falsa,

embora ela tenha um valor estratégico para aqueles preocupados em conservar a sua

posição de poder. Não se trata de uma reedição do luddismo com verniz acadêmico, mas

de uma crítica ao modo específico de produção do conhecimento científico – que

obedece a uma lógica imposta externamente92. Os traços iluministas de um projeto no

92 Embora pareça claro que a ciência traz sempre consigo o seu oposto, que “Skepticism is the skeleton in the Western rationalism’s closet” (WILLIAMS, 2001, p. 5), e que essa é também uma dimensão constitutiva da dinâmica científica, o ponto em questão não se refere à mera oposição, desafio, ceticismo; mas a construção de alternativas que recuperem para a ciência determinada função social emancipatória – embora isso demande uma crítica profunda da estrutura da ciência que soa como ceticismo aos ouvidos mais sensíveis do cientificismo.

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qual a ciência, socialmente transformada, desempenha um papel relevante, são

explicitados. A ciência não deve ser abandonada, ela deve recuperar o seu telos, sua

força progressiva, libertadora.

A ciência está ameaçada pelos seus próprios progressos, ameaçada por seu avanço como instrumento de um poder livre de valores, em vez de um instrumento de conhecimento e verdade. A ciência, como todo pensamento crítico, tem sua origem no esforço de proteger e melhorar a vida humana em sua luta com a natureza; o telos interno da ciência não é nada mais que a proteção e o melhoramento da existência humana. Essa tem sido a razão de ser da ciência, e seu abandono é equivalente à ruptura entre a ciência e a razão. A ciência pode de fato continuar a crescer, em um sentido limitado, como uma técnica, mas perderá sua própria raison d´être.

A ciência como um esforço humano continua a ser a mais poderosa arma e o instrumento mais eficaz na luta por uma existência livre e racional. Esse esforço estende­separa além do estudo, além do laboratório, além da sala de aula, e visa a criação de um ambiente, tanto social quanto natural, no qual a existência pode ser libertada de sua união com a morte e a destruição. Tal libertação não será um objetivo externo ou subproduto da ciência, mas antes a realização da própria ciência. (MARCUSE, 2009, p. 164).

A mensagem é ao mesmo tempo nostálgica e utópica, projeta um futuro

alternativo recuperando uma dimensão (certamente ilusória) do passado.

Paul Feyerabend endereça uma crítica semelhante, sem a ilusão de um telos

intrínseco ou de uma razão de ser essencialista da ciência. Não há nada que garanta à

ciência o papel de uma força de libertação social ou mental. Para Feyerabend (2011, p.

94):

Esse tipo de atitude fazia sentido perfeito nos séculos XVII, XVIII e até XIX, quando a Ciência era uma das muitas ideologias que competiam entre si, quando o Estado ainda não tinha se declarado a seu favor e quando sua atividade determinada era mais do que contrabalançada por visões e instituições alternativas. Naqueles anos a ciência era uma força libertadora, não porque tivesse encontrado a verdade, ou o método certo (embora os defensores da Ciência presumissem que essa era a razão), mas porque limitava a influência de outras ideologias e, com isso, dava ao indivíduo espaço para pensar.

Nesse mesmo período, entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970,

vários grupos de “cientistas radicais” começam a surgir93. Ligados ao marxismo e às

93A existência de organizações de cientistas que direcionam seus esforços coletivos para um tema social ou político (à direita e, especialmente, à esquerda) não era uma novidade, sobretudo em torno do debate entre “liberdade” versus “planejamento” (como comentei em relação à polêmica entre Polanyi e o “bernalismo” no capítulo anterior) ou em relação às questões levantadas pela utilização bélica da ciência. No entanto, nesse período, o número de grupos é impressionante; citarei apenas os principais. Na França, as revistas Impascience e Labo­Contestation, o movimento Survivre, o Syndicat National des Chercheurs

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dissidências de esquerda do movimento socialista internacional, rebentos da crise dos

partidos comunistas ocidentais após 1956 e 1968 (embora alguns permaneçam

vinculados aos partidos e à URSS), refletem sobre as condições da produção de ciência

e suas relações com a ideologia, a economia, o poder e a política, os militares e a guerra,

o ensino, o meio ambiente, a luta de classes e o “proletariado científico”, o racismo, o

feminismo, etc. A sua produção teve uma expressão relevante, sendo algumas obras

publicadas por grandes editoras na França, no Reino Unido e nos EUA. Mas não era

através das grandes edições que esses movimentos angariavam apoio e faziam as suas

ideias circularem, o principal foco e meio de propagação estava na publicação de

periódicos baratos e de produção coletiva – ao modo do it yourself da contracultura e

dos fanzines – e na realização de workshops, conferências e encontros entre cientistas,

trabalhadores (especialmente dos setores industriais de maior insumo tecnológico),

comunidades atingidas por sistemas tecnológicos nocivos ou de risco (como usinas

nucleares ou indústrias químicas altamente poluentes).

No plano da elaboração sistemática de uma crítica à ciência, esses grupos

possuíam grande variedade de perspectivas e de posicionamentos. Acontece que essas

divergências só podem se manifestar porque se assentam sobre uma base mais ou menos

sólida sobre certos entendimentos fundamentais. Como o meu objetivo não é fazer a

história desses movimentos, nem realizar um escrutínio da sua diversidade – mas

mostrar como eles contribuíram para a formação de um ambiente de contestação e

crítica da ciência que não se confunde com antiintelectualismo ou irracionalismo –

utilizarei materiais nos quais há um esforço programático de sistematização, onde se

destacam os pontos comuns94.

Scientifiques (SNCS) e o Centre National des Jeunes Scientifiques (CNJS); no Reino Unido, a British Society for Social Responsability in Science (BSSRS), os periódicos Radical Science Journal e Science for people; nos EUA, o Scientists and Engineers for Social and Political Action (SESPA) – que editava o importante periódico Science for the people, publicação quase artesanal que circulou entre 1970 e 1989 – e o Science for Vietnam, além de grupos na Itália, Espanha, México e a Federação Mundial de Trabalhadores Científicos, com pretensões internacionalistas e supra­sindicais (LÉVY­LEBLOND e JAUBERT, 1973; ROSE e ROSE, 1976a). 94 Destaco aqui os dois volumes organizados na Inglaterra em 1976 por Hilary Rose e Steven Rose, The radicalisation of science e The political economy of science, que compartilham o mesmo subtítulo, Ideology of/in the natural sciences, os mesmos agradecimentos, a mesma introdução e a mesma, sintomática, dedicatória: “To the heroic peoples of Indochina, who demonstrated to the world how to struggle successfully against the science and technology of profit and opression” (ROSE e ROSE, 1976a, p. v). Vali­me também da coletânea francesa (Auto)critique de la science, editada em 1973 por Alain Jaubert e Jean­Marc Lévy­Leblond.

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Uma das questões centrais é que o marxismo oficial, ortodoxo, não dava conta

do tipo de crítica que se pretendia realizar. Ele era cientificista na sua veneração pela

objetividade das ciências naturais (que deveria ser o modelo para o “socialismo

científico”), no modo de gestão tecnocrática do Estado soviético, nas repetidas

declarações de que é o avanço da ciência e da tecnologia que trará as contradições do

sistema capitalista à termo (e que, no limite, o socialismo é apenas o resultado da

evolução tecnológica ou, na fórmula de Lênin, “socialismo é os sovietes mais

eletricidade”). A visão do conhecimento científico como um saber supra­ideológico,

localizado acima dos interesses de classe paralisava qualquer tentativa de “recriar uma

crítica revolucionária das funções sociais efetivas da ciência como elas existem

atualmente nas sociedades capitalistas e no socialismo de Estado” (ROSE e ROSE,

1976a, p. xvi)95.

Isso implicava em elaborar uma versão do socialismo (e do próprio marxismo)

que incorporasse a visão crítica sobre as ciências. O ponto principal aqui seria atacar o

problema das ciências a partir de duas direções intimamente ligadas. Duas faces de um

mesmo processo histórico que transformou o “problema da ciência” no principal desafio

para a construção de uma nova sociedade (que significava, para a maior parte dos

grupos envolvidos nos movimentos de radical science, superar o capitalismo e o

socialismo de Estado de tipo soviético).

De um lado, digamos, ideológico, havia a tarefa de separar ciência e

cientificismo e combater duramente este último. O cientificismo foi descrito como a

nova religião oficial (SURVIVRE, 1973), a unir capitalistas e comunistas no mesmo

credo comum. Os seus princípios – identidade entre verdade e ciência, realidade como

conjunto “formalizável”, neutralidade axiológica da ciência, privilégio exclusivo da

ciência e da tecnologia na solução dos problemas humanos (incluindo­se aqui aqueles

causados pela própria tecnologia), necessidade de credenciais científica para a tomada

de decisões, por exemplo – foram retratados como um conjunto de mitos cujas funções

eram garantir a autoridade inconteste do discurso científico e monopolizar o poder de

decisão sobre temas científicos e tecnológicos nas mãos dos experts, uma “casta”

diretamente vinculada às elites políticas e econômicas (LÉVY­LEBLOND, 1976;

SURVIVRE, 1973)96. Esse grupo se esforçou por denunciar como falsa e perigosa a

95 No original: “recreate a revolutionary critique of the actual social functions of science as they exist in today’s capitalist and state socialist societies”. Tradução minha.

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associação automática entre ciência e progresso social; o cientificismo consistiria na

maior ameaça ideológica depois de 1945. A eliminação da dimensão ideológica da

ciência seria um passo decisivo para mostrar que a sua pretensão de neutralidade é uma

estratégia política e que ela está a serviço da dominação capitalista97.

De outro lado, o segundo problema a ser enfrentado (depois de “retirado o véu

ideológico”) seria explicitar como a ciência se liga constitutivamente ao capitalismo

como modo de produção e como forma social. A sua etapa mais evidente é a

incorporação da ciência à produção capitalista servindo como força produtiva direta no

processo de renovação contínua requerido pelo modo de produção capitalista. A divisão

entre “ciência pura” e “ciência aplicada” é meramente um recurso ideológico. Na

prática, esses dois campos estão intimamente conectados no seu objetivo de produzirem

inovações – sejam elas conhecimentos, técnicas ou produtos – para abastecer o

capitalismo. A unidade entre ciência e tecnologia é realizada pela sua subordinação ao

capital (ROSE e ROSE, 1976)98. Além de participar como força produtiva, a ciência se

transforma, sob o capitalismo, em mercadoria; informações, conhecimentos e produtos

são postos à venda e produzidos de acordo com a lógica específica do mercado

(CICCOTTI, CINI e MARIA, 1976).

A feição geral que adquire o posicionamento desses autores envolvidos com a

radical science aponta para uma “crise da ciência”, que estaria tão profundamente

96 A relação entre ciência e religião tem sido exaustivamente mencionada a partir de diversos pontos de vista. Duas visões predominam: a) o surgimento da ciência moderna em oposição à religião entre os séculos XVI e XVIII – tendo a ciência uma função “subversiva”, “emancipatória”, “progressista” e “contra­hegemônica”, liberando a nascente sociedade burguesa da “opressão medieval”, do “obscurantismo” e do “dogmatismo” da Igreja Católica (e os casos de Giordano Bruno e Galileu marcam o ápice desse processo); b) a substituição da religião pela ciência como o “quadro mental dominante”, a “principal referência cultural”, a “ideologia oficial” das sociedades ocidentais desde o século XIX e, de forma mais intensa, no XX – nesse contexto, a ciência passaria a desempenhar algumas das funções sociais que haviam sido da Igreja Católica nos séculos precedentes, sendo uma força conservadora e impondo o seu próprio dogmatismo. Essa leitura se tornou mais complexa no interior dos campos acadêmicos dedicados ao estudo da ciência e – sem desconsiderar os conflitos, tensões e rupturas – as continuidades e interferências foram ressaltadas e a oposição radical entre os dois campos foi relativizada (CAMENIETZKI, 2000; KOYRÉ, 2006; MARICONDA, 2001; ROSSI, 1992). Defendendo­se das críticas à sua versão da sociologia do conhecimento científico, David Bloor recorreu à analogia da sacralidade da ciência e comparou o “programa forte” a uma heresia, a uma interpretação desviante do Texto Sagrado (BLOOR, 2010).97 A despeito dos muitos debates que esses autores travam a respeito do conceito de ideologia, de todas as restrições que impõem ao seu uso dogmático, permanece latente (e às vezes explícito) a identificação do termo com a “mistificação da realidade”.98 Nesse ponto, os autores endereçam uma dura crítica ao “internalismo acadêmico” de “historiadores, sociólogos e filósofos burgueses” que se interessariam pela ciência como um sistema autônomo de ideias e que colocariam ênfase em áreas cujo interesse teórico é grande, mas a relevância social seria pequena (ROSE e ROSE, 1976).

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entranhada na sociedade de mercado que seus interesses se confundiriam com os do

capitalismo e estariam distantes dos interesses da massa da população, dos “oprimidos”.

Para construir uma “ciência para o povo”, os próprios cientistas deveriam tomar a frente

da ação, reconhecendo que “a ciência é inevitavelmente política e que [...] contribui

amplamente para a exploração e opressão da maioria das pessoas” (MEYERS,

RADINSKY, ROTHENBERG e ZIMMERMAN, 1973, p. 66)99. Em seguida,

estabelecer uma agenda de “pesquisa socialmente orientada” com vistas ao

empoderamento popular e à oposição ao sistema dominante de ciências.

Essa crítica chega, no entanto, em um momento em que as contradições desse

modelo atingiam um ponto insustentável e davam lugar a uma nova forma de

organização da ciência (em coordenação com as transformações da economia e do

Estado). A década de crise econômica global que tem início em 1973 será determinante

na formação de uma nova relação entre capitalismo, ciência e tecnologia. Paralelamente

às críticas endereçadas ao sistema da Big Business Science começam a surgir análises

que apontam para a sua transformação profunda. Começam a circular as noções de

tecnociência, capitalismo cognitivo, trabalho imaterial, entre outras expressões que

apontavam a tendência das próximas décadas. Essa transformação será retomada mais

detidamente adiante, quando será confrontada com a historiografia das ciências no

período.

É certamente difícil avaliar até que ponto esse clima histórico teve participação

direta na formação das críticas “profissionais”, de sociólogos ou historiadores, uma vez

que a produção da radical science não é alvo de citação ou comentário por parte

daqueles que encampam as novas propostas de análise das ciências (excetuando­se

algumas poucas menções feitas por Barry Barnes [1974] aos trabalhos do historiador

Robert Young, figura importante do radical science movement britânico) – e que, de

qualquer modo, não compartilhavam dos princípios ideológicos que norteavam esse

movimento. O cientista social Brian Martin (1993) relata, a partir da sua trajetória

pessoal, o processo de migração de muitos críticos da ciência dos anos 1970 de uma

posição mais “militante” (especialmente durante os primeiros anos de carreira como

estudante de alguma disciplina das ciências naturais) para uma crítica “profissional”,

99 No original: “la science est inévitablement politique et que[...] elle contribue largement à l’exploitation et à l’oppression de la majorité des gens”. Tradução minha.

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“acadêmica” (mais sofisticada e até radical do ponto de vista teórico, embora mais

afastada dos movimentos sociais e da intervenção pública).

O que se pretende mostrar é que havia uma insatisfação em relação ao modo de

produção da ciência sendo vocalizado de forma bastante radical por grupos de

cientistas. Com isso, tenderíamos a diminuir o caráter subversivo das novas disciplinas

que surgem sob a rubrica de sociologia do conhecimento científico ou science studies?

A pretensa subversão proposta por esses novos modelos de análise das ciências seria,

como em Thomas Kuhn, domesticação? Seria mera adequação a um novo modo de

produção do conhecimento científico? Uma crítica nostálgica a um modelo perdido de

cientificidade? Estou convencido que a sociologia do conhecimento científico é filha da

“sociedade do conhecimento”. Bastarda ou pródiga? E, mais importante para essa

pesquisa, como a historiografia produzida em contato direto com essas disciplinas e sob

as contradições impostas por essa configuração histórica reagiu?

Como bem aponta Mario Biagioli (1999), o extremo sucesso da ciência é motivo

de força e de dificuldade em definir os science studies100. Seu objeto é sólido e vasto,

porém seus princípios metodológicos são extremamente variados e seus praticantes

dispersos em diversos campos disciplinares, instituições e departamentos. Esse campo

emerge nos anos 1980, a partir da união de uma série de esforços relativamente

independentes levados à cabo por jovens sociólogos, historiadores, antropólogos e

filósofos, além de representantes de muitas outras disciplinas. Tomados em conjunto,

esses autores fazem parte de uma bibliografia que começava a se tornar disponível

desde meados dos anos 1970 e que encontrava no periódico Social Studies of Science

um local de difusão e um espaço de identidade para esse grupo (que não era isento de

disputas internas). O primeiro texto canônico foi o livro­manifesto de David Bloor,

Conhecimento e imaginário social, que apresenta as primeiras regras de método em

torno das quais os autores que viriam a formar a primeira geração dos science studies

desenvolveriam um signo de identidade (PESTRE, 1996).

A viga mestra da arquitetura teórica blooriana será o seu princípio de simetria. A

distinção entre verdade e erro é diluída, ao menos sociologicamente. As explicações

correntes à época afirmavam que, quando um cientista agia corretamente, nada havia

para ser explicado. Por outro lado, um erro deveria ser explicado em termos de desvios

100 Para uma avaliação mais detalhada do surgimento dos science studies, Cf. GOLINSKI, 2005; BIAGIOLI, 1999; FULLER, 2006.

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ideológicos ou psicológicos, influências externas etc. Seguindo o princípio de simetria,

somos compelidos a explicar sociologicamente ambas as situações. Não há motivos

para crer que as implicações ideológicas acarretarão apenas em má ciência. A sociologia

pode, e deve, se ocupar de toda a trama da ciência em suas mais sutis tecnicidades.

As ressonâncias desse princípio de simetria no corpo teórico do “programa

forte” são significativas. Desse mesmo modo, a definição naturalista de conhecimento,

como sendo “tudo aquilo que as pessoas consideram conhecimento” (BLOOR, 2009 p.

18) ou definição de objetividade como crença institucionalizada criam uma situação de

inversão da polarização ontológica entre natureza e cultura, mas não fogem do seu raio

de ação. Ao passo que o realismo criou o cientista como sujeito neutro, transparente,

através do qual o “fato fala por si”, o construtivismo blooriano criou uma imagem da

ciência da qual a natureza não participa. Tudo é resolvido por acordos sociais,

negociações.

Segundo Bloor (2009, p. 117), as teorias do conhecimento não são expressões do

mundo objetivo e da forma de alcançá­lo, mas reflexos de ideologias sociais. As teorias

científicas e mesmo a fria matemática são artefatos sociais, que seguem protocolos

linguísticos e culturais sociologicamente localizáveis e explicáveis. Explicar a ciência é

explicar a sociedade. São as condições sociais de existência que moldam as imagens do

mundo exterior possíveis em determinado contexto.

Essa ênfase em um relativismo metodológico se apresenta também na teoria da

verdade esboçada por Bloor. Segundo o sociólogo, o indicador de verdade de uma teoria

científica é sempre interno à coerência da própria teoria. Não há um modo de fixar de

forma precisa as relações de correspondência entre teoria e realidade. Como as teorias

são originadas de coerções sociais, a verdade é também uma forma de convenção social.

Não há critérios suprassociais de estabelecimento da verdade. Os testes empíricos não

são neutros e se dão sempre no interior de um arcabouço teórico pré­determinado.

Embora não negue a existência da realidade, Bloor indica que ela não cumpre nenhum

papel nas formulações teóricas ou no estabelecimento da verdade. Isso, no entanto, não

retira o rigor do critério. As convenções sociais são exigentes e se apóiam em uma

disciplina severa, não são “arbitrárias”. Assim, uma análise da verdade de uma teoria

deve buscar as causas sociais e os regimes de adaptação às condições convencionais

(BLOOR, 2009, pp. 64­75).

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A crítica às noções tradicionais de conceitos como verdade e objetividade e o

deslocamento desses conceitos para o terreno de atuação da sociologia marcam a

guinada em direção a uma compreensão da ciência a partir da sua historicidade, dos

protocolos linguísticos que constitui e utiliza, dos acordos sociais que regulam a sua

prática. De modo crescente, com o surgimento dos science studies, a ciência será

interpretada como uma atividade cultural entre tantas outras, como um complexo

enredado na trama social e histórica.

No entanto, esse projeto sofrerá duras críticas. Autores de uma geração anterior

irão considerar o “programa forte” e seus correlatos como um desvario relativista, um

exagero sociológico que encerra todas as questões sobre o conhecimento científico nas

negociações sociais. O próprio Thomas Kuhn irá endereçar um duro ataque a esse

grupo. A principal crítica de Kuhn (2006, p. 139) diz respeito ao caráter totalizante das

explicações sociais: “a própria natureza, seja lá o que for isso, parece não ter papel

algum no desenvolvimento das crenças ao seu respeito”.Os science studies e, mais

frequentemente, a sociologia do conhecimento científico foram também acusados de

incorrer em uma paradoxal incoerência: não levar a sério o princípio da reflexividade

(proposto por David Bloor [2009]). Esse argumento utilizado pelos críticos, o

argumento da “retorsão” à que se refere Isabelle Stengers (2002), pode ser assim

resumido: “vocês afirmam que todo conhecimento é uma construção social, a sociologia

do conhecimento científico é conhecimento, logo...” (MENDONÇA, 2008, pp. 48­55).

Ao afirmar, com Barry Barnes (2011), que o relativismo metodológico é a realização do

projeto científico (sua continuidade) ou ao Bloor enunciar a pretensão de que o

“programa forte” poderia dar um estatuto científico à sociologia da ciência, esses

autores ajudaram a alimentar os críticos.

Bloor foi vago ao responder à acusação de inconsistência, de ter “historicizado e

sociologizado as ciências naturais, ao alto preço de ter naturalizado a sociologia”

(MENDONÇA, 2008, p. 54). Refletindo sobre um ponto semelhante – o suposto

obstáculo que a sociologia do conhecimento científico poderia oferecer à cientificidade

da sociologia em geral –, Steven Shapin recorre a Peter Winch e afirma que a sua

“crítica aos empreendimentos que tentaram basear o entendimento da ação social nos

métodos da ciência natural foi decisiva para vários praticantes da sociologia do

conhecimento científico” (SHAPIN, 1995, p. 295)101. Para tomar a ciência como um

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objeto de investigação, defende Shapin, as ciências sociais devem construir um modelo

de cientificidade próprio, possuindo objetos e métodos diversos daqueles das ciências

da natureza. Da minha parte, considero essas respostas insatisfatórias. A discussão sobre

as diferenças entre ciências sociais e naturais não faz parte dos fundamentos da

sociologia? Porque Winch resolveria essa questão de forma mais apropriada102?

O argumento da retorsão, no entanto, só parece ganhar força quando se atribui à

sociologia do conhecimento científico algo que ela não se propõe a fazer: denunciar a

influência perversa de “fatores sociais” na ciência (numa tentativa de resgatar a sua

pureza), estudar a “dimensão social da ciência” como algo a ser combatido e

minimizado. Se a ciência é constitutivamente uma atividade social e isso não significa

fraqueza nem um juízo de valor negativo, se afirmar que a ciência é uma construção

social não é uma forma de anticientificismo, então a crítica endereçada à reflexividade

não deveria causar incômodos.

Assim, a primeira fase dos science studies foi marcada pelo viés sociológico. O

“programa forte” foi uma das suas expressões, provavelmente a mais influente; ao

explicitar suas principais características, tentei explicitar a atitude geral dos praticantes

engajados nesse campo103. Nesse período, os science studies tomam de assalto os

temas da epistemologia e, ao contrário de Kuhn, que pedia licença a cada passo que

parecesse muito heterodoxo para essa disciplina, subverte as suas posições e a

transforma radicalmente tanto do ponto de vista teórico quanto nas suas investidas

empíricas. Imbuídos do clima geral de crítica das grandes narrativas do Ocidente

Moderno, embora sem citar diretamente a pós­modernidade ou o giro linguístico, essa

nova perspectiva sobre a ciência tem como um dos principais legados teóricos a ideia da

construção social do conhecimento científico104.

Levado ao seu extremo, o argumento construtivista parece esquizofrênico. No

momento em que estamos completamente imersos em uma sociedade científica e

tecnológica, a saída crítica é dizer que a ciência se resume a negociações sociais?

101 No original: “critique of enterprises that tried to base an understanding of social action on the methods of natural science was decisive for several practitioners of SSK”. Tradução minha.102 Em que pese a importância de A ideia de uma ciência social e sua relação com a filosofia, especialmente no que tange à aproximação do Programa Forte com a filosofia de Wittgenstein.103 Pontos de vista semelhantes em sua atitude geral em relação à ciência (apesar dos intensos debates que geraram no interior dos sciences studies) podem ser encontrados, entre outros lugares, em BARNES E EDGE, 1982; BARNES, BLOOR E HENRY, 1996; COLLINS, 1981.104 Marx, Durkheim e Mannheim já haviam mostrado como tratar as ideias como produtos sociais. No entanto, como ressaltado, eles nunca expandiram essas observações à ciência. O antecedente direto dessa perspectiva é o livro de Berger e Luckmann, A construção social da realidade, de 1967.

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Acredita­se piamente na força das coerções e das normas sociais, mas duvida­se da

“realidade” dos fatos científicos? Bruno Latour formulou essa crítica nos próprios

termos do grupo. Não adianta propor uma simetria entre verdade e erro e manter uma

assimetria entre Natureza e Cultura. É preciso, diz ele, uma segunda simetria, que

considere não apenas a ciência, mas a própria sociedade como um construto (LATOUR,

2008). Ao mesmo tempo, a críticas “conservadoras” não consideravam essa

possibilidade, mas apenas o retorno a uma sociologia mertoniana, a um respeito quase

religioso com a epistemologia.

Considerar o conhecimento científico como um produto cultural que não tem

prioridade epistemológica sobre nenhuma outra manifestação humana possibilitou à

história utilizar o mesmo princípio. Isto é, os estudos históricos podem investigar

exaustivamente os modos através dos quais, no passado, certo tipo de conhecimento se

entrelaçou profundamente com as condições sociais de sua produção. Além disso, o

princípio da simetria também poderia ser aplicado às realizações científicas passadas.

Não apenas a “má ciência” pode ser investigada como influenciada por fatores sociais,

mas também (e principalmente) a “boa ciência”, o conhecimento vencedor. Perguntas

anteriormente sem sentido para a história das ciências se tornaram pertinentes e, mais do

que isso, centrais para as novas abordagens. Shapin e Schaffer (2011, p. 3) puderam

centrar seu estudo na seguinte questão: “Por que alguém realiza experimentos para

chegar à verdade científica?”105. Esse tipo de interrogação só é possível quando

abandona­se a visão que se acostumou a enxergar a história das ciências como a marcha

irreversível do progresso, a paulatina conquista da racionalidade contra a ignorância, o

mito e a superstição em direção à verdade e à realidade. Com essa visão, abandona­se

também o necessário anacronismo que ela implica. Os atores históricos serão analisados

por seus próprios critérios, pelas condições de possibilidade e escolha que tinham

disponíveis em determinadas circunstâncias. Ao transferir a responsabilidade da

construção do conhecimento científico da natureza para a sociedade, o construtivismo

social possibilitou não apenas a renovação da história das ciências, mas tornou­a

efetivamente histórica106.

Essa renovação historiográfica se beneficiou também do abandono, por parte dos

science studies, da filosofia e do imperativo da dimensão normativa e prescritiva que

105 No original: “Why does one do experiments in order to arrive at scientific truth?”. Tradução minha.106 Esse é o argumento central de Jan Golinski (2005) para explicar o sucesso do construtivismo na historiografia das ciências.

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caracterizou a primeira metade do século XX. Essa guinada pragmática possibilitou

substituir uma busca pela definição de ciência por investigações variadas das múltiplas

formas de práticas científicas107.Não se perguntava mais o que a ciência é, mas sim o

que a ciência faz. O vocabulário desse grupo marcou exemplarmente essa mudança,

fala­se, cada vez mais, de práticas científicas, atividade científica, ciência tal qual se

faz (LATOUR, 2000; PICKERING, 1992; PESTRE, 1996).O pretenso abandono da

normatividade por parte dos historiadores da ciência, que deixaram de apontar para um

“ideal de boa ciência” em nome da descrição da ciência do passado sem julgamentos de

valor – um aspecto notado tanto por críticos (que veem como um equívoco), quanto por

promotores da nova historiografia (que veem como um avanço teórico e historiográfico)

– não é procedente. Pelo contrário, toda descrição pressupõe uma prescrição. No entanto

– e tal vez seja isso que os historiadores tentaram ocultar e o que os críticos não

conseguiram perceber – essa normatividade se dá sob novas bases, em nome de regras

diferentes daquelas que instituíam o ideal de boa ciência sacralizado no século XIX e

reafirmado por parte das análises da ciência da primeira metade do século XX (cujos

representantes maiores seriam Robert Merton e Karl Popper). A boa ciência não é mais

aquela que segue o método científico e se organiza de acordo com um ethos

comunalista, universalista, desinteressado etc. Nem mesmo aquela atividade intelectual

essencialmente crítica e aberta, onde a vida dos enunciados dependia apenas da sua

capacidade de sobrevivência a sucessivos testes. Para a nova historiografia, esse ideal é

uma ficção, um mito de criação. A boa ciência é aquela que negocia com o poder,

procura aliados fortes, insinua­se na estrutura social, modificando­a. Aquela que se

torna dominante não por ser verdadeira, mas, ao contrário, se torna verdadeira ao se

tornar dominante. A boa ciência não deve ser julgada em termos morais ou ser

considerada o estágio mais perfeito e elevado da consciência humana, mas em termos de

desempenho, performance e eficácia e considerada uma “máquina de criar consensos”

extremamente eficaz.

Steve Fuller (2006) argumenta que a negação da filosofia fazia parte da

estratégia política do grupo que, interessado em criar uma identidade própria e se

estabelecer como uma disciplina autônoma, rejeitou aquilo que via como provável

inimigo às suas pretensões. Porém, ao mesmo tempo, precisaram constituir uma base

107 Curiosamente, enquanto os science studies queriam se livrar da filosofia em nome de uma recusa da normatividade, a própria filosofia das ciências passava, desde os anos 1950, por uma guinada pragmática e historicista (HACKING, 2012; QUINE, 2010; RORTY, 1994; ZAMMITO, 2004).

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filosófica para a sua prática, “isso envolveu um desvio do papel do filósofo de

legislador a subordinado” (FULLER, 2006. p. 45)108. Essa transição permitiu domesticar

a filosofia e torná­la segura para a prática dos science studies.

Por fim, penso que não é possível compreender adequadamente esse campo

disciplinar sem apontar alguns traços do momento histórico no qual ele emerge – traços

que ajudam a desenhar as feições que assumem as interpretações das ciências nesse

período.

A passagem da década de 1970 para a década de 1980 é marcada pela ascensão

do neoliberalismo como política econômica hegemônica de algumas das principais

potências globais.Embora os fundamentos da teoria neoliberal tenham surgido como

resposta ao new deal no final dos anos 1940 na Mont Pelerin Society – um grupo de

intelectuais liderados por Friederich von Hayek e que contou com a participação

engajada de Karl Popper –, a sua transformação em solução para os problemas

atravessados pelo capitalismo e pelo Estado Providência só ocorreria na esteira da crise

do petróleo, que eclode em 1973109. As novas formas de organização do Estado e da

economia (ou do Estado em função da economia) tiveram lugar de destaque e irradiação

global a partir das administrações de Margaret Thatcher na Grã­Bretanha e Ronald

Reagan nos Estados Unidos da América110. Como sabemos, a agenda neoliberal

implica na redução da participação estatal nas atividades econômicas, no incentivo ao

livre comércio e na liberação dos mercados através de privatizações, diminuição das

regulamentações, flexibilização de direitos trabalhistas etc. Segundo o argumento

corrente desde meados da década de 1970, o Estado estava fadado a tomar decisões

equivocadas no campo econômico devido a sua fragilidade diante da influência de

diversos grupos de pressão política e, principalmente, pela sua incapacidade de captar e

gerir todas as informações necessárias para a condução da economia (HARVEY, 2013,

p. 30). Há certa “teologia” neoliberal que propaga a superioridade absoluta do mercado

em termos de eficácia e de capacidade de cálculo (PESTRE, 2014a, p. 263). Isso é mais

forte no momento em que essas informações se tornam mercadorias sujeitas às regras do

mercado. No entanto, o Estado não pode ser somente reduzido, deve servir a novos

108 No original: “this involves a shift in the role of the philosopher from legislator to underlaborer”. Tradução minha.109 O documento de fundação do grupo não traz um programa econômico específico, se fundando na “preservação da sociedade livre”, na defesa dos “valores da civilização” e do “homem ocidental” (STATEMENT OF AIMS, 1947).110 Com a importante e irônica experiência dos Chicago Boys na ditadura chilena do general Pinochet.

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interesses: é responsável por incentivar a criação de mercados em setores econômicos

pouco atrativos, garantir o cumprimento dos contratos, proteger o direito à propriedade

privada etc. Não se trata apenas de “menos Estado”, mas de uma readequação das

funções estatais.

A função do Estado deve ser repensada também a partir do aprofundamento de

dois processos interligados: a “financeirização” e a globalização (ou “mundialização”),

processos que dependem intensamente do desenvolvimento de tecnologias de

comunicação e transporte, um ponto que nos interessa diretamente e ao qual

retornaremos.

A “financeirização” se refere ao deslocamento da principal fonte de acumulação

de capital, que passa da produção e circulação de mercadorias – a base produtiva ou

“economia real” – para o “capital portador de juros” – a “economia fictícia” ou “virtual”

(LAPYDA, 2011, p. 49). Essa fase de valorização do capital monetário, da centralidade

do dinheiro como mercadoria relativamente autônoma em relação ao campo da

produção, é acompanhada de um processo de “desterritorialização”. A economia

globalizada não é apenas a sequência do processo de integração mundial que ocorre

desde o início da Era Moderna. Mais do que a integração entre diferentes regiões, a

globalização (econômica) se refere à transformação da superfície global em um plano

equivalente onde as transações, a transferência de capital e mesmo as atividades

industriais podem ser livremente (ou quase) transportadas de um ponto a outro. A

transformação do planeta em unidade econômica (ao menos idealmente) ocorre com o

apoio de uma forte base institucional de órgãos transnacionais ou multilaterais, como o

Fundo Monetário Internacional (FMI) e, posteriormente, a Organização Mundial do

Comércio (OMC), cristalizado em 1989 no Consenso de Washington (CHESNAIS,

2008; PESTRE, 2014b, pp. 298­303). Com isso, os Estados nacionais redirecionam suas

forças diante de uma forma de organização econômica que não se limita mais por

fronteiras territoriais. Isso é tanto mais sentido em países periféricos, já que aqueles

Estados localizados no centro do capitalismo global continuam fazendo valer o seu

poder político (e bélico, quando necessário).

O neoliberalismo configura “um ponto de ruptura revolucionário na história

social e econômica do mundo”, na opinião do geógrafo David Harvey (2013, p. 11)111.

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Importa perceber que esse fenômeno não é apenas uma nova ideologia ou uma nova

ordem econômica global, mas uma nova formação sócio­histórica. As transformações

massivas atravessadas pela economia capitalista desde o final dos anos 1970 são

suficientes para caracterizar um novo momento histórico. Como resume Dominique

Pestre (2014a, p. 270):

Um momento que se segue a uma fase diversamente qualificada como keynesiana, fordista ou do Estado social e que começa entre os anos de 1970 e 1980. O vocábulo é, então, um marcador cronológico, caracterizando um tempo que repousa sobre o conjunto já evocado por nós – sobre a articulação de uma teologia messiânica, de novas tecnologias de governo, de uma globalização financeira e de mercado [...] O termo indica a substituição de um sistema de organização social por outro...112

Esse momento neoliberal se constitui em profunda relação com a ciência e a

tecnologia. Com efeito, ele se constitui a partir dessa relação, se define pelo

reposicionamento estratégico da ciência e da tecnologia no interior dessa estrutura.

Nessa nova etapa do capitalismo, o modelo de organização de ciência proposto

por Vannevar Bush foi sendo desmontado e reconfigurado. Esse processo, que continua

em operação e cujos resultados definitivos ainda são difíceis de medir, tem como

direção principal a gradativa substituição do Estado e das universidades pelo mercado e

centros de pesquisa privados como locais mais importantes para a produção de

conhecimento científico, bem como a formação de “parcerias estratégicas” entre centros

tradicionais de pesquisa e a indústria. “Os pesquisadores universitários [...] empenham­

se, em legiões cada vez maiores, em projetos a prazo maior ou menor que refletem

objetivos industriais explícitos” (FERNÉ, 1994, p. 365). Isso não significou o abandono

das antigas estruturas, mas o deslocamento do seu centro dinâmico.

Inovação é a palavra de ordem. Não se pode mais esperar a pesquisa básica e

desinteressada gerar resultados em sua exploração aleatória, é preciso direcionar

fortemente e cobrar os resultados, medir a produtividade quantitativamente. Os

principais índices não são novas pesquisas, mas novas patentes. Grupos com interesses

111 Yurij Castelfranchi (2008, pp. 36­41) não toma como evidente a caracterização do neoliberalismo como passagem revolucionária e coloca em discussão diferentes opiniões a respeito da natureza dessa nova etapa do capitalismo.112 No original: “Un moment qui fait suite à une phase diversement qualifiée de keynesienne, fordiste ou à État social, et qui commence entre les années 1970 et 1980. Le vocable est alors un marqueur chronologique, caractérisant un temps qui repose sur l’ensemble de ce que nous avons évoqué – sur l’articulation d’une théologie messianique, de nouvelles technologie de gouvernement, d’une globalisation financiére et marchande [...] Le vocable signale le remplacement d’un régime d’organisation du social par un autre...”. Tradução minha.

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distintos – sejam policy makers engajados em políticas de “transferência tecnológica”,

cientistas saudosos de uma ilusória “era de ouro” da pesquisa ou sociólogos contrários à

perversa “apropriação privada do conhecimento publicamente produzido” – debatem

apaixonadamente as consequências do novo modo de produção da pesquisa científica.

Algumas perguntas geram ansiedade: Uma ciência impulsionada pelos anseios do

mercado continuará seguindo os mesmos valores? O ideal de objetividade, por exemplo,

pode estar em risco quando o cientista não é mais um funcionário do Estado ou da

universidade, cuja autonomia está garantida na pesquisa básica, mas um funcionário de

uma empresa cujo principal objetivo é o lucro através da inserção acelerada de novos

bens em um mercado ou mesmo quando ele é o dono da sua própria companhia, um

empresário do mercado de bens científicos (ZIMMAN, 1996)? A ciência não é apenas

um produto cultural como outro qualquer na sociedade, é também um bem econômico

como outro qualquer no mercado.

Para alguns analistas, a ciência teria se tornado “pós­acadêmica” e o ethos

mertoniano (que havia funcionado como uma espécie de horizonte de valores

compartilhados pelos cientistas) estaria sendo substituído por um novo conjunto de

valores mais apropriados à nova configuração da ciência e ao novo papel social

desempenhado pelos cientistas (CASTELFRANCHI, 2008; ZIMAN, 2000). O que ocorre

desde os anos 1980 é que:

Um pouco por todo o mundo acadêmico ocidental, e especialmente na investigação científica, dentro e fora das universidades, nos âmbitos da biotecnologia e de outras ciências e tecnociências da vida, estão sendo disseminados os traços tipicamente característicos dos campos comercial e empresarial (GARCIA e MARTINS, 2009, p. 83).

Isso tem implicações óbvias na sociologia e na filosofia das ciências: a própria

forma de caracterizar essas mudanças já é mediada por essas abordagens

(CASTELFRANCHI, 2008, p. 41).

A resposta veio através do conceito de tecnociência. Com essa expressão indica­

se não apenas a fusão e a diluição de fronteiras (tema que interessa especialmente a este

trabalho) entre os campos da ciência e da tecnologia113, mas um emaranhamento, uma

indistinção entre ciência, tecnologia e capitalismo neoliberal (CASTELFRANCHI,

2008, p. 9). Não existe mais uma grande ruptura entre ciência e não­ciência, mas a

113 Para alguns autores, a tecnociência se refere à “conexão fundamental entre a ciência e a tecnologia, que leva a que ambos os domínios possam ser pensados conjuntamente” (DAGNINO, 2008, p. 28). Como tento mostrar aqui, essa conexão – apesar de fundamental e necessária – não é suficiente para definir o fenômeno.

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identidade radical entre esses três domínios anteriormente tratados como autônomos. O

conceito de tecnociência “sugere que não há barreiras pré­determinadas para o que

constitui tecnologia ou ciência, o social ou o técnico, ciência ou política” (ASDAL,

BRENNA e MOSER, 2007, p. 8)114. Essa nova configuração sócio­histórica (ou

sociotécnica) foi apontada como uma das grandes transformações do final do século

XX. Esse fenômeno impõe novos olhares, dentre os quais os science studies. Não é

fortuita a associação que Paul Forman (2007) propõe entre a passagem da Modernidade

à pós­modernidade e a proeminência da tecnologia sob a ciência. O autor é incisivo

quanto a este ponto: “a tese deste artigo é que modernidade é quando ‘ciência’ denota

também tecnologia; pós­modernidade, quando tecnologia denota também ciência”

(FORMAN, 2007, p. 4)115.

Não pretendo subestimar a função da cultura intelectual pós­moderna na

conformação de uma aventura teórica ousada como o programa forte e os science

studies. No entanto, não pretendo seguir de perto os padrões narrativos pós­modernos, a

sua cronologia. Através do conceito de tecnociência, tentarei identificar certo ambiente

simbólico­material comum à emergência do neoliberalismo e dos science studies.

Talvez a leitura da pós­modernidade como a “lógica cultural do capitalismo tardio”,

com todas as suas contradições e conflitos, poderia desenhar outra genealogia para esse

campo interdisciplinar, alinhá­lo a determinada filiação epistemológica.

A pós­modernidade é um fenômeno muitíssimo amplo, pulverizado e de difícil

definição116. Para o que aqui nos interessa, podemos caracterizá­la como um

movimento de recusa das categorias fundantes da Modernidade, especialmente aquelas

tributárias da Ilustração (LYOTARD, 2004). As grandes narrativas universalistas do

progresso, da verdade, da razão, da justiça, da liberdade, da história e da ciência (que se

galvanizam na filosofia hegeliana) são denunciadas como sendo incapazes de cumprir

as suas promessas de emancipação da humanidade, meras fachadas retóricas para o

exercício de um eurocentrismo tacanho que, em nome dos universais, subjugou

violentamente grande parte do território global117. Alguns autores recuam até o final do

114 No original: “suggests that there are no pre­determined boundaries for what constitutes technology or science, the social or the technical, science or politics”. Tradução minha.115 No original: the thesis of this paper is that modernity is when ‘science’ denotes technology too; postmodernity, when ‘technology’ denotes science too”. Tradução minha.116 Na maior parte das suas apreciações, ela engloba o giro linguístico, o relativismo, a política das identidades etc.

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século XIX para marcar a primeira inflexão em direção à pós­modernidade. Segundo

Jürgen Habermas, é a crítica radical à razão moderna (e seu subsequente abandono),

levada à cabo por Nietzsche, que abre a trilha pela qual caminhará o discurso pós­

moderno (HABERMAS, 2007). Embora menos ressentido em relação ao abandono da

razão por Nietzsche, José Carlos Reis faz um diagnóstico semelhante da pós­

modernidade. Para o historiador, “Nietzsche foi um dos primeiros a recusar uma tirania

da Razão sobre o sentido histórico, abrindo outra profunda fissura na identidade

ocidental” (REIS, 2006, p. 42).

No entanto, a pós­modernidade não depende apenas de uma crítica filosófica do

conceito de Modernidade ou das suas características centrais118. Foi com a ocorrência

de uma série de mudanças profundas nas sociedades ocidentais após a Segunda Guerra

Mundial que a percepção de falência do projeto Moderno tomou contornos firmes e foi

possível pensar em uma etapa posterior à Modernidade. Passamos a viver em uma nova

fase do capitalismo. Nos países ricos, esse novo capitalismo foi definido como “pós­

industrial”. Assim, a antiga produção baseada em fábricas que contavam com exércitos

de operários foi substituída por processos cada vez mais automatizados e a mão­de­obra

transferida para o setor de “serviços”. Isso criou também uma massa de profissionais

com alto grau de treinamento, preparados para lidar com máquinas cada vez mais

específicas e sofisticadas em uma escalada da demanda pela “expertise”. À época,

algumas avaliações otimistas viam essa transição como acarretando na redução drástica

das jornadas e na possibilidade de exercício criativo e tempo ocioso. A capacidade de

“pleno emprego”, utopia do início do século XX, foi substituída pela utopia do “fim do

trabalho”. Na prática, o que ocorreu e ainda ocorre é um processo de “proletarização” de

todas as esferas produtivas (inclusive a intelectual) e, mais recentemente, a nefasta

distopia do desemprego em massa119.

A tecnociência é uma entidade muitas vezes descrita como resultado da captura

da tecnologia e da ciência pelo mercado – o que acarreta mudanças nos próprios

mecanismos do mercado. Yurij Castelfranchi (2008) utiliza a metáfora do líquen, que

remete a uma relação de co­dependência e co­produdução, não a simples dominação

117 Para uma perspectiva um pouco distinta da trajetória da “retórica do universalismo” ver, WALLERSTEIN, 2006.118 Rousseau, por exemplo, fez duras críticas à associação automática entre Progresso e Ciência; Marx dirigiu seus esforços para uma reavaliação das categorias modernas. Isso não os fez abandonar o projeto Moderno.119 Para uma visão bastante ácida dessa economia, ver GRUPO KRISIS, 2003.

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exercida pelo mercado impuro contra uma ciência pura. Para Michel Callon (1994, p.

78), “a técnica constitui um dos principais recursos na guerra a que se entregam os

grupos industriais. [...] A inovação tecnológica é, hoje em dia, uma arma decisiva”. Para

Laymert Garcia dos Santos (2003, p. 232, grifo meu), “o princípio da competitividade

obriga a racionalidade econômica a atrelar­se à racionalidade científica, ao subordinar

as decisões de investimento não às taxas de retorno, mas à dinâmica da inovação”. O rol

de citações que apontam nesse sentido poderia ser ampliado. Não será o caso. Mais

importante aqui é perceber que, ao se dotar de uma identidade tecnocientífica e,

simultaneamente, do controle sobre o modo de produção de ciência e tecnologia, o

mercado (apesar das tensões internas) potencializa a sua inexorabilidade. Ao se colocar

como o local privilegiado da racionalidade, ao pautar as suas ações sob a égide de

técnica, a governamentabilidade neoliberal exclui a política em nome de decisões

“neutras” e “objetivas”. Grande parte da produção crítica sobre esse fenômeno utilizou

o conceito de tecnociência precisamente como uma ferramenta de combate, de oposição

ao processo de gestão tecnocrática. Um dos objetivos explícitos é demonstrar que toda

opção técnica é também opção política: carregada de interesses, negociações, jogos de

poder. Despolitizadas, ciência e tecnologia estão à mercê dos grupos hegemônicos. Uma

vez politizadas, é possível pôr em disputa o controle sobre elas.

É preciso perceber, no entanto, que a tecnociência não se restringe a um

conjunto de mecanismos de exclusão e dinâmicas de controle. Não se resume à

tecnocracia. Não devemos ignorar a sua dimensão “interativa” e participativa, a

contrapartida de um mercado que não é apenas oferta, mas também é demanda120. Em

função disso, a pressão por inovação e por resultados práticos para as pesquisas é

apresentada como “responsabilidade social dos cientistas” que devem prestar contas aos

contribuintes ou aos consumidores. Essa dimensão não é apenas um disfarce que

garante o respaldo e a legitimidade da tecnociência, ela é constitutiva desse novo modo

de produção do conhecimento. Segundo Yurij Castelfranchi (2008, p. 225):

No discurso da tecnociência atual tecnocracia e retórica da participação, delegação aos especialistas e slogans de uma democracia “de baixo para cima”, jargão e sensacionalismo convivem numa trama discursiva e numa rede de práticas em que, ao lado do discurso da necessidade, há uma necessidade do discurso. Junto com um discurso de inexorabilidade, há uma incessante produção de diálogos, em cada molécula do dispositivo.

120 Assim como o discurso da ciência entre meados do século XIX e meados do XX se constituiu de uma face baconiana, operativa e uma contemplativa, do arrebatamento diante das maravilhas da natureza.

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Esse novo cenário dominado pela tecnociência engendra uma nova Política de

Ciência e Tecnologia. Donald Stokes (2005) narra com certa angústia o esgotamento

das políticas públicas inspiradas no modelo delineado no Relatório Bush, caracterizando

a década de 1980 como um período de “desordem”. Certamente, isso se deve ao forte

compromisso desse autor com o papel do Estado na promoção e no financiamento da

ciência e da tecnologia, que deveria “manter sob controle” os “motores da

modernização” (STOKES, 2005, p. 15). Diante de tal objetivo; diante da visão do pacto

entre ciência e Estado no qual cabia a este último, se não guiar o desenvolvimento da

pesquisa, fornecer as condições materiais e os enquadramentos institucionais para o

desenvolvimento da ciência, a situação desde final dos anos 1970 parecia. A Política de

Ciência e Tecnologia assume características bastante peculiares à medida que se

converte em Política de Tecnociência. O Estado se torna mais um agente em uma arena

de múltiplos interesses. A ligação orgânica que forma a tecnociência retira do poder

público qualquer centralidade que ele porventura possuíra em décadas anteriores. Ao

identificar como seus os interesses do mercado, a ciência e a tecnologia fazem também

deslizar a função do Estado, remodelando­a.

Esse novo ambiente, esse novo arranjo societário que possibilita a emergência da

tecnociência, essa trama complexa de ciência, tecnologia e capitalismo, faz implodir o

modo “tradicional” de contar a história das ciências, coloca novos desafios ao

pensamento histórico, exige dele um novo esforço. A história se (re)escreve em função

do presente, para dar sentido, profundidade e perspectiva a novos fenômenos. Diante de

novos problemas, os historiadores imaginam, fabricam, reelaboram um novo

passado.Como o passado das ciências será questionado vis­à­vis as questões que, no

presente, motivam essas investigações? Conhecemos, por exemplo, as mudanças na

história da escravidão e as transformações do escravo em um agente, sujeito econômico

racional, quase à imagem do self­made man neoliberal (CHALHOUB E TEIXEIRA, 2009;

REIS, 2012, pp. 124­138).

Para enfrentar essas questões – não para resolvê­las definitivamente, mas para

sugerir hipóteses, ampliar o limite das explicações, fazer repensar criticamente esses

temas inquietantes – a parte final desse capítulo será dedicada à análise do Leviathan

and the air­pump, uma das mais importantes obras de história das ciências do último

quartel do século XX.

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122

O Leviathan não será abordado aqui como representando apenas uma versão

histórica da sociologia do conhecimento científico. É evidente que essa era uma das

ambições explícitas dos autores, que pretendiam que o livro fosse “um exercício na

sociologia do conhecimento científico” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 15)121. Para

isso, se valiam de princípios metodológicos desenvolvidos por Bloor e Barnes (e pelo

próprio Steven Shapin), do estudo das controvérsias científicas da forma como foi

proposto por Harry Collins, da etnometodologia de Harold Garfinkel, dos estudos de

laboratório de Bruno Latour, do vocabulário do “segundo” Wittgenstein etc. Para John

Zammito, o Leviathan é o “grande exemplar do Programa Forte [...]. Nenhum outro

texto no campo possui o status canônico – igualmente para amigos ou inimigos – que

esse estudo assumiu” (ZAMMITO, 2004, p. 169, grifo no original)122. Como já afirmei

acima, os autores não estavam apenas imersos nesse ambiente intelectual e institucional,

eles possuíam um papel ativo na construção de uma nova visão sobre as ciências.

No entanto, a consecução plena do projeto de utilizar a história como campo de

teste empírico para teorias sociológicas é inexequível123. Não estou negando que os

autores utilizam uma rede conceitual, procedimentos metodológicos e mesmo um

conjunto de questões provenientes da sociologia e dos science studies. Essa tese não se

propõe a patrulhar as fronteiras da história das ciências, mantê­las sob vigilância e

recriminar os membros que escapam aos seus protocolos. Pelo contrário, tenho

121 No original: “an exercise in the sociology of scientific knowledge”. Tradução minha. Esse argumento é desenvolvido de forma mais alentada na longa introdução preparada pelos autores para a edição de 2011 do Leviathan and the air­pump (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. xl­xliv).122 No original: “the grand exemplar of the Strong Program […] No other text in the field has had the canonical status – for friends and foes alike – that this one study has assumed”. Tradução minha.123 Para Lakatos (1998), sob o imperativo da “reconstrução racional” a história das ciências seria o “laboratório da epistemologia”. Steven Shapin parafraseia ironicamente o título do famoso artigo de Lakatos (History of science and its racional reconstructions) no título do texto no qual aborda as possibilidades de tratamento empírico da sociologia do conhecimento científico (History of science and its sociological reconstructions). Embora Shapin (1982, p. 158) reconheça que tratar a literatura empírica como mero teste de algum programa teórico seria “quite incorrect” e que ela deve ser avaliada “on its own terms”, ele não fornece nenhuma indicação de qual seriam os termos adequados para essa avaliação e insiste na sua empreitada de avaliar a sociologia do conhecimento através de trabalhos históricos; a dúvida que permanece é se a referência ostensiva a Lakatos por meio da ironia não esconde, mutatis mutandis, certa semelhança de programa para a história das ciências (isto é, ser um laboratório, um exercício de modelos, conceitos e teorias elaborados em outros campos epistemológicos). Diversamente, Michel de Certeau nos fala, em relação à história serial dos anos 1950 e 1960, de uma intervenção da história nos “modelos”, de uma experimentação crítica, da história como local de controle que coloca em evidência os limites do modelo. Restaria à história que perdeu a função que possuía até o século XIX, de “prover a sociedade de representações globais da sua gênese” ou “expressar o sentido”, a tarefa de encontrar o seu lugar em meio às ciências sociais (CERTEAU, 2006, p. 80). Essas perspectivas parecem perder força à medida que a história cultural, o “retorno da narrativa” e, especialmente, as obras de Paul Ricoeur exploram a relação constitutiva entre história e narrativa.

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123

mostrado como o estabelecimento de zonas de troca é constitutivo da história das

ciências. A relutância da corporação dos historiadores em assumir as ciências como

objeto legítimo fez com que a história das ciências fosse desenvolvida à margem dos

espaços institucionais da história. Assim, a história das ciências foi praticada por

cientistas (como Thomas Kuhn), filósofos (como Koyré) e constituiu sua tradição

disciplinar, seus espaços de sociabilidade institucional e mesmo seus critérios

epistemológicos alheios à historiografia strictu sensu (MAIA, 2013). Esta situação

forçou a história das ciências a criar laços institucionais e teóricos com outras

disciplinas que estavam em torno do mesmo objeto, as ciências. Nessas zonas de troca,

onde as barreiras que delimitam as disciplinas estariam abertas, seria possível um

intercâmbio de técnicas, conceitos, formas de abordagem e até de questões, que podem

ser depois levadas para o interior dos domínios disciplinares. O fluxo entre os territórios

é frequente, embora não de forma constante ou homogênea.

Os science studies desempenharam, nos anos 1980, um papel fundamental no

estabelecimento de uma agenda de pesquisa, na forma de colocar os problemas, nas

ferramentas conceituais e na própria concepção de ciência. Grande parte da

historiografia do período não pode esconder o débito que contraiu com essa empresa

interdisciplinar124. A prática da história social (e sociológica) das ciências é

plenamente possível e desejável – revigora o conhecimento histórico, amplia o seu

alcance. Negar as transformações sofridas pela história em contato com outras ordens de

saber e, em especial, com as ciências sociais e o ideal de cientificidade que as informou

desde o século XIX, seria ignorar a história da historiografia125. Contudo, deslocar

esses elementos em direção à história e situá­los nesse campo disciplinar já significa

reconfigurá­los em função da especificidade dessa disciplina126. Contentemo­nos, por

enquanto, em situar essa especificidade no papel exercido pela narratividade na

“arquitetura do saber histórico” (RICOEUR, 2007, p. 250) e especialmente na função

que esse saber produzido sob o signo da narrativa desempenha na sociedade na qual se

inscreve (e na qual escreve). Dito isto, avaliarei o Leviathan como uma obra de história

124 Embora uma parte também significativa dos historiadores tenha mantido uma atitude de repúdio ou indiferença aos science studies.125 Convém evocar novamente aqui Michel de Certeau (2006, p. 65), para quem “cada sociedade se pensa ‘historicamente’ com os instrumentos que lhe são prórios”.126 Não pretendo recolocar a eterna e provavelmente insolúvel questão “que é a história?”, nem refazer todo o percurso da filosofia crítica da história do século XX em busca da afirmação (e problematização) de uma identidade ou de uma essência da história. Interessa­me (evitando o essencialismo ontológico por vezes implicado no verbo “ser”) a sua correlata: “que é a história das ciências?”.

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social das ciências profundamente marcada pelo convívio com a sociologia do

conhecimento científico e com os science studies.

A análise que empreenderei tem, acima de tudo, um objetivo historiográfico:

inscrever essa obra (e a produção histórica mais ampla à qual ela pertence) na

problemática dos fatores internos e externos. Ao lado dessa leitura que incorpora a

historiografia dos anos 1980 na “tradição”, a pesquisa aponta também para aquilo que

ela tem de peculiar. Joga assim com as continuidades e rupturas na historiografia das

ciências e se interroga reflexivamente sobre a relação entre essa historiografia e a

configuração sócio­histórica na qual emerge. Para isso, acompanharei mais de perto a

urdidura do enredo, as estratégias narrativas e os argumentos mobilizados pelos autores

para reconstruir a polêmica na qual emerge a “forma de vida experimental” como

dimensão constitutiva da ciência moderna.

A trama do Leviathan and the air­pump é bem conhecida: o livro se debruça

sobre a controvérsia travada na Inglaterra da década de 1660 entre Robert Boyle e

Thomas Hobbes. A disputa entre essas eminentes figuras dizia respeito ao estatuto do

experimento no conhecimento científico e à capacidade do experimento de produzir

fatos científicos127 seguros e confiáveis. Como resumem os autores, o estudo trata de

“estratégias conflitantes para a geração de conhecimento natural na Inglaterra de

meados do século dezessete” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 131)128. Sobretudo,

estavam em questão os experimentos pneumáticos realizados na bomba de ar construída

por Boyle (também chamada de bomba de vácuo ou máquina boyleana [machina

Boyleana]). A centralidade da bomba de ar na narrativa é evidente. No título da obra,

nas detalhadas descrições presentes ao longo do livro, no interesse em cada

componente, nos limites do seu funcionamento, na circulação desse artefato

127A expressão original utilizada pelos autores, matters of fact, é de difícil tradução. Na única tradução brasileira de textos de Steven Shapin preferiu­se manter maior literalidade, traduzindo­se a expressão por “matéria de fato” (SHAPIN, 2013c, p. 91); uma tradução portuguesa de uma conferência de Simon Schaffer traduz mais simplesmente como “facto científico” (SCHAFFER, 1999, p. 415); a edição argentina do Leviathan escolheu uma via econômica e traduz por “hecho” (SCHAFFER e SHAPIN, 1998). No trecho em que Bruno Latour discute o Leviathan, a tradução brasileira de Jamais fomos modernos manteve – provavelmente seguindo o original francês – a forma matters of fact (LATOUR, 1994, p. 23­27). Na primeira ocorrência, no entanto, Latour (1994, p. 23) explica a sua origem em uma “metáfora parajurídica” e traduz a expressão por “fato”, embora permaneça utilizando a forma em inglês. Edagr Silsel (1942) também utiliza esse conceito. Optei, quando necessário, por traduzir a expressão como “fato científico” devido a sua maior recorrência tanto no vocabulário comum quanto na literatura especializada, eventualmente será mantida a forma original em inglês. 128 No original: “conflicting strategies for generating natural knowledge in mid­seventeenth­century England”. Tradução minha.

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(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. 26­40, 225­282). “A bomba de ar é a ‘Big Science’

do século dezessete” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 38)129. Em uma longa resenha

da segunda edição do Leviathan, Ian Hacking (1991, pp. 235­241) considera esse

instrumento científico o protagonista do livro, que é descrito como uma biografia da

bomba de ar. De modo semelhante, Bruno Latour (1994, p. 22) considera a bomba de ar

o “verdadeiro herói dessa história”130.

Grande parte das análises desse livro deu ênfase ao argumento que conecta

epistemologia e política (GOLINSI, 2005, pp. 21­27, 190­193; LATOUR, 1994, pp. 21­

35; SPRINGER DE FREITAS, 2003; ZAMMITO, 2004, pp. 171­181). Esse argumento,

afirmado diversas vezes ao longo do livro, foi resumido na frase que abre a conclusão e

que se tornou uma das passagens mais conhecidas e citadas da obra: “soluções para o

problema do conhecimento são soluções para o problema da ordem social”

(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 332)131. Assim, as propostas rivais de Hobbes e

Boyle eram tanto tentativas de fundamentar a filosofia natural (ou filosofia

experimental, como queriam os membros da Royal Society) quanto formas de organizar

a vida social na Inglaterra da Restauração. “Para Boyle e seus colegas [na Royal

Society] a solução experimental para o problema da ordem era possível, efetiva e

segura. Sua praticidade, potência e inocuidade dependiam da ereção de uma barreira

crucial ao redor das práticas da forma de vida experimental” (SCHAFFER e SHAPIN,

2011, p. 80, grifo meu)132. Dessa maneira, “o matter of fact deve ser visto como uma

categoria tanto epistemológica quanto social” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 25,

grifo meu)133.

A preocupação com esse ponto por qualquer autor interessado na leitura do

Leviathan é completamente justificada – pela sua importância para a obra, mas também

pelo impacto dessa fórmula, que se tornou um dos emblemas da nova historiografia. É

129 No original: “the air­pump was seventeenth­century ‘Big Science’”. Tradução minha.130 Em certo sentido, a leitura realizada por Latour (1994, pp. 21­33) cristalizou uma interpretação da obra de Schaffer e Shapin, não apenas conferindo­lhe o estatuto de clássico e situando­lhe na base da nova historiografia da ciência, mas atrelando esse livro ao programa de antropologia simétrica que ele visava desenvolver, apesar das críticas que o intelectual francês dirige à conclusão demasiado blooriana do Levianthan. 131 No original: “Solutions to the problem of knowledge are solutions to the problem of social order”. Tradução minha.132 No original: “To Boyle and his colleagues the experimental solution to the problem of order was possible, effective, and safe. Its practicality, potency, and innocuousness were dependent upon the erection of a crucial boundary around the practices of the experimental form of life”.Tradução minha.133 No original: “the matter of fact is to be seen both as an epistemological and a social category”. Tradução minha.

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essa percepção que faz com que “a história das ciências ocupe o mesmo terreno que a

história da política” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 332)134. Apesar de reconhecer

isso, não partirei aqui desse argumento para explicar o livro. Ele estará no horizonte dos

questionamentos que levantarei aqui e não será tomado como evidente, apesar do seu

extremo sucesso. O que pretendo é seguir a forma pela qual esses autores chegaram a

essa conclusão (que se assemelha a um princípio heurístico, um a priori em busca de

confirmação pelo estudo de caso, teste do modelo de explicação proposto da sociologia

do conhecimento científico). Voltarei a minha sensibilidade para o modo como a

construção narrativa dos autores explora algumas técnicas de produção do espaço.

O livro é dominado por metáforas espaciais, geográficas. Seu enredo se

desenrola ao redor (e no interior) de locais muito singulares, cujos limites se

constituíam através de um árduo processo e que demandavam constante manutenção e

ajuste: a bomba de ar, o laboratório e a Royal Society de Londres. A metáfora se

expande para a circulação: circulação dos aparelhos e experimentos científicos (e a

prática da replicação com suas muitas dificuldades); circulação de relatos dos

experimentos que criavam “testemunhas virtuais” (a partir de uma série de tecnologias

literárias que serão detalhadas adiante). E também para o controle do acesso a esses

espaços, sobretudo através das normas que regulam a constituição de uma “comunidade

de experimentalistas” na Europa setecentista. Além disso, o tema do espaço aparece de

uma forma nada metafórica na querela entre “vacuístas” e “plenistas” que agitava o

ambiente intelectual da época.

É também com a metáfora do espaço (e suas correlatas) que lidamos ao tratar do

internalismo e do externalismo. Aproveitando essa metáfora, farei duas perguntas de

importância capital. Onde está localizada a ciência no modelo proposto por essa nova

historiografia? Como o Leviathan se posiciona em relação ao internalismo e ao

externalismo?

Nas décadas finais do século XX, o problema da demarcação se relaciona

diretamentecom a diluição da ciência no conjunto da sociedade, sintetizado no conceito

de tecnociência. Comecei esse capítulo afirmando que o período posterior à publicação

de A estrutura das revoluções científicas se caracterizava, entre outras coisas, pelas

tentativas de superação da divisão da história das ciências entre internalismo e

externalismo. Defendi também que essa empreitada não havia sido bem sucedida ou,

134 No original: “history of science occupies the same terrain as the history of politics”. Tradução minha.

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127

pelo menos, não tanto quanto os principais autores das décadas de 1970 e 1980

acreditavam, daí a necessidade de retornar a esse problema. Essa questão aparece para

Schaffer e Shapin de modo explícito: a preocupação dos autores é com a construção das

fronteiras entre ciência e não­ciência. Os autores tentam mostrar que essas fronteiras são

erguidas historicamente, que não é evidente, óbvio ou natural que um determinado

conjunto de práticas seja considerado ciência e outro conjunto seja deslegitimado e

rebaixado à categoria de “opinião”. O argumento que sustenta essa aparente obviedade,

dizem os autores, é o nosso pertencimento radical a uma cultura que naturalizou essas

divisões. Como membros dessa comunidade, não enxergamos certas questões como

problemas. A solução teórica encontrada é a de “bancar o estrangeiro”, exercitar o

estranhamento face ao que associamos ao comportamento normal da sociedade (ou da

natureza). “Nós queremos adotar uma suspensão calculada e informada das nossas

percepções evidentes das práticas experimentais e seus produtos” (SCHAFFER e

SHAPIN, 2011, p. 6)135.

Um dos pontos fortes da obra é justamente narrar o processo de construção do

coletivo de produção do conhecimento, das suas instituições (a Royal Society, o

laboratório), das novas práticas e conhecimentos que ela cria (a nova ciência), dos

novos produtos, da nova cultura material (a bomba de ar), como sendo o mesmo

fenômeno. É óbvio que essa narrativa, por certa persistência do vocabulário da

demarcação, está repleta de remissões ao antigo estilo que visava superar. Essas

passagens de certa hesitação são significativas, expressam a dificuldade da tarefa

executada por essa historiografia. A insistência “do fenômeno” em se seccionar em “o

social” e “o natural”, entre o “teórico” e o “experimental”, entre o “discurso” e a

“realidade”, o “interno” e o “externo” se exibe muito evidente para um espírito formado

na tradição filosófica da primeira metade do século XX136.

É justamente nos momentos que essa vacilação relampeja na trama que se aguça

o interesse do historiador preocupado em examinar os interstícios dessa escrita. Para

estimular uma leitura que privilegia esses momentos, dividirei essas etapas, tentando

desvendar as formas através das quais os autores amarram os diversos fios dessa

135 No original: “We wish to adopt a calculated and informed suspension of our taken­for­granted perceptions of experimental practices and its products”. Tradução minha.136 O seguinte trecho fornece um exemplo excelente: “Now that we understand aspects of Hobbes condemnation of experimental practice we can parenthetically discuss his relations with the Royal Society as a corporate body” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 131).

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trama.Em cada um desses momentos, a atividade de produção de fronteiras (boundary

work) será o foco principal da leitura aqui desenvolvida. Não pretendo narrar

novamente a história da disputa entre Hobbes e Boyle recolocando as tradicionais

polarizações, tratando as diferentes “dimensões” como fenômenos distintos que

obedecem a lógicas próprias, mas ressaltar a especificidade dessa nova forma de narrar

a história das ciências.

A primeira etapa que abordarei é a da formação do corpo social da ciência

moderna, responsável pela elaboração coletiva do conhecimento legítimo – a

“comunidade experimental” ou “moral”. Os autores descrevem a construção de um

espaço social regulado por uma série de predicados sociais e morais que construíam a

identidade do filósofo natural. Essa nova configuração que emerge no início da Era

Moderna representa a si mesma como uma atividade pública e se opõe simultaneamente

ao isolamento do alquimista em seu gabinete e à clausura do monge em sua cela

(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 57; SHAPIN, 2013d). “Boyle propunha que os fatos

científicos fossem estabelecidos pela agregação de crenças individuais. Membros de um

coletivo intelectual tinham que assegurar mutuamente a si mesmos e a outros que a

crença na experiência empírica estava garantida” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 25,

grifo no original)137. A atividade da ciência moderna é uma atividade coletiva, fruto de

um processo de “re­localização da filosofia natural no espaço cívico” (SHAPIN, 2013d,

p. 132). Não é mais a reclusão individual que produz o conhecimento profundo e

verdadeiro, mas a submissão a normas sociais.

O entendimento humano individual precisava ser disciplinado pelo método, a saber um instrumento de indução verdadeira. E esse instrumento foi implementado não por um indivíduo, e sim por uma coletividade organizada de forma complexa e que interagia de modo inacessível. (SHAPIN, 2013d, p. 132)138

Assim, a constituição dessa comunidade se refere à necessidade de certas

qualidades morais, de certo conjunto de valores indispensáveis à boa prática da filosofia

natural: em uma palavra, se refere ao ethos da ciência moderna. Esse ethos não se

137 No original:“Boyle proposed that matters of fact be established by the aggregation of individual’s beliefs. Members of an intellectual collective had mutually to assure themselves and others that belief in an empirical experience was warranted”. Tradução minha.138 Nesse mesmo texto, Shapin (2013d, p. 132­139) aponta para a ambiguidade dos repertórios correntes em relação à identidade científica no século dezessete, mostrando a permanência da retórica do filósofo natural como “eremita” e “sacerdote da natureza” em figuras importantes, como Robert Boyle e Isaac Newton. O topos do cientista como um indivíduo isolado, à margem da sociedade (se não fisicamente, ao menos intelectualmente, voltado para os seus pensamentos) ainda é forte na atual imagem social do cientista.

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identifica com as prescrições mertonianas descritas no capítulo anterior. Os

experimentalistas elaboram para si uma identidade ligada à sobriedade, à humildade, à

modéstia. Esses valores garantiam aos praticantes dessa filosofia natural um estatuto de

nobreza139 (SCHAFFER e SHAPIN, pp. 65­76). Esse sistema organizado de

distribuição de valores, julgamentos e emoções – essa economia moral da ciência

moderna (DASTON, 2014) – regula as fronteiras da comunidade, credencia os

legítimos participantes do coletivo de produção de conhecimento verdadeiro. Uma das

formas utilizadas para delimitar esse espaço foi através da produção literária de relatos

de experimentos. Esses relatos, descrições minuciosas das atividades empíricas,

destinavam­se a ampliar o público da nova filosofia experimental por meio de

testemunhas virtuais140. Esses relatos deveriam estabelecer um pacto de confiança

entre o experimentalista e essas testemunhas, que passariam a acreditar e validar as

performances experimentais e os seus resultados sem ter o contato direto com a

operação da bomba de ar, por exemplo. Mais do que isso, os autores enfatizam o papel

desses discursos na economia moral da comunidade. “A exposição literária de uma certa

forma de moralidade era uma técnica na fabricação de fatos científicos” (SCHAFFER e

SHAPIN, 2011, p. 65)141. Logo adiante esse ponto é aprofundado.

A tecnologia literária de Boyle dramatizava as relações sociais apropriadas para uma comunidade de filósofos experimentais. Apenas estabelecendo regras corretas de discurso os fatos científicos poderiam ser gerados e defendidos e apenas constituindo esses fatos científicos como as fundações acordadas do conhecimento a comunidade moral de experimentalistas poderia ser criada e sustentada (SCHAFFER e SHAPIN, p. 69, grifos meus)142.

139 Efetivamente, a maioria dos praticantes da filosofia natural na Europa dos séculos XVII e XVIII era de famílias aristocráticas ou de ricos proprietários. 140 O caráter público da experimentação será retomado em seguida, quando da discussão sobre as instituições da ciência moderna.141 No original: “the literary display of a certain sort of morality was a technique in the making of matters of fact”. Tradução minha.142 No original: “Boyle’s literary technology dramatized the social relations proper to a community of experimental philosophers. Only by establishing right rules of discourse could matters of fact be generated and defended, and only by constituting these matters of fact into the agreed foundations of knowledge could a moral community of experimentalists be created and sustained”. Tradução minha. Esse argumento é repetido ao longo o livro para se referir também à disputa entre tecnologias literárias diferentes em Boyle e Hobbes: “in both Boyle’s and Hobbes’s writings, literary structure and process dramatize the social relations and practices deemed appropriate to the production of knowledge. Differences in theories of knowledge­production and evaluation are displayed in different literary technologies” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 145).

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Em uma versão preliminar do segundo capítulo do Leviathan, texto que exibe

pela primeira vez o uso do conceito de tecnologias literárias, Shapin (2013b, p. 91)

enfatiza que:

A produção de conhecimento e a comunicação de conhecimento são normalmente consideradas como atividades distintas. Argumentarei em contrário: o discurso acerca da realidade natural é um meio de gerar conhecimento acerca da realidade, de assegurar a garantia para esse conhecimento e de determinar os domínios de certo conhecimento em relação a áreas de posição menos certa. Mostrarei o status convencional de maneiras específicas de se falar sobre a natureza e o conhecimento natural, e examinarei as circunstâncias históricas em que essas maneiras de falar foram institucionalizadas. [...] A etimologia de alguns de nossos termos chave é pertinente: se uma comunidade é um grupo que compartilha uma vida em comum, comunicação é um meio de tornar as coisas comuns.

As fronteiras dessa comunidade eram estabelecidas a partir da distribuição

desigual das qualidades e habilidades necessárias à prática da filosofia experimental.

Embora, em princípio, o caráter público desse conhecimento fosse ressaltado, a função

desse público seguia uma hierarquia bem definida, ele não se confundia com a

comunidade. Os protocolos estabelecidos deveriam construir um espaço social pronto

para superar o paradoxo de ser simultaneamente coletivo e isolado, uma vez que toda

interferência social na produção de conhecimento era percebida como uma distorção.

Desse modo, os autores apontam para a “desconstrução” da imagem da ciência como

algo público, voltando sua atenção para uma estratégia dupla: de um lado, enunciar que

o conhecimento científico deve ser público, aberto; de outro lado, como contrapartida

necessária, restringir o efetivo acesso público à ciência, regular o espaço social no qual

a ciência é praticada. Todo esse esforço de regulação e criação de uma comunidade

dotada de autonomia é explicado como tendo a função de controlar as possibilidades de

dissenso e consenso, como um processo de criação de maneiras apropriadas de

expressar a divergência e conduzir as controvérsias. Essas convenções linguísticas e

sociais deveriam prevalecer caso os experimentalistas quisessem efetivamente fazer

avançar o seu modo de produção do conhecimento, a sua “forma de vida” (SCHAFFER

e SHAPIN, 2011, pp. 72­76, 151­154).

No momento em que o processo de privatização do conhecimento se intensifica

na mesma medida em que as decisões se baseiam em escolhas tecnocráticas, a

preocupação dos autores com essa dimensão parece extremamente relevante, pois

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131

aponta para o caráter histórico e contingente dos limites da participação pública na

produção e no consumo da ciência.

Para prosseguir na análise dos procedimentos envolvidos nessa produção de

limites, passarei ao exame das instituições onde a filosofia natural era praticada. A

ênfase nos “estudos de laboratório” é um lugar comum para aqueles familiarizados com

a trajetória da primeira geração dos science studies143. Os clássicos A vida de

laboratório, publicado originalmente em 1979 por Bruno Latour e Steve Woolgar, e

The manufacture of knowledge, que Karin Knorr­Cetina publica em 1981, lançam as

bases dessa empreitada. A proposta elaborada por esses autores se distancia das

“histórias de instituições científicas” (laboratórios, institutos de pesquisa, sociedades

científicas etc.) que possuem uma larga e consolidada tradição. Esses espaços de

produção do conhecimento científico não são vistos como “templos do saber”

(eventualmente esse topos aparece de forma crítica e irônica), mas como algo que

confere à ciência um caráter radicalmente situado, local, contingente (GOLINSKI,

2005, pp. 80­81; LATOUR, 1994, pp. 26­31; SHAPIN, 2013b). O Leviathan and the

air­pump se tornou uma das principais fontes históricas para esse campo. Essas

instituições que se tornaram sinônimo de ciência emergem justamente no período

tratado no livro e a escolha desse objeto é uma tentativa de atacar esses problemas antes

da sua cristalização em entidades bem delimitadas, mostrando – para usar o vocabulário

latouriano – a ciência em ação. “No programa de Boyle, deveria haver um espaço

especial no qual a filosofia natural experimental seria feita, no qual os experimentos

seriam realizados e testemunhados. Esse [espaço] era o laboratório nascente”

(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 334)144. Assim, o trabalho de Simon Schaffer e

Steven Shapin desempenha a função de reler o surgimento da ciência moderna com uma

sensibilidade que agrada aos science studies.

O laboratório é a “casa da experiência”, local onde são arregimentados os

elementos humanos e materiais indispensáveis à prática da ciência – ou, no século

XVII, da filosofia natural (SHAPIN, 2013b). É um espaço onde elementos heterogêneos

convivem e ganham certa coesão: os instrumentos e máquinas, os técnicos que realizam

143 Jan Golinski (2005, pp. 79­103) fornece uma perspectiva abrangente dos principais desenvolvimentos dos estudos de laboratório ao longo dos anos 1980 e 1990. 144 No original: “In Boyle’s programme there was to be a special space in which experimental natural philosophy was done, in which experiments were performed and witnessed. This was the nascent laboratory”. Tradução minha.

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132

o trabalho manual, a audiência cuidadosamente selecionada e os filósofos naturais,

verdadeiros produtores do conhecimento. Mais importante, esses elementos são

arranjados segundo uma disciplina estrita e exaustivamente reiterada através de vários

dispositivos que Schaffer e Shapin (2011, pp. 18­25, 76­79) chamam de tecnologias

sociais. Esses dispositivos tinham como principal atribuição garantir a legitimidade do

conhecimento produzido no interior do laboratório, mas também produzido em outros

locais menos acessíveis e levados ao laboratório para que lá fossem validados

(GOLINSKI, 2005, pp. 84­94; SHAPIN, 2013b). Assim como no caso da elaboração de

regras de conduta que garantiam o pertencimento à “comunidade experimental”, essas

tecnologias sociais regulavam uma ecologia do laboratório, distribuíam papéis sociais

distintos, organizam convenções e protocolos. A emergência dessas instituições se

apropria de normas sociais já vigentes, recombinando­as, calibrando­as de acordo com

as suas necessidades específicas. Ao explicar as fontes de legitimidade de um relato na

Inglaterra do século XVII, Steven Shapin comenta que “de modo aproximado, a

distribuição da credibilidade seguia os contornos da sociedade inglesa e o fazia tão

claramente que quase nenhum comentador sentia­se obrigado a especificar a base do seu

valor de credibilidade” (SHAPIN, 2013b, p. 64). A autoridade provinha de critérios

sociais que circulavam ao longo do corpo social – o ideal de nobreza que indiquei como

parte constitutiva da identidade do filósofo natural nesse período é sintomático. Ser um

cavalheiro era tão determinante (ou talvez até mais, em meados do século XVII) do que

ser versado em filosofia.

A espacialidade adquire no laboratório uma acepção mais literal. Trata­se de um

ambiente, na maioria dos casos, especialmente construído ou adaptado aos propósitos da

produção de conhecimento. Mas, assim como no caso de suas convenções sociais, as

suas convenções arquitetônicas foram capturadas de outros espaços – como o teatro ou

o fórum. As escolhas por esses modelos derivavam da necessidade de replicar no

laboratório não apenas os fenômenos naturais, mas as condições de comportamento e

distribuição social, a forma como os grupos sociais que frequentavam o laboratório

percebiam os seus papéis e as normas de conduta (muitas vezes tácitas) que deveriam

seguir. Como resume Jan Golinski (2005, p. 88): “o espaço físico do laboratório fornece

meios para organizar as interações entre seus habitantes humanos enquanto eles se

engajam no trabalho experimental”145.

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Essa série de questões se relaciona diretamente com um problema decisivo no

estabelecimento de um programa experimental de filosofia natural: o caráter público

desse conhecimento. “O pouco que sabemos sobre os espaços experimentais ingleses

em meados do século dezessete indica que o seu status como público ou privado era

intensamente debatido” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 335)146. Esses debates

estavam no centro da controvérsia entre Hobbes e Boyle e do sucesso na sua resolução

dependeria o sucesso de toda nova “forma de vida experimental”. As operações

retóricas e sociais necessárias a essa solução eram extremamente sofisticadas e

dependiam de múltiplos recursos. Embora a dimensão pública da filosofia experimental

fosse ponto chave para a própria legitimidade desse conhecimento da forma como o

entendiam Robert Boyle e os fundadores da Royal Society, a “solitude” e a reclusão

(provavelmente seria anacrônico falar em privacidade antes da segunda metade do

século XVIII) eram valores necessários à prática naturalista. Equacionar essas atitudes

se tornou um dos pontos principais da construção desses espaços (físicos ou sociais),

muito do trabalho de construção de fronteiras se dedicava a refinar essas noções e

superar o paradoxo entre público e privado. Para Schaffer e Shapin essa é também uma

questão extremamente relevante. “Um modo de assegurar a multiplicação de

testemunhas era realizar experimentos em um espaço social. O ‘laboratório’

experimental era contrastado com o gabinete do alquimista precisamente por que do

primeiro se dizia ser um espaço público e o último privado” (SCHAFFER e SHAPIN,

2011, p. 57)147. Em uma passagem mais extensa, os autores tentam definir o

laboratório e as controvérsias em torno do seu caráter.

O espaço onde essas máquinas trabalhavam – o laboratório nascente – deveria ser um espaço público, mas um espaço público restrito, algo que críticos como Hobbes logo apontaram. Se alguém desejasse produzir conhecimento experimental autenticado – matters of fact – deveria vir a esse espaço e trabalhar aqui com outros. Se alguém desejasse ver novos fenômenos criados por essas máquinas, deveria vir a esse espaço e vê­los com outros. Os fenômenos não estavam em exibição em qualquer outro lugar. O laboratório era, portanto, um espaço disciplinado, onde práticas experimentais, discursivas e sociais

145 No original: “the physical space of the laboratory provides means for organizing the interactions among its human inhabitants as they engage in experimental work”. Tradução minha.146 No original: “What little we do know about English experimental spaces in the middle part of the seventeenth century indicates that their status as public or private was intensely debated”. Tradução minha.147 No original: “In experimental practice one way of securing the multiplication of witness was to perform experiments in a social space. The experimental ‘laboratory’ was contrasted to the alchemist’s closet precisely in that the former was said to be a public and the latter a private space”. Tradução minha.

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eram coletivamente controladas por membros competentes. Nesses aspectos, o laboratório experimental era um local melhor para gerar conhecimento autêntico do que o espaço externo no qual simples observações da natureza poderiam ser feitas (SCHAFFER e SHAPIN, p. 39)148.

Dessa maneira, a tensão entre interno e externo parece ter sido deslocada para a

disputa sobre o caráter da prática científica: público ou privado. Para falar como Fleck

(embora a analogia não seja completamente adequada), diríamos que se trata de um jogo

entre circuitos “esotéricos” e “exotéricos”. Não se trata de dentro ou fora da ciência –

conteúdo ou contexto –, mas de uma ciência praticada dentro ou fora da sociedade, de

um conhecimento produzido em locais sociais e físicos especialmente destinados,

desenhados, protegidos, patrulhados para esse fim. Um conhecimento situado nos seus

locais culturais de produção, coagido pelos arranjos que eles permitem e legitimam.

Agora que sabemos como pertencer à comunidade e adentrar o laboratório,

podemos ter acesso às máquinas. Neste caso, realizar experimentos na bomba de ar149.

Como já indiquei acima, esse ponto adquire importância crucial no texto de Schaffer e

Shapin. A bomba de ar corporifica a filosofia natural da forma como era praticada e

professada por Robert Boyle e seus colegas. Discutindo o papel da máquina como um

signo poderoso para aquele grupo, os autores examinam dois aspectos em especial.

Em primeiro lugar, a necessidade expressada por experimentalistas de que outros

experimentos e dispositivos ocupassem o lugar da bomba de ar quando ela já não

conseguisse mais atrair a atenção do público. Um tema relacionado à teatralidade

envolvida no processo de experimentação pública e aos efeitos dessa teatralidade nas

tecnologias sociais, na manutenção das testemunhas necessárias à legitimação do saber

ali produzido. A escolha do que exibir dependia de uma equação que havia de ser

resolvida. De um lado, a satisfação de uma espécie de audiência que não fazia parte da

148No original: “The space where these machines worked – the nascent laboratory – was to be a public space, but a restricted public space, as critics like Hobbes were soon to point out. If one wanted to produce authenticated experimental knowledge – matters of fact – one had to come to this space and to work in it with others. If one wanted to see the new phenomena created by these machines, one had to come to that space and see them with others. The phenomena were not on show anywhere at all. The laboratory was, therefore, a disciplined space, where experimental, discursive, and social practices were collectively controlled by competent members. In these respects, the experimental laboratory was a better space in which to generate authentic knowledge than the space outside it in which simple observations of natures could be made”. Tradução minha.149 A operação efetiva dos instrumentos era realizada por “técnicos invisíveis”. Em artigo posterior à publicação do Leviathan, Shapin (2013b, p. 80, grifo no original) explica: “Em sua maioria, contudo, a legião de ‘técnicos de laboratório’, ‘operadores’, ‘assistentes’ e ‘técnicos­químicos’ de Boyle eram atores invisíveis. Eles não faziam parte do público que dizia respeito a esses experimentos. Eles faziam com que as máquinas funcionassem, mas não podiam produzir conhecimento”.

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comunidade experimentalista, mas enquadrava­se nos requisitos sociais e morais para

participar do público do laboratório. Esse público era alimentado com novidades e

espetáculos, não estava diretamente interessado na repetição exaustiva. De outro lado,

as exibições deveriam ser instrutivas, sóbrias e filosoficamente relevantes. Adequadas à

tarefa que desempenhavam. Elas deveriam expressar a identidade e os valores da

comunidade, retratar as suas formas de conduta, de sociabilidade, sua existência como

um ente (coletivo) específico no corpo social, seu lugar na hierarquia da produção do

conhecimento150. Para construir essa audiência, eles precisavam domesticá­la, não se

submeter às suas vontades. A bomba de ar conseguiu manter juntos os interesses em

conflito, pois satisfazia a ambos. “Nenhum equipamento novo tomou o lugar da

machina Boyleana como um emblema do programa experimental da Royal Society”

(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 32).

O segundo aspecto é a exploração da fortuna iconográfica sobre a bomba de ar.

As gravações e desenhos que exibem o aparelho são os pontos de interseção entre

tecnologias materiais e literárias, o ponto onde máquina e discurso se confundem.

Deslocando a perspectiva da questão, podemos dizer que é onde a distinção entre

máquina e discurso não faz sentido. A intrincada configuração de figuras mitológicas,

objetos filosóficos, olhares, gestos e disposição espacial dos elementos seguia um

repertório que deveria ser compartilhado pelos experimentalistas (e pela cultura erudita

em geral). A construção codificada das imagens que aparecem nas obras de filosofia

natural desempenhavam um papel disciplinar. Elas não são meras ilustrações, são

objetos constitutivos de uma forma específica de produzir e comunicar o conhecimento.

As representações iconográficas da bomba de ar (e de outros elementos desse

programa), a difusão dos seus modos de funcionamento e dos seus resultados em

imagens detalhadas, garantiam a ampliação das testemunhas virtuais necessárias à

legitimação desse saber, criavam uma camada mais distante de público. Um público que

não tem acesso ao interior do laboratório, mas que deve ser convencido do seu poder

por meios retóricos e pictóricos. A imagem da bomba de ar é poderosa, captura esse

movimento complexo.

A descrição detalhada da máquina era um recurso literário central para a

estratégia de Boyle e é parcialmente reconstituído no Leviathan151. Não considero

150 Steven Shapin (2013b) brinca com o trocadilho entre pump (bomba) e pomp (pompa) para assinalar essa correlação.

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necessário repetir essa descrição para explorar a estratégia historiográfica dos autores,

embora devamos notar alguns pontos relevantes. A bomba de ar era um aparelho

composto de um globo de vidro assentado sobre um suporte que continha pistões,

alavancas, cilindros, registros, válvulas e diversos componentes que permitiam bombear

o ar para fora do globo (e por meio dos quais a bomba poderia vazar, emperrar ou

apresentar funcionamento deficiente). A evacuação da bomba servia prioritariamente

para testar a natureza do ar (peso, elasticidade etc). Possibilitava também discussões

sobre a existência do vácuo, sobre o éter, a composição da atmosfera. Na bomba de ar

cabiam quase todas as questões da filosofia natural do século XVII. De dentro dela saia

o principal fundamento da nova forma de produção de conhecimento científico, da nova

“forma de vida experimental”. Além dos experimentos oriundos da própria operação da

bomba, era possível realizar outros experimentos dentro do globo (como os testes com o

mercúrio de Torricelli). As tarefas de construção e operação da bomba de ar eram

consideradas extremamente complicadas, caras e delicadas. De forma sintética, três

fatores justificavam a contínua preocupação com essa atividade árdua: “(1) que tanto a

integridade do mecanismo quanto a seu vazamento limitado eram recursos importantes

para Boyle na validação de suas descobertas pneumáticas e a interpretação apropriada

destas; (2) que a integridade física da máquina era vital para a percepção de integridade

do conhecimento que a máquina ajudava a produzir; (3) que a sua falta de integridade

física era uma estratégia usada por críticos, particularmente Hobbes, para desconstruir

as alegações de Boyle e substituí­las por relatos alternativos” (SCHAFFER e SHAPIN,

30)152.

A bomba de ar fornece também espessura e materialidade à história que os

autores querem contar. Ela resume a categoria de tecnologia material, que participa

ativamente na construção de um dos principais argumentos do livro.

A solução dramática encontrada pelos autores é deslocar os fatos científicos

para fora da natureza, situando­os como artifícios, produtos dessas séries de

dispositivos, dessas três tecnologias (material, social e literária). “Ao usar tecnologia

151 Um trecho da descrição presente no Capítulo 2 do Leviathan (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. 26­30) aparece em português na tradução do artigo de Steven Shapin (2013b, pp. 93­94) que deu origem ao referido capítulo do livro.152 No original: “(1) that both the engine’s integrity and its limited leakage were important resources for Boyle in validating his pneumatic findings and their proper interpretation; (2) that the physical integrity of the machine was vital to the perceived integrity of the knowledge the machine helped to produce; (3) that the lack of its physical integrity was a strategy used by critics, particularly Hobbes, to deconstruct Boyle’s claims and to substitute alternative accounts”. Tradução minha.

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para se referir às práticas literárias e sociais, bem como a máquinas, nós desejamos

enfatizar que todas as três são ferramentas de produção de conhecimento” (SHCAFFER

e SHAPIN, 2011, p. 25, n. 4)153. A seguinte citação, embora extensa, elucida essa

questão.

Apesar da utilidade de distinguir as três tecnologias empregadas na produção de fatos, não devemos ter a impressão de que estamos lidando com categorias distintas: cada uma delas incorpora as outras. Como veremos, as práticas experimentais que empregam a tecnologia material da bomba de ar cristalizaram formas específicas de organização social; essas formas sociais valorizadas eram dramatizadas na exposição literária de descobertas experimentais; o relato literário das performances da bomba de ar estendiam uma experiência que era considerada essencial à propagação da tecnologia material ou mesmo como um substituto válido para o testemunho direto da exibição experimental. Se quisermos entender como Boyle trabalhou para construir fatos pneumáticos devemos considerar como cada uma das três tecnologias eram usadas e como elas se interpenetravam (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. 25­26)154.

Do recurso às tecnologias decorre a organização do enredo e a composição da

estrutura narrativa. O fato científico, produto dessas atividades, não é uma apenas uma

lei geral ou uma entidade. Ele é um artifício, uma peça em um jogo de linguagem. No

entanto, para que a operação funcione ele precisa ser autonomizado, isolado das suas

formas de produção. Deve apagar os traços de sua construção e se assemelhar a uma

evidência. Afinal, contra fatos não há argumentos. “Cada uma das três tecnologias de

Boyle trabalhavam para alcançar a aparência dos fatos científicos como itens dados.

Quer dizer, cada tecnologia funcionava como um recurso de objetivação. [...] A

objetividade do fato científico experimental era um artefato de certas formas de discurso

e certos modos de solidariedade social” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. 77­78). Os

fatos são externos às vontades, interesses e limitações humanas. Quando o aparato

experimental opera corretamente, eles provêm da própria natureza, sem interferências.

153 No original: “By using technology to refer to literary and social practices, as well as to machines, we wish to stress that all three are knowledge­producing tools”. Tradução minha.154 No original: “Despite the utility of distinguishing the three technologies employed in fact­making, the impression should not be given that we are dealing with distinct categories: each embedded the others. As we shall see, experimental practices employing the material technology of the air­pump crystallized specific forms of social organizations; these valued social forms were dramatized in the literary exposition of experimental findings; the literary reporting of air­pump performances extended an experience that was regarded as essential to the propagation of the material technology or even as a valid substitute for direct witness of experimental display. If we wish to understand how Boyle worked to construct pneumatic facts we must consider how each of the three technologies was used and how each bore upon the others”. Tradução minha.

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A comunidade, o laboratório e a bomba de ar são apenas meios transparentes para

carregar um item de conhecimento ao longo de diversos circuitos sociais.

Mas os autores não se contentam em dissecar a natureza convencional desse

processo, em apontar – por meio do estudo das dificuldades na circulação da bomba de

ar e na replicação dos experimentos – para a dimensão radicalmente local desse

conhecimento, em demonstrar que “o fato é uma categoria constitutivamente social”

(SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 225). Adotando esse tratamento para as diversas

operações de Boyle e os experimentalistas, os autores apontam para uma nova forma de

encarar historicamente a ciência. Podemos realizar uma leitura que encontra paralelos

com a interpretação de Paul Forman (2007), que demarca a passagem da Modernidade

para a pós­modernidade a partir inversão da relação de proeminência entre a ciência e a

tecnologia. Se, na Modernidade, argumenta Forman, a ciência incluía também a

tecnologia, na pós­modernidade a tecnologia inclui a ciência.

A história do surgimento da “forma de vida experimental” e do triunfo da

ciência moderna no século XVII é recontada como um processo de reconfiguração

permanente de fatores disponíveis socialmente e postos em funcionamento para novos

propósitos. A produção de dispositivos sociotécnicos não é uma mutação da ciência

contemporânea. É o fruto de um processo que define a ciência moderna, desde a sua

emergência, como tecnociência. As duas camadas de temporalidade – uma situada em

meados do século XVII e a outra no final do século XX – se superpõe. A nova

historiografia das ciências reconstrói o passado e apresenta uma solução diferente para

os temas contemporâneos. É claro que o fato científico é o fundamento do

conhecimento, mas não porque ele é “neutro” ou independente de “questões sociais”.

Pelo contrário, ele inventa o contexto, o conteúdo e a demarcação entre os dois no

mesmo processo. Ele fundamenta o conhecimento porque se converte em uma unidade

de sentido histórico e social. Apesar de se valer do princípio de simetria para explicar a

disputa entre dois modelos de filosofia natural, o livro (se) encerra (com) um juízo de

valor: “Hobbes was right” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 344). Não em sua filosofia

natural, mas em sua teoria das ciências. A vitória da ontologia proposta pelos

experimentalistas (e da epistemologia a ela associada) não resulta da maior capacidade

desse programa em produzir conhecimento verdadeiro, mas do seu sucesso em produzir

consensos sociais em torno dos itens de conhecimento e das formas de organizá­los.

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Nem o nosso conhecimento científico, nem a constituição da nossa sociedade, nem as afirmações tradicionais sobre as conexões entre a nossa sociedade e o nosso conhecimento são mais dadas como certas. A medida que reconhecemos o status convencional e artefatual das nossas formas de conhecimento, nos colocamos em posição de perceber que os responsáveis por aquilo que sabemos somos nós e não a realidade (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 344, grifo meu)155.

A cisão entre o “externo” e o “interno” é reposicionada, saindo do campo da

realidade social para o campo das convenções culturais. O vocabulário da demarcação é

herdeiro da tradição fundadora da ciência moderna e só faz sentido nesse

enquadramento. Os autores refletem sobre a sua posição a respeito dessa divisão na

introdução preparada para a edição comemorativa de vinte e cinco anos de lançamento

do livro. Afirmam a sua insatisfação com o debate entre “fatores internos” e “fatores

externos” e procuram a solução justamente na problematização das fronteiras.

Identificam o problema nas clivagens ideológicas que dominaram o clima cultural do

século XX (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, pp. xiii­xvii). Assim, o que eles pretendem

mostrar como saída não é uma tentativa de combinar as abordagens, mas uma forma de

superá­las, mostrando­as como efeito de um processo histórico. Na narrativa do

Leviathan, os fatores internos e externos são tratados como objetos históricos e não

categorias historiográficas.

Ao atacar a tradicional agenda de pesquisa da historiografia das ciências – uma

agenda que já não possuía o mesmo poder de coerção desde Thomas Kuhn – os novos

historiadores supõem reconfigurar grande parte do aparato conceitual que utilizamos

para entender a ciência. Esse movimento desloca as funções sociais e políticas da

história das ciências: a nova historiografia contesta frontalmente o espaço de ação

política das ciências. As correlações de força envolvidas na produção dessas fronteiras

são focalizadas e cruelmente exibidas como meras formas institucionalizadas de falar

sobre o saber e de praticar a ciência. O modo encontrado para escapar dessas

convenções foi seguir o princípio de simetria – não atribuindo ao conhecimento

vitorioso nenhum privilégio epistemológico, nenhum posto superior na hierarquia dos

saberes. Não existe triunfo da verdade ou marcha do progresso, existem formas de

155 No original: “Neither our scientific knowledge, nor the constitution of our society, nor traditional statements about the connections between our society and our knowledge are taken for granted any longer. As we come to recognize the conventional and artifactual status of our forms of knowing, we put ourselves in a position to realize that it is ourselves and not reality that is responsible for what we know”. Tradução minha.

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conhecimento que se estabilizam e se cristalizam ao arregimentar recursos sociais e

materiais.

A simetria e as suas implicações filosóficas, historiográficas e políticas foram

duramente combatidas. A pressuposição de equilíbrio entre as visões de Hobbes e Boyle

a respeito do conhecimento é um dos pontos que ofereceu mais resistência a essa forma

de escrever a história das ciências. Alguns críticos sugerem uma leitura do Leviathan

and the air­pump que obedeça a uma “estratégia sanduíche”, que aproveite as

informações que o livro fornece e despreze as interpretações e explicações que ele

supostamente retira dessas informações; isto é, “omita a introdução e a conclusão, o

resto é simplesmente história” (ZAMMITO, 2004, p. 169). O enorme sucesso dos

science studies e da historiografia associada a eles foi surpreendido, na passagem da

década de 1980 para a década de 1990, por um ataque vindo prioritariamente de

cientistas naturais atentos à situação das novas análises das ciências (e extremamente

insatisfeitos com essas abordagens) e filósofos comprometidos com a objetividade. Essa

reação, que marca o início das Guerras da Ciência, incide como um duro golpe nessa

nova proposta. Em certo sentido, ela encerra um ciclo de expansão dessas abordagens e

marca o início de um período de reflexão, dissidências, meta­análises. Essa crise não

fará morrer a nova historiografia das ciências, mas serve como um novo ponto de

partida, forçando esse grupo a repensar alguns de seus princípios teóricos. As

implicações das Guerras da Ciência servirão também de ponto de partida para o

próximo capítulo dessa tese. Prosseguindo a análise, tentarei perceber como essa

ofensiva foi sentida na historiografia. Por enquanto, ofereço apenas uma pergunta

provocativa e uma série de respostas evasivas.

Se essas novas análises explicam satisfatoriamente a ciência, porque os cientistas

reagem? (“Porque elas não explicam satisfatoriamente coisa alguma!”, esbraveja Sokal,

indignado.) Talvez porque a cripta de Pasteur permanece ao lado do laboratório. Porque

esse laboratório – por sua vez – não foi preservado na sua monumentalidade e sim

continuamente modernizado e mantido em atividade (o laboratório não é local de

passado, mas de futuro, não é local de história, mas de progresso, a história está em

volta, fora). Porque em uma pequena sala um simulacro reduzido do laboratório do Dr.

Pasteur permanece em exibição como guardião de um modelo de narrativa da história

das ciências. Porque o museu Pasteur permanece no centro da gigantesca área do

instituto que o abriga. Falando em nome da ciência, certos grupos resistem em destruir

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seus próprios ídolos, se agarram à sua metafísica. A proposta de uma história das

ciências não é um problema, desde que ela reafirme e legitime os mitos do progresso.

Desde que ela cumpra a promessa (feita talvez por Comte ou Sarton) de garantir a

superioridade epistemológica e moral da ciência, de ser a guardiã das suas tradições,

porta voz da sua identidade, narradora das suas vitórias. Para aqueles vinculados a uma

defesa do cientificismo, a narrativa histórica apresentada no Leviathan soa como uma

profanação e uma traição.

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5. O self e a comunidade

Este capítulo tentará avaliar a configuração da historiografia das ciências no

início do século XXI. Esta formação será encarada como uma reação a um novo

ambiente intelectual e político que dá lugar a novas injunções entre epistemologia e

política. Continuarei perseguindo a trajetória dos fatores internos e externos em um

momento em que a inutilidade dessas categorias foi novamente declarada, quando a

solução encontrada foi propor que não existem fronteiras, historicizando o próprio

exercício da demarcação. Essas questões serão articuladas especialmente através da

discussão do livro Objectivity, publicado em 2007 por Lorraine Daston e Peter Galison.

É nessa obra que buscarei o ponto de convergência para pensar a historiografia das

ciências em sua forma atual e para amarrar os problemas levantados nos capítulos

anteriores.

Adotarei uma estratégia mais objetiva – com o perdão do trocadilho – passando

diretamente à análise do livro. À medida que as questões relevantes se apresentem,

realizarei digressões que remetem às condições de produção dessa historiografia. Este

livro foi escolhido para ocupar um lugar tão destacado na estrutura narrativa da tese por

vários motivos. Por ser um trabalho histórico de grande qualidade, é óbvio. Mas

também por oferecer uma amostra dos possíveis desdobramentos da tradição

historiográfica que tenho seguido nos últimos capítulos, por abrir essa historiografia

para territórios desconhecidos ou pouco explorados. Por fim, por marcar o fim de um

ciclo, o esgotamento de uma maneira de contar a história das ciências. Esse

esgotamento, como veremos, não é uma ruptura total, uma capitulação diante das

críticas ou um retorno aos antigos modelos. É um processo de transformação que se dá

sem negar completamente os avanços decorridos nas últimas décadas, é uma tensão

entre a continuidade de um projeto intelectual e a negação de algumas de suas

características e implicações.

O livro é ambicioso em suas pretensões. Ele pretende realizar uma história de

uma “virtude epistêmica”, a objetividade, e também uma história do self científico ao

longo de mais de dois séculos156. Na verdade, ele quer mostrar como esses dois tópicos

156 O conceito de self é difícil de ser traduzido, especialmente quando não aparece como genitivo (casos em que geralmente é traduzido como “de si”). Seu uso tem crescido, especialmente na psicologia e áreas

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são objetos de uma mesma história traçando “como epistemologia e ethos emergiram e

se fundiram ao longo do tempo e contextualmente” (DASTON e GALISON, 2010, p.

363)157. Ao mesmo tempo, ele consegue recortar muito claramente dentro de um tema

que parece infinito. Suas fontes são as imagens produzidas para os atlas (de diversas

disciplinas, da botânica à astronomia) e a forma como as virtudes epistêmicas e o self

científico modificam a produção das imagens que compõem esses atlas. “Nós queremos

mostrar, antes de tudo, como virtudes epistêmicas podem ser inscritas em imagens, na

forma como elas são feitas, usadas e defendidas contra rivais”, afirmam Daston e

Galison (2010, p. 42)158. Já está claro que estamos diante de muitos problemas difíceis.

As dificuldades não irão impedir os autores de perseguir esses problemas ao longo de

mais de quatrocentas páginas.

Irei acompanhar essas dificuldades tentando mostrar como essa narrativa lida

com a historicidade da ciência. A chave parece estar na concepção da ciência como uma

série de dispositivos disciplinares, à maneira de Foucault, que constrangem os seus

praticantes e forjam uma identidade coletiva. O papel da produção e circulação de

imagens é destacado pelos autores, mas poderíamos apontar para um processo

semelhante focando em outras práticas científicas: experimentação, redação de livros,

artigos e teses etc. O deslocamento para a prática – uma característica bastante

propalada da nova historiografia das ciências desde meados dos anos 1980 – permite

que os autores narrem a história de um conceito que parecia imune à corrosão pela

temporalidade, como a objetividade. Mais do que isso, a objetividade não é tratada

como um conceito, mas como um conjunto de gestos, técnicas, hábitos e temperamentos

que são criados e reforçados pelo treino diário. A objetividade é reconstruída de baixo

para cima, ela é o ponto final de uma cadeia de relações e não a operacionalização de

um aparato conceitual abstrato.

Nesse ponto, interrompemos a descrição da obra para realizar um primeiro

desvio. Essa digressão será fundada na seguinte questão: com que tradições

historiográficas os autores dialogam para elaborar as suas reflexões? Os autores são

parte de uma geração de historiadores das ciências formados sob a influência decisiva

correlatas. Frequentemente é usado sem tradução. De vez em quando é traduzido como “si”. Aqui, preferi manter a forma original. 157 No original: “how epistemology and ethos emerged and merged over time and in contexto”. Tradução minha. 158 No original: “We want to show, first of all, how epistemic virtues com be inscribed in images, in the ways they are made, used, and defended against rivals”. Tradução minha.

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dos science studies. Ambos possuem formação inicial em áreas científicas e se

dedicaram à história já na pós­graduação (o que não é nenhuma novidade no nosso

campo). Suas primeiras publicações relevantes aparecem em meados dos anos 1980 e já

na década seguinte os dois se projetam como importantes nomes da historiografia das

ciências. Enquanto Lorraine Daston se dedicava a pesquisar a história natural no início

da Era Moderna, o surgimento da probabilidade e a autoridade moral da natureza; Peter

Galison voltou sua atenção para a física do século XX, para a relação entre as diversas

tradições que compõem a disciplina e para a Big Science. Essas trajetórias singulares

encontram, no Objectivity, um campo propício para a fertilização de referências

cruzadas.

Passando das trajetórias às referências citadas no livro, encontraremos mais

elementos. Destaca­se a enorme quantidade e diversidade de “fontes primárias”:

manuais e atlas produzidos em locais e períodos amplos (do século XVIII ao XXI);

memórias publicadas por academias científicas de toda a Europa; correspondência;

vasto material iconográfico; cadernos de campo; textos filosóficos clássicos (Kant,

Descartes, Goethe, Bacon...). A bibliografia secundária e as referências teóricas também

são de um volume e diversidade impressionante (o que mostra o tempo investido na

preparação do texto). Referências filosóficas e históricas – clássicas e contemporâneas,

canônicas e “marginais” – versando sobre temas como a observação; o papel da

“visualidade” e da imagem na ciência; a disciplina (com notada presença de Foucault e

Pierre Hadot); a psicologia do self e a sua formação; a construção da persona científica;

toda discussão em torno da objetividade e subjetividade, obviamente. Para capturar e

avaliar os diálogos que o livro estabelece com diversas correntes intelectuais, não basta

ser apresentado à trajetória dos autores ou folhear as referências bibliográficas (embora

esses dois movimentos sejam necessários e retornarei a eles adiante). No entanto, me

deterei em um ponto muito relevante. Mais do que as presenças, uma ausência é

bastante reveladora da nova configuração historiográfica com a qual nos defrontamos:

não há qualquer menção à obra de Thomas Kuhn159.

Qual a razão de dois historiadores norte­americanos, com passagem pela

Universidade de Harvard – alma mater de Kuhn –, não mencionarem um autor

159 Não tão importantes são as ausências de quaisquer referências a David Bloor, Barry Barnes ou ao “programa forte” e a única referência a Bruno Latour – uma menção de um artigo que não forma o corpo principal dos escritos do autor francês como sendo parte da literatura relevante sobre o papel da visualização na ciência (essa mesma nota cita Fleck como um clássico sobre o tema).

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considerado incontornável (mesmo que seja para ser criticado ou corrigido)? A

“tradição kuhniana” se exauriu? A função de fornecer um “papel para a história” na

explicação da ciência se completou? Uma explicação mais singela seria dizer que o

tema, os problemas, o objeto e o recorte não necessitam do diálogo com a teoria

kuhniana da ciência. Talvez isso seja uma parte da resposta, não por falta de

necessidade, mas por uma opção dos autores em mover­se para longe dos debates e das

implicações provocadas por ele.

A narrativa oferecida no Objectivity poderia ser tratada em termos kuhnianos, e

oferecer algumas saídas a problemas encontrados no seu esquema de explicação do

desenvolvimento da ciência em pelo menos um ponto fundamental. A história contada

por Daston e Galison pauta­se em uma sucessão de virtudes epistêmicas que pautam as

concepções de ciência e moldam o self científico. A objetividade (dividida em

objetividade mecânica e objetividade estrutural) é uma dessas etapas, sendo precedida

pela noção de verdade­para­a­natureza (truth­to­nature) e sucedida pelo julgamento

treinado. Essas virtudes informam as práticas científicas de muitas maneiras, algumas

bastante semelhantes ao que Kuhn chamou de paradigmas. No entanto, a sucessão

desses “paradigmas” não implica na ocorrência de revoluções e a emergência de novas

formas não causa o ostracismo de modelos mais antigos, tradições diferentes convivem,

são apropriadas de outras formas, deslocam as suas funções, se submetem a uma nova

hierarquia e a uma nova economia epistêmica. “Novas virtudes epistêmicas passam a

existir; as antigas não necessariamente desaparecem” (DASTON e GALISON, 2010, p.

41)160. Os autores discutem as questões de rupturas e continuidades, evolução e

revolução, cumulatividade e incomensurabilidade, catastrofismo e uniformidade.

No relato do Objectivity, “as virtudes epistêmicas não substituem umas às outras

como uma sucessão de reis. Em vez disso, elas se acumulam em um repertório de

formas possíveis de conhecimento” (DASTON e GALISON, 2010, p. 113)161.

A mudança de valores epistêmicos é metaforicamente descrita a partir de alguns

“fenômenos naturais” complexos. Pode ser a chegada da primavera, que causa o

derretimento da camada de gelo que estava cristalizada em um frio rio do norte. O

processo começa com algumas rachaduras e estalos, que se tornam mais fortes,

160 No original: “New epistemic virtues come into being; old ones do not necessarily pass away”. Tradução minha.161 No original: “Epistemic virtues do not replace one another like a succession of kings. Rather, they accumulate into a repertoire of possible ways of knowing”. Tradução minha.

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arremessando pedaços de gelo e ecoando pela floresta. O encanto causado pela

caudalosa correnteza que arrasta os resquícios do inverno não deve obscurecer a visão

para as múltiplas origens locais do fenômeno (DASTON e GALISON, 2010, p. 124). A

metáfora pode ser a da avalanche. Primeiro, o deslizar de pequenas quantidades de

material relativamente isolado; depois, condições de instabilidade permitem que eventos

individuais, mesmo pequenos, disparem a precipitação de quantidades monstruosas de

neve, pedras, terra etc. É a combinação complexa entre condições de instabilidade e

circunstâncias contingentes que vai determinar quando uma avalanche ocorre, ou

quando uma nova virtude epistêmica emerge. O diálogo é explícito, mas o interlocutor é

ocultado. Há, inclusive, uma menção sútil a um termo caro a Kuhn – em um contexto

bastante revelador. “A objetividade não é o fruto de uma evolução incremental, nem de

uma explosão súbita na cena científica – nem uma mudança repentina de Gestalt”

(DASTON e GALISON, 2010, p. 49, grifo meu)162. Assim, a temática kuhniana

aparece de forma central na obra, por que não citá­lo? Em um texto publicado por

ocasião da comemoração de cinquenta anos da Estrutura das revoluções científicas,

Lorraine Daston (2012) se pergunta, em tom levemente irônico, se algum historiador

das ciências ainda lê Thomas Kuhn atualmente. Esse texto foi preparado para o

seminário organizado pela Universidade de Chicago para comemorar o cinquentenário.

A conferência de Daston levou o significativo título de “History of science without

structure”163.

O longo parágrafo anterior não deve ser lido como uma reprovação feita aos

autores, como uma cobrança. Ele é uma manifestação de estranhamento. É algo que

considero que deve ser explicado. A hipótese que sustento é a de que uma das

características da nova historiografia foi o afastamento de correntes que sofreram um

grande desgaste após as críticas feitas contra elas desde o final dos anos 1980, entre eles

a tradição historiográfica kuhniana e os science studies.

De todo modo, a interpretação que esboçarei sobre esse período não terá o

mesmo propósito daquelas apresentadas nos capítulos precedentes. Ao descrever o

surgimento da querela entre o internalismo e o externalismo na primeira metade do

século XX, já era possível conhecer os seus desdobramentos. Ao sugerir conexões entre

a leitura da história das ciências proposta no Leviathan and the air­pump e a

162 No original: “Objectivity is neither the fruit of na incremental evolution nor a sudden explosion on the scientific scene – nor na all­at­once Gestalt switch”. Tradução minha.163 O aúdio da conferência está disponível em: https://vimeo.com/72313904. Acesso em 26 abr 2015.

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tecnociência, estava lidando com um fenômeno social que já havia tomado enormes

proporções. É possível escapar a esse anacronismo, a esse whiggismo? Agora, diante de

uma temática cuja trajetória ainda está cercada de indeterminação, diante de um futuro

em aberto, devo assumir uma postura diversa. Apesar do seu componente de

expectativa, a história não pode se lançar na investigação do futuro.

A historiografia recente marcará o fim de um ciclo, o esgotamento de uma

maneira de contar a história das ciências. Esse esgotamento não é uma ruptura total,

uma capitulação diante das críticas ou um retorno aos antigos modelos. É um processo

de transformação que se dá sem negar completamente os avanços decorridos nas últimas

décadas, é uma tensão entre a continuidade de um projeto intelectual e a negação de

algumas de suas características e implicações. Os próprios autores envolvidos na

formulação da nova forma de compreender a ciência participarão da sua reelaboração.

Para explicar a hipótese levantada acima, é preciso alongar o desvio e entender

um aspecto que considero relevante na transformação da configuração histórica que

possibilita a escrita da história das ciências. É preciso se perguntar pelos motivos que

levaram à transformação da historiografia. Se, ao final dos anos 1980, os historiadores

pareciam tão seguros das suas propostas, tão convictos da força da sua abordagem, o

que os fez mudar? O pedido de desculpas balbuciado por Bruno Latour para defender­se

da acusação de ser um “inimigo da ciência” marcará o início dessa história.

Estimulado pela interpelação de um cientista (um psicólogo) sobre a sua posição

em relação à ciência e sobre o suposto ataque desferido contra ela pelos science studies,

Latour irá alegar inocência.

A suspeita do psicólogo soou­me bastante injusta, pois ele não parecia

compreender que, nesta guerra de guerrilha travada na terra de

ninguém entre as “duas culturas”, nós éramos os que estavam sendo

atacados por militantes, ativistas, sociólogos, filósofos e tecnófobos de

todos os naipes, exatamente por causa do nosso interesse pelo

funcionamento interno dos fatos científicos. Quem – perguntei­me –

ama mais as ciências do que esta minúscula tribo científica que

aprendeu a divulgar fatos, máquinas e teorias com todas as suas raízes,

vasos sanguíneos, redes, rizomas e gavinhas? Quem acredita mais na

objetividade da ciência do que aqueles que insistem na possibilidade

de transformá­la em objeto de pesquisa? (LATOUR, 2001, p. 15, grifo

no original)

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Na explicação de Latour, a suspeita que os cientistas alimentam decorre da

forma como a divisão social do trabalho intelectual foi organizada, da maneira como a

natureza e a cultura foram cindidas e transformadas em polos opostos. Foram os

filósofos do começo da Modernidade – Descartes, Hume, Kant etc. – que deram forma a

tal projeto, que deram feição ao “acordo modernista” (LATOUR, 2001, pp. 21­30).

Latour irá tentar demonstrar que esse acordo é obra de duas atividades combinadas, De

um lado, o processo de tradução (ou mediação) que cria esses híbridos de natureza e

cultura, que mistura palavras e coisas, que confunde ontologia e epistemologia. De

outro, a purificação, que trata de erigir as barreiras entre esses campos, esconder as

mediações, recortar objetos puros (LATOUR, 1994).

Não me interessa aqui, no entanto, detalhar a proposta de Latour. O que me

interessa neste momento é a forma como ele constrói a sua defesa. A reação de Latour –

que propõe uma leitura diferente para a história intelectual da modernidade e se coloca

fora dela (a si mesmo e seus companheiros de science studies) – é proporcional ao

tamanho da contenda que tomou o mundo acadêmico: as Guerras da Ciência.

As Guerras da Ciência foram uma série de disputas intelectuais entre dois

grupos, que, apesar da relativa dispersão interna, se identificavam por uma atitude

comum em relação à ciência e seu papel na modernidade164. De um lado, o grupo que

se considerou pró­ciência, formado por cientistas e filósofos; do outro lado, estavam

cientistas sociais, historiadores e alguns poucos filósofos que pretendiam analisar a

ciência a partir de perspectivas mais ou menos influenciadas pelo relativismo, pelo

sócio­construtivismo, pelo desconstrucionismo ou pelas várias formas de pós­

modernismo. Estão incluídos aí vários autores que pertenciam aos science studies e à

nova historiografia das ciências descrita no capítulo anterior.

O duelo entre “amigos” e “inimigos” da ciência tem uma forma um tanto

esquisita. Ao longo dos últimos anos da década de 1980 e primeiros da década de 1990,

principalmente nos Estados Unidos, diversos cientistas começam a se insurgir contra

certa maneira de interpretar a ciência que provinha de áreas da história, das ciências

sociais e da filosofia. Autores como Paul Gross, Norman Levitt, Lewis Wolpert, Susan

Haack, Alan Sokal, entre outros, passam a denunciar contundentemente essas “novas

164 A descrição e análise sobre as Guerra da Ciências que apresento a seguir são amplamente baseadas na pesquisa que realizei para a dissertação de mestrado, já publicada (ÁVILA, 2013). Aqui neste texto, extrapolarei as conclusões e análises desenvolvidas para explicar a influência desse fenômeno na escrita da história das ciências nas últimas duas décadas.

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interpretações” como charlatanismo, relativismo inconsequente, solipsismo, hipocrisia

etc. Na narrativa que eles oferecem, trata­se de uma reação de um grupo preocupado em

resguardar a ciência e a civilização ocidental contra os ataques que vinham sendo

desferidos contra elas. Temas às vezes tão distantes quanto a sociologia da ciência “pós­

mertoniana”, o construtivismo social, a epistemologia feminista, a filosofia de Richard

Rorty, a medicina alternativa, os estudos pós­coloniais, o “afrocentrismo” são tratados

como ameaças à ciência e à razão. Como resumiu Mario Bunge (1996, p. 97) – em um

texto no qual enaltece a intolerância contra o que considera charlatanismo na academia:

Os inimigos acadêmicos da própria razão de ser da universidade

podem ser agrupados em dois bandos: os anticientistas, que

frequentemente consideram­se “pós­modernistas”, e os

pseudocientistas165.

A querela se torna um espetáculo midiático a partir do famoso “caso Sokal”,

quando o físico norte­americano escreve um artigo parodiando o estilo “pós­moderno” e

defendendo, a partir de tópicos retirados da ciência contemporânea, uma “ciência pós­

moderna liberatória” que se tornaria “um instrumento concreto para a práxis política

progressista” (SOKAL, 1999, pp. 231­273). O artigo foi publicado em uma revista

dedicada aos estudos culturais e logo desmascarado como uma farsa, montada para

exibir a incapacidade do “relativismo pós­moderno” de possuir critérios minimamente

rigorosos a partir dos quais pudesse julgar a validade de uma afirmação ou de uma

teoria. O “caso Sokal” iria supostamente expor ao público as fragilidades do discurso

“relativista”. Ele mostra também que a disputa é, acima de tudo, política. Trata­se de

uma defesa da ciência (e da visão científica do mundo, de modo mais geral) como forma

privilegiada de ação. Como única forma capaz de compreender efetivamente a realidade

e, assim, atuar sobre ela. Defender a autoridade da ciência é a mais importante tarefa do

mundo civilizado, atacá­la (ou seja, dirigir­lhe críticas) significa escancarar os portões

do paraíso para as hordas de bárbaros que nos ameaçam. Os “defensores da ciência”

reservam a capacidade de falar sobre a ciência para aqueles que compartilham de certa

visão sobre ela. A história (ou sociologia, filosofia) das ciências pode ser escrita, desde

que obedeça a uma série de concepções, desde que mantenha a ciência no seu pedestal,

desde que contribua para aumentar o seu poder e a reverência que a ela dedicamos.

165 No original: “The academic enemies of the very raison d’être of the university can be grouped into two bands: the antiscientists, who often call themselves ‘postmodernists’, and the pseudoscientists”. Tradução minha

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Algumas questões se recortam ao fundo: será que apenas concepções teóricas e

epistemológicas “objetivistas”, comprometidas com a verdade e a realidade enquanto

entidades ahistóricas, serão capazes de nos conduzir a uma efetiva atuação política

crítica? Os relativistas, construtivistas ou outras espécies de críticos desse modelo,

serão sempre culpados de “quietismo” e, em último caso, de conivência com qualquer

arbitrariedade, simplesmente porque não acreditam na existência de um padrão

universal de verdade contra o qual seja possível mensurar diferentes conjuntos de

asserções?

Essas são provavelmente as principais implicações que se apresentam nas

Guerras da Ciência, mas não só aí, como em uma enorme variedade de controvérsias

intelectuais travadas ao longo dos últimos anos. Elas trazem à tona questões candentes

para a discussão em torno do conhecimento e da ciência e, sobretudo, para as diversas

articulações e relações entre a ciência e parcelas mais amplas da sociedade e da

atividade política. E guardam um paradoxo: só uma ciência livre da política e

independente da sociedade pode nos dar ferramentas para agir politicamente e intervir

na sociedade.

Acredito que esse ponto de vista é equivocado em diversos pontos, mas o que

está em jogo aqui é a forma como essas críticas foram recebidas e metabolizadas pela

historiografia recente. Acima de tudo, os “defensores da ciência” desenham uma figura

bastante distorcida das abordagens às quais se opõem. Muitas vezes são feitas

simplificações grosseiras e interpretações forçadas. Ainda assim, o ponto fulcral não

reside aí. Há realmente uma dificuldade, tanto epistemológica quanto política, na adesão

a uma perspectiva que recusa a objetividade. E foi justamente ao enfrentar essa

dificuldade, ou seja, ao tentar refutar as acusações de “quietismo” político, de

conivência e (a mais radical) de cumplicidade que a historiografia se deparou com a

exigência de revisão de algumas das suas perspectivas.

Essa questão foi atacada tangencialmente em grande parte da literatura de

análise sobre a ciência da segunda metade do século XX. Os autores mais sofisticados e

consistentes não excluem a realidade (nem a objetividade e nem a verdade, mas esses

são temas mais delicados) de suas formulações. Eles apenas não a enquadram mais em

sua moldura clássica, absolutamente apartada da consciência, do conhecimento, do

discurso, da linguagem e da história. A realidade pode ser vista muito mais como um

território em disputa, resultado de uma série de relações de força. Isso não os impede de

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151

agir sobre a realidade e, inclusive, de emitir juízos a seu respeito e às condutas de outras

pessoas ou grupos. Ainda é possível justificar argumentos em termos de abrangência,

eficácia e, digamos, desempenho. E, o que é importante, é possível suspeitar sempre do

enunciador, do “portador do discurso”. É possível, sobretudo, estar alerta para que tipos

de organizações sociais dão origem e condições de possibilidade para certas construções

cognitivas e, reciprocamente, que tipos de organizações sociais essas construções

cognitivas, permitem, legitimam, endossam e normatizam.

Nesse sentido, a eficácia do discurso da ciência depende da completa correlação

entre ontologia e realidade. Na verdade, na convicção de que apenas uma forma de

ontologia corresponde à realidade, e esta é a ciência. Todas as outras formas sociais de

se relacionar com o ambiente são meras superstições, especulações metafísicas, desvios

ideológicos. A historiografia inspirada na “tradição kuhniana” e associada aos science

studies tentou, nos anos 1980, mostrar­nos que também a ciência não consegue capturar

a realidade em sua ontologia. Enquanto a visão de mundo herdada do século XIX

afirmava a identidade entre o conhecimento científico e a natureza, a história das

ciências declarava, conforme um trecho já citado, que “a medida que reconhecemos o

status convencional e artefatual das nossas formas de conhecimento, nos colocamos em

posição de perceber que os responsáveis por aquilo que sabemos somos nós e não a

realidade” (SCHAFFER e SHAPIN, 2011, p. 344).

Após esse período e, talvez, sob o impacto das Guerras da Ciência, a

historiografia adotou outra estratégia usando os mesmos materiais. Ela não acredita

mais que a natureza não participa do processo de construção do conhecimento, ela não

duvida da existência da realidade. As questões levantadas nas Guerras da Ciência

provocaram uma reflexão e uma revisão cuja profundidade ainda é difícil medir. Mas

essa será uma das tarefas desse capítulo.

É significativo que a resposta elaborada por Latour – tido como um autor dos

mais “radicais” – tenha a forma de um pedido de desculpas, alegue certo mal­entendido,

proponha uma reconciliação (“estamos do mesmo lado”, ele parece dizer). É preciso

observar que esse tipo de reação foi bastante comum, em conjunto com outra resposta

recorrente que foi a esquiva, o não­reconhecimento nas críticas que eram dirigidas aos

programas intelectuais encampados pelos science studies e pela historiografia que

frutificou em seu contato. Elas aparecem, por exemplo, na importante coletânea aditada

por Harry Collins e Jay Labinger, The one culture. Nela, diversos autores de ambas as

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partes, especialmente os acusados de atacar a ciência, parecem simular um consenso.

No entanto, as questões mais centrais quase não são discutidas diretamente. Quando o

são, não estabelecem diálogo com as posições opostas.

Obviamente, os estudos coligidos em A esperança de Pandora (que formam a

resposta de Bruno Latour à Guerra das Ciências) não propõem um recuo em relação às

posições defendidas anteriormente. Pelo contrário, a sociologia das translações, a teoria

ator­rede, o parlamento das coisas, o coletivo de humanos e não­humanos simétricos

tenta substituir “todo o artefato da epistemologia” (LATOUR, 2001, p. 338). Assim,

esse difícil equilíbrio entre preservar os avanços das décadas anteriores sem “ferir as

sensibilidades” é uma das marcas importantes do período em questão. Ela não é apenas

uma estratégia retórica para evitar novos escândalos. Não devemos supor que a

historiografia “se acovardou” diante das críticas. É uma fase de crítica externa e interna,

de reflexões provocadas por motivos alheios aos dos historiadores, mas profundamente

sentidos. A resposta de Latour é útil para o meu propósito por ainda mais dois motivos.

Em primeiro lugar, ele aponta a dimensão política da briga entre formas de

interpretar a ciência de forma bastante clara (embora, mais uma vez, esquivando­se).

Faz parte do seu argumento central a ideia de que todo o acordo modernista e toda a

briga simulada pelos dois lados obedece a um desejo mais arraigado de silenciar o povo,

se constitui como um “medo do governo da massa”, é uma estratégia para deixar a

maioria ausente dos jogos de poder. Do Filósofo­Rei à tecnocracia, a discussão em

torno da autoridade da ciência tem como efeito principal a criação de uma arena

decisória excludente.

O segundo ponto é a crítica à divisão da história das ciências em internalismo e

externalismo e a proposta de um modelo que supere a querela. A ciência não é um

núcleo intelectual imerso em um contexto social, ela é uma forma de associar humanos

e não­humanos e arregimentar recursos em múltiplos locais, uma mediadora de

atividades e objetivos, um sistema circulatório, uma rede de circuitos que conecta

agentes diversos. Através dos exemplos de Pasteur ou Joliot, é possível ver o esforço do

autor para oferecer uma saída à antiga dicotomia. A saída de Latour passa por mostrar

que não há como determinar se uma atividade é científica a priori. Reunir­se com

políticos e bombardear um átomo de urânio com nêutrons são atividades de natureza

indistinta. São duas formas de negociação necessárias à prática de determinada ciência

em determinado momento. A historiografia (e mesmo as correntes mais simpáticas a

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essa visão) não encampou incondicionalmente nem unanimemente a “ontologia do

termo único” de Latour. O principal aqui é perceber que, nesse momento, a solução

política passava por abandonar ou superar a divisão entre aquilo que é interno e aquilo

que é externo à ciência.

Antes de prosseguir na avaliação das implicações das Guerras da Ciência para a

historiografia, outro ponto é digno de nota. A disputa criou um espaço constante e não

residual para uma literatura alinhada com os “defensores da ciência”. Ela mostrou que a

interpretação historiográfica que havia se tornado hegemônica estava agora sujeita a

críticas duras e constantes. É o caso, por exemplo, de Paul Boghossian (2012) em Medo

do conhecimento. Nesse livro, publicado originalmente em 2006, o filósofo continua a

pregação contra o relativismo e o construtivismo aberta nas Guerras da Ciência.

Boghossian – que já havia saído em defesa de Sokal nas Guerras da Ciência – se

empenha em refutar cada aspecto do “relativismo”, de Wittgenstein a Latour. Sua

conclusão é triunfante. Para ele, “o ponto positivo [da sua investigação] é que não

conseguimos encontrar nenhum bom argumento para as teses construtivistas”

(BOGHOSSIAN, 2012, p.181). Outro exemplo dessa literatura é o livro A nice

derangement of epistemes, uma história intelectual do “pós­positivismo” no estudo da

ciências escrita por John Zammito (2004). É um texto que não pretende ser neutro em

relação às questões abordadas, tomando decididamente a defesa da objetividade e do

empirismo contra o exagero e a extravagância das asserções dos “teóricos pós­

modernos”.

Esses dois livros parecem ter uma motivação comum, apesar das grandes

diferenças (Zammito segue um modelo mais narrativo e cronológico enquanto

Boghossian se vale de uma análise filosófica centrada em argumentos e refutações). Os

autores se empenham em analisar em profundidade certas posições teóricas não porque

elas oferecem um avanço na forma de compreender a ciência, não porque eles levam a

sério as propostas que surgem nos meios “construtivistas” ou “relativistas”, mas porque

essas propostas se tornaram muito influentes e passaram a ameaçar posições que esses

autores consideram centrais para a defesa da ciência e da vida política. É uma

continuação dos argumentos das Guerras da Ciência, agora transpostos das polêmicas

inflamadas e da troca de acusações para a análise detida, para a avaliação mais

demorada. As análises da ciência vinculadas ao construtivismo, como é o caso da

historiografia que examino aqui, são agora alvo permanente de crítica externa. Até o

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final dos anos 1980, a rápida expansão desse grupo ocorreu fora de grandes circuitos, no

interior de um grupo relativamente pequeno e marginal. O seu crescimento colocou­os

no centro de uma grande polêmica e de debates intensos. Essa nova posição modifica a

postura da historiografia das ciências, mas como?

A própria Lorraine Daston (2009) discorda desse argumento. Para ela, as

Guerras da Ciência foram uma tempestade passageira. As causas que ela atribui à

ruptura entre a história das ciências e os science studies são de outra ordem. O

afastamento provém da crescente profissionalização dos historiadores das ciências,

especialmente na Europa e nos EUA, que vão ocupar posições universitárias em

departamentos de história e desenvolver relações com a comunidade mais ampla dos

historiadores. Em segundo lugar, e relacionado a isso, esses historiadores passam a

buscar em outras fontes a solução dos seus problemas, na verdade, passam a formular os

problemas de pesquisa de maneira diferente da forma como os formulava os science

studies. Os interesses dos dois grupos profissionais divergem. Os historiadores das

ciências se tornam, definitivamente, historiadores. Não discordo completamente dessa

avaliação; pelo contrário, considero que vários argumentos levantados por Daston são

centrais na explicação da nova historiografia. Voltaremos a eles. Mas considero também

que a sua avaliação tem muito de desejo e expectativa e que o completo descrédito que

ela dá às Guerras da Ciência como uma força capaz de provocar mudanças profundas

revela uma tentativa de racionalização do processo166. Levarei a sério a sugestão de

Lorraine Daston – embora um pouco modificada. Ao invés de anunciar que a causa do

afastamento entre os science studies e a história das ciências foi a maior aproximação

dessa última com a história tout court, considerarei esta aproximação como uma das

consequências. O que isto significa? O que a história das ciências aprendeu com a

história nas últimas duas décadas? Como isto se manifesta no Objectivity?

Após essa digressão, talvez longa demais, retorno ao ponto que a motivou. Uma

das consequências da transformação foi o afastamento da história das ciências da

“tradição kuhniana” e do campo dos science studies, alvos preferidos dos “defensores

da ciência”. Os historiadores passaram a defender um programa próprio que não negava

166 A própria trajetória da autora e de Peter Galison, por exemplo, revela a distância entre história e história das ciências mesmo nos EUA e na Europa. Enquanto Galison está no departamento de história da ciência da Universidade de Harvard (muito mais ligado ao Instituto de Física do que às faculdades de humanidades), Daston transita entre o Instituto Max Planck para a História da Ciência, em Berlin, e a Universidade de Chicago.

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o diálogo e a influência dos science studies, mas que marcava uma diferença com ele.

Isso implica, entre outras coisas, em uma carga menor de argumentos teóricos

generalizantes presentes nas obras, ou mais cuidado na enunciação desse tipo de

argumentos (VAN DAMME, 2014, p. 13). Essa história das ciências não pretende

oferecer um modelo global de desenvolvimento das ciências, não é uma teoria das

ciências. Parte significativa da nova produção poderia, inclusive, ser colocada sob a

rubrica de “micro­história” (se fizermos um uso pouco rigoroso do termo, já que a

escala do objeto não inviabiliza, por princípio, a generalização da explicação). Mesmo

em um livro ambicioso como o analisado neste capítulo, os autores são cautelosos

quanto à universalidade do argumento:

O escopo deste livro é amplo, mas não é abrangente. Ele não abrange toda a ciência, todos os cientistas, nem mesmo todas as imagens científicas dos lugares e períodos que trata. Ele é sobre uma classe particular de imagens a serviço de um aspecto particular da ciência: atlas científicos como uma expressão de hierarquias de historicamente específicas de virtudes epistêmicas (DASTON e GALISON, 2010, p. 48)167.

Esse novo programa já vinha sendo ensaiado por Peter Galison e Lorraine

Daston de maneiras isoladas, o Objectivity aparece como um local privilegiado para

percebê­lo em ação. Não é simples designar o tipo de história que os autores ajudaram a

construir desde os anos 1990 e que praticam no Objectivity, mas podemos recorrer a

expressões que tiveram larga circulação e que nos ajudam a desbravar esse território

historiográfico. Podemos então falar de duas correntes: a epistemologia histórica e a

história cultural das ciências. A primeira informa teoricamente a opção de lidar com o

entrelaçamento entre ética e epistemologia, de perceber a conotação moral associada às

práticas cognitivas e de relacionar esses tópicos à produção de um self científico

historicamente localizado; já a história cultural das ciências vai se manifestar na escolha

das imagens como local onde buscar por essas questões teóricas e no tratamento

dispensado às fontes iconográficas.

Se o livro tem como proposta realizar uma história da objetividade, não parece

ser difícil afirmar que estamos diante de uma pesquisa de epistemologia histórica. É

intenção declarada dos autores mostrar os itens do conhecimento como sujeitos às

167 No original: “The scope of this book is broad, but it is not comprehensive. It does not encompass all science, all scientists, or even all scientific images for the places and periods it treats. It is about a particular class of images in the service of a particular aspect of science: scientific atlases as an expression of historically­specific hierarchies of epistemic virtues”. Tradução minha.

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dinâmicas históricas, à corrosão das temporalidades. É parte do argumento defendido

por Galison e Daston a noção segundo a qual a epistemologia não pode abrir mão da

historicidade, sob pena de deixar escapar uma parte fundamental da sua explicação. A

objetividade é um produto da história, assim como outras categorias epistemológicas

fundamentais. Os autores argumentam que a epistemologia foi imaginada para se opor

aos vícios epistêmicos, tem como função primordial criar estratégias para combater os

obstáculos ao conhecimento (DASTON e GALISON, p. 377).

Toda epistemologia começa no medo – medo de que o mundo seja muito labiríntico para ser trilhado pela razão; medo de que os sentidos sejam muito débeis e o intelecto muito frágil; medo que a memória desvaneça, mesmo entre passos adjacentes de uma demonstração matemática; medo de que a autoridade a convenção ceguem; medo de que Deus guarde segredos e que os demônios iludam (DASTON e GALISON, 2010, p. 372)168.

O recurso à história fornece perspectivas diferentes, coloca novos problemas.

Não estando imbrincada na luta contra os erros que bloqueiam o avanço do

conhecimento, a história pode se posicionar de forma a perceber que há uma disputa em

curso; pode apontar para as diferentes configurações que essa disputa já assumiu; pode

perceber o evolver da temporalidade como uma construção de alternativas.

Diante disto, ainda resta uma questão: o que diferencia a epistemologia histórica

da história intelectual, da história dos conceitos ou da história das ciências? Uma breve

história da expressão nos ajudará na resposta169.

A ideia de uma epistemologia histórica surge na filosofia de Gaston Bachelard e

se estende nas reflexões sobre as ciências dos seus seguidores franceses, como Georges

Canguilhem e Michel Foucault170. Nessa versão, o uso da expressão remete a uma

tomada de posição contra a filosofia das ciências praticada pelo neopositivismo, com a

sua tendência logicista, analítica, refratária à história. A epistemologia histórica lançava

mão de estudos de caso retirados do passado da ciência. Chamava a atenção para a

relação necessária entre história e filosofia das ciências (utilizavam um modelo de

história das ciências semelhante ao descrito no Capítulo 1 desta tese)171. Em seguida,

168 No original: “All epistemology begins with fear – fear that the world is too labyrinthine to be threaded by reason; fear that the senses are too feeble and the intellect too frail; fear that memory fades, even between adjacent steps of a mathematical demonstration; fear that authority and convention blind; fear that God may keep secrets and Demons deceive”. Tradução minha.169 Boa parte dessa história baseia­se na competente exposição de Yves Gingras (2010).170 A expressão aparece pela primeira vez em francês no título de um livro de Dominique Lecourt sobre Bachelard publicado em 1969, L’épistémologie historique de Gaston Bachelard. O próprio Bachelard nunca utilizou a expressão (GINGRAS, 2010).

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essa tradição francesa se encontra com o marxismo que, talvez em analogia com o

materialismo histórico, busca elaborar, desde os anos 1970, uma epistemologia

histórica. Isto é, esses autores tentavam utilizar as reflexões elaboradas por Marx e pelo

marxismo para compreender como as formas de conhecimento são afetadas pelo

processo histórico. Em ambos os casos, no entanto, a referência à expressão significava

atribuir uma qualidade à epistemologia, que se torna atenta aos processos históricos e

sua influência no desenvolvimento do conhecimento em oposição às formas mais

normativas. Trata­se aqui de uma forma de praticar a epistemologia, não de uma forma

de praticar a história. De que maneira essa expressão foi se tornar uma das bandeiras de

uma renovação na história das ciências? Uma renovação que passava por assumir a

maior afinidade disciplinar da história das ciências com a história tout court?

Antes de responder a essas questões, é preciso lembrar que a epistemologia

histórica não é, atualmente, monopólio desse ramo da nova historiografia. Ela continua

sendo usada por filósofos que seguem a tradição francesa, por epistemólogos marxistas

contemporâneos e por uma diversidade de autores não necessariamente filiados a essas

tradições (especialmente depois da popularização da expressão).

Ao que tudo indica, a expressão é posta novamente em circulação a partir da

criação do Instituto Max Planck para a História da Ciência, em 1994 (VAN DAMME,

2014, p. 12). Lorraine Daston é convidada para ser uma das diretoras do recém­criado

Instituto, juntamente com Jürgen Renn e Lorenz Krüger. O primeiro relatório anual

estabelece que: “o desenvolvimento de uma ‘epistemologia histórica’ é uma das metas

de pesquisa centrais. Ela deve incluir uma compreensão histórica do desenvolvimento

de categorias fundamentais do pensamento científico.” (FIRST ANUAL REPORT,

1994)172. Da mesma forma, em um dos primeiros textos publicados pelo Instituto,

Jürgen Renn (1994) propõe uma compreensão da ciência que integre efetivamente as

estruturas cognitivas e sociais que compõem a ciência. Essa tarefa caberia à

epistemologia histórica. O autor critica a suposta interdisciplinaridade daquilo que foi

designado como “História e filosofia da ciência”, asseverando que, apesar das

tentativas, os dois campos permanecem isolados (a mesma crítica já havia sido

171 Também nos anos 1930, Ludwik Fleck realizou um movimento semelhante e colocou a história no centro das preocupações da sua epistemologia. As citações a sua obra na nova historiografia, quando aparecem, são sempre de forma marginal, sem diálogo efetivo.172 No original: “The development of an ‘historical epistemology’ is a central research goal. It should comprise an historical understanding of the development of fundamental categories of scientific thinking”. Tradução minha.

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formulada por Thomas Kuhn no final dos anos 1960). A epistemologia histórica seria

essa empreitada efetivamente interdisciplinar, que dá conta da complexidade da ciência.

Para o autor, essa nova “teoria histórica do conhecimento científico” seria mais

competente para interpretar a realidade das ciências ao final do século XX e colaboraria

para reverter a tendência dos estudos filosóficos que pensam a ciência de forma

independente do seu contexto de produção e emergência (RENN, 1994). Assim, ela não

se proporia a conjugar a história (para explicar as estruturas sociais) e a filosofia (para

explicar as estruturas cognitivas), mas realizaria uma análise que leva em conta esses

dois conjuntos, compreendendo­os como parte de um mesmo enquadramento. As

tensões entre as análises internalistas e “contextualistas” (o termo é do autor) seriam

superadas por uma teoria que lida com a “a emergência do pensamento científico em

seu contexto cultural e social” (RENN, 1994, p. 4)173. A tentativa ainda preserva muito

do vocabulário das correntes que pretende ultrapassar.

Como podemos perceber, essa é uma ação coletivamente organizada em torno

do Instituto Max Planck174. O esforço na consolidação de um programa de pesquisa

aparece também em um dos primeiros textos de Lorraine Daston sobre a história da

objetividade científica, no qual a autora propõe uma definição do que seja epistemologia

histórica175. Apesar disso, a posição de Daston é significativamente diferente daquela

defendida por seu colega.

O que compreendo por epistemologia histórica é a história das categorias que estruturam o nosso pensamento, que modela a nossa concepção da argumentação e da prova, que organiza nossas práticas, que certifica nossas formas de explicação e que dota cada uma dessas atividades de uma significação simbólica e de um valor afetivo. Essa epistemologia histórica pode (e de fato, ela deve) remeter­se à história das ideias e das práticas, assim como que à história das significações e dos valores que constituem as economias morais das ciências (DASTON, 2008, p. 367).176

173 No original: “the emergency of scientific thinking within its cultural and social contexts”. Tradução minha.174 Um exemplo mais recente mostra a vitalidade e a amplitude desse projeto, que continua sendo encampado ativamente pelo Instituto Max Planck. Em um livro sobre a história da filosofia das ciências no século XX publicado originalmente em 2010, Hans­Jörg Rheinberger (que era, à época, diretor do Instituto) defende que a principal característica dessa disciplina ao longo do século passado foi justamente a historicização da epistemologia. De tal maneira que, para ele, a epistemologia pode ser definida (sem qualquer apelo a adjetivos) como “la réflexion qui porte [...] sur les conditions historiques sous lesquelles, et les moyens avec lesquels les choses sont transformées em objects de savoir” (RHEINBERGER, 2014, p. 5). Não por acaso, o ensaio foi intitulado originalmente como On historicizing epistemology. 175 O texto foi publicado em 1995. Utilizo aqui a sua edição francesa, que apareceu em 2008. Em 1992, Daston e Galison publicam juntos o primeiro texto sobre o tema. Ambos retornariam pontualmente a tratar a questão individualmente, até retornarem ao problema para trabalhar no que se tornaria o Objectivity.

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Essa longa citação sintetiza de forma exemplar o programa levado a cabo pela

nova historiografia das ciências. Nela, a epistemologia histórica aparece claramente

como história; uma história que mira o pensamento, mas também as práticas, que

engloba a razão e o afeto, que se preocupa com a materialidade e a significação. Ao

tratar a objetividade como uma virtude epistêmica, Lorraine Daston e Peter Galison

estão operando com maestria esse programa. Na verdade, os autores vão apontar como a

objetividade é uma das formas de disciplina do self, uma maneira particular de

constranger certos traços do sujeito do conhecimento ao mesmo tempo em que cultiva e

ressalta outras características. “De sábio a trabalhador a expert treinado; de imagem

racionalizada a imagem mecânica a imagem interpretada. Esse epigrama, embora muito

esquemático, liga a história epistemológica da imagem à epistemologia ética do autor­

cientista” (DASTON e GALISON, p. 357)177. Esse resumo oferecido pelos autores

explicita bem as suas pretensões. Ele parece nos levar a crer que a historicização da

epistemologia transforma epistemologia histórica e história epistemológica em

expressões intercambiáveis.

Para compreender melhor a forma como os autores historicizam a epistemologia,

devo retraçar brevemente a história narrada no livro. Esse percurso permitirá apontar

para algumas das características dessa interpretação e retirar delas algumas implicações

historiográficas.

Antes da emergência da objetividade, outros traços de personalidade eram

valorizados e percebidos como relevantes para retratar a natureza e descrever o mundo.

Como já afirmei acima, antes da objetividade havia a verdade­para­a­natureza (truth­to­

nature). “A verdade­para­a­natureza, como a objetividade, era historicamente

específica. Ela emergiu em um tempo e um lugar particular e tornou possível uma forma

particular de ciência – uma ciência sobre as regras da natureza e não sobre as suas

exceções” (DASTON e GALISON, 2010, p. 68)178. A objetividade não define a

176 No original: “Ce que j’entends par épistémologie historique est l’histoire des catégories qui structurent notre pensée, qui modèlent notre conception de l’argumentation et de la preuve, qui organisent nos pratiques, qui certifient nos formes d’explication et qui dotent chacune de ces activités d’une signification symbolique et d’une valeur affective. Cette épistémologie historique peut (et en fait, elle le doit) renvoyer à l’histoire des idées e des pratiques, tout autant qu’à l’histoire des significations et des valeurs qui constituent les économies morales des sciences”. Tradução minha.177 No original: “Sage to worker to trained expert; reasoned image to mechanical image to interpreted image. This epigram, albeit too schematic, joins the epistemological history of the image to the ethical epistemology of the author­scientist”. Tradução minha.

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ciência, não é uma condição necessária à produção do conhecimento científico, sua

emergência não foi inevitável. A ciência se tornou objetiva em meados do século XIX

como resposta a demandas específicas que podem ser localizadas e explicadas.

A verdade­para­a­natureza – presente nas práticas de naturalistas, anatomistas,

botânicos e vários tipos de praticantes da ciência do século XVIII e da primeira metade

do XIX – era “uma tradição rigorosa e progressiva de pesquisa e representação

científica” (DASTON e GALISON, 2010, p. 197)179. O surgimento de uma nova

virtude epistêmica não significa o fracasso da anterior em produzir conhecimento

científico, mas um fracasso em produzir sentido em uma nova configuração histórica. A

verdade­para­a­natureza pregava um tipo de representação do mundo natural baseada na

busca de arquétipos idealizados, o fenômeno puro e perfeito. Os espécimes particulares

de uma planta ou um animal, por exemplo, eram cheios de imperfeições e

particularidades que não condiziam com a busca de uma essência na natureza. A

variabilidade e as irregularidades da natureza eram considerados desvios e eram fonte

de preocupação e “ansiedade epistêmica” (DASTON e GALISON, 2010, p. 67). Assim,

a atividade dos naturalistas poderia passar por corrigir e modificar deliberadamente as

imperfeições dos exemplares que descreviam, para o bem da ciência. Descrever a

natureza fielmente, de maneira realista, exigia que se ultrapassasse a observação de um

esqueleto humano particular (por exemplo) e se atingisse o esqueleto típico,

característico, essencial. Esse esqueleto poderia nunca se manifestar em um espécime

particular (e provavelmente não iria). Isso não significava ignorar a observação, mas

aperfeiçoá­la exaustivamente pela repetição e pela comparação de modo que fosse

possível perceber o que era típico e o que era acidental em um dado objeto. A imagem

era deliberadamente racionalizada (reasoned).

Para uma cultura intelectual moldada pela objetividade, é difícil conceber uma

posição que pretende ser simultaneamente realista e idealista, que busca a fidelidade e

que aperfeiçoa aquilo que descreve. Essa posição parece contraditória. O desafio do

Objectivity é mostrar como esse tipo de prática científica era não só possível, mas

plausível; desde que compreendida dentro de um enquadramento histórico específico. A

178 No original: “Truth­to­nature, like objectivity, was historically specific. It emerged in a particular time and space and made a particular kind of science possible – a science about the rules rather than the exceptions of nature”. Tradução minha. 179 No original: “a rigorous and progressive tradition of scientific research and representations”. Tradução minha.

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verdade­para­a­natureza será contestada e combatida com o advento dessa nova virtude

epistêmica, a objetividade. Essa emergência, como já vimos, não extingue o antigo

modelo – apesar de se constituir em oposição a ele. O que ocorre é uma transformação

da verdade­para­a­natureza no panorama das “formas epistêmicas de vida” (epistemic

ways of life). As suas funções, suas estratégias e o lugar que ela ocupa são deslocados

no confronto com a objetividade (DASTON e GALISON, 2010, p. 113).

Ao longo da segunda metade do século XIX e início do XX, esse novo “ideal

regulador” vai estruturar a atividade dos cientistas em diversos âmbitos. A objetividade

mecânica – nome dado pelos autores para essa versão da virtude epistêmica que se

empenha em anular os efeitos do sujeito na produção do conhecimento – é um projeto

inacabado. Ela é uma busca constante, fonte de debates e tensões. Um ponto de

referência que guiava as convicções epistemológicas, as práticas de produção de

imagem e o comportamento moral dos cientistas (DASTON e GALISON, 2010, pp.

115­123). “A objetividade era um desejo, um compromisso apaixonado de supressão da

vontade, o ímpeto de deixar o mundo visível emergir na página [de um atlas] sem

intervenção” (DASTON e GALISON, 2010, p. 143)180. Ela ambicionava silenciar o

observador para que a natureza pudesse ser ouvida. “‘Deixe a natureza falar por si

mesma’ se tornou a palavra de ordem da nova objetividade científica” (DASTON e

GALISON, 2010, p. 120)181.

A objetividade é uma novidade oitocentista. Ela surge como um contraponto de

certos aspectos do self. Ela é conjurada para combater a subjetividade, percebida como

perigosa para a produção do conhecimento científico. Como explicam os autores,

objetividade e subjetividade são inseparáveis, formam um par conceitual

interdependente. A história dos termos é retraçada, remontando ao surgimento do

binômio na escolástica da baixa Idade Média. Desse período até o início da

modernidade, elas significavam quase exatamente o oposto do seu sentido

contemporâneo. Subjetivo referia­se às coisas em si mesmas, enquanto objetivo dizia

respeito ao modo como elas se apresentavam à consciência (DASTON e GALISON,

2010, p. 29).

180 No original: “Objectivity was a desire, a passionate commitment to suppress the will, a drive to let the visible world emerge on the page without intervention”. Tradução minha. 181 No original: “‘Let the nature speak for itself’ become the watchword of the new scientific objectivity”. Tradução minha.

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A transformação do sentido medieval e a aproximação com aquele que damos

hoje a essas palavras deve­se a Kant, que as retirou do ostracismo a que foram relegadas

juntamente com a escolástica e as colocou novamente em uso na filosofia moderna. A

considerável força do kantismo na vida intelectual europeia do século XIX ajudou a

difundir os conceitos em suas novas definições (DASTON e GALISON, 2010, pp. 28­

31; 205­207). Cientistas de enorme influência, como Claude Bernard, Thomas Henry

Huxley e Hermann von Helmholtz apropriaram­se do par subjetivo e objetivo e o

instrumentalizaram. Com efeito, a utilização desses conceitos como operadores de um

corte abrupto entre a mente e o mundo, entre o empírico e o racional ou entre o exato e

o incerto estava distante das sutilezas da filosofia kantiana. Ela era uma adaptação aos

propósitos da ciência no período (DASTON e GALISON, 2010, p. 205­210). Essa

interpretação tendia a fundir epistemologia e ética: “ela era vista – e sentida – como

envolvendo uma batalha da vontade contra si mesma” (DASTON e GALISON, 2010, p.

210)182.

A mesma subjetividade combatida na ciência era celebrada em outros contextos;

como na arte do século XIX, onde a expressão dos traços individuais de personalidade,

a manifestação da singularidade era vista como uma característica louvável. A

objetividade cumpre assim uma série de funções específicas percebidas como relevantes

e necessárias à produção do conhecimento científico. A principal era impedir que

aspectos pessoais perturbassem a ciência, comprometendo o resultado de uma pesquisa.

Para apreender o mundo “como ele realmente é”, o sujeito deve se anular. A novidade

da objetividade como virtude epistêmica e do tipo de ciência que demanda por ela e que

é por ela possibilitada não deve levar à interpretação de que a ciência anterior não era

objetiva por que não havia descoberto essa possibilidade. Em outras palavras, a

emergência da objetividade não deve ser vista como um progresso em direção a uma

descrição mais realista e exata do mundo. A objetividade, ou a verdade­para­a­natureza

ou o julgamento treinado (que surgirá em meados do século XX) são formas históricas

de articular ethos e episteme. Elas dependem da disponibilidade de materiais para serem

construídas, mas também de escolhas. Assim, por exemplo, Lorraine Daston e Peter

Galison vão mostrar como algumas das características que compõem a objetividade já

estavam disponíveis antes da sua emergência como uma virtude epistêmica plenamente

articulada. A ideia – central para a objetividade – de uma descrição mimética da

182 No original: “It was seen – and felt – to envolve a battle of the will against itself”. Tradução minha.

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natureza, de uma representação do objeto exatamente como ele se apresenta, sem

retoques ou aperfeiçoamentos, era bem conhecida no século XVIII. “Havia

representantes setecentistas da alternativa naturalística na ilustração anatômica, mas

considerações tanto estéticas quanto de precisão determinavam suas escolhas explícitas”

(DASTON e GALISON, 2010, p. 75)183.

Os autores não estão tão preocupados em perceber como a objetividade pode ser

definida, mas em como ela é praticada, como ela se manifesta na produção do

conhecimento científico e como ela molda um self científico historicamente

contingente. Assim, o surgimento de procedimentos e protocolos, o uso de máquinas e a

automatização dos gestos humanos através do treinamento e da repetição serão

destacados; bem como as tecnologias de produção do self, as técnicas de construção de

um certo tipo de cientista, a disciplina e o “cuidado de si” foucaultiano. Poucas décadas

depois da sua emergência, a objetividade está no núcleo da definição de ciência e das

suas práticas. “Ao final do século dezenove, a objetividade mecânica estava instalada

firmemente como um ideal orientador se não como o ideal orientador da representação

científica através de um amplo espectro de disciplinas” (DASTON e GALISON, 2010,

p. 125)184.

Um dos elementos centrais para esse processo foi a utilização cada vez maior de

máquinas para realizar o trabalho científico. Em vista desse papel relevante das

máquinas, Daston e Galison vão chamar essa primeira fase da objetividade de

objetividade mecânica. Os instrumentos mecânicos eram confiáveis, infatigáveis, não

sucumbiam às tentações humanas, não cediam a interesses, não escorregavam para a

imparcialidade. Eles espelhavam uma série de virtudes consideradas importantes para a

produção do conhecimento objetivo. As virtudes das máquinas eram um exemplo de

como deveriam agir os cientistas. Embora, é claro, elas não pudessem ser moralmente

valorizadas por essas características; a virtuose não era para elas uma questão de

escolha. Ainda assim, elas serviam de metáfora para os procedimentos humanos, que

deveriam ser automatizados (DASTON e GALISON, 2010, pp. 138­140).

183 No original: “There were eighteenth­century representatives of naturalistic alternative in anatomical illustration, but it was considerations as much of aesthetics as of accuracy that determined their quite explicit choices”. Tradução minha.184 No original: “By the late nineteenth century, mechanical objectivity was firmly installed as a guiding if not the guiding ideal of scientific representation across a wide range of disciplines”. Tradução minha.

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A objetividade mecânica é um fenômeno histórico produzido em um momento

de reconfiguração daquilo que contava como boa ciência e do que deveria ser

valorizado na formação do cientista. A eliminação da agência humana do processo de

produção do conhecimento era a finalidade almejada por aqueles que professavam esse

ideal e que dele imbuíam as suas práticas. Ela não é, contudo, o ponto final dessa

história; tampouco a única forma possível de objetividade. Ao longo desse processo, a

objetividade expande o seu campo semântico e ultrapassa a metáfora do mecanismo. Ela

passa a abarcar fenômenos e áreas da ciência que não eram contempladas quando da sua

formulação. Fenômenos que não estão, estritamente falando, na esfera do visível. Daí

surge a objetividade estrutural, uma ampliação da ideia de objetividade para o estudo de

estrutura invariantes que subjazem a objetos da matemática, da lógica, da linguística, da

psicologia e mesmo da filosofia (DASTON e GALISON, p. 253­257).

Objetividade mecânica e estrutural não são apenas extensões da mesma noção,

elas diferem em muitos aspectos. A objetividade estrutural é um produto da transição

entre os séculos XIX e XX. Ela guiou a prática científica de importantes cientistas e

filósofos do período, como Bertrand Russel, Max Planck, Henri Poincaré, Gottlob Frege

e Rudolf Carnap185. Autores com filiados a tradições filosóficas diversas que são

reagrupados em torno de um recorte heterodoxo a partir do recurso às virtudes

epistêmicas, que cria um arranjo histórico diferente do que costumeiramente organiza as

narrativas na história das ciências e da filosofia. Para os proponentes da objetividade

estrutural, a objetividade científica não estava na reprodução exata do mundo como

realmente é. Essa era uma pretensão impossível de ser atingida devido às próprias

limitações do aparato sensorial humano. Essa “objetividade sem imagens” deverá então

ter aspectos bastante diferentes da objetividade mecânica. Galison e Daston ressaltam

como a objetividade estrutural cultiva e combate aspectos diferentes do self em relação

à sua contrapartida. Enquanto a última se opunha à interferência da ação humana na

realidade e pretendia anular a sua individualidade e deixar com que natureza falasse por

si, a primeira tentava preservar a consciência e a razão inclusive dos excessos da

natureza e da particularidades da própria experiência sensorial em busca de estruturas

fundamentais. Essas estruturas não se assemelham às essências buscadas pelos

185 Os autores se perguntam se Einstein era um objetivista estrutural (DASTON e GALISON, 2010, p. 305). E respondem “sim” e “não”. Ele incorporou e defendeu alguns aspectos dessa virtude epistêmica (como a busca de estruturas que condicionam os sentidos) e deplorou outros aspectos (como a redução lógica de uma teoria, preferindo uma versão mais holística).

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naturalistas que se guiavam pela verdade­para­a­natureza. A diferença nos aspectos da

personalidade que devem ser combatidos pode ser entendida como resultado da forma

como a objetividade estrutural redesenha a linha divisória entre subjetivo e objetivo,

como ela mapeia de forma diversa o território de ambos os lados. As sensações são

postas sob suspeita, e os fatos apreendidos pela experiência são tidos como dependentes

de características subjetivas particulares de cada observador (DASTON e GALISON,

2010, pp. 257­260).

As diferenças entre objetividade mecânica e estrutural não significava o

abandono dos seus pressupostos; mas, para muitos dos seus praticantes, uma

radicalização da noção do que significa ser objetivo. “A objetividade estrutural era, em

alguns sentidos, uma intensificação da objetividade mecânica, mais realista que o rei”

(DASTON e GALISON, 2010, p. 259)186. Isso tinha consequência na disciplina de si

que acompanhava essa virtude epistêmica, ela levava a graus extremos a repressão da

subjetividade e incorporava uma postura ascética em relação à produção do

conhecimento científico.

A objetividade, de acordo com os estruturalistas, não se tratava de sensações ou mesmo de coisas; ela não tinha nada a ver com imagens, fabricadas ou mentais. Ela era sobre relações estruturais duradouras que sobreviviam às transformações matemáticas, revoluções científicas, mudanças na perspectiva linguística, diversidade cultural, evolução psicológica, aos caprichos da história e às particularidades da fisiologia individual (DASTON e GALISON, 2010, p. 259).187

O temor da variação individual levou essa vertente da objetividade a postular um

conhecimento rigorosamente abstrato, infenso à concretude. Uma ciência realmente

objetiva estaria praticamente circunscrita ao reino da lógica e das suas relações formais,

comunicáveis com qualquer ser racional. Isso coloca problemas à dimensão empírica da

ciência, uma vez que a ligação com a realidade se torna cada vez mais tênue e estreita.

Não é por acaso que os autores vão usar a filosofia do Círculo de Viena como um

exemplo dessa virtude epistêmica. Os neopositivistas visavam tratar ciência como um

conjunto de enunciados atômicos e logicamente redutíveis; depurar a linguagem

científica de qualquer traço autoral ou metafísico; transcender as idiossincrasias da

186 No original: “Structural objectivity was, in some senses, an intensification of mechanical objectivity, more royalist than the king”. Tradução minha.187 No original: “Objectivity, according to structuralists, was not about sensations or even about things; it had nothing to do with images, made or mental. It was about enduring structural relationships that survived mathematical transformations, scientific revolutions, shifts of linguistic perspective, cultural diversity, psychological evolution, the vagaries of history, and the quirks of individual physiology”. Tradução minha.

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experiência humana individual. O neopositivismo é também chamado de empirismo

lógico, dado o seu esforço em preservar a relação com a experiência. Essa relação se dá

com o estabelecimento das sentenças protocolares, a forma mais simples de expressar

um fato empírico, desprovidas de juízos de valor, moduladores e quaisquer indicadores

de singularidades188. A ciência não seria muito mais do que a enunciação lógica de

fatos empíricos encadeados e relacionados por meio de atribuições de causalidade. No

que diz respeito à questão tratada por Galison e Daston, o importante é destacar que,

para o Círculo de Viena, o problema do fundamento do conhecimento é deslocado para

a linguagem (SCHLICK, 1959). Assim, o neopositivismo mantém o problema da

objetividade circunscrito à lógica e a correlação de estruturas fundamentais, sem perder

o contato com a realidade.

A objetividade estrutural foi uma tentativa radical de eliminar da ciência

qualquer característica que pudesse ser considerada local, particular, específica. Só as

formas lógicas eram passíveis de comunicação irrestrita, estavam livres dos mal­

entendidos causados pelas distorções subjetivas. Era uma busca pelo absoluto que

exigia, ou era assim retratado discursivamente, um enorme sacrifício de disciplina dos

sentidos e de cultivo da razão em direção às estruturas lógicas subjacentes aos

fenômenos. “Os objetivistas estruturais suspeitavam de uma objetividade fundamentada

na referência e na experiência; preferiam relações vinculadas a estruturas que poderiam

ser compartilhadas de maneira não problemática”189. Emergindo nas décadas finais do

século XIX, a objetividade estrutural teve eco em diversos campos da ciência e na

filosofia ao longo de todo o século XX.

No entanto, existem disciplinas científicas para as quais esse modelo é

impossível, disciplinas que dependem da produção, circulação e consumo em larga

escala de imagens. É com essas ciências que estão preocupados os autores do

Objectivity, com esse largo campo que eles denominaram de “epistemologias do olho”

(epistemologies of the eye). Essas ciências também viram a emergência de uma nova

188 Essa definição se baseia principalmente na filosofia de Moritz Schlick (1959). Contudo, não é possível tratar de forma homogênea todos os membros do Círculo de Viena. A definição e o papel das sentenças protocolares na estruturação do conhecimento objetivo foram alvos de intensos debates no grupo, gerando desacordos entre Schlick e Otto Neurath (ÁVILA, 2012; CONDÉ, 1995). A ideia de realizar uma análise lógica da linguagem, trazendo­a para o centro do problema do conhecimento, é compartilhada pelo grupo.189 No original: “The structural objectivists were suspicious of an objectivity grounded in reference and experience; they preferred relations bound into structures that could be unproblematically shared”. Tradução minha.

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virtude epistêmica ao longo do século XX. A objetividade mecânica foi complementada

por uma nova forma de produção e interpretação de imagens científicas: o julgamento

treinado.

Essa nova virtude epistêmica rejeita regras e procedimentos mecânicos capazes

de guiar o trabalho do cientista. Surgindo ao longo das primeiras décadas do século XX

e se espalhando para uma diversidade de campos científicos em um ritmo cada vez

maior, o julgamento treinado se funda na habilidade do especialista, na repetição

exaustiva de uma operação que não pode ser formalizada, mas deve ser adquirida às

custas de uma forma diferente de cultivo do self científico. Aproxima­se em vários

aspectos daquilo que Michel Polanyi chamou de “conhecimento tácito”. A objetividade

estrutural é a resposta de físicos, matemáticos e filósofos ao que consideravam

limitações da objetividade mecânica. O julgamento treinado é também uma reação a

essa virtude epistêmica, uma reação que vem, dessa vez, do interior da comunidade de

cientistas empíricos.

O grande sucesso científico não era mais essencialmente uma questão de paciência e diligência, mas tampouco era a dádiva prometeica do fogo divino. Embora o brilhantismo não possa ser ensinado, o pensamento intuitivo pode, mesmo que ninguém entenda exatamente como ele funcionava (DASTON e GALISON, 2010, p. 312)190.

O julgamento treinado colocou sob fogo cerrado a passividade da objetividade

mecânica diante dos fenômenos retratados. Para essa nova virtude epistêmica – que

gerava novas necessidades, novos desejos e novas ansiedades – a própria mecanização

da produção científica demanda um olhar especializado. Ao contrário dos

procedimentos de reprodução de objetos simples e relativamente próximos à experiência

cotidiana, cuja transposição da natureza para o papel era vista como não muito

problemática, os elementos complexos, produzidos por máquinas sofisticadas, exigiam

uma capacidade de interpretação considerável por parte do cientista. As máquinas e os

procedimentos mecânicos continuam presentes no julgamento treinado, mais do que

isso, o seu uso se intensifica e se diversifica. No entanto, para interpretar corretamente

aquilo que era produzido por esses instrumentos, esse cientista deve tornar­se um expert

em determinado tipo de fenômeno ou técnica de representação.

190 No original: “Great scientific accomplishment was no longer essentially a matter of patience and industry, but neither was it a Promethean gift of divine fire. Altough brilliance could not be taught, intuitive thinking could, even if no one understood exactly how it funcnioned”. Tradução minha.

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Nessa nova configuração, a produção do conhecimento científico através da

imagem se completa no leitor da imagem. A passividade diante do que foi produzido –

presente tanto na verdade­para­a­natureza, com sua defesa da autoridade cognitiva de

uma imagem aperfeiçoada e que exibe uma verdade que de outro modo permaneceria

escondida, quanto na objetividade mecânica, que proclamava anular a participação do

agente humano para deixar com que a natureza falasse por si própria – não é mais

possível. É preciso uma postura mais ativa, um exercício hermenêutico consciente

(embora não formalizável) por parte daquele que recebe uma imagem produzida a partir

desse critério. Para ler uma radiografia, um eletroencefalograma ou um mapa de

manchas solares, o cientista deve dominar um vocabulário e uma gramática que o

permita decifrar as imagens; ele deve estar munido de um repertório construído no

decorrer do seu treinamento, da sua formação, que o habilita a enxergar aspectos

invisíveis ao olho leigo.

Além das novas máquinas, que produzem imagens irredutíveis à apropriação

pela passividade da objetividade mecânica, o início do século passado foi também o

período de enorme crescimento na quantidade de pessoas envolvidas na produção de

ciência (DASTON e GALISON, 2010, pp. 326­327; HOBSBAWM, 2006, pp. 504­

508)191. Isso gerava uma série de problemas inéditos, em especial para a formação de

novos cientistas. O aumento brutal na escala de treinamento exigia uma transformação

no modelo de pedagogia científica. Isso indicava, entre outras coisas, “novas maneiras

de treinar os estudantes avançados de ciência para ver, manipular e medir – uma

calibragem da cabeça, mão e olho talvez sem precedentes em seu rigor e alcance”

(DASTON e GALISON, 2010, p. 326)192. A padronização coletiva de um contingente

cada vez maior de pessoas constrói uma disciplina mental e corporal diferente,

historicamente específica, molda um self a partir do cultivo de habilidades diferentes,

que possui uma postura mais ativa diante das imagens científicas.

É curioso perceber que parte da história e da sociologia das ciências produzida

nesse período incorporou essas características como sendo parte essencial da ciência. A

já mencionada ênfase de Polanyi no conhecimento tácito, mas também as análises de

191 “Em 1910, todos os físicos e químicos alemães e britânicos juntos chegavam talvez a 8 mil pessoas. Em fins da década de 1980, o número de cientistas e engenheiros de fato empenhados em pesquisa e desenvolvimento experimental no mundo era estimado em cerca de 5 milhões” (HOBSBAWM, 2006, p. 504, grifo do autor). 192 No original: “new ways of training advanced science students to see, manipulate, and measure – a calibration of head, hand, and eye perhaps unprecedented in its rigor and range”. Tradução minha.

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Fleck e de Thomas Kuhn sobre a pedagogia e a formação de cientistas, a centralidade do

conceito de expertise para Harry Collins. Essas abordagens, entre tantas outras, utilizam

metáforas e avaliações que parecem muito próximas daquilo que Peter Galison e

Lorraine Daston identificam como julgamento treinado. Uma virtude epistêmica cujo

ponto de emergência pode ser historicamente localizado no século XX; uma maneira

específica de se relacionar com os objetos da natureza, de produzir e consumir imagens

científicas, de treinar cientistas, de disciplinar o olhar e a mente. Talvez a curiosidade se

explique justamente pela origem científica de grande parte dos autores da história e da

sociologia das ciências. Ao serem expostos a esse tipo de pedagogia ao longo de suas

formações, eles naturalizaram alguns traços dela como essenciais à formação de

cientistas em qualquer época, sob qualquer regime moral e cognitivo. Ao encadear essas

características à longa história das virtudes epistêmicas, Daston e Galison abrem

caminho para novas reflexões sobre a formação e a pedagogia científica. Não explorarei

essa seara. Depois desta retomada da história das virtudes epistêmicas da forma como

foi contada no Objectivity, passarei a considerações mais gerais sobre o conceito, em

uma tentativa de entender como ele ocupa um lugar central na epistemologia histórica.

“As virtudes epistêmicas são virtudes propriamente ditas: elas são normas que

são internalizadas e reforçadas através do apelo a valores éticos, bem como a eficácia

pragmática em assegurar o conhecimento” (DASTON e GALISON, p. 40)193. Assim,

os autores desafiam a separação entre fatos e valores, entre razão e emoção, para

mostrar que a ciência depende de uma constelação específica de emoções

historicamente determinadas. Eles não se limitam em dizer que os valores podem

fornecer motivação para o trabalho científico, ou que as emoções podem se infiltrar sub­

repticiamente nos produtos da razão e desvirtuá­la. Tentam mostrar como diferentes

códigos de conduta diante do conhecimento afetam a seleção dos objetos de pesquisa,

os limites da representação da natureza, os métodos de investigação de um problema, os

critérios de avaliação de resultados e tudo o que diz respeito ao que conta como “boa

ciência”, ou mesmo o que pode ser considerado ciência. Ao tratar das virtudes

epistêmicas, os valores, as emoções, a ética e as normas de conduta devem ser

consideradas como parte integrante e importante da produção do conhecimento

193 No original: “Epistemic virtues are virtues properly so called: they are norms that are internalized and enforced by appeal to ethical values, as well as to pragmatic efficacy in securing knowledge”. Tradução minha.

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científico – não como uma essência estática, mas como uma série de relações

historicamente dependentes.

As normas aqui não funcionam como para a sociologia mertoniana, que

considerava que elas faziam parte do comportamento dos cientistas e que os capacitava

para produzir conhecimento científico, mas nada poderiam dizer sobre o tipo de

conhecimento produzido. As normas eram parte da “dimensão social” da ciência, dos

seus “fatores externos” e o máximo que ela poderia fazer era facilitar ou dificultar a

produção desse conhecimento. Outro ponto distancia as virtudes epistêmicas das normas

mertonianas: a sua historicidade. Enquanto que o sociólogo americano propunha um

conjunto de valores trans­histórico que deveria ser compartilhado por qualquer cientista

interessado em produzir conhecimento científico relevante em qualquer época, Daston e

Galison vão mostrar que essas normas são dinâmicas e se transformam em virtude de

novos contextos e novas demandas.

Com efeito, Lorraine Daston já sinalizava para essa abordagem em um artigo

publicado em 1995. Na época, a autora falava em uma economia moral das ciências

modernas194. Seu sentido é muito próximo daquilo que as virtudes epistêmicas

expressam uma década depois. Para Daston,

Uma economia moral é um tecido de valores saturados de emoções que se ligam e funcionam em uma relação bem definida [...] um sistema equilibrado de forças emocionais, com seus pontos de equilíbrio e de limitações. Embora seja uma coisa contingente e maleável, sem necessidade, uma economia moral tem uma certa lógica em sua composição e suas operações. Com efeito, nem todas as combinações de emoções e valores são possíveis (DASTON, 2014, p. 23)195.

194 Nesse texto Lorraine Daston já elenca a objetividade como um exemplo de economia moral, juntamente com a quantificação e o empirismo. Já surge aqui também a noção de objetividade mecânica que seria desenvolvida depois. Ao acompanhar a bibliografia da autora sobre a questão da objetividade (vários deles já em parceria com Peter Galison), é possível perceber a permanência de certas interpretações e a emergência de conceitos e argumentos. No começo dos anos 1990, a autora falava de uma objetividade “aperspectivista” (aperspectival) e já sinaliza para uma história moral da objetividade (DASTON, 1992). Em uma conferência proferida em Portugal na segunda metade da década de 1990, a autora já fala em várias formas de objetividade, entre elas a “objetividade mecânica” e já se refere às “virtudes epistêmicas”; ela também já utiliza as imagens como fontes para pesquisar esses temas (DASTON, 1999). Outros autores, como Robert Kohler (1999), também utilizavam o conceito de economia moral para estudar a história das ciências. Kohler, contudo, retira a expressão da obra de E. P. Thompson e dá a ela um sentido próximo ao que Steven Shapin e Simon Schaffer chamam de tecnologia social.195 No original: “Une économie morale est um tissu de valeurs saturées d’affects qui se tiennent et foncionnent dans une relation bien définie [...] un système équilibré de forces émotionnelles, avec des points d’équilibre et des contraintes. Bien qu’elle soit une chose contingente et malléable, sans nécessité, une economie morale a une certaine logique dans sa compositions et ses operátions. En effet, toutes les combinaisons d’affects et de valeurs ne sont pas possibles”. Tradução minha.

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As ligações que se visa estabelecer para explicar a ciência não são mais aquelas

entre teoria e experiência (que não são abandonadas, mas redimensionadas em função

das novas interpretações), mas entre ética e epistemologia e entre moral e prática

científica. A epistemologia precisa de uma ética, dizem os autores196. Mesmo a

objetividade mecânica, com toda a sua discussão sobre neutralidade, supressão dos

valores, passividade diante dos fatos, possui um poderoso código moral. Ele constrange

os cientistas a comportarem­se de determinadas maneiras e se insurge vigorosamente

quando um comportamento desviante é flagrado. Os autores fazem uma distinção

conceitual entre ética – uma normatividade mais ligada a uma forma de vida coletiva e a

uma maneira de estar no mundo que faz parte da disposição habitual de um grupo – e

moral – regras específicas que podem ser adotadas ou transgredidas e para as quais

existem sanções sociais determinadas –, mas extrapolam essa distinção e utilizam

muitas vezes moral e ética de forma intercambiável. De qualquer modo, o recurso a uma

epistemologia moralizada fornece uma chave de compreensão interessante para a

discussão em torno da autoridade moral da natureza e do cientista. O ethos da ciência e

as suas transformações históricas são estudados através da análise da produção de atlas

e manuais. Eles não são vistos como produtos acabados, mas em ação. Há um

deslocamento em direção à prática científica. A prática não é entendida como

consequência de certas ideias morais ou de certos princípios que guiam uma virtude

epistêmica, nem como a sua manifestação. Os elementos simbólicos e materiais não são

tomados isoladamente como etapas lineares de um processo. Uma virtude epistêmica é

fruto de uma co­produção simbólica e material, surge do entrecruzamento de preceitos

morais e formas concretas de ação no mundo. Com efeito, a dimensão material e a

simbólica engendram­se uma à outra simultaneamente, à medida que constituem uma

forma de ciência. Isso torna mais complexas as relações entre saber e fazer, entre

representar o mundo e agir nele (MAIA, 2011, pp. 89­130).

Esse mesmo processo constitui também o self científico. As virtudes

epistêmicas, como todo código moral, exigem uma disciplina que marca profundamente

o sujeito produtor de conhecimento. Parte fundamental do argumento do livro decorre

da vinculação entre self e epistemologia. “As virtudes epistêmicas adquirem o direito de

serem chamadas de virtudes moldando o self e as maneiras que elas fazem isso são

196 Mas fazem uma ressalva quase popperiana: “It is perhaps conceivable that an epistemology without na ethos may exist, but we have yet to encounter one” (DASTON e GALISON, 2010, p. 40).

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paralelas e sobrepostas às maneiras pelas quais a epistemologia é traduzida em ciência”

(DASTON e GALISON, 2010, p. 41)197. Voltarei a esse ponto em seguida. Porém,

antes de tratar da história do self, e para possuir mais elementos para discutir a sua

relevância para a história das ciências, devo voltar a um ponto que indiquei acima.

Afirmei que o Objectivity estava apoiado principalmente em duas tradições

historiográficas, a epistemologia histórica e a história cultural das ciências. Nas páginas

anteriores apontei como a epistemologia histórica é tratada no livro, utilizando a história

das virtudes epistêmicas. É hora de se voltar para a segunda corrente e completar a

estrutura narrativa. É claro que a minha análise desorganiza a forma como os

argumentos são apresentados e defendidos pelos autores em prol da apresentação e

defesa dos meus argumentos. Não se trata, afinal, de reescrever o Objectivity.

A história cultural das ciências aparece no livro de duas formas principais. Uma

primeira, que poderia ser considerada mais tradicional, refere­se à escolha das fontes

primárias: imagens. O trabalho com iconografia é um traço da história cultural desde a

sua formação no século XIX. O segundo ponto tem a ver com uma renovação do

conceito de cultura utilizado pelos historiadores ao longo das últimas três ou quatro

décadas. Uma guinada mais antropológica que se tornou dominante na historiografia

tout court e que teve importantes representantes na historiografia das ciências. Tratarei

esses dois aspectos.

O livro estrutura­se em torno de imagens. Poderíamos dizer, utilizando um

vocabulário que mistura os dois aspectos apontados acima, que ele trata de uma cultura

visual da ciência. As imagens servem como representantes do esforço dos cientistas em

produzir “objetos de trabalho” (working objects) capazes de organizar um campo

disciplinar ou uma área de pesquisa. “Atlas são compilações sistemáticas de objetos de

trabalho. Eles são os dicionários das ciências do olho” (DASTON e GALISON, 2010, p.

22)198. As imagens presentes nesses atlas são produtos de códigos morais e

epistemológicos e servem para expandir o alcance desses códigos, treinar os praticantes

de determinada área do conhecimento, estabilizar os objetos do conhecimento e as

formas de representá­los e interpretá­los. Os tipos diferentes de imagens são índices de

virtudes epistêmicas diferentes, de formas diferentes de compreender a natureza e

197 No original: “Epistemic virtues earn their right to be called virtues by molding the self, and the ways they do so parallel and overlap with the ways epistemology is translated into science”. Tradução minha.198 No original: “Atlases are systematic compilations of working objects. They are the dictionaries of the sciences of the eye”. Tradução minha.

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praticar a ciência. As ciências se transformam historicamente, as imagens se

transformam historicamente, as atitudes científicas em relação às imagens seguem o

mesmo caminho. Os autores pretendem “mostrar, acima de tudo, como as virtudes

epistêmicas podem ser inscritas em imagens, nas maneiras que elas são produzidas,

usadas e defendidas de seus rivais” (DASTON e GALISON, 2010, p. 42)199. As

imagens tornam as virtudes epistêmicas visíveis.

Essa ambição implica uma análise iconográfica que se aproxima em muitos

momentos daquela produzida pela história da arte. As imagens são analisadas como

objetos históricos, frutos de um determinado contexto de produção, que circulam, são

utilizadas e consumidas, apropriadas e rejeitadas. A aproximação não se dá apenas pelo

tratamento das fontes. Mas porque lidam com um problema histórico semelhante e

estreitamente relacionado. Desse modo, do ponto de vista da produção e uso de

imagens, o regime da verdade­para­a­natureza e a arte produzida em seu tempo

“convergiam em julgamentos intercruzados sobre verdade e beleza. Os produtores de

atlas científicos do século dezoito se referiam explicitamente e repetidamente aos

gêneros de arte e à sua crítica coevos” (DASTON e GALISON, 2010, p. 79)200. As

ilustrações, gravuras, pinturas e impressões compartilhavam técnicas, materiais, temas e

topoi com as artes. Elas eram executadas por artistas a mando dos naturalistas.

Esses artistas, embora especializados em produzir imagens científicas e tendo

seu trabalho largamente reconhecido e disputado por produtores de atlas, haviam sido

muitas vezes formados nos cânones da arte. Eles eram indispensáveis à produção de

imagens científicas, mas o seu relacionamento com os naturalistas era frequentemente

conflituoso, eivado de “tensões: sociais, intelectuais e perceptuais” (DASTON e

GALISON, 2010, p. 88)201. Essas tensões provinham das diferentes concepções

estéticas e epistêmicas que cada grupo ostentava. As queixas dos naturalistas – que se

viam durante o século XVIII na posição de “mestres” em relação aos artistas – eram

constantes. Mesmo o melhor e mais habilidoso artista precisava estar sob constante

vigilância para que procedesse de acordo com os critérios científicos de produção da

imagem (DASTON e GALISON, 2010, pp. 84­98).

199 No original: “to show, first of all, how epistemic virtues can be inscribed in images, in the ways they are made, used, and defended against rivals”. Tradução minha. 200 No original: “converged in intertwined judgements of truth and beauty. Eighteenth­century scientific atlas makers referred explicitly and repeatedly to coeval arts genre and criticism”. Tradução minha. 201 No original: “tensions: social, intellectual, and perceptual”. Tradução minha.

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No cabo­de­guerra visual entre o naturalista e o artista do Iluminismo, o

naturalista lutava pelo realismo dos tipos contra o artista, que se agarrava ao naturalismo

das aparências. Porque a imagem racionalizada poderia ser vista apenas pelo olho da

mente, os aspectos cognitivos e sociais da relação entre naturalista e artista se tornavam

turvos (DASTON e GALISON, 2010, p. 86)202.

As imagens científicas têm a sua epistemologia, a sua ética e a sua estética. A

interdependência desses três campos, no entanto, não permite que a imagem científica

se confunda com a arte; existem interesses e hábitos em comum, mas os dois

permanecem sendo muito diferentes. A relação que existe é de afinidade e não de

identidade. As imagens científicas dos atlas setecentistas obedecem a um conjunto de

normas específico, apesar do seu deslocamento para a categoria de obra de arte ou

objeto decorativo depois da emergência da objetividade. A ilustração botânica, por

exemplo, foi apreciada em seu valor estético fora da corporação dos cientistas enquanto

ainda era amplamente utilizada como objeto de ciência, mas é no século XX que ela vai

inundar todos os fluxos culturais, desde floras ricamente ilustradas que decoram

consultórios médicos até a Panacea Phantastica de Adriana Varejão.

Parece mais “natural” para o nosso modo de cognição e experiência estética

conceber a ilustração botânica, anatômica, zoológica ou astronômica como algum tipo

de obra de arte. No entanto, as imagens produzidas sob o regime da objetividade

resistem. Segundo uma parte do seu discurso, a neutralidade, imparcialidade e

automatismo da imagem lhe colocam em uma posição alheia a julgamentos estéticos. A

fotografia é o instrumento emblemático dessa forma de vida. Ela exerceu sobre os

cientistas do século XIX uma fascinação maior que qualquer outro novo invento203. Já

em 1839, em uma apresentação do físico e astrônomo francês François Arago sobre as

invenções de Daguerre para uma audiência composta – não por acaso – por membros da

Académie des Sciences e da Académie des Beaux­Arts, os cientistas já destacavam as

possibilidades que esses novos aparelhos abriam para a sua prática (DASTON e

GALISON, 2010, pp. 126­130).

202 No original: “In the visual tug­of­war between Enlightenment naturalist and artist, the naturalist fought for the realism of types against the artist, who clung to naturalism of appearances. Because the reasoned image could be seen only by the mind’s eye, the social and cognitive aspects of the relationship between naturalist and artist blurred”. Tradução minha. 203 Mais precisamente, “photography was not one but several inventions” desenvolvidas principalmente entre as décadas de 1820 e 1830 (DASTON e GALISON, 2010, p. 125).

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A fotografia, assim como outras máquinas, fornecia a possibilidade de produzir

imagens intocadas por mãos humanas. Ela era uma promessa de eliminação das

projeções, mesmo involuntárias, da vontade do artista ou do cientista sobre a imagem. A

sua dificuldade de operação era compensada pelo seu automatismo. No entanto, a

fotografia não cria a objetividade mecânica (DASTON e GALISON, 2010, p. 197). Ela

responde de modo quase perfeito a uma demanda por formas de representação da

natureza que fossem imunes à agência humana (a fotografia era valorizada mais por

essa sua capacidade do que por produzir imagens supostamente mais realistas), e desse

modo é rapidamente apropriada e extremamente valorizada. Mas ela não cria nos

cientistas a necessidade de representar a natureza de forma mecânica. “Uma fotografia

era considerada cientificamente objetiva porque ela se contrapunha a um tipo específico

de subjetividade científica: intervenção para estetizar ou teorizar o que é visto”

(DASTON e GALISON, 2010, p. 135)204.

Apesar dessas promessas, os autores não se submetem às expectativas criadas

por essa virtude epistêmica, não se fiam na versão da história contada pela objetividade.

Ao situar a emergência da fotografia e o estabelecimento das suas práticas entre a

ciência e a arte, os autores mostram como a objetividade também possuía uma estética.

Os cientistas se confrontavam cotidianamente com implicações relativas a técnicas de

representação, a formas de manipulação da imagem e a considerações sobre o belo. No

entanto, é claro, tentavam marcar distância das especulações estéticas. Se as relações

entre arte e ciência até o século XVIII eram tensas, porém próximas, a partir de meados

do século seguinte a relação passa a ser de oposição aberta. Enquanto os artistas

valorizavam cada vez mais a exibição da sua personalidade através da sua obra, os

cientistas exortavam a supressão da vontade e dos traços individuais. A “fotografia

científica era apenas uma espécie de fotografia oitocentista e a fotografia objetiva era

por sua vez apenas uma variedade da fotografia científica” (DASTON e GALISON,

2010, p. 126)205. No entanto, todas as espécies e variedades de fotografia deveriam

lidar com o problema do limite do automatismo e da inevitabilidade do recurso à

habilidade (uma característica largamente percebida como individual) na produção de

imagens fotográficas.

204 No original: “A photograph was deemed scientific objective because it countered a specific kind of scientific subjectivity: intervention to aestheticize or theorize the seen”. Tradução minha. 205 No original: “scientific photography was only one species of nineteenth­century photography, and objective photography was in turn only one variety of scientific photography”. Tradução minha.

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Como já afirmei, não é apenas o trato com a imagem que aproxima a trama do

Objecivity da história cultural das ciências. Existe um uso da noção de cultura e dos

conceitos que habitam o seu campo semântico semelhante ao que tem sido proposto

pela história cultural desde as últimas décadas do século passado. Essa noção alcançou

um lugar de destaque nas transformações contemporâneas da historiografia tout court.

Como sabemos, a história cultural se alçou à condição de espaço de recriação do

conhecimento histórico depois do colapso da União Soviética e do “fim da História”. As

condições para interpretar o passado eram drasticamente alteradas e a guinada a uma

versão antropológica da história soube acomodar a formação de um novo espaço de

experiência à medida que se construía um novo horizonte de expectativa em um

momento em que bases culturais que sustentavam a legitimidade das narrativas

historiográficas não estavam mais disponíveis. Nesse período, agitada pela força dos

eventos e pela emergência de um novo ritmo da temporalidade, a história abandona a

crença na sua capacidade de atingir um saber objetivo e assume o seu caráter narrativo

(IGGERS, 2010; RICOEUR, 1994).

Nos anos 1990, a nova história cultural – sob a influência da antropologia e da

micro­história italiana – deslocou a sua atenção “das estruturas para as redes, dos

sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as estratégias

singulares” (CHARTIER, 1994, p. 98). O seu olhar agora se volta para a cultura como

um campo que possibilita essas escolhas, embora não qualquer escolha; os seus objetos

estão localizados entre práticas e representações, na famosa formulação de Roger

Chartier206. Ela se ocupa da linguagem e das suas margens, do discurso, dos rituais,

das mediações, da circularidade e do consumo de cultura; trabalha com o corpo e os

gestos, as sensibilidades, os locais sociais de produção cultural, como a imprensa e os

meios de comunicação, a educação, a leitura (HUNT, 2006). Esses temas são

investigados como vias de acesso a uma cultura estranha ao historiador, à alteridade.

Com esse movimento, a história cultural dá sentido a práticas do passado que pareciam

opacas, ao mesmo tempo em que problematiza comportamentos e hábitos tomados

como naturais, no passado ou no presente. Essa guinada marcou a historiografia, mas o

“relativismo” as suas “implicações radicais” para a produção do conhecimento histórico

foram rejeitados ao longo dos primeiros anos do novo século. De maneira semelhante,

Peter Galison e Lorraine Daston marcam a sua distância em relação ao relativismo.

206 Essa fórmula parece ecoar o título do importante livro de Ian Hacking, Representar e intervir.

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“Longe de relativizar essas virtudes [epistêmicas], a história exibe as suas razões, se não

sua racionalidade transcendental” (DASTON e GALISON, 2010, p. 376)207.

A história cultural das ciências se informou nessa literatura para levar a cabo um

propósito específico e difícil: tornar a ciência um fenômeno cultural. A primeira

dificuldade dessa tarefa é a de superar o estranhamento causado pela aproximação entre

ciência e cultura, que, para certa tradição intelectual profundamente enraizada, soa

como uma informação paradoxal e esquizofrênica. A ciência seria o campo da razão, da

objetividade, da neutralidade, o conhecimento sistemático e universal, o método. A

cultura, por sua vez, seria o terreno do subjetivo, do criativo, das artes, da emoção e do

afeto. Uma divisão que espelharia a própria constituição do mundo e a cisão entre

natureza e cultura. Nesse sentido, a história cultural das ciências seria uma contradição

em termos ou, na melhor das hipóteses, uma abordagem que trataria das dimensões ou

dos culturais da ciência como algo que não pertence ao domínio do cognitivo, do

racional; trataria de algo que é acidental, que esta fora do que é essencial à ciência e a

define (PIMENTEL, 2010, pp. 417­418). Essa tradição nega aquilo mesmo que a

história cultural das ciências se propõe a afirmar, que a ciência é cultura. A história

cultural das ciências levanta contra essa objeção dois argumentos. Primeiro, a noção

antropológica de cultura amplia o seu significado e engloba outras possibilidades de

compreensão do conceito. Segundo, apesar do conceito de cultura não se resumir a essas

características, a ciência possui várias delas (ou todas). A história cultural das ciências

precisa superar o abismo criado entre as “duas culturas” (SNOW, 1995), precisa

convencer cientistas e humanistas de que essa polarização é artificial e prejudicial.

Essa posição se constituiu desde os anos 1980 e se fortaleceu na década

seguinte, seguindo uma cronologia próxima da história cultural tout court. Ela se

propunha deliberadamente a superar a divisão entre internalismo e externalismo, ao

considerar que não existiam fatores culturais “fora” da ciência e fatores cognitivos

“dentro” dela. A publicação da coletânea editada em 1992 por Andrew Pickering,

Science as practice and culture, marca esse esforço. Embora o livro ainda esteja imerso

no debate sobre as várias correntes em disputa no interior dos science studies, ele aponta

para o que parecia ser um consenso possível, o futuro das análises sobre a ciência: o

deslocamento da compreensão da ciência em direção à cultura e à prática, duas noções

207 No original: “Far from relativizing these virtues, history exhibits their rationale, if not their transcendental rationality”. Tradução minha.

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estreitamente relacionadas208. Assim como na historiografia, esse movimento foi

tributário da antropologia e de abordagens que utilizavam uma escala bastante reduzida

de análise, principalmente através dos estudos de laboratório, da etnometodologia, do

pragmatismo (PICKERING, 1992; GOLINSKI, 2005, pp. 162­169). Em meados dos

anos 1990, Peter Galison irá dialogar intensamente com essa literatura ao escrever a

história da “cultura material do laboratório”. Nesse livro, Image and logic, Galison

identifica três grupos diferentes, ou melhor, três subculturas: instrumentalistas,

experimentalistas e teóricos. Em constante diálogo com os science studies e fortemente

influenciado pelo Leviathan, Galison pretende mostrar que a história dos instrumentos

científicos e da experimentação não é submissa à história das teorias, que existem

cronologias, recortes, problemas e contextos específicos. A dinâmica particular dessa

história é explorada em uma análise atenta aos sentidos simbólicos e às práticas

materiais da big science do século XX. É significativo que como o autor reposiciona a

sua história. “Trazendo os instrumentos para frente e para o centro, nós temos uma

história diferente, uma história apenas inadequadamente classificada sob as velhas

rubricas da ‘história intelectual interna’ e ‘história sociológica externa’” (GALISON,

1997, p. 5)209. Em um dos seus raros artigos traduzidos para o português210, Galison

reflete sobre a sua iniciação na história das ciências e nos fala sobre a sua tentativa de

combinar abordagens que pareciam ortogonais: uma interpretação que colocava toda

ênfase na teoria, representada (para o autor) por Kuhn e Mary Hesse, e a história social

de Braudel ou Thompson, que podia “chegar à História [...] através da materialidade do

arroz e das batatas, dos metros cúbicos do espaço habitacional” (GALISON, 1999, p.

395). O autor trabalhará com a ideia de histórias que correm em ritmos diversos, que

possuem condicionantes diversos e na qual diferentes culturas científicas (ou

208 O próprio Pickering (1999) publicou, no ano seguinte, um artigo que sintetizou de forma bastante competente a discussão sobre prática e agência nos science studies. Esse texto, The mangle of practice, influenciou decisivamente a produção posterior ao mostrar que a prática deve ser entendida como uma noção dialética que comporta resistência e acomodação de forma constitutivamente indexada pela temporalidade. Essa dialética se desenvolve no interior de uma luta que reestrutura interativamente o terreno material e humano, uma luta na qual “material agency, scientific knowledge, and human agency and its social contours are all reconfigured at once” (PICKERING, 1999, p. 385). 209 No original: “By bringing instruments front and center, we get a different history, a history only awkwardly classed under the old rubrics ‘internal intellectual history’ and ‘external sociological history’”. Tradução minha. 210 O texto foi lido por Galison durante um ciclo de palestras com grandes nomes da história, da filosofia e da sociologia das ciências realizado em Portugal entre 1996 e 1998. Na verdade, com exceção desse pequeno artigo, o único texto de Peter Galison traduzido para o português foi o livro “Os relógios de Einstein e os mapas de Poincaré”.

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subculturas) possuíam diferentes relações com a temporalidade. “Uma tal imagem

parecia oferecer uma epistemologia histórica (pedindo a expressão emprestada a

Lorraine Daston e Ian Hacking)” (GALISON, 1999, p. 397, grifo meu).

No Objectivity, os autores lidam diretamente com representações e práticas, com

a perspectiva antropológica da cultura. As práticas científicas não estão confinadas à

aplicação do “método científico” (uma expressão praticamente ausente na obra), mas se

referem aos diversos “modos de fazer” que instituem a ciência em sua relação com a

dimensão material e engendra as operações do campo simbólico. As práticas científicas

alteram as identidades culturais, transformam relações sociais e o ambiente material,

desagregam o mundo e o reconstroem na medida em que produzem fatos e artefatos. As

práticas de produção, consumo e difusão de imagens científicas se engajam em uma

relação histórica de construção recíproca com as virtudes epistêmicas e o self científico.

As práticas moldam o self e são moldadas por ele, o mesmo ocorre com as virtudes

epistêmicas211.

De modo semelhante, as representações da ciência não se limitam à descrição

realista e à explicação objetiva da natureza, englobando diversas “maneiras de ver”. As

imagens (como também os gráficos, fórmulas, textos, diagramas etc) são parte

integrante da “forma científica de vida”. As diferentes maneiras de representar (e ver) a

natureza relacionam­se com formas de ser no mundo. As imagens produzidas pela

ciência, sob qualquer virtude epistêmica, tem como objetivo uma representação fiel da

natureza. Segundo os autores, não há dúvidas de que a natureza tem participação nesse

processo. Isso não significa dizer que a natureza se representa a si mesma, enquanto

todo o aparato montado pela ciência serve apenas como um meio transparente para a

transmissão dos fenômenos naturais e as suas leis subjacentes. Os cientistas não são

apenas porta­vozes da natureza, eles constroem representações a partir de

enquadramentos culturais historicamente contingentes. Mais do que isso, os diversos

modos de ver o mundo inscrevem­se profundamente na forma como a persona científica

é constituída. Os autores resumem o entrelaçamento entre práticas, representações e self

de maneira enfática. “Produzir uma imagem científica é parte da produção de um self

científico” (DASTON e GALISON, 2010, p. 363)212.

211 Claro que esses elementos podem entrar em contradição, e entram frequentemente. Práticas que são rejeitadas por certas virtudes epistêmicas, formas de disciplina e de self que se insurgem contra determinadas práticas etc. 212 No original: “Making a scientific image is part of making a scientific self”. Tradução minha.

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O self é o protagonista do Objectivity. As virtudes epistêmicas e suas

vicissitudes, os atlas e os regimes de produção da imagem científica, as práticas de

investigação do mundo natural, a correlação entre epistemologia e ethos e tudo quanto

os autores conseguem mobilizar se organiza para contar a história das transformações,

das múltiplas crises e estabilizações de “maneiras de ser no mundo”. Localizando a sua

pesquisa no interior das investigações sobre o self levadas a cabo por historiadores,

filósofos e antropólogos, os autores declaram: “Nós estamos interessados apenas em um

segmento específico e localizado dessa história rica e vasta, a saber, as manifestações e

mutações do self científico entre os séculos dezoito e vinte, principalmente na Europa

ocidental” (DASTON e GALISON, 2010, p. 198, grifo dos autores)213. O self

científico, no entanto, não se forma no vácuo e não está imune a outras formas de

estruturação da individualidade e do sujeito, ele se modifica ao sabor dos sotaques

locais, sofre inflexões de classe e gênero (DASTON e GALISON, 2010, p. 202). Tal

investigação será levada a cabo a partir das lições de Arnold Davidson, Pierre Hadot e

Michel Foucault sobre a formação do sujeito, a disciplina, o “cuidado de si” e as

“tecnologias do self”. Ao contrário dos exemplos analisados por esses autores (como o

caso dos filósofos antigos, dos estoicos ou dos religiosos), o self científico não é

cultivado e defendido em prol do conhecimento de si, mas do conhecimento do mundo

(DASTON e GALISON, 2010, p. 39).

Essa história não é contada como se o self fosse o nosso engenhoso fidalgo,

consumindo vorazmente os atlas científicos, sua imaginação se enchendo até a borda

com tudo aquilo que lia nos livros, se enfronhando nessa literatura a ponto de se

confundir com ela e correndo o mundo combatendo os gigantes da subjetividade. Como

se a objetividade fosse uma miragem, algo que deve ser denunciado e banido por sua

potência desumanizadora, uma loucura de alguns epistemólogos que conversam sobre

lógica em alemão. Essa história, contudo, teria o final feliz, já que nela o self é um

Quixote redimido e conquista a honra e a virtude epistêmica, valioso item de distinção.

A objetividade não é tampouco a pedra filosofal do conhecimento científico, capaz de

transformar a especulação metafísica impura e imprecisa no mais puro e precioso ouro

epistemológico. Não, não é assim que Lorraine Daston e Peter Galison narram as

aventuras do self no país da ciência.

213 No original: “We are interested here in only one specific and localized segment of this rich and capacious history, namely, the manifestations and mutations of the scientific self during the eighteenth through the twentieth centuries, mostly in Western Europe”. Tradução minha.

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Na verdade, não existe um self pronto, anterior, que, colocado em contato com a

objetividade, toma para si os valores que ela transmite. O self não é um recipiente que

pode ser completado com diversos conteúdos de cunho moral, epistêmico ou estético;

uma tabula rasa na qual se inscrevem as novas normas de comportamento. O self não é

o efeito de uma causa, a invenção da objetividade ou da ideia de justiça, por exemplo. A

explicação que os autores buscam não tem a forma das relações de causa e efeito, que

pressupõem uma distinção clara entre os seus elementos. A causa deve ser distinta do

efeito não apenas temporalmente (isto é, ela deve ser anterior), mas como uma entidade

diversa. Os autores pretendem alargar e aprofundar a compreensão da história das

ciências a partir de “padrões que conectam elementos dispersos em um todo coerente”

(DASTON e GALISON, p. 36)214. As diferentes configurações do self emergem na

medida em que ele participa na construção e na emergência das virtudes epistêmicas, na

produção das imagens científicas, na estabilização dos discursos, na padronização das

formas de ver e representar etc. O self é produto de um conjunto de forças que não

domina, que estão fora do seu alcance, uma série de eventos que não estão inscritos em

seu destino, mas que marcam o seu horizonte de expectativa e o afetam. Mas é também

produto de circunstâncias para as quais ele colabora ao mesmo tempo em que se

estrutura. As práticas modificam aquilo que somos de forma tão profunda que não sobra

espaço para um self primordial, para a essência humana. O self é histórico e essa parece

ser a sua única característica essencial. O self não pertence apenas à esfera do “espírito”.

A sua história é completamente eivada de materialidade. Ele não tem um corpo, ele é

um corpo que pensa e age.

Pensamento e ação que se manifestam de formas historicamente específicas em

diferentes regimes de produção do conhecimento científico, quando operando a partir de

virtudes epistêmicas diversas. O tipo de pessoa que é preciso ser para praticar a ciência

informada pela verdade­para­a­natureza é bastante diferente e, em alguns aspectos,

oposta ao necessário para um self objetivo. Os autores explicam que a objetividade

surge principalmente para reprimir determinados aspectos da subjetividade, do self; para

impor uma forma de ascetismo, um distanciamento emocional, um controle rigoroso da

manifestação da individualidade em prol de uma atitude automática e mecânica diante

da natureza. Isso não significa que a objetividade exclui a personalidade ou o sujeito. A

repressão, o controle e a reclusão das características individuais são formas do self tanto

214 No original: “patterns that connect scattered elements into a coherent whole”. Tradução minha.

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quanto o são a extroversão ou a exaltação da personalidade. Elas servem a objetivos

diferentes. Os cientistas do século XIX tinham consciência dos procedimentos que

adotavam suprimir a manifestação da individualidade, sabiam que o domínio sobre a

vontade era um esforço, valorizavam o sacrifício deliberado necessário para o exercício

da objetividade e professavam a importância dessa força moral.

A verdade­para­a­natureza e o julgamento treinado não são tão obcecados com o

self, já que essas virtudes epistêmicas não são inimigas da interferência do cientista na

produção do conhecimento como a objetividade. Independentemente da maior ou menor

preocupação, toda virtude epistêmica molda e é moldada por uma maneira de ser no

mundo e produzir conhecimento sobre ele. Na a verdade­para­a­natureza, o sujeito do

conhecimento não se anula diante da natureza. Pelo contrário, essa noção pareceria

ridícula absurda e irresponsável para os naturalistas do século XVIII (DASTON e

GALISON, 2010, p. 59). Era preciso uma postura ativa diante daquilo que se observava

para que se pudesse extrair dos espécimes individuais as características essenciais,

necessárias e transcendentais que formavam o objeto da ciência: a planta perfeita, o

esqueleto perfeito, o pássaro perfeito. Mesmo que ele não se manifeste em nenhum

indivíduo particular. De forma semelhante, o julgamento treinado vai depender da

experiência individual do cientista, da habilidade que ele desenvolveu ao longo de sua

formação para identificar nas imagens aquilo que é relevante, separar o sinal do ruído,

forma e fundo. O self é afirmado de maneira mais confiante, a subjetividade é vista

como menos perigosa e até necessária – desde que devidamente treinada para “ler” de

maneira apropriada as imagens científicas. Além disso, sob o impacto das pesquisas

sobre o inconsciente, os cientistas que vão professar essa virtude epistêmica pareciam

atentos à impossibilidade de escapar completamente à vontade, perceberam que o self

não está inteiramente ao alcance de si mesmo.

Ao capturar o entrelaçamento de condições cognitivas e morais, ao escrever a

história das ciências na chave das tecnologias de constituição do sujeito do

conhecimento, os autores visitam campos pouco explorados da nossa disciplina. É

verdade que a questão “o que faz do cientista um cientista?” esteve presente em diversas

reflexões sobre a ciência. As respostas a essa pergunta são múltiplas. Para certa

concepção bastante enraizada, é a obediência ao método científico e a sua aplicação a

algum domínio de investigação da natureza que torna alguém cientista, uma concepção

que apaga a preocupação com a pessoa singular e centra sua explicação no grau de

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adesão ao método. Outra forma presente no imaginário sobre a ciência e fortemente

explorara pela historiografia hagiográfica vigente até as primeiras décadas do século

XX é a que identifica o grande cientista com a figura do gênio, alguém que possui

características intelectuais e morais superiores às dos seres humanos comuns e que não

é, portanto, passível de análise mais profunda, apenas de celebração. Desde a virada

para o século XVIII, Isaac Newton irá ocupar nesse imaginário o posto de gênio por

excelência. A imagem associada a Newton vai variar historicamente, mas não a noção

de que ele era o grande exemplo de vida a serviço da ciência (DASTON e GALISON,

2010, p. 216). A sociologia mertoniana vai dizer que o cientista é alguém que pauta sua

conduta a partir de determinadas normas, que incorpora um ethos profissional. Para

Kuhn e seus adeptos, é o pertencimento a uma comunidade científica que define se

determinada pessoa é um cientista (tratei de Merton e Kuhn respectivamente nos

Capítulos 2 e 3 desta tese).

Ao responder à questão “o que faz do cientista um cientista?”, Daston e Galison

diriam: o cientista é aquele que cultiva e põe em prática um determinado self. Com isso,

abrem espaço para novas perguntas, iluminam de forma inusitada um território que

parecia já bem conhecido. Os autores não apenas historicizam a epistemologia, como

apontam para a sua dimensão constitutivamente cultural. Enquanto a história das

ciências nutrida na tradição kuhniana obteve sucesso em destacar a natureza social do

conhecimento, sua dependência de arranjos coletivos e de estruturas sociais, Galison e

Daston aguçam o olhar para perceber o quanto essa o conhecimento é também produto

(e produtor) da cultura, em seu sentido mais profundo. Epistemologia histórica e

história cultural das ciências se combinam de forma profunda.

Ao afirmar a originalidade do Objectivity, não estou desprezando a existência de

estudos que tratam do self, vários dos quais serviram de inspiração e modelo de análise

para Peter Galison e Lorraine Daston. Nem a presença desse tipo de abordagem na

análise da ciência. Porém, em geral, esses estudos tratavam da maneira como o

conhecimento e as práticas científicas (a nomeação, por exemplo) criavam self, pessoas

ou “condições de pessoalidade”. Os estudos de Foucault sobre a loucura e a sexualidade

ilustram essa abordagem, seguida pela análise de Arnold Davidson sobre a psiquiatria

não apenas a perversão, mas o próprio sujeito pervertido, impossível antes do século

XIX. Ou ainda os esforços de Ian Hacking (1999) para criar uma reflexão mais abstrata

e generalista sobre a forma como a ciência (e a linguagem) “inventa pessoas” e

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transforma a própria ideia do que significa ser um indivíduo. Na história das ciências,

devemos mencionar ainda os trabalhos de Steven Shapin (2013) sobre a identidade do

cientista no século XVII e sobre a “pessoa científica” de modo mais geral. Ao utilizar os

insights fornecidos por essa literatura para investigar como a ciência produz as pessoas

que a produzem, Galison e Daston realizam uma tarefa inédita e com implicações

relevantes para a historiografia das ciências.

A escolha dessa estratégia narrativa também indica outro ponto bastante

interessante: o herói dessa história é o indivíduo. Os autores não ignoram que a ciência

é uma atividade inteiramente coletiva, não pretendem afirmar que ela opera apenas no

nível do indivíduo. Afinal, os atlas, principais fontes do Objectivity, são produzidos para

regular e padronizar coletivamente a ciência. Do mesmo modo, a emergência de um

novo tipo de self depende do trabalho de diversos cientistas. “Mesmo cientistas

trabalhando em isolamento devem regularizar os seus objetos” (DASTON e GALISON,

2010, p. 22)215. Apesar dessas demonstrações de atenção à ação coletiva, que poderiam

ser sustentadas como objeções ao argumento que apresento, imagino que existem boas

razões para prosseguir com ele. Por mais que o self seja uma categoria que só ganha

sentido quando praticada por um coletivo, seu modelo de produção, transmissão e

manifestação é individual. Na verdade, qualquer investigação preocupada com a

formação de sujeitos e indivíduos dever á considerar que esse indivíduo pertence a uma

coletividade, que ele se forma em contato com outros sujeitos. A vinculação do self a

categorias de ação e experiência coletiva não nega a centralidade do indivíduo como

local privilegiado para a explicação da dinâmica cultural da ciência. O Objectivity se

afasta da concepção de comunidade científica (uma expressão que é utilizada de forma

“não­marcada” ao longo do livro). Não se busca explicar a ciência pela formação de

uma comunidade (ou de um coletivo), mas pela criação de dispositivos capazes de

constranger e moldar o sujeito e transformá­lo em produtor de conhecimento.

Em um momento em que as relações de produção do conhecimento científico se

individualizam, a história do self científico chama a atenção para as maneiras que as

práticas estabilizam uma forma de ser no mundo; mesmo as tentativas de fuga da

individualidade e a sua reprovação como produtora de interferências danosas são

destacadas como produto da vontade e do self. Devemos investigar como essa história

lida com a questão dos fatores internos e externos na explicação da ciência. A crítica ao

215 No original: “Even scientists working in solitude must regularize their objects”. Tradução minha.

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modelo de desenvolvimento por rupturas ou revoluções e ao modelo de acumulação

linear deve propor uma nova concepção da história das ciências e da dinâmica das

transformações no modo de produção da ciência. Devemos considerar algumas questões

a partir do par conceitual que organiza a explicação dos autores: virtude epistêmica e

self científico. Um mesmo cientista pode praticar duas virtudes epistêmicas? Se não, o

processo de acumulação é um processo de crescimento e subdivisão dos tipos possíveis

de produção do conhecimento científico? Isto é, a convivência de dois modelos em um

determinado período não implica a sua coexistência no interior de uma mesma

disciplina, de um mesmo conjunto de práticas, de uma mesma cultura científica? Como

fazer coexistir dois self científicos diferentes?

Os autores argumentam, como já apontei, que a emergência de novas virtudes

epistêmicas (com suas respectivas formas científicas de vida) não implica na destruição

ou desaparecimento dos antigos modelos. Nem significa a incorporação do antigo pelo

novo, como “caso limite”. A emergência da objetividade, por exemplo, reposiciona a

verdade­para­a­natureza, desloca as suas funções. A acumulação se dá no plano das

possibilidades de escolha diante de formas diferentes de praticar e representar a ciência.

Novas virtudes se somam ao repertório que está à disposição dos cientistas. Ao deslocar

a explicação da comunidade para o self, Lorraine Daston e Peter Galison situam a

ciência em uma escala que suscita novos problemas, turvam as fronteiras entre aquilo

que é interno e o que é externo. Não há uma dimensão cognitiva, teórica ou intelectual

que seja possível isolar; nem uma sociedade anterior que possa interferir e moldar o

conhecimento de acordo com determinadas características e em função de certos

interesses. A ciência, o cientista e o coletivo se produzem simultaneamente sob a forma

de um conjunto de normas morais que guiam as práticas. Essas práticas, por sua vez,

reforçam ou resistem a essas normas. Seria forçado interpretar a história da fusão entre

valores éticos e epistemológicos como uma versão do interno e externo, daquilo que

pertence necessariamente à ciência ou do que lhe é contingente. Não há prioridade entre

ethos e epistemologia, os dois domínios são parte integrante da ciência, se

retroalimentam.

Isso significa que a aventura do internalismo e do externalismo finalmente chega

ao fim? Que a historiografia representada pelo Objectivity (que, obviamente, não fala

por toda a historiografia das ciências) abandonou a demarcação? Esse provavelmente é

um desejo dos autores, que com isso tornariam a história das ciências radicalmente

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histórica – um capítulo da história da cultura. Esse desejo ecoa nas reiteradas afirmações

de que a história da objetividade é parte da história do self e não apenas da história das

ciências. Com efeito, a própria ideia de uma história das ciências deveria ser

redimensionada, posto que, completamente integrada à história, muito da sua

especificidade perderia o sentido. Como vimos ao longo desta tese, a história das

ciências tradicionalmente definiu sua área de atuação a reboque de uma definição de

ciência que era largamente refratária à história. Historicizar profundamente a ciência,

submetê­la ao poder corrosivo da temporalidade, significa olhar para o nosso próprio

campo de atuação de uma forma diferente. O Objectivity marca assim o final de um

percurso e uma transformação no modo hegemônico de escrita da história das ciências

ao longo do século XX, seja no seu processo de construção e defesa, seja no processo de

ataques, subversão e desintegração que ocorre desde a década de 1960. À medida que a

ciência – em sua manifestação contemporânea, a tecnociência – define cada vez mais o

modo como vivemos e se torna, em ritmo acelerado, um dos principais traços culturais

do século XXI, a integração entre história das ciências e história da cultura se torna uma

questão menos problemática.

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Conclusão ou ciência, objeto da história.

Esta tese esboça um largo panorama da história das ciências durante o século

XX e início do XXI. Essa abrangência cronológica pode sugerir uma pesquisa sem foco

definido, cujo objeto escapa diante da multiplicidade de problemas que se apresentam,

de contextos que se transformam, de novos atores que entram em cena e modificam a

direção do enredo. Uma tentativa megalomaníaca de explicar toda a produção histórica

sobre a ciência produzida no século passado, concatenando­a em uma narrativa linear e

coerente. Ao longo do texto, essa impressão se desfaz. Ao contrário, os capítulos

precedentes centram a atenção em uma seleção bibliográfica restrita, lidam com um

panorama que está longe de abarcar toda a produção historiográfica sobre a ciência no

período, não era essa a intenção.

Essa amplitude temporal é limitada pelos diversos recortes propostos para esse

trabalho. O primeiro diz respeito à proposta de seguir a trajetória do internalismo e do

externalismo na explicação da história das ciências ao longo de um período no qual

essas formas de interpretação já haviam sido declaradas obsoletas, se não extintas. O

segundo, identificar essa trajetória em uma vertente específica da história das ciências,

aquela que chamei de “tradição kuhniana”, que realizou uma interpretação sociológica

da obra de Kuhn e seguiu o leitmotiv de garantir “um papel para a história” na

explicação da ciência. Dentro dessa corrente, escolhi dois livros através dos quais

considerei possível explorar uma série de temas: o Leviathan and the air pump e o

Objectivity, analisados respectivamente nos capítulos 4 e 5.

As principais questões que ataquei no texto dizem respeito aos modos que a

escrita da história das ciências era produzida na confluência do modo de produção do

conhecimento científico, da função social da ciência e das Políticas de Ciência e

Tecnologia. A trama discursiva que produzi contém então três camadas narrativas

entrelaçadas, respondendo a essas três ordens de problemas. Ao longo da Parte I desta

tese tentei mostrar a emergência da história das ciências como campo disciplinar e

especialmente a “querela entre internalismo e externalismo” em sua fase clássica, que se

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desenrola entre os anos 1930 e 1960, estavam imersas nos debates sobre a superioridade

epistêmica e moral da ciência e seu papel como esteio da civilização ocidental, sobre o

surgimento das Políticas de Ciência e Tecnologia no interior dos Estados nacionais.

Temas relativos à alocação de recursos do Estado em atividades de pesquisa científica, à

planificação e à liberdade individual do cientista concorriam e se confundiam com

questões de demarcação entre ciência e não­ciência, dinâmicas da mudança científica,

cientificismo, empirismo, positivismo e antipositivismo etc.

Na Parte II, a mesma estratégia analítica foi utilizada para avaliar o período

posterior à publicação de A estrutura das revoluções científicas, livro que marca a

passagem para uma nova forma de escrever a história das ciências e que dialoga com

um novo ambiente político. Temos aqui a primeira grande tentativa de superar a divisão

entre internalismo e externalismo na história das ciências. Como vimos, a solução foi

combinar momentos internalistas (a ciência normal), com momentos externalistas (a

ciência revolucionária); não se problematiza os limites entre aquilo que é interno e o que

é externo à ciência. É o período marcado pela Guerra Fria e pela estruturação do

complexo militar­industrial­científico designado Big Science. Apesar da obra de Kuhn

ser tomada aqui como um ponto de inflexão, ela foi avaliada sobretudo a partir de dois

aspectos. Por um lado, a sua função política como tradutora de um novo projeto de

organização social da ciência, um novo pacto entre ciência, sociedade e Estado – cujo

emblema é a noção de comunidade científica. Por outro lado, a sua ambiguidade teórica

que garante aos cientistas agrupados na comunidade autonomia em relação ao conjunto

da sociedade ao mesmo tempo em que fornece elementos para uma análise sociológica

radical da ciência (ou, pelo menos assim foi interpretado por aqueles que radicalizaram

a leitura kuhniana). Essa brecha sociológica será escancarada pelo programa forte da

sociologia do conhecimento científico, continuada pelos science studies e pela

historiografia que se forjou nesse ambiente. Parte do impulso para essa radicalização

veio das críticas direcionadas à ciência, à sua apropriação pelas elites políticas e

econômicas globais, ao seu papel nas guerras, na produção e manutenção de

desigualdades sociais, à configuração conservadora da sua ideologia. Ao longo dos anos

1970, uma parte considerável dessas críticas foi feita por cientistas.

À medida que o século se aproxima do seu fim, os próprios elementos que

organizam a leitura da história das ciências que realizo neste texto passam por

transformações. Algumas dessas mudanças foram bastante profundas, como a crescente

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pulverização da ciência (e da tecnologia) por todo o tecido social e sua penetração em

nível molecular em todas as esferas da vida, desde as mais importantes decisões

políticas às mais banais atividades cotidianas. Praticamente todas as relações e

operações sociais passam a ser mediatizadas por dispositivos tecnocientíficos; a ciência

e a tecnologia interferem diretamente na própria forma como as sociedades ocidentais

arranjam as suas estruturas psíquicas, cognitivas e mesmo afetivas (poderíamos dizer,

com certa ironia, que possuímos agora uma “econometria libidinal”). Trata­se de um

processo de tipo hegemônico. Mesmo nas sociedades centrais do Ocidente – ou nas

amplamente ocidentalizadas, como o Brasil – existem permanências e resistências e a

esse processo. Essas formas são sempre tratadas como residuais ou alternativas. Em

resumo, a cultura e a visão de mundo foram capturadas pela racionalidade

tecnocientífica.

Isso altera decisivamente a forma de escrever a história das ciências. Naquilo

que diretamente nos interessa, essa onipresença da ciência borra as distinções entre os

fatores internos e externos. Não faz mais tanto sentido dizer que algo está dentro ou fora

da ciência. Como tentei mostrar a partir da análise do Leviathan, a emergência do

conceito de tecnociência e a forma como Simon Schaffer e Steven Shapin o projetam no

século XVII são indicativos desse processo. Duas décadas depois da Estrutura, os

autores insistem na superação da velha dicotomia. A estratégia utilizada, porém, é a de

exibir a demarcação entre fatores internos e fatores externos como algo artificial,

convenções culturais produzidas em correlações de força historicamente localizadas. A

afirmação de uma prática cultural depende da demarcação de fronteiras. Ao narrar a

história da disputa entre Hobbes e Boyle como um processo que cria simultaneamente o

contexto, o conteúdo e a demarcação entre ambos – processo que se dá através de uma

série de tecnologias – os autores pretendem atacar todo o problema da demarcação entre

ciência e não­ciência e, consequentemente, a questão dos fatores internos e externos. O

jogo entre os fatores é denunciado como uma falsa disputa, criada para ressaltar a

especificidade da ciência, o seu isolamento e autonomia. Mesmo negando a existência

de fatores internos e externos na realidade e deslocando o seu campo de produção e

atuação para a dimensão artefatual, os autores não abandonam a rígida fronteira entre

sociedade e natureza, entre real e convencional. Eles parecem se guiar pelo princípio de

simetria proposto por David Bloor.

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Finalmente, o último capítulo trata da conformação da história das ciências no

início do século XXI. Nele, tentei mostrar a reação da historiografia às críticas que

foram direcionadas a ela – especialmente durante o episódio das Guerras da Ciência na

primeira metade da década de 1990. Ao se tornar a forma dominante de analisar a

ciência, os science studies ficaram expostos às mais diversas objeções e os historiadores

que se formaram em contato com essa empreitada interdisciplinar foram arrastados para

debates duros sobre os fundamentos da concepção de ciência que eles defendiam. As

Guerras da Ciência foram, como vimos, o ápice desse processo. Para as intenções desse

texto, foi mais importante mostrar as implicações dessas disputas para a escrita da

história das ciências do que fazer uma avaliação minuciosa das Guerras da Ciência.

Argumentei que o momento que se seguiu a essas tensões foi marcado pela reflexão e

pela reavaliação de alguns princípios que guiavam essas formas da análise da ciência.

De modo geral, tentou­se elaborar uma leitura que combina construtivismo com algum

grau de realismo e que abandona o relativismo “radical” das décadas de 1970 e 1980.

Para entender como essas críticas foram metabolizadas pela historiografia e

quais as soluções propostas, centrei a análise do capítulo no livro Objectivity, de

Lorraine Daston e Peter Galison. Esse é um dos mais brilhantes exemplares daquilo que

poderíamos interpretar como o mais recente desdobramento da nova historiografia das

ciências (a primeira edição é de 2007, embora os autores já estejam na ativa desde o

final dos anos 1970). A formulação de uma epistemologia histórica (que é uma

modalidade de história e não um tipo de epistemologia) e a contribuição da história

cultural das ciências fazem parte do esforço dos autores para situar a sua história da

objetividade no seio da história tout court. É uma história de práticas culturais que

concorrem para a produção simultânea de imagens científicas, virtudes epistêmicas e

sujeitos do conhecimento. Ela ultrapassa recortes cronológicos, disciplinares e teóricos

convencionais e constrói um novo objeto para a história das ciências. Ao narrar a

história das ciências do ponto de vista da constituição do sujeito do conhecimento e das

disciplinas do self, o livro desloca a dinâmica da produção do conhecimento científico

do plano da comunidade para o do indivíduo – uma operação que, como destaquei, não

ignora a dimensão coletiva. Na verdade, o Objectivity é menos uma história da produção

do conhecimento científico e mais uma história da produção do sujeito do

conhecimento. “Quem conhece?” e “Como conhece?” são as suas perguntas. Perguntas

feitas e respondidas de modo histórico.

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O longo trajeto percorrido por esta tese tentou capturar a dinâmica dos fatores

internos e externos e a sua natureza histórica. Ele faz surgir também um argumento que

considero extremamente importante para que possamos compreender a historiografia

das ciências nos últimos cem anos e a sua inserção em um ambiente intelectual e

político que teve a ciência como uma personagem de imenso destaque. É uma avaliação

de caráter bastante amplo que foi ressaltada em diversos momentos desta tese e que

fornece uma chave para interpretar o complexo movimento que a história das ciências

descreve – um movimento que não é linear e progressivo. Ele pode ser resumido da

seguinte maneira. A transformação da ciência em objeto da história e a trajetória da

disciplinarização da história das ciências são o mesmo fenômeno. Essa frase pode

parecer tautológica. Óbvio que a história das ciências só pode existir enquanto

disciplina se a ciência se torna seu objeto. Qual seria o objeto da história das ciências

que não a própria ciência? No entanto, quero sustentar aqui que essa tautologia só se

torna evidente ao final desse processo; ela é um efeito dessa história que contei nos

capítulos precedentes e demonstra o sucesso dessa empreitada. Se nos valermos de um

princípio de reflexividade e supusermos que, para a história das ciências, o

conhecimento produzido e as funções políticas e sociais coincidem, poderemos dar um

passo para fora da sensação de obviedade. Irei proceder devagar nesse processo,

tentando explicitar o que significa para a ciência ser objeto da história e questionando se

esse seria o único caminho possível para a nossa disciplina.

Transformar a ciência em objeto da história implica em modificar a ciência e a

história. Implica em subverter formas poderosas e socialmente enraizadas de

compreender a ciência e falar sobre ela. Ao longo desta tese, especialmente na Parte I,

tentei ressaltar alguns aspectos da construção histórica de um discurso que identifica a

ciência com o ponto mais alto do intelecto humano, como um modo especial e superior

de contato cognitivo com a realidade objetiva. A versão mais extrema desse argumento

é o cientificismo, que surge no século XIX. Essa perspectiva não se restringe em afirmar

a superioridade epistêmica da ciência, ela defende que só a ciência é capaz de produzir

conhecimento verdadeiro sobre o mundo e de, através desse acesso privilegiado à

verdade, nos guiar na realidade, fornecendo parâmetros objetivos de ação no mundo.

Assim, a ciência é também moralmente superior. Ao acatarmos o princípio de

superioridade da ciência, nos baseamos nele para decidir o que ensinar na escola, o que

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aceitar como prova em um tribunal, como se tratar de uma doença, em que políticas

públicas utilizar o erário público.

Essa posição depende, como sabemos, de uma noção de realidade como uma

coisa exterior, independente e regulada por mecanismos ou leis alheias e anteriores à

vontade humana. São os fatos, ou a natureza – sempre em oposição à cultura. É dela que

se ocupa a ciência e, quando bem sucedida, ocorre uma superposição entre o

conhecimento e a realidade. Assim, para o cientificismo e suas várias nuances e matizes

espalhados na visão de mundo dominante no século XX e começo do XXI, o

conhecimento científico não está sujeito à história. Ele se confunde com aquilo que

conhece, afirma verdades e descreve fatos imunes ao tempo, aos assuntos humanos

(MAIA, 2013). Os cientificistas não negam a existência ou a validade de uma história

das ciências. Desde que essa história sirva para reforçar esse discurso, uma história

dependente, a serviço da ciência. Qual o objeto da história de uma ciência que não

possui história? O objeto poderia ser a vida de um cientista e sua luta para descobrir um

fato, um fenômeno ou uma lei da natureza – são biografias que ressaltam a genialidade e

o sacrifício, apesar da condição humana, seu modelo são as hagiografias que contam a

vida dos grandes homens e mulheres da religião católica em seu imenso esforço na

conquista da santidade. Ou pode ser também que o objeto seja uma determinada

instituição científica. Pode ser uma disciplina, uma história da química, por exemplo,

onde se narram os périplos que levaram das trevas da alquimia à iluminação da

revolução do século XVIII, uma trajetória em direção à razão e à verdade. Narrativas

similares contam a história de teorias ou ideias científicas, desde a sua primeira intuição

– geralmente entre os gregos – até o seu triunfo no mercado das ideias, novamente a

vitória da razão e da verdade.

Em todos esses casos, que ainda continuam a povoar a história das ciências, a

noção de história se resume à mera cronologia. O encadeamento de fatos do passado em

uma sequência que destaca a marcha irrefreável do intelecto humano em direção ao

progresso. Uma historiografia insistentemente criticada geração após geração, por

Alexandre Koyré, por Thomas Kuhn, por Steven Shapin, por Lorraine Daston. A

permanência da crítica diz muito a respeito da permanência da prática. Essas gerações

tentaram superar a mera cronologia com as ferramentas ao seu alcance, em diálogo (e

conflito) permanente com a ciência do seu tempo, em relação com um ambiente político

e social que lhes fornecia um campo de atuação e transgressão limitado (“se a história

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fosse vista como um repositório para algo mais que anedotas ou cronologias...”, era o

apelo de Kuhn [2001, p. 19]).

Foi essa tentativa de criar “algo mais”, de fazer com que a história desse uma

contribuição efetiva à explicação da ciência que mapeei nos capítulos anteriores sob a

rubrica da “tradição kuhniana”. A força do vocabulário da demarcação, a resistência dos

fatores internos e externos ao longo do percurso mostra a dificuldade do desafio a ser

enfrentado. O imaginário cientificista foi cristalizado na nossa cultura intelectual, está

profundamente inscrito na nossa visão de mundo. Não se escapa dele apenas com

voluntarismo. Foi preciso que a configuração histórica que lhe garantia tanta força se

modificasse e permitisse o surgimento de novas maneiras de compreender a ciência.

Maneiras que não estavam determinadas pelo contexto, mas que eram tornadas

possíveis por ele; heresias e transgressões que cabiam nesse novo clima histórico.

A última parte da tese aponta para o sucesso dessa empreitada. Argumentei em

defesa de uma nova maneira de historiar as ciências. Acompanhei o processo de

disciplinarização da história das ciências, descrevendo­o como um produto de certas

circunstâncias, como resultado de correlações de força específicas. A autonomização

desse campo do conhecimento, a sua menor dependência em relação ao objeto

historiado foi um aspecto chave nesse processo. O seu resultado mais importante foi o

de conferir historicidade à ciência (CONDÉ, No prelo). Ao afirmar que a ciência está

completamente sujeita ao imperativo da historicidade, que ela é constantemente

elaborada e desarticulada pelo ritmo da temporalidade, a história expõe os diferentes

regimes de verdade, questiona a validade universal de práticas locais, suspeita da

objetividade de conhecimentos que emergem como resultado de arranjos coletivos,

agenciamentos simbólicos e materiais. Conferir historicidade significa dizer que a

história não se manifesta apenas como cronologia, mas que é uma condição necessária

de determinado fenômeno – a dimensão temporal é constitutiva e estruturante.

Esse movimento, que pode soar quase banal para qualquer objeto que se

pretenda tratar historicamente, assume um tom radical quando se trata da ciência. A

proposta de conferir historicidade à ciência enfrenta resistências poderosas. A principal

delas é a recorrente acusação de relativismo, frequentemente considerado um dos

maiores perigos intelectuais da contemporaneidade. Para esses críticos, como os

partidários de Alan Sokal no episódio das Guerras da Ciência, o relativismo era

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flagrantemente absurdo. A locução “tudo é relativo” é logicamente contraditória, nega a

sua própria condição de verdade.

Mesmo que aceitemos a sua premissa, ela não responde satisfatoriamente a

questões sobre os fundamentos do conhecimento, sobre a justificação racional da

crença, sobre a assustadora eficácia da ciência em fazer previsões corretas acerca do

futuro ou em calcular precisamente o diâmetro de Plutão. Renan Springer de Freitas

(2003), por exemplo, lamenta a pobreza epistemológica da nova historiografia das

ciências. A partir de uma leitura do trabalho de Steven Shapin, o sociólogo discute

como a ênfase nas práticas científicas afasta a história de um diálogo mais próximo com

a filosofia das ciências que permita refletir sobre a natureza do conhecimento científico.

Sem essa reflexão, a historiografia seria incapaz de fazer as perguntas corretas e de

compreender o desenvolvimento da ciência naquilo que ele tem de realmente importante

e gastaria seu esforço em teorizar sobre o secundário, pouco relevante. Essa crítica é

compartilhada pelos autores informados por uma perspectiva popperiana de

compreensão da ciência, como é o caso de Springer de Freitas. Ela parece insistir na

divisão entre “contexto da descoberta” e “contexto da justificação” e na capacidade da

ciência progredir através de conjecturas e refutações. A única dimensão coletiva do

conhecimento é a crítica. Ao que tudo indica, não passa pela cabeça dos críticos do

relativismo problematizar se essas perguntas sobre fundacionismo, justificacionismo e

correspondência entre linguagem e mundo são as únicas capazes de julgar a qualidade

de uma teoria do conhecimento ou de uma história das ciências.

Ainda segundo essa posição, sustentar o relativismo é psicologicamente

impossível. Qualquer mente consciente teria que espelhar cognitivamente as leis que

existem na natureza, teria que obedecer à ordem da lógica e da geometria. O sujeito

racional age objetivamente e essas seriam as ações que dão ritmo à marcha do

progresso. Essa visão foi largamente impulsionada pela filosofia analítica, que se

concebe como herdeira de Kant, Carnap e Popper. Praticava uma filosofia fundada no

rigor tecnicista do estilo, na elegância e na sofisticação dos argumentos e no tratamento

obsessivo que dispensava a temas como as cores dos gansos. Não por acidente, é Kant o

responsável pela reconfiguração do par conceitual “sujeito” e “objeto”, criando para ele

o sentido que conhecemos hoje. Claro, algumas dissidências existiam e delas vieram

algumas das objeções mais consistentes a essa corrente filosófica, como as

Investigações filosóficas de Wittgenstein ou Os dois dogmas do empirismo, de Quine.

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Com o crescimento do relativismo na esteira do maio de 1968, da “filosofia

francesa” e de A estrutura das revoluções científicas, cresceram também as críticas a

ele. Uma resistência que se espalhou e, em certos casos, mantinha relações muito tênues

com esse núcleo filosófico. O relativismo foi severamente combatido e já na virada do

milênio havia se tornado um termo pejorativo; visto como um programa cheio de boas

intenções, mas cujas implicações são desastrosas. Uma filosofia impura e que prega a

impureza, que confunde e apaga distinções essenciais para a boa filosofia e para certa

ilusão de Ocidente: sujeito e objeto, fato e ficção, natureza e cultura. O relativismo é a

total submissão da filosofia à história – alertam os mais exaltados. Essa é uma definição

trágica e hiperbólica do relativismo.

Na parte final dessa conclusão, quero sustentar que a abertura para a

historicidade do conhecimento científico e para a ciência como uma forma de produzir

conhecimento (isto é, uma prática) não precisa evitar o relativismo. Não há espaço para

absolutismo epistêmico em uma história das ciências que pretende participar da

construção de um “olhar que apresenta a atividade científica como uma atividade

constituída historicamente, uma construção social do trabalho humano em seu embate

com a natureza” (MAIA, 2013, p. 20). A recusa de qualquer ponto fixo, infenso à

história, no qual se possa fundar o conhecimento, aproxima historicidade e relativismo.

Essa posição não endossa toda e qualquer intervenção definida como relativista; assim

como nem todo kuhniano é obrigado a concordar com aquilo que defende Barry Barnes

pelo simples fato do sociólogo se definir como kuhniano. A segurança e a elegância

irônica com as quais Paul Feyerabend desmonta as objeções ao relativismo no seu A

ciência em uma sociedade livre (2011, pp. 91­151) serviram para me infundir coragem

– embora não compartilhe integralmente da caracterização intelectual e política que

Feyerabend faz do relativismo. Devemos imaginar uma versão do relativismo que não

seja idealista, antirrealista nem antirracionalista. É possível descrever racionalmente a

realidade desde que “racionalidade” e “realidade” sejam entendidos em sua

temporalidade, estejam também sujeitos à história.

Um conceito histórico de realidade deve considerá­la como essa complexa trama

tecida pelos agenciamentos simbólico­materiais. Não é um ritual que invoca entidades

do mundo dos espíritos para se manifestar em alguma prática terrena – como se a

objetividade ou a racionalidade (essas sim categorias idealizadas) fossem encarnar

naquele que possui as qualidades de cientista. A historicidade profana práticas sagradas,

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como o “método científico”, e as substitui por uma maneira historicamente específica de

organizar o trabalho coletivo. O relativismo é plenamente capaz de descrever a

realidade, embora ele não a considere como uma instância em si, objetiva, anterior,

exterior (quase inatingível). Afirmar a insuficiência de um conceito de realidade não é o

mesmo que desprezar completamente a noção. Ela pode ser reconfigurada em função de

um novo programa de investigação da ciência. Somos capazes de falar da realidade não

porque estabelecemos com ela qualquer contato privilegiado, mas porque ela nos

atravessa e nos constitui, porque somos produtos dessa mesma história e fazemos parte

da realidade. A historicidade do humano e do natural – frutos do mesmo processo –

diminui a distância entre os dois polos, desmancha as duas essências isoladas.

Não há nessa perspectiva nenhum idealismo, uma vez que não se supõe uma

mente autônoma, uma consciência isolada que possa perder­se da realidade e viver de

projeções puramente internas. O ser humano não é um espírito que possui ou está em

um corpo. Ele é o corpo. Ao descrever técnicas de construção do self ou tecnologias

literárias, os historiadores não estão apenas se referindo a exercícios ou hábitos mentais,

mas à materialidade das práticas, à opacidade da linguagem e do gesto. Negar a

“realidade objetiva” não significa abandonar uma posição materialista. Embora

implique em rearranjar a relação com a materialidade. A natureza participa da

construção de conhecimentos sobre ela.

Por fim, um conceito histórico de racionalidade já é invocado quando Koyré

propõe uma leitura da ciência do passado que a considera em seus próprios termos, sem

encadeamentos teleológicos e sem julgá­la a partir dos critérios da ciência do presente.

Quando Daston e Galison narram a história das diversas virtudes epistêmicas que

estipulam formas específicas de determinar o que é a “boa ciência”. Quando Shapin e

Schaffer analisam os procedimentos contingentes e historicamente determinados através

dos quais a experiência se torna uma dimensão central da atividade científica. Cada

época, cada paradigma, constitui os seus parâmetros de racionalidade. Não há nenhum

critério ahistórico contra o qual possamos medir a cientificidade de um conhecimento.

A racionalidade emerge localmente, em função de exigências, limites, necessidades e

possibilidades específicas.

Assim, não me prendo aqui a uma visão do relativismo que só aparece como

espantalho nos escritos daqueles que o combatem – que o vê como uma posição

contraditória, insustentável, impraticável e sujeita ao arbítrio (se tudo que existe é

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construído, pode­se construir aleatoriamente qualquer coisa). O relativismo surge aqui

como uma decorrência da historicidade, como uma posição possível de ser sustentada a

partir de certa vertente da historiografia das ciências. O que proponho não é exatamente

uma defesa do relativismo como forma mais adequada de compreender a ciência e a

história, mas uma abertura para a sua possibilidade e um combate ao medo que ele

infunde na nossa tradição intelectual.

O relativismo não oferece nenhuma ameaça à civilização ocidental ou à ciência

moderna. Sustentar uma posição relativista não implica em ser um inimigo da ciência –

o mundo não se divide em amigos e inimigos. Através do apelo à história, o relativismo

constrói uma narrativa baseada nas escolhas, nas relações de força, na circularidade das

trocas culturais, na resistência de hábitos há muito adquiridos, na importância dos

dogmas da comunidade, das tecnologias sociais e da disciplina de si para a cristalização

do conhecimento científico e da sua metafísica. Desafia o fatalismo, o voluntarismo e a

inexorabilidade – não compartilha do mito do progresso. A ciência é o produto de

interações locais, históricas, instáveis e mutantes. Isso não significa que ela está pra

sempre presa ao seu momento de produção. Ela pode ser apropriada em diferentes

contextos, ser adaptada para diversos usos, permanecer ao longo de várias

configurações históricas. Ser constitutivamente histórica não faz a ciência estar

confinada a um ponto da história. Na verdade, é a sua sobrevivência que permite contar

a sua história e a história do(s) ambiente(s) do(s) qual(is) ela participou.

Esta tese não sustenta grandes ambições normativas, não propõe um modelo

correto de história das ciências. O que realizei foi uma leitura historiográfica de uma

porção da história das ciências entre a década de 1930 e a década de 2000 – a partir de

objetos estreitamente circunscritos pela tensão entre fatores internos e externos e pelas

relações estabelecidas entre essa história das ciências, o modo de produção do

conhecimento científico e a Política de Ciência e Tecnologia do período. Dessa

estratégia surgiram questões amplas, muitas vezes tratadas sem a verticalização que

certamente receberiam em estudos mais focados em livros, autores ou grupos de autores

específicos. No entanto, a opção por uma visão panorâmica permite perceber certos

aspectos que não são facilmente visíveis em abordagens mais pontuais. Esse jogo de

escalas é extremamente saudável para a historiografia. A densa interpenetração entre a

disciplinarização da história das ciências e a transformação da ciência em objeto da

história não as torna indistintas, não abole as demarcações de território epistêmico, não

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apaga as fronteiras. Simplesmente porque não há territórios a demarcar ou fronteiras a

defender. Para entender a dinâmica das trocas simbólico­materiais que constituem a

ciência, não precisamos recorrer à metáfora territorial do Estado nação moderno que

explica contatos entre distintos fios do tecido social como um concerto de nações em

guerra, suas batalhas e sedições, cooptações, acordos viciados de livre comércio

epistêmico, submissões, tratados de paz e declarações de Guerra das Ciências.

Podemos imaginar outras metáforas e outras estratégias narrativas. Ao longo do

século passado, essas estratégias oscilaram entre a rede e a estrutura na medida em que a

ciência nos esquadrinhava e decompunha em genomas e mitemas ou nos conectava em

imensos cardumes através da paranoia nuclear, do HIV e dos Beatles. Se essa conclusão

sustenta uma defesa do relativismo epistêmico é por compreendê­lo como uma

contrapartida possível para a historicidade. Ele organiza a narrativa de uma maneira que

torna possível o surgimento dessas outras estratégias. Uma narrativa aberta para a

aparição de novos personagens e para o improviso, às turras com o produtivismo e as

funções sociais da ciência, atenta às peças do jogo e às suas regras flexíveis, às vezes

instáveis. Essa narrativa se vale de uma diversidade de metáforas, recorrendo ao campo

semântico da fluidez, da performance e da agência, das tecnologias de estabilização das

práticas, das virtudes epistêmicas.

Transformar a ciência em objeto da história não é uma tarefa fácil ou óbvia.

Significa infundi­la de efetiva historicidade, cozinhá­la em nosso espesso caldo cultural,

compreender a sua operação em obediência a determinado regime de temporalidade. A

trajetória da disciplinarização da história das ciências narrada aqui não segue uma

evolução lógica, um progresso evidente em direção à historicidade. É fruto dessa trama

incessantemente redesenhada, feita e desfeita, obedecendo a projetos efêmeros e

resistindo a eles, surpreendendo­se com a duração de certos motivos. A própria história

que tracei não segue uma trajetória linear, surge de seleções, de recortes, da escolha de

um olhar guiado por preocupações particulares e coletivas. A historicidade me parece

também uma alternativa política autêntica para os desafios colocados diante de nós pela

sociedade do conhecimento. “Somente a reflexão histórica pode explicitar os programas

de verdade e mostrar as suas variações”, adverte Paul Veyne (2013, p. 196). Ela

desdobra um campo de possibilidades e indeterminações, desconfia das soluções que se

apresentam como naturais ou inexoráveis, pondera diante dos dilemas. A reflexão

histórica não se encerra em si, ela joga com os ritmos dos tempos, se abre para a

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alteridade e para o estranhamento. Decretar a morte de um programa de investigação da

natureza é dizer que ele fora um dia vivo. Ele pode ser ocupado, reconstruído e

apropriado. A historicidade da ciência oferece à sociedade um risco menor do que o seu

absolutismo.

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