gabinete do reitor - universidade federal do rio de janeiro · peça de roupa lavada à beira do...

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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano VI • Nº 57 • Novembro/ Dezembro de 2010 D O B R A S I Raiz Clementina de Jesus “Tina, vai acender esse cachimbo”, mandava Amélia Rezadeira à filha Clementina, entre uma e outra peça de roupa lavada à beira do rio. “Sim, senhora”, respondia a pequena Clementina que, segundo Regina Meirelles, professora da Escola de Música (EM) da UFRJ, preencheu um espaço vazio “que a gente não consegue preencher, com a memória ancestral que as pessoas de origem negra nos contam”. Qual UFRJ queremos ser? Na segunda rodada de conversas organizadas pelo Jornal da UFRJ para discutir o futuro da instituição, são raros os pontos de convergência entre os entrevistados. Os professores Ericksson Rocha e Almendra, da Escola Politécnica (Poli), Maria Fernanda dos Santos Quintela, do Instituto de Biologia (IB), Ricardo Silva Kubrusly, do Instituto de Matemática (IM), e Roberto Leher, da Faculdade de Educação (FE), apresentam abordagens distintas acerca da agenda de temas controversos postos à mesa quando se discute a universidade. A mídia se partidarizou Os grandes conglomerados da mídia não mediram esforços para fabricar fatos e influir no roteiro político das eleições presi- denciais de 2010. No papel de oposição declarada, chegaram às fronteiras do obscurantismo ao estimular preconceitos de ordem religiosa para tornar bem-sucedido o programa político que consideravam o mais conveniente a seus interesses. Na avaliação de Marcos Dantas, professor da Escola de Co- municação (ECO) da UFRJ, não é exatamente uma novidade histórica o alinhamento da mídia brasileira a projetos conser- vadores que, em algumas ocasiões, desaguaram em golpes de Estado. “O que diferencia o momento atual é que não dá mais para contar com um golpe militar e, por isso, são necessárias outras estratégias de convencimento”, salienta o especialista em Economia Política da Comunicação da UFRJ. Entrevista Marco Dantas

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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano VI • Nº 57 • Novembro/ Dezembro de 2010

d o Bras iRaiz Clementina de Jesus

“Tina, vai acender esse cachimbo”, mandava Amélia Rezadeira à filha Clementina, entre uma e outra peça de roupa lavada à beira do rio. “Sim, senhora”, respondia a pequena Clementina que, segundo

Regina Meirelles, professora da Escola de Música (EM) da UFRJ, preencheu um espaço vazio “que a gente não consegue preencher, com a memória ancestral que as pessoas de origem negra nos contam”.

Qual UFRJqueremos ser?

Na segunda rodada de conversas organizadas pelo Jornal da UFRJ para discutir o futuro da instituição, são raros os pontos de convergência entre os entrevistados. Os professores Ericksson Rocha e Almendra, da Escola Politécnica (Poli), Maria Fernanda dos Santos Quintela, do Instituto de Biologia (IB), Ricardo Silva Kubrusly, do Instituto de Matemática (IM), e Roberto Leher, da Faculdade de Educação (FE), apresentam abordagens distintas acerca da agenda de temas controversos postos à mesa quando se discute a universidade.

A mídia se partidarizou

Os grandes conglomerados da mídia não mediram esforços para fabricar fatos e influir no roteiro político das eleições presi-denciais de 2010. No papel de oposição declarada, chegaram às fronteiras do obscurantismo ao estimular preconceitos de ordem religiosa para tornar bem-sucedido o programa político que consideravam o mais conveniente a seus interesses.

Na avaliação de Marcos Dantas, professor da Escola de Co-municação (ECO) da UFRJ, não é exatamente uma novidade histórica o alinhamento da mídia brasileira a projetos conser-vadores que, em algumas ocasiões, desaguaram em golpes de Estado. “O que diferencia o momento atual é que não dá mais para contar com um golpe militar e, por isso, são necessárias outras estratégias de convencimento”, salienta o especialista em Economia Política da Comunicação da UFRJ.

Entrevista

Marco Dantas

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 2

Reitor Aloisio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen UllerPró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton FloresChefe de Gabinete

João Eduardo FonsecaFórum de Ciência e Cultura

Beatriz ResendePrefeito da Cidade Universitária

Hélio de Mattos Alves Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação Fortunato MauroOuvidoria Geral

Cristina Ayoub Riche

Fotolito e impressão Gráfica Posigraf

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550. Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAçãO mENSAl DA COORDENADORIA DE COmUNICAçãO DA UNIVERSIDADE

FEDERAl DO RIO DE JANEIRO.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca Jornalista responsável

Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE) Edição

Fortunato mauro e luciana Crespo Pauta

luciana Crespo, e Fortunato mauro

Redação Aline Durães, Bruno Franco, Coryntho Baldez, Fernando Pedro lopes, luciana Campos, luiz Carlos maranhão, márcio Castilho, mariana Valle, Pedro Barreto,

Rafaela Pereira, Vanessa Sol e Stephanie Tondo

Revisão Dayse Barreto, érica Bispo e

luciana Crespo Arte

Anna Carolina BayerIlustração

Diego Novaes, João Rezende,marco Fernandes e Zope

Charge ZopeFotos

Acervo CoordCOm, Clara Grivicich emarco Fernandes

Expedição marta Andrade

Interessados em receber esta publicação devem entrar em contato pelo e-mail

O Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de

espaço, as cartas sofrerão seleção e poderão ser resumidas.

Na matéria “Reforma universitária: ‘modernização’ vigiada”, publicada na edição nº 55 (julho/agosto), do Jornal da UFRJ, a professora de Ciência Política e So-ciologia da UFRJ Miriam Limoeiro, aposentada com-pulsoriamente em 1969 pelo regime militar, esclarece que o trecho “a universidade que conheci como estu-dante nos quatro primeiros anos da década de 1960 (...)”, mencionado por ela na reportagem, não se refe-re especificamente à UFRJ. Miriam fez graduação na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) no início da década de 1960.

Esclarecendo...

Na edição 56 do Jornal da UFRJ, a fo-tografia do professor Luiz Acosta, é de Clara Grivicich, da Agência de Notícias UFRJ Praia Vermelha, e não de Marco Fernandes.

Errata

Perseguindo a meta de implantar núcleos de pesquisas de-dicados ao desenvolvimento de estudos voltados às ques-tões regionais, o campus UFRJ-Macaé propôs aos colegia-

dos superiores da UFRJ dois programas de pós-graduação: um em Ciências Ambientais e Conservação e outro em Produtos Bioativos e Biociências. Após a tramitação no âmbito da UFRJ, a comunidade do campus UFRJ-Macaé recebeu a feliz notícia de que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) aprovou a implantação dos dois programas. Assim sendo, a UFRJ tem seus pri-meiros programas de pós-graduação stricto sensu fora de sua sede.

Tais programas preencherão importante lacuna no cenário cientí-fico nacional, além de irem ao encontro do objetivo da UFRJ de inte-riorizar não somente o Ensino, mas, em especial, a Pesquisa no estado do Rio de Janeiro.

Com a criação dos programas, o campus UFRJ-Macaé caminha a passos largos para se transformar, em breve, em mais um centro de excelência em Ciência e Tecnologia, de formação de profissionais qua-lificados e com expressiva atuação regional e nacional.

Mais de 190 países assinaram, dia 29 de outubro, o

Protocolo de Nagoya (Japão), con-siderado o maior pacto ambiental desde o de Kyoto. O acordo pro-põe, entre outras questões, a pro-teção do patrimônio biológico dos países – que somente poderá ser explorado mediante autorização e pagamento de royalties – e a re-partição dos lucros obtidos pelas empresas farmacêuticas com os países dos quais os recursos natu-rais foram obtidos. Espera-se que tais medidas colaborem também para o fim da biopirataria.

De acordo com Fernando Fer-nandez, professor do Instituto de Biologia (IB) da UFRJ, conferên-

Capes aprova pós-graduação da UFRJ

em macaéFortunato Mauro

Sem credibilidade entre especialistas, Protocolo de Nagoya é assinado

Stephanie Tondo

cias como as de Diversidade Bio-lógica, que ocorreu mês passado em Nagoya (Japão), são positivas, pois estabelecem metas que po-dem gerar compromissos por par-te dos países em relação ao meio ambiente.

O problema é o fato de os eventos não terem produzido, até agora, resultados satisfatórios. “As conferências sobre mudanças climáticas como as de Kyoto e de Copenhague (Dinamarca) foram um fracasso, não houve sequer consenso por parte dos países”, afirma Fernando Fernandez. No entanto, mesmo com o pouco êxito delas, as discussões sobre as questões ambientais ganham cada vez mais visibilidade e podem aca-

bar influenciando na mudança de hábitos por parte das sociedades. “Há, agora, uma oportunidade considerável para a conscienti-zação. Avança-se, cada vez mais, com políticas de conservação, e Nagoya é apenas uma gota em meio a essa onda de discussões a respeito do meio ambiente”, avalia o professor.

Apesar disso, para Fernando Fernandez ainda há muito o que fazer no que diz respeito à cons-cientização ambiental. “A maioria da população ainda não tem essa consciência. A eleição para pre-sidente, no Brasil, mostrou isso. Os candidatos, no segundo turno, não tinham fortes propostas polí-ticas ambientais. E mesmo Marina Silva, que abordou bastante essa questão, recebeu tantos votos não por causa disso, mas por seu po-sicionamento político e por suas propostas de políticas sociais”, afirma o pesquisador do IB-UFRJ.

Este ano, mais uma vez, os Estados Unidos se recusaram a assinar o Protocolo, tornan-do quase impossíveis de serem realizadas as metas propostas pelo acordo. “Eles possuem um presidente bem intencio-nado em termos ambientais, mas que está cada vez mais amarrado. O governo norte-americano é muito dividido. A posição do país reflete sua pró-pria divisão e necessidade de ter que agradar democratas, republi-canos e indecisos. Muitas pessoas veem as questões ambientais com

desconfiança”, afirma Fernando Fernandez.

A falta de adesão dos estadu-nidenses às medidas propostas pelas conferências acaba tornando pouco úteis as ações de proteção ambiental adotadas pelos demais países, uma vez que o nível de po-luição e destruição do meio am-biente causado pelos Estados Uni-dos é um dos maiores do mundo.

O Protocolo de Nagoya pro-põe um plano de metas para 2020, com o qual haveria um aumento considerável das áreas protegidas do planeta. A meta é proteger 17% dos ecossistemas terrestres, contra os 13% atuais, e 10% dos oceanos, contra menos de 1%, atualmente.

Existem dois tipos de prote-ção ambiental: a indireta (estrita) e a direta, que permite a explo-ração dos recursos de área pro-tegida, mas de modo sustentável. “Muitas pessoas entendem hoje a sustentabilidade como sinônimo de ‘tomar cuidado com o meio am-biente’ e não é nada disso. A sus-tentabilidade está se tornando uma palavra vazia. Medidas sustentáveis são aquelas que permitem que o nível dos recursos explorados seja mantido para a humanida-de, ou seja, é explorar sem causar a extinção dos recursos”, alerta Fernando Fernandez, que, em pesquisa, observou que em 120 casos, nos quais a utilização dos recursos era supostamente sus-tentável, 88 não eram de nenhum modo assim caracterizado.

3UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 UFRJ 90 anos

ReconstRuçãoPrimeira instituição oficial

de Ensino Superior do Bra-sil, a UFRJ comemorou,

em setembro, 90 anos de existência. Como parte das atividades e projetos desenvolvidos para celebrar a data, o Jornal da UFRJ procurou resgatar, numa série de cinco reportagens, um pouco da memória da universidade e sua contribuição para a produção e a socialização do conhecimento em di-ferentes momentos históricos. Desde o surgimento das primeiras faculda-des isoladas – Engenharia, Medicina e Direito – que deram origem a então Universidade do Rio de Janeiro, em 1920, a UFRJ teve papel fundamental como lugar do pensamento crítico e do avanço científico, cultural e tecno-lógico, mas também enfrentou obstá-culos. Construiu uma Cidade Univer-sitária que, por si só, não foi capaz de promover sua integração institucio-nal. Nesse percurso, assumiu caráter nacional e modelar para outras ins-tituições de Ensino Superior tal qual a Universidade do Brasil, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1937-1945), e passou por uma “mo-dernização” vigiada durante a ditadu-ra militar, de 1964 a 1985.

Na quinta e última reportagem, a série “UFRJ 90 anos” aborda a inser-

Márcio Castilho

ção social e política da instituição nos últimos 20 anos, projetando também um olhar para o futuro, isto é, as pers-pectivas acerca do papel social da uni-versidade num horizonte mais amplo. O projeto de uma universidade inte-grada com seu tempo – “gratuita, de qualidade e democrática” – está sin-tetizado no Plano Diretor UFRJ 2020.

Ecos da ReformaDepois do período de forte repres-

são política dos governos militares, a universidade ingressa nos anos 1980 refletindo as mudanças da conjuntura histórica. O processo de redemocrati-zação consolida a ação dos movimen-tos docente e estudantil. Funcionários técnico-administrativos também são incorporados ao debate e passam a participar dos processos decisórios na universidade durante a gestão de Horácio Macedo (1985-1989). Se a UFRJ assegurou conquistas, sobretu-do quanto ao processo de democrati-zação interna, os efeitos da Reforma Universitária ou “contrarreforma” de 1968, como muitos especialistas de-nominam a política do regime militar para o Ensino Superior, continuaram como herança no período pós-dita-dura.

Roberto Leher, professor da Facul-dade de Educação (FE) da UFRJ e do

Programa de Pós-graduação em Edu-cação, cita a política de editais como um dos aspectos mais “nefastos” da contrarreforma. Tal modelo, de acor-do com Leher, permanece nos dias atuais. “As universidades perderam a autonomia para definir suas proble-máticas científicas, desde então in-duzidas pelos editais. Resultou dessa política um crescimento exponencial da pós-graduação (nos anos 1960 ha-via menos de 100 programas de pós-graduação stricto sensu; em 1985, já existiam mais de mil). Contudo, o preço foi alto, pois se naturalizou uma lógica de heteronomia na universida-de”, afirma o docente, criticando tam-bém a Lei de Inovação Tecnológica aprovada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que submete os editais, segundo ele, ao crivo do setor empre-sarial.

Outras críticas do professor da FE recaem sobre a “ampliação do acesso à Educação Superior por meio da oferta privada” e o aprofundamento do pro-cesso de fragmentação na instituição. “A contrarreforma favoreceu a maior centralização das atividades acadêmi-cas, por meio dos departamentos, e a maior fragmentação, pois o regime de créditos contribuiu para enfraquecer o conceito de formação dos estudan-tes”, observa Leher.

Carlos Vainer, professor do Insti-tuto de Pesquisa e Planejamento Ur-bano e Regional (Ippur) da UFRJ, re-lativiza a ideia da fragmentação como característica constitutiva da institui-ção. Segundo ele, embora originárias, a dispersão espacial e as dificuldades para se materializar o conceito de um campus rico de interações e de troca de saberes foram reproduzidas e am-pliadas ao longo da história da UFRJ: “Existe uma série de fragmentações que não são originárias; foram pro-duzidas no processo de moderniza-ção. Somos não apenas os filhos da fragmentação, mas pais dela. Filhos porque herdamos uma fragmentação original, mas a reproduzimos de ma-neira intensa”.

Para ilustrar esse raciocínio, Vai-ner aponta as divisões entre gradu-ação e pós-graduação ou entre Ci-ências Humanas e Exatas. “Temos o Conselho de Ensino de Graduação (CEG) e o Conselho de Ensino para Graduados (CPEG), o que sugere que a Pesquisa é uma atividade conecta-da à pós-graduação, não à graduação. São aspectos que ficam congelados numa estrutura institucional e reali-mentam a ideia de que a Pesquisa é uma atividade da pós-graduação. Isso vai diminuindo, mas está presente em nossa estrutura institucional que data exatamente desse período da reforma ditatorial e não foi mexido. Por que não, 25 anos depois do fim da ditadu-ra? Porque gerou permanências e cul-turas institucionais e acadêmicas que se reproduzem”, destaca o docente do Ippur.

Tempos de

Marco Fernandes

UFRJJornal da 4 Novembro/ Dezembro 2010

UFRJ 90 anos

Retrocessos institucionaisNo contexto de redemocratiza-

ção, com as garantias das liberdades individuais e de expressão garantidas pela Constituição de 1988, as univer-sidades brasileiras se veem diante de novos desafios. Na UFRJ, as diferen-tes vozes que compõem a comuni-dade acadêmica no período seguem contribuindo para valorização pro-fissional, repercutindo diretamente na qualidade das atividades de Ensi-no e Pesquisa. Ao mesmo tempo, en-frentam os retrocessos políticos que marcaram a década de 1990. A atua-ção dos movimentos sociais, em que se inseriam estudantes, professores e técnico-administrativos, foi decisiva na luta contra o programa neolibe-ral do presidente Fernando Collor de Mello. Os segmentos da universidade expressavam seu descontentamento em relação ao governo por meio de greves, manifestações e atos públicos.

“Fizemos uma enorme greve con-tra as medidas de Collor e em prol de reajustes salariais em 1991, ano em que participei da diretoria da Asso-ciação dos Docentes da UFRJ (Adu-frj). Realizamos uma bela luta que muito deve orgulhar professores que dela participaram. A Reitoria esteve como aliada dessas lutas”, avalia Ro-berto Leher, acrescentando que Nel-son Maculan, então reitor da UFRJ (1989-1994), teve papel relevante no fortalecimento da Associação Nacio-nal dos Dirigentes das Instituições Fe-derais de Ensino Superior (Andifes).

Diante das denúncias de corrup-ção política, pressionado pelas forças sociais, Collor renunciou ao cargo em outubro de 1992, o que não o li-vrou do processo de impeachment no Congresso Nacional. Ficou inelegível por oito anos. Em seu lugar, assumiu

o vice Itamar Franco. Apesar da vitó-ria política dos movimentos popula-res, vivia-se o contexto de hegemonia neoliberal. A política educacional nos anos subsequentes propunha o esva-ziamento das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). A falta de recursos inviabilizava a realização de concursos públicos para contratação de servidores.

O funcionamento institucional fi-cou ainda mais comprometido após não ter sido respeitada a decisão de-mocrática de docentes, técnico-admi-nistrativos e estudantes nas eleições para a sucessão de Paulo Alcântara Gomes (1994-1998) na Reitoria da UFRJ. A universidade viveu entre 1998 e 2002 uma das mais graves crises da sua história. Para entender o episódio e suas consequências é preciso recuar no tempo e fazer um pequeno resgate do conturbado processo eleitoral.

Em abril de 1998, Aloisio Teixei-ra, professor do Instituto de Econo-mia (IE), foi o primeiro colocado na consulta à comunidade universitária para reitor. Respeitando a decisão das urnas, os concorrentes, com exceção

de José Henrique Vilhena, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), retiraram suas candida-turas. Aloisio teve seu nome confirma-do no Colégio Eleitoral, mas não tomou posse. Vilhena, terceiro colocado na lis-ta tríplice, foi nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. O gesto impositivo foi classificado pela comuni-dade acadêmica como um ato de inter-venção do Governo Federal.

Em defesa da autonomia universi-tária, servidores e estudantes se mo-bilizaram em forte greve que durou cerca de 90 dias. Manifestantes tam-bém ocuparam as dependências da Reitoria, na Cidade Universitária, contra a intervenção. O prédio somen-te foi desocupado por decisão judicial e com forte aparato policial, mas os protestos não cessaram. Na sequência, a luta contra a intervenção se dá no Conselho Universitário (Consuni). O colegiado superior, marcadamente, foi o palco da resistência à gestão de José Henrique Vilhena de Paiva.

O processo de normalização insti-tucional começou a ser retomado com a posse de Carlos Lessa, professor do

1990

Instituto de Economia e membro do Consuni à época, como reitor, em 2002. A vitória de Lessa demonstrou a unidade dos segmentos da instituição, representando o início de um período de correção de rumos, planejamento e reconstrução da UFRJ. Em 2003, de-pois de uma breve passagem de Sérgio Fracalanzza como reitor, Aloisio Teixeira assumiu o cargo.

“Aqueles quatro anos (1998-2002) deram à comunidade universitária uma consciência muito forte de que várias das questões que haviam nos dividi-do no passado já não tinham o menor significado. Isso preparou o estado de espírito da comunidade para viver um novo período. A maior conquista que alcançamos foi a pacificação, mas não atribuo a pacificação à ação da Rei-toria. Talvez a Reitoria tenha tido a sensibilidade de não impedir que a pacificação se desse da forma como se deu. É uma conquista da univer-sidade, de todos nós – professores, técnico-administrativos e estudantes – que, cansados de um modo de um cotidiano anterior, resolvemos juntos construir uma nova maneira de con-

Atuação decisiva dos movimentos organizados da universidade (estudantes, docentes e técnico-administrativos) na luta contra o programa neoliberal do presidente Collor de mello. Período marcado por greves e manifestações da comunidade universitária.

1994 1998 20021990 a 1992Permanência de uma política educacional de esvaziamento das instituições federais de ensino superior. Falta de recursos inviabiliza realização de concursos públicos para contratação de servidores.

Aloisio Teixeira, professor do Instituto de Economia (IE), vence, em abril, as eleições para reitor, mas não assume o cargo. José Henrique Vilhena de Paiva, terceiro colocado na disputa, é nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. O gesto impositivo foi classificado pela comunidade acadêmica como intervenção do Governo.

A UFRJ realiza uma das maiores greves de sua história. Por mais de 90 dias, professores e servidores reivindicam melhores salários e mais verbas e vagas nas universidades públicas. manifestantes ocupam a Reitoria.

Retomada do processo de normalização institucional com a posse de Carlos lessa, professor do IE, para o cargo de reitor.

Depois da breve passagem de Sérgio Fracalanzza, o professor Aloisio Teixeira assume a Reitoria da UFRJ.

Aprovação da nova designação da Escola de Engenharia, que se transforma em Escola Politécnica da UFRJ.

2003

Acervo CoordCOM

Movimentos organizados têm atuação decisiva na redemocratização da universidade e do país.

5UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 UFRJ 90 anos

Equipe Técnica do Plano Diretor

2010

2005 A Reitoria encaminha proposta de Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) para debate na comunidade universitária. O projeto reúne algumas ações para superação da cultura da fragmentação e do elitismo no acesso.

2007O Conselho Universitário aprova, em outubro, o Programa de Reestruturação e Expansão (PRE), incluindo temas como a democratização do acesso, ampliação das vagas, necessidade de investimentos na assistência estudantil, convergência e articulação entre as diferentes áreas de conhecimento e ampliação das atividades de extensão, dentre outros.

2008 2009 O Conselho Universitário aprova em abril, durante sessão extraordinária, a versão da Proposta Preliminar do Plano Diretor UFRJ 2020. Em outubro, o Consuni aprova a proposta do Plano Diretor. A idéia central do projeto é a dupla integração – entre os cursos da universidade e da Cidade Universitária com o restante da cidade.

2010Comemoração dos 90 anos de fundação da UFRJ, em setembro.

vivência. Isso se refletiu numa série de passos que demos em termos de normalização e consolidação da vida institucional, que foram muito im-portantes”, declarou o reitor Aloisio Teixeira, no vídeo institucional pro-duzido pela Coordenadoria de Co-municação (CoordCOM) da UFRJ, exibido por ocasião das comemorações dos 90 anos da UFRJ.

Plano Diretor Os tempos de hoje demandam o

aprofundamento do debate político em relação aos limites da atuação da UFRJ na sociedade, o que significa estender o conhecimento produzido para além dos muros dos seus centros, faculdades, escolas e institutos. Internamente, bus-cando romper com o histórico de frag-mentação de suas unidades, o desafio é também promover formas de coopera-ção, favorecendo a ideia de um “espírito universitário” a partir da criação de um ambiente que estimule a interdiscipli-naridade. A dupla integração – entre os cursos da universidade e, no sentido mais amplo, da Cidade Universitária com o restante da cidade – está no cen-

tro da proposta do Plano Diretor UFRJ 2020, aprovada em outubro de 2009 pelo Consuni.

“Herdamos um campus que é se-gregado da cidade e, nele, cada pedaço segregado do outro. É um conjunto de ‘ilhas’ em uma ilha. Todo o projeto do Plano Diretor visa reverter esse pro-cesso. A palavra de ordem do plano é a ‘Universidade inte-grada e que se inte-gra à cidade’”, afirma Carlos Vainer.

O Plano Diretor reúne as diretrizes traçadas pelo Plano de Desenvolvimen-to Institucional (PDI), apresentado em 2005, e pelo Programa de Reestrutu-ração e Expansão (PRE), aprovado em 2007. Os intensos debates nos últimos cinco anos demonstram a consonância da agenda acadêmica com as demandas da própria sociedade. Nessa pauta, estão incluídos temas como a democratização

do acesso, a ampliação das vagas e a ne-cessidade de investimentos na assistên-cia estudantil para reduzir os índices de evasão, além da convergência e articula-ção entre as diferentes áreas de conheci-

mento e a amplia-ção das atividades de Extensão.

Dados do Ins-tituto Nacional de Estudos e Pesqui-sas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Minis-tério da Educação, revelam como o acesso às univer-sidades públicas ainda está restrito a uma pequena parcela da popu-

lação brasileira: o setor privado respon-deu por 74,9% das cerca de 5 milhões de matrículas em cursos superiores no país em 2008, contra 25,1% do setor público. O estudo aponta também que a quanti-dade de estudantes ainda é bastante infe-rior à quantidade de vagas: as escolas pú-blicas e privadas de Ensino Superior ofe-

receram, naquele ano, 2,98 milhões de vagas. Porém, pouco mais de 1 milhão e meio de candidatos conseguiu ingres-sar nessas instituições. Os números de-monstram, portanto, que praticamente a metade das vagas não foi preenchida nos processos seletivos. Um dos fatores está associado ao baixo aproveitamento dos alunos do Ensino Médio da rede pública.

De acordo com Pablo César Benetti, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ e presiden-te do Comitê Técnico do Plano Diretor (CTPD), a renovação da universidade pública ainda está por ser feita. “Há a dificuldade de uma instituição como a UFRJ pensar um modelo de futuro a partir de sua história. Mas há traços nes-sa história que ela precisa jogar fora ou ter uma postura radicalmente crítica; caso contrário, não vai ser uma univer-sidade do futuro. Claro que, com a ten-dência de renovação dos quadros, como está ocorrendo agora, há uma mudança importante de quem opina. Penso que é um desafio colocado. O passado ainda tensiona muito qualquer atitude no sen-tido de quebrar barreiras acadêmicas, de trabalhar em torno da plenitude de uma ideia de intercâmbio entre diversas esfe-ras disciplinares”, salienta o professor.

A história da UFRJ vai se confun-dindo assim com a história do país. As transformações ocorridas durante sua trajetória dialogam diretamente com o contexto político, econômico e social. A UFRJ retrocedeu em alguns momentos, acompanhando as particularidades da conjuntura mais ampla de uma dada época. Em outros, rompeu com as amar-ras do seu próprio tempo, protagoni-zando avanços em diferentes áreas do conhecimento, constituindo-se como lugar privilegiado do pensamento crí-tico. O resgate de sua história ajuda a entender a dinâmica da própria so-ciedade brasileira no século XX. Nos anos 1990, a universidade inicia nova jornada, que certamente terá influên-cia sobre os rumos do país no século XXI. Mas essa história está para ser escrita.Centro de Convergência CLA-CCJE-CFCH :Expansão Acadêmica, prevista no Plano Diretor UFRJ 2020.

“Há a dificuldade de uma instituição

como a UFRJ pensar um

modelo de futuro a partir de sua

história.”

2003Constituição da comissão, em janeiro, para elaboração da proposta de “diretrizes para a execução do Plano Diretor da UFRJ”. O Conselho Universitário aprova em setembro as diretrizes gerais.

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 6 Internacional

Não é maisproibido proibir

Os governos europeus, descrentes quanto ao êxito do multiculturalismo e com enormes déficits fiscais a enfrentar, escolhem como inimigos símbolos culturais de seus imigrantes.

Bruno Franco

Pressionados pela crise fiscal e pelo panorama político in-terno adverso, governos eu-

ropeus – Bélgica e França à frente – estão inserindo mais um componente polêmico em suas agendas, com a adoção de uma postura de confronto frente ao multicultu-ralismo, em especial à presença de valores e símbolos islâmicos, supostamente in-compatíveis com o secularismo ocidental. O primeiro passo foi dado pelo Parlamen-to da Bélgica, dia 29 de abril, com a apro-vação de lei que proíbe circular “em locais públicos com o rosto coberto ou dissimu-lado total ou parcialmente, de maneira que não seja identificável”. De acordo com Daniel Bacquelaine, relator da proposta, o principal alvo da medida são os véus islâ-micos, como a burca e o niqab.

A única exceção para a aplicação da lei seriam as festividades permitidas pelas autoridades. As penas previstas para as infratoras podem ser multas entre 82,50 e 137,50 euros, ou de um a sete dias de pri-são para as reincidentes. A lei conquistou raro consenso entre as duas comunidades linguísticas belgas: flamengos e francófo-nos, e foi aprovada com apenas duas abs-tenções. A medida ainda precisa ser apro-vada pelo Senado.

A França seguiu o exemplo belga e foi além, com a aprovação quase unânime (apenas um voto contrário), pelos senado-res, de lei proibindo o uso, em público, da burca (túnica que cobre todo o corpo da mulher, dos pés à cabeça, deixando apenas os olhos visíveis por trás de uma rede) e do niqab (semelhante à burca, mas aberta na região dos olhos).

A mulher que violar a lei estará su-jeita a multas de 150 euros e poderá ser obrigada a fazer um curso de cidadania francesa. Os homens que as obrigarem a usar as vestimentas proscritas poderão

ser condenados a multas de 30 mil euros e penas de até um ano de prisão. Esse tipo de vestuário não é característico do Islã, de maneira geral, e sim do Paquistão e do Afeganistão. O uso é ínfimo no norte da África, Oriente Médio e demais regiões de maioria islâmica.

Essa, no entanto, foi muito mais do que uma questão puramente legislativa. Combalida após a crise financeira global, com baixo crescimento econômico, que – segundo estimativas do governo – atin-girá 1,5% em 2011, isso mesmo como re-cuperação de um cenário recessivo, e com a taxa de desemprego em alarmantes 9,7% e uma impopular reforma previdenciária em pauta (foi aprovado no dia 22/10 o aumento da idade mínima para a apo-sentadoria, de 60 para 62 anos, a partir de 2018), a França dividiu a agenda entre os desafios do ajuste econômico e o con-flito cultural que contrapõe seu governo eurocêntrico e a parcela de sua população de origem muçulmana.

A retórica empregada pelo governo francês exacerbou os supostos riscos cor-ridos pela sociedade francesa e seus valo-res, em função do uso de vestes opressivas pela minoria das mulheres muçulmanas, que constituem, por sua vez, um segmento minoritário da população da França. “Não estamos falando de segurança ou de reli-gião, mas de respeito aos nossos princípios republicanos”, afirmou Michele Alliot-Ma-rie, ministra da Justiça. O presidente Nico-las Sarkozy, por sua vez, descreveu a burca como símbolo da subjugação feminina.

Mais de 5 milhões de muçulmanos vi-vem na França, formando uma das maio-res comunidades islâmicas na Europa. No entanto, a maioria das muçulmanas fran-cesas usa roupas ocidentais ou apenas o hijab, véu que esconde os cabelos e é sím-bolo de feminilidade, e não de opressão à mulher. De acordo com a DST (Direction de La Surveillance Du Territoire – Direção de Vigilância do Território Nacional), há menos de 400 usuárias do niqab em terri-tório francês, a maioria, francesas conver-tidas ao Islã.

Na avaliação de Mohammed El Hajji, coordenador do Laboratório de Comuni-cação Social Aplicada (Lacosa) e do Pro-grama de Educação Tutorial da Escola de Comunicação (ECO), tal panorama per-mite que os observadores questionem a pertinência de uma lei tão específica para um universo de quase 5 milhões de mu-

7UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 Internacional

çulmanos. “Fica evidente, pela insignifi-cância dos números, que se trata de uma ação simbólica contra um ícone contro-vertido. Não se condena, por exemplo, o uso de peruca pelas judias ortodoxas, que não é menos degradante, ou outras formas de intolerância com relação às mulheres, mas, sim, especificamente o véu islâmico. Ou seja, não se busca condenar a opressão do feminino e a negação da feminilidade em si (muitas vezes, as mulheres judias das

a marginalizada comunidade franco-ar-gelina dos banlieues (subúrbios) de Paris, Marselha e demais metrópoles. Quando ainda era deputado, o atual presidente francês referiu-se a esse contingente de cidadãos como racaille (ralé). Para Hajji, o que esses jovens desejam é que sua origem seja esquecida e que possam se integrar à sociedade francesa: “O problema e a prio-ridade deles não são de ordem cultural, mas, sim, social e econômica: desemprego, discriminação física, discriminação habi-tacional, desigualdade de oportunidades, falta de boas escolas e outros equipamen-tos sociais na periferia onde eles são con-finados”.

Um ponto em discussão não apenas na França, mas na Europa como um todo, é a integração dos imigrantes e a dupla le-aldade deles e de seus descendentes (em relação à pátria de origem e à nação que os acolheu). Conforme Hajji, a conjuga-ção da globalização midiática, das mi-grações e da exposição de todos os povos do planeta faz com que o mundo esteja hibridizado quase em sua totalidade. “As múltiplas lealdades e pluripertencimentos são a regra, e não a exceção. A anomalia não é o jovem franco-argelino, mas o fran-cês que ainda acredita na possibilidade de monopertencimentos e lealdades ex-clusivas. Ou seja, é a França que está com problemas identitários, e não o cidadão atravessado por uma multiplicidade de quadros simbólicos de identificação e re-conhecimento”, conclui Hajji.

Tirando o sofá da salaA França já proibira, anteriormente,

o uso de véus, crucifixos, quipás (solidéu judaico) e outros símbolos religiosos em edifícios públicos. A aprovação da lei teve como pronta resposta uma amea-ça da rede terrorista multinacional al-Qaeda: “Vamos nos vingar da França com violência, para honrar nossas fi-lhas e irmãs”, prometeu, em comuni-cado à imprensa, a organização.

O repúdio à burca não é apenas uma manifestação do “Choque de Civilizações”, que, segundo o cientis-ta político norte-americano Samuel Huntington, explicita o conflito cul-tural entre o Ocidente e o Islã. A Síria aprovou, dia 20 de julho, uma lei proi-bindo o uso do niqab nas universida-des do país. Outros países de maioria muçulmana, como Egito e Jordânia, aprovaram leis de teor semelhante. No caso egípcio, a argumentação foi de que não haveria base islâmica para o uso de tais vestes.

Para Hajji, a simples proibição equivaleria a “retirar o sofá da sala” e não atacar o caso de frente. “O proble-ma nos países árabes e islâmicos é o atraso social, político e científico,atraso que acaba reforçando o fanatismo. O que os mundos árabe e islâmico precisam é uma revolução social, cultural e políti-ca, não apenas a proibição de um (dentre muitos) dos símbolos de seu atraso”, avalia o professor.

comunidades mais fechadas são obrigadas a raspar a cabeça e cobri-la de cabelos sin-téticos)”, critica Hajji.

Crescente islamofobia De acordo com o professor, há que

se ponderar a interpretação da política do governo Sarkozy no contexto maior da is-lamofobia crescente e da demonização de todo um segmento da população mundial, “no afã de agradar ao eleitorado racista de extrema-direita e desviar os olhares dos ver-dadeiros problemas sociais e políticos que assolam a França e a Europa em geral”.

Análises culturalistas apres-

sadas devem ser objeto de desconfiança, alerta Hajji, pois “muitas vezes, o cultura-lismo veio apenas para substituir o ideário racista para manter e sofisticar os mesmos mecanismos de abominação do outro. A islamofobia é, justamente, o melhor exem-plo dessa discriminação em nome do cul-tural, e não do biológico”.

Não obstante, o professor não nega a natureza retrógrada de certos hábitos sociais e culturais. “A obrigatoriedade de cobrir-se ‘as partes’ (conforme a formula-ção teocrática) é, em si, injusta, amoral e

discriminatória. Considerar o corpo como algo vil ou fonte de ‘pecado’ não deve ser visto

exclusivamente como traço cul-tural, mas, sim, e principalmente, enquan-to sistema político de opressão do outro”, avalia Mohammed El Hajji.

Ainda assim, a proibição (ou aban-dono) do véu não significa um desfalque nos modos de construção da identidade étnica, cultural ou religiosa das francesas de confissão muçulmana – acredita El Hajji – na medida em que essa identida-de ou esse sentimento de pertencimento supera os hábitos vestimentares e os sím-bolos aparentes. “Lembremos da proibição do chamado ‘lenço corânico’ nos colégios franceses. Ao contrário do que se temia, não ocorreu evasão escolar por parte das meninas muçulmanas, mas apenas a ade-quação a uma norma administrativa con-dizente com o discurso laico republicano”,

rememora o professor da ECO.

Política paradoxalSegundo Hajji, é na

concomitante defesa da cultura eurocêntrica e da laicidade (neutra por natu-

reza) que reside o paradoxo da política de Nicolas Sarkozy. “A identidade fran-

cesa e europeia em geral (como toda cultu-ra, aliás) não é algo estático, puro, imutável ou atemporal. São construtos discursivos e simbólicos frutos do contínuo processo de trocas, empréstimos, traduções e reinter-pretações. Portanto, a verdadeira realidade identitária social e cultural da França é a da existência do véu e outros hábitos que não

correspondem ao clichê ‘gaulois’, mas que não são menos franceses – neste sentido que são usos próprios a certos grupos da nação francesa contempo-rânea”, explica o professor.

Hajji considera que a discussão acerca do uso do niqab e de outras práticas é legítima, mas que o debate seja concebido internamente à dinâ-mica social e cultural nacional, e não como um debate entre os franceses

e os outros. “Aí, seria mais efi-ciente apostar na forma-ção iluminista e educação laica do cidadão do que a imposição de uma norma

administrativa pertinente, porém envolvida num dis-

curso rancoroso”. Rancor é um sentimento recor-

rente de Sarkozy frente aos imigrantes muçulmanos e seus descendentes, como

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 8 Campus

Demolição da Ala Sul: Marcada para 19 de dezembro de 2010, a

implosão da ala desocupada do HUCFF impôs uma delicada operação logística envolvendo a

paralisação temporária das atividades assistenciais na Cidade Universitária.

A rigor, o prédio do HUCFF caiu. Somente não caiu de fato porque se escorou no

outro prédio. Ninguém é irresponsável ao ponto de brincar com vidas humanas numa situação como esta.” Essas foram as palavras de Pablo Benetti, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, presidente do Comitê Técnico do Plano Diretor 2020 da UFRJ, em audiência pública realizada dia 27 de setembro, no Centro de Ciências da Saúde (CCS), para esclarecer dúvidas so-bre o processo de demolição da Ala Sul do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF). Benetti se referiu ao rompimento de dois pilares da parte não ocupada do prédio do hospital, dia 21 de junho, demonstrando o estado de colapso daquela construção, o que levou o diretor da unidade, José Marcus Raso Eulálio, pro-fessor da Faculdade de Medicina (FM), a determinar a paralisação parcial dos aten-dimentos prestados na alas ocupadas e a Reitoria a optar por demolir a edificação inativa.

A implosão da Ala Sul do HUCFF está marcada para às 7 horas de domingo, 19 de dezembro. A escolha da Administração Central da UFRJ por esse procedimento le-vou em consideração a segurança da parte ocupada do prédio e o custo financeiro da operação, pois a demolição manual da to-talidade da ala desocupada custaria cinco vezes mais aos cofres públicos, conforme explicou o pró-reitor de Planejamento e

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“ Desenvolvimento, professor Carlos Antô-nio Levi da Conceição.

Para efetuar a demolição, a UFRJ rea-lizou licitação da qual participaram quatro empresas. A vencedora foi a Fábio Bruno Construções, que há anos atua no setor e realizou as implosões do edifício Palace II, na Barra da Tijuca, e do presídio da rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro.

A primeira etapa da demolição teve início em agosto último, com o desmonte manual da área que separa a ala ocupada da não ocupada, a fim de que a implosão não afete estruturalmente a área rema-nescente. Para maior segurança, os enge-nheiros envolvidos no processo decidiram por 20 metros de separação entre os dois blocos, o que reduz a quase zero a taxa de vibração que poderia ocorrer no prédio ocupado durante o procedimento.

Logística para a implosãoPablo Benetti informa que a energia

do HUCFF será desligada uma hora antes da implosão e o fornecimento de água e gás será interrompido. Os outros prédios, como o do CCS, que fica próximo ao hos-pital, não terão nenhum serviço público interrompido, o que tranquiliza pesquisa-dores que mantêm laboratórios no local e necessitam de energia e água para o cultivo de microrganismos, manutenção de bioté-rios e conservação de outros ambientes de pesquisa. Como medida de segurança, o prédio do CCS será evacuado e o bloco A será coberto por telas para diminuir a en-

trada de poeira no local.Segundo Giordano Bruno, um dos só-

cios da empresa Fábio Bruno Construções, uma área de 200 metros de raio em torno do hospital será isolada, o que corresponde a quatro vezes mais a área de segurança re-comendada para esse tipo de procedimen-to. A Ala Sul do prédio será completamen-te coberta com camadas de até quatro telas de material impermeável, minimizando, assim, a projeção de fragmentos e poeira para outros locais. Estima-se que serão gerados, com a demolição, cerca de 50 mil metros cúbicos de entulho ou 125 mil toneladas de concreto, sendo necessários quatro meses para a sua completa remo-ção e cujo destino ainda será definido.

A opção pela implosão também im-plica uma série de providências que alte-ram a rotina de funcionamento tanto das unidades acadêmicas e hospitalares, como das vias de circulação terrestre e aérea da região.

“Lembra uma operação de guerra”, ob-serva Hélio de Matos, prefeito da Cidade Universitária, que, junto com sua equipe, já definiu as ruas que terão seu trânsito in-terrompido na época da implosão. Hélio tem participado ativamente das reuniões preparatórias da implosão, que contam com representantes de órgãos públicos como a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-Rio), a Companhia Esta-dual de Águas e Esgotos (Cedae), a con-cessionária de energia Light, a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária

espaço para novo hospital

(Infraero), a Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (Core) e batalhões da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), além de Fábio Bruno, engenhei-ro responsável pela implosão, e membros dirigentes da comunidade universitária. Das reuniões, também participa o tenente-coronel bombeiro militar Carlos Aguiar, do Departamento-Geral de Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro (DGDEC), que é responsável pela coordenação de ações conjuntas.

Dentre as providências mais estudadas está a adequada segurança para o trans-porte e acondicionamento dos 900 quilos de dinamite que serão empregados na demolição dos cerca de 110 mil metros quadrados da Ala Sul do HUCFF. Outra grande preocupação é com a necessária interrupção do tráfego da Linha Verme-lha, prevista para acontecer minutos antes e depois da implosão. Ela implicará uma rota especial durante o período para aqueles que acessam a Ilha do Gover-nador ou dela saem, além de uma arti-culação com a Infraero para compatibi-lizar os horários de voos previstos para a manhã do dia 19 de dezembro.

Cronogramas em cursoMaria Fernanda Quintela, decana

do CCS, antecipou-se aos possíveis im-pactos sobre o calendário acadêmico das mais de 20 unidades vinculadas ao Centro e planejou, em reuniões com diretores, coordenadores de cursos de

Fernando Pedro Lopes e Luciana Campos

9UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 Campus

Foram precisos 60 anos para que uma decisão técnica determinasse pôr fim a uma edificação que já nasceu mar-cada pelo exagero e pelo sucessivo des-compasso entre as verbas necessárias e as de fato empregadas na construção.

Em 1951, já se tem registro dos en-saios de Engenharia Civil dos primeiros “corpos de prova” dos pilares do então Hospital de Clínicas da Universidade do Brasil. Uma grande estrutura de concreto com 220 mil metros quadrados, conce-bida pelo arquiteto Jorge Machado Mo-reira, dentro do projeto executado sob a responsabilidade do Escritório Técnico da Universidade do Brasil (Etub), subor-dinado inicialmente ao Departamen-to Administrativo do Serviço Público (Dasp), ainda na presidência de Getúlio Vargas, e que somente em 1964 passaria a ser gerido pela universidade.

Segundo documentos da época, o hospital pretendia fornecer 2 mil leitos e capacidade de abrigar práticas próprias do ensino de diversas especialidades da área da Saúde, antiga reivindicação dos estudantes de Medicina da então capital federal do país. Entretanto, as preten-sões iniciais seriam frustradas com a pa-ralisação das obras em 1955, em meio a um conturbado momento político que dificultava a negociação da universidade com o governo por liberação de verbas. Após o suicídio de Vargas, em 1954, o país entrou em grave crise política que somente seria abrandada com a posse de Juscelino Kubitschek na Presidência em 1957.

Em 30 de maio de 1967, foi encami-nhado à direção do Etub um relatório técnico sobre as condições estruturais do prédio do Hospital de Clínicas. A edifica-ção foi vistoriada por uma comissão de especialistas, sob a supervisão do enge-nheiro Leon Eizemberg, do Etub, a fim de fazer um diagnóstico sobre a conser-vação do concreto armado.

No histórico das obras mencionado no relatório, registra-se que em 1963 já se verificavam sinais de deterioração nas vigas, lajes e pilares, com alguns ferros de suas armações expostos e recobertos por camadas de ferrugem. Foram realiza-

HUCFF: 60 anos de projetos e incertezasdos, parcialmente, serviços de revestimen-to dessas áreas expostas; porém, a vistoria concluiu que a estrutura “se apresenta em um estado de regular para bom, havendo, no entanto, a necessidade de se atacar num tempo muito breve a reposição da imper-meabilização da cobertura do bloco C (já feita e condenada por deixar vazar água e comprometer o cimento da laje do 13º an-dar), bem como a impermeabilização dos blocos A e B”.

Ainda em 1967, graças à atuação políti-ca de diversos atores da universidade que se engajaram, de uma forma mais militante ou mais diplomática, na campanha pela reto-mada das obras do hospital, o projeto seria finalmente reavaliado. O reitor Raymundo Moniz de Aragão no-meou um grupo para tal tarefa, encabeçado pelo vice-reitor, professor Cle-mentino Fraga Filho, que em seu livro A Implanta-ção do Hospital Univer-sitário da UFRJ (1974-1978) (FUJB, 1990) relata que “o assunto mais im-portante era a projeção inicial do número de leitos. Logo se concluiu pelo exagero, aceitando-se a ocupação da metade da área total da estrutura. Sugeriram, alguns, a demolição da parte que não seria utilizada. Paulo de Góes, dire-tor do Instituto de Microbiologia, defendeu que fosse preservada, com dois argumentos: a má repercussão do reinício das obras por uma demolição e a previsão de ampliação que as grandes instituições devem fazer”.

Assim, essa comissão estabelecia em 110 mil metros quadrados da área origi-nalmente erguida como o espaço onde seria efetivamente implantado o Hospital Universitário e decretava, na prática, o sur-gimento da parte jamais ocupada, que seria apelidada de “perna seca”. Em 22 de janei-ro de 1970, eram finalmente retomadas as obras, após um período de 15 anos de qua-se total inatividade. Contudo, em 1972, as obras entraram em ritmo lento e acabaram novamente paralisadas.

Ao mesmo tempo em que as obras se

encontravam em novo impasse e incerteza, a Medicina avançava a passos largos. Foi um período de grande desenvolvimento das Ciências da Saúde, impulsionado pela introdução no país dos chamados exames complementares, que auxiliavam os de ana-mnese e físicos através do fornecimento de exames de comprovação de diagnósticos e tratamento. Com isso, houve grande avan-ço nas diversas especialidades médicas, que exigiram uma reformulação na estrutura, concebida há quase 30 anos, para adequar o perfil do edifício às inovações técnicas e no-vas concepções clínico-hospitalares vigen-tes na época. Nesta linha, outra comissão, instituída em 1974 pelo reitor Hélio Fraga e presidida por Clementino Fraga Filho,

decidiu transformá-lo em um hospital inte-grado, ao contrário da concepção inicial que previa a prestação de diversos serviços in-dependentes.

A inauguração do hospital, em 1º de março de 1978, foi marcada pela resistên-cia do professor Hélio Fraga de permanecer no cargo de reitor, por discordar da decisão de inaugurar o hospi-

tal ainda inacabado. Coube, então, ao pro-fessor Renato Luiz Caldas, seis meses após a renúncia de seu antecessor e companheiro de administração, ocupar o mais impor-tante cargo da universidade durante a ceri-mônia. No primeiro dia do HUCFF foram atendidos 108 pacientes.

Clementino Fraga Filho foi aclamado diretor do HUCFF, em resposta a seu papel de liderança frente aos trabalhos de retoma-da das obras e, em seguida, de adaptação da estrutura originalmente erguida para a nova unidade de saúde, sendo conferido seu nome ao Hospital Universitário, em jus-ta homenagem, um ano depois de deixar a direção, na década de 1980.

Passados 33 anos da inauguração, novos percalços provocados pela falta de verbas dificultaram a manutenção da parte ocupa-da e condenaram as estruturas da Ala Sul,

já abandonada como projeto hospitalar, praticamente ao relento. A recuperação de parcela dessa estrutura vinha sendo estudada pela atual Reitoria quando o rompimento de dois pilares, em 21 de junho, precipitou a decisão de demoli-la. Diagnóstico revelando as péssimas con-dições da estrutura, realizado pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Enge-nharia (Coppe) da UFRJ, ainda em 2007, já assinalava esse desfecho.

Para o diretor do HUCFF, José Marcus Eulálio, essa demolição é o prenúncio de uma importante de-cisão: a construção, no espaço que fica vago, de um novo hospital uni-versitário, que garanta a manutenção dos cerca de 550 leitos atuais e abra pers-pectivas para uma gestão médico-hospi-talar mais compatível com os avanços no ensino, na pesquisa e na assistência às ne-cessidades de saúde da população. É isso que prevê o Plano Diretor do HUCFF para a década 2011-2020, elaborado com a ativa participação do corpo social da instituição e em consonân-cia com as diretrizes do Programa de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (Rehuf) do Governo Federal.

Em recente vistoria de técnicos do Ministério da Saúde, foi reconhe-cido que o atual prédio onde funcio-na o HUCFF é de manutenção cara e pouco apropriado para incorpo-rar sucessivos avanços científicos e tecnológicos na área. De acordo com José Marcus, ficou compro-vado que é mais viável construir um novo prédio do que insistir em reformas cada vez mais cus-tosas. Foi com essa filosofia que o HU-CFF reuniu seu corpo social e construiu um Plano Diretor que contempla três ações básicas. A primeira ação é a de-molição da Ala Sul. A segunda trata do plano de manutenção do hospital atual para subsistir enquanto o novo prédio é construído. A terceira, depois da cons-trução do outro prédio, é a transferência total das atividades do HUCFF para essa nova edificação.

graduação e pós-graduação e repre-sentantes da Pró-reitoria de Gradu-ação (PR-1), uma forma de ajustar a interrupção das atividades acadêmicas, a partir de 10 de dezembro, com o ca-lendário institucional. Maria Fernanda acompanhou de perto a visita, dia 27 de outubro, do tenente-coronel Carlos Aguiar, da Defesa Civil, e de membros da equipe responsável pela implosão da Ala Sul, às instalações laboratoriais e salas de aula do CCS.

De acordo com Aguiar, é pratica-mente zero o risco de abalo do solo. Segundo ele, mesmo a poeira deverá deslocar-se, segundo os ventos predo-

minantes, em direção à baía da Guana-bara. Ainda assim, recomendam-se me-didas preventivas, como a evacuação do prédio, vedação das janelas, proteção de equipamentos e instalação de telas im-permeáveis protetoras de poeira.

Semelhantes medidas serão adota-das pelo HUCFF, que prevê o encer-ramento completo de suas atividades assistenciais e acadêmicas em 3 de de-zembro. Até lá, cerca de 100 pacientes internados já terão sido transferidos quando necessário para outras uni-dades hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), que também acolherá novas demandas até a plena retomada

das atividades do hospital, prevista para a segunda semana de janeiro de 2011.

O Instituto de Puericultura e Pedia-tria Martagão Gesteira (IPPMG), que fica em um raio de 200 metros do perí-metro de segurança da implosão, também estabeleceu cronograma de desativação. In-terrompe atendimento hospitalar em 3 de dezembro e retoma a prestação dos serviços em 3 de janeiro de 2011.

Tirando dúvidasPara orientar os usuários acerca de to-

das as etapas da implosão e seus efeitos so-bre o funcionamento dos hospitais, a Reito-ria da UFRJ providenciou, em articulação

com as direções das unidades hospitalares e a Decania do CCS, um folder explicativo que vem sendo distribuído desde o início de novembro nos principais pontos de circula-ção dessas unidades. Foi também produzi-da, pela Coordenadoria de Comunicação (CoordCOM) da UFRJ, uma página na Internet que disponibiliza, desde meados de setembro, informações atualizadas, sob a forma de matérias, infográficos, respos-tas a dúvidas mais frequentes, fotos, vídeos e uma área interativa para a formulação de perguntas e posterior conferência das res-postas, vinculada diretamente ao site oficial do CCS. Visite e tire suas dúvidas em http://www.ufrj.br/implosaohu.

“Essa demolição é o prenúncio de uma importante

decisão: a construção, de um novo

hospital universitário.”

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 10 Direito Autoral

Pedro Barreto e Mariana Valle

O Ministério da Cultura (Minc) deve enviar ao Congresso Nacional, até o final do ano, uma proposta para revisão da Lei 9.610/98, que versa sobre os Direitos Autorais. O documento contempla pontos levantados por consulta pública, realizada entre maio e agosto de 2010, disponível na página oficial

do Minc na Internet (www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral), e em encontros promovidos por todo o país. O objetivo é, considerando as novas ferramentas tecnológicas, democratizar o acesso do cidadão à informação e à cultura sem, contudo, negligenciar os interesses dos autores.

Alguns pontos propostos já suscitam debates pela imprensa. Entre eles, o que permite à Presidência da Repú-blica conceder licença de uso sem a autorização dos titulares das obras em determinados casos. De acordo com Joaquim Welley Martins, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, a proposta prioriza os direitos do consumidor, em detrimento do autor. “Os aspectos desse licenciamento precisam ficar bem claros. Senão, pode ha-ver uma grande ingerência quanto aos direitos patrimoniais dos autores”, afirma o docente, que leciona a disciplina Legislação e Ética em Comunicação.

No entanto, para Sônia Barroso, professora de Direito Civil da Faculdade de Direito (FD) da UFRJ, as mudan-ças são necessárias, pois a atual legislação restringe o acesso à cultura e à informação. Segundo ela, os principais beneficiados pela Lei 9.610/98 são os grandes conglomerados editoriais. “Os autores são os últimos a receber, sal-vo raríssimas exceções, como escritores consagrados nacional e internacionalmente, que podem negociar melhor os contratos de edição e distribuição. A maioria recebe um percentual mínimo diante da exploração que é feita”, analisa a especialista, que já foi vítima de má-fé por parte de uma editora, quando foi convidada a participar de uma publicação coletiva na área do Direito, cujo contrato previa remuneração proporcional sobre os primeiros mil exemplares. A obra, no entanto, foi reimpressa sem que os autores autorizassem. “Estava em Brasília e vi um exemplar não autorizado em uma livraria. Depois soube que também foi feita uma edição eletrônica sem que fos-sem combinados os valores pertinentes. Somente quando fomos buscar uma notificação para possível ação é que recebemos o que nos era devido”, relata a docente.

Outra medida em andamento no Ministério da Cultura é o Edital de Estímulo à Gestão Coletiva dos Direitos Autorais. A iniciativa tem como objetivo “fomentar a implementação ou modernização operacional de entidades de gestão coletiva de direitos autorais” e “promover a redução dos custos operacionais, o aumento na arrecadação relativa a direitos autorais e distribuição mais justa e eficaz com um significativo impacto na economia da cultura, em vários segmentos culturais”.

A atuação de órgãos gestores dos direitos autorais, como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais (Ecad), é contestada principalmente por aqueles que deveriam ser beneficiados pela arrecadação: os autores. Sônia Barroso relata o caso de um compositor que, certa vez, durante apresentação pública, foi interpe-lado por um fiscal do Ecad pelo não pagamento da taxa devida à entidade, referente à execução de suas próprias músicas. “O artista disse que abriria mão dos direitos autorais, no que o agente replicou que ele poderia abrir mão de receber, mas não poderia deixar de pagar”, recorda. “Como se pode abrir mão dos direitos sem que se verifique o destino dos recursos? A questão da burocracia em torno do direito autoral perdeu o direcionamento inicial que era beneficiar o próprio autor”, completa a especialista.

Outra crítica da docente em relação à Lei 9.610/98 é o tempo definido para que a família detenha os direitos conexos do autor, após sua morte, antes que as obras sejam definidas como “domínio público”. A proposta enviada ao Congresso sugere a redução dos atuais 70 para 50 anos de exploração por parte dos herdeiros ou outros bene-ficiários. Sônia Barroso explica que a Convenção da União de Berna, na Suíça, que reúne 163 países, sugere essa diminuição. No entanto, segundo ela, a tendência mundial é pela manutenção do prazo de 70 anos. “Para explorar patrimonialmente os direitos de autor, alguns herdeiros negam o acesso a publicações que poderiam ser atualiza-das.” Este é o caso das obras de Carvalho de Mendonça e Pontes de Miranda, que estão na biblioteca da Faculdade de Direito. “Nós gostaríamos de atualizar o acervo, mas os detentores dos direitos de exploração patrimonial não permitem que isso aconteça”, informa a professora, para quem o confronto, nesse caso, “é entre o direito à infor-

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João Rezende

11UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010

Marco Fernandes

Direito Autoral

mação e a chamada propriedade absolu-ta ao direito da exploração patrimonial. Nossa Constituição fala em função so-cial da propriedade. Ora, a propriedade intelectual não é uma propriedade?”.

Conteúdos digitaisLicenças de conteúdo digital como

o Creative Commons e o Copy Left já se propõem democratizar o acesso do grande público a obras outrora restritas à exploração comercial. A primeira per-mite que o autor compartilhe suas obras, ao mesmo tempo em que as protege, de acordo com os limites estabelecidos pelo próprio. No segundo caso, o autor reti-ra as barreiras que limitam a utilização, difusão e, inclusive, a modificação das obras por parte de terceiros.

A última edição da tradicional Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, realizada no início de outubro, contou com um grande número de lançamentos em versões virtuais. Dispositivos como o Kindle e o iPad prometem, um dia, subs-tituir os livros em papel. “Sem dúvida, no formato digital, o livro fica mais bara-to do ponto de vista da produção. Mas a margem de lucro também diminui. Nos Estados Unidos, as vendas de e-books já são significativas. Aqui, ainda não”, analisa Paulo Pires, professor da ECO. Apesar das vantagens comerciais, Pires não acredita que as novas plataformas sejam capazes de criar maior interesse pela leitura. “O que ajuda a conquistar novos leitores é uma educação melhor e mais consistente. Essa é a política do livro de verdade”, afirma o docente, que ministra a disciplina Livros e Novas Tecnologias.

Fred Góes, professor da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, autor de li-vros como Brasil, mostra a sua máscara (Língua Geral, 2007), Antes do furacão (Língua Geral, 2008) e O poço de Cam-paná (Língua Geral, 2010), e compositor de mais de 40 canções em parceria com Moraes Moreira, Zeca Barreto, Toni Costa, entre outros, considera os direitos autorais “inalienáveis”. O docente admite até mesmo disponibilizar suas obras na Internet, mas sem abrir mão, contudo, da remuneração devida. Além disso, para ele, o papel do editor – que tende a ter o espaço reduzido com o crescimen-to dos livros eletrônicos – é fundamental no processo de publicação. “Sem eles, eu não teria conseguido lançar um livro se-quer”, avalia o autor, acreditando que o crescimento dos e-books é a tendência natural do mercado, mas não crendo no fim dos livros, como profetizam alguns analistas. “Eu jamais conseguiria viver sem os meus ácaros”, brinca Fred Góes.

Fernanda Ribeiro, diretora-executiva da Editora UFRJ, afirma que a UFRJ já estuda o processo de digitalização de seus livros para democratizar o aces-so do público às obras. “Nós já temos o compromisso de vender mais barato. Fazemos doações a bibliotecas e damos descontos de 50% para que o livro che-gue ao público de menor poder aquisi-

Ação sem nenhum respaldo legal na Escola de Serviço Social

O dia 13 de setembro de 2010 poderá não ser rapidamente esque-cido pela comunidade da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ. Na ocasião, agentes da Polícia Civil entraram no campus da Praia Ver-melha, se encaminharam ao setor de fotocópias da escola e apreen-deram grande volume de material acadêmico. De acordo com Mavi Rodrigues, diretora da unidade, foram levados 13 livros originais, parte do acervo não apenas do Ser-viço Social, como também de outras unidades da Praia Vermelha. “Ha-via mais de 200 pastas de docentes, bibliografias dos cursos, recortes de jornal, entre outros materiais, que estavam ali atendendo uma de-manda dos próprios professores”, relata Mavi, que diz que os agentes não portavam mandado de busca e apreensão.

Mavi Rodrigues classifica como “canhestra” a interpretação da lei, tanto por parte da polícia quanto da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR). “Para eles, qualquer atividade de cópia para fins de lucro é passível de ser cri-minalizada”, afirma. Além do ma-terial apreendido, Henrique Papa, permissionário do serviço de foto-cópias na unidade, foi detido e indi-ciado por “crime contra os direitos autorais” e “desacato à autoridade”. Papa está sendo assistido por pro-fessores da Faculdade de Direito, que tentam, junto ao Ministério Público, que a denúncia da Polícia Civil não seja acatada.

A operação é duramente critica-da por Sônia Barroso, professora de Direito Penal da Faculdade de Di-

tivo, que é quem nos interessa atingir”, afirma a dirigente.

Um exemplo de como harmonizar conteúdo digital e direitos autorais vem da Espanha. Fernanda Ribeiro informa que o governo daquele país assumiu, recentemente, a responsabilidade por 70% dos custos de digitalização de todo o acervo da Biblioteca Nacional espa-nhola. Dessa forma, o leitor poderá optar pela consulta física do exem-plar; pela compra do livro na edição digital, parcial ou integralmente; ou pela aquisição da obra impressa dire-tamente da editora ou em uma livra-ria da preferência do consumidor. “O leitor tem essa liberdade de escolher o meio eletrônico ou não. Isso tudo é feito através do site da biblioteca. Assim, ninguém tem prejuízo: nem os livreiros, nem a editora e nem o autor. Acho que isso é fantástico e que tam-bém pode ser uma tendência aqui no Brasil”, analisa a diretora.

reito (FD) da UFRJ. “A ação não teve nenhum respaldo legal”, afirma a espe-cialista. Segundo ela, qualquer injun-ção em área federal deve passar, obri-gatoriamente, pelo Tribunal Regional Federal, para que o juiz conceda um mandado de busca e apreensão. Além disso, completa a professora, “os agen-tes agiram motivados por uma denún-cia anônima. Ora, lugar de denúncia é no Ministério Público! Se a polícia ti-vesse uma notícia-crime a respeito de alguma situação irregular, deveria ter encaminhado à Direção da ESS, à De-cania do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) ou à Reitoria, que cumpriria os trâmites administrativos. Por todas essas razões, não é possível justificar a ação”. Mavi Rodrigues afir-ma que não foi informada pela Divisão de Segurança (Diseg) da entrada dos agentes no campus. “Fui informada da chegada da polícia quando eles já es-tavam dentro. Se tivesse sido avisada, não teria autorizado o ingresso dos po-liciais”, recorda a diretora.

A partir do episódio, o Conselho Universitário (Consuni) aprovou, no dia 23 de setembro, a Resolução 19/2010, que regulamenta a reprodu-ção de livros, revistas científicas e peri-ódicos em todas as dependências e ór-gãos da UFRJ. Em seu artigo 1º, o do-cumento autoriza “a reprodução, sem finalidade lucrativa, em cópias repro-gráficas de trechos, como capítulos de livros e artigos de periódicos e revistas científicas mediante solicitação indivi-dual e para uso próprio do solicitante”. Além disso, o artigo 2º permite as fo-tocópias de livros do acervo da UFRJ nas seguintes categorias: “I – Obras esgotadas sem republicação há mais de dez (10) anos; II – Obras publica-

das no exterior e não disponíveis no mercado nacional; III – Obras de domínio público; e IV – Obras nas quais conste expressa autoriza-ção para reprodução”. Finalmente, o artigo 3º permite aos docentes da UFRJ “disponibilizar para reprodu-ção material destinado às discipli-nas que ministram”. A mesma ses-são do Consuni aprovou ainda uma carta enviada ao governador Sérgio Cabral Filho solicitando a devolu-ção do material apreendido. Já no dia 27 de outubro, a vice-reitora Sylvia Vargas, na função de reitora em exercício, reiterou o documento e encaminhou o pedido à Secreta-ria de Estado de Segurança Pública, para que sejam dados os encami-nhamentos devidos.

Para Sônia Barroso, a resolução é importante, pois fornece respaldo legal a todas as unidades da UFRJ. “No caso de outra situação seme-lhante, as pessoas poderão apresen-tar um documento, elaborado por um conselho, portanto, um órgão ratificado pela instituição, e assina-do pelo reitor”, avalia a especialista em Direito Civil. Mavi Rodrigues também elogia a iniciativa da Reito-ria. “A resolução é a resposta a uma visão obtusa e atende a uma solici-tação da ESS, equivalente ao que já foi feito na Universidade de São Paulo (USP)”, destaca a diretora. No entanto, Mavi acredita que outras medidas ainda devam ser tomadas. “Acho que a universidade tem que se envolver mais na revisão da Lei dos Direitos Autorais, que tem caráter comercial. A universidade tem que brigar por sua autonomia”, argu-menta a professora.

Sandra Barroso: “Como se pode abrir mão dos direitos sem que se verifique o destino dos recursos?”

João Rezende

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 12 Cidade

Criação de Rede de Observatórios de Conflitos Urbanos a partir de experiência inovadora do Ippur da UFRJ permitirá mapeamento das desigualdades sociais e regionais em diversas cidades do Brasil. Dados levantados poderão subsidiar

políticas públicas e fornecer ferramenta extraordinária para estudos urbanos comparados.

Coryntho Baldez

O sonho autoritário de uma cidade harmoniosa e obe-diente vem sendo posto à

prova, nos últimos anos, pelo Obser-vatório Permanente de Conflitos Ur-banos na Cidade do Rio de Janeiro, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ. O seu rico acervo de dados, com cerca de 2 mil conflitos registrados no Rio de Janeiro, desde 1993, não apenas aplica um choque de realidade em visões de Estado que nutrem a ideia de pacificar a cidade – com o uso da violência, se for preciso – como permite estudá-la a partir de uma ótica inovadora.

“A ideia não é conhecer os conflitos para evitá-los. Há uma visão de que conflitos sinalizam uma patologia da cidade. Digo o contrário. O conflito é uma manifestação da vitalidade do es-paço social. Uma cidade sem conflitos é uma cidade morta”, explica Carlos Vainer, professor-titular e coordena-dor do Observatório – criado no âm-bito do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza, do Ippur, com o apoio da Comissão de Assuntos Urba-nos da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. O Observatório dá conti-nuidade ao Projeto Mapa dos Confli-tos Urbanos, que cobriu o período de 1993 a 2003, tendo como fontes de pesquisa três jornais diários – O Dia, Jornal do Brasil e O Globo – e os arqui-vos do Ministério Público Estadual.

Hoje, o Observatório de Conflitos Urbanos possui dados georreferencia-dos, disponibilizados online, que re-velam quem reivindica o quê e como em diferentes regiões da cidade. A Segurança Pública, por exemplo, é o objeto de conflito mais incidente no Observatório, com 710 registros, ou seja, 36,5% de um total de 1.946, entre 1993 e julho de 2010. O mapeamento da vida na cidade, pela ótica dos con-flitos sociais, transformou-o em ferra-menta potencial para a formulação de políticas públicas – um dos seus obje-tivos principais, como uma iniciativa ligada à Extensão –, mas também em fonte para a pesquisa universitária. Já existem dissertações, monografias e trabalhos de iniciação científica elabo-rados na UFRJ que utilizaram sua base de dados.

Rede de observatóriosO êxito da experiência no Rio de

Janeiro atraiu a atenção de estudiosos de várias cidades do Brasil e fez surgir um projeto ainda mais ambicioso: a criação de uma Rede de Observatórios de Conflitos Urbanos. Por iniciativa de pesquisadores da Universidade Fe-deral de Minas Gerias (UFMG), Belo Horizonte passou a ser a segunda ca-pital a abrigar um Observatório de Conflitos Urbanos. Hoje, já existem unidades em funcionamento em For-taleza, Maceió, Recife, São Paulo e Vi-

tória, além de Belo Horizonte. Difun-dindo-se com extrema rapidez, a Rede de Observatórios está prestes a fincar raízes em Belém, Salvador, Curitiba, Porto Alegre, Campos e Uberlândia. “Também estabelecemos contatos in-ternacionais e o Observatório já existe em Buenos Aires (Argentina) e está em vias de ser implantado em Medelín (Colômbia), La Paz (Bolívia) e, talvez, Miami (EUA), Joannesburgo (África do Sul) e Atenas (Grécia)”, informa Carlos Vainer, especialista em Desen-volvimento Econômico e Social pela Université Paris 1.

Recentemen-te, em agosto passado, foi rea-lizada, no Rio, a primeira reunião da rede, com 30 participantes de várias cidades. Inicialmente, o Ippur cedeu o software gratuita-mente às outras instituições que criaram observa-tórios – a maioria formada por universidades públicas – e agora lançará um novo e moderno layout, mais rico em ferramentas de consulta.

Segundo Vainer, a conflituosidade urbana é uma maneira de entender a cidade e, com o mapeamento dos con-flitos em duas ou mais, será possível criar um instrumento extraordinário de estudos comparados urbanos, tanto no plano nacional como internacional.

Cidades desiguaisUma das principais contribuições

do Observatório, segundo o professor do Ippur, é a produção de uma carto-grafia da conflituosidade urbana, que fornece importante ferramenta de lei-tura das desigualdades na cidade. “Os conflitos na Zona Sul ou no asfalto que envolvem a Segurança Pública têm por alvo os criminosos. De outro lado, a maioria dos conflitos nas favelas tem por alvo a polícia. Em tese, todos es-tariam lutando pela melhoria da Segu-rança Pública, mas o que é Segurança Pública, para cada grupo, é diferente. Para uns, é como se defender da polí-

cia. Para outros, é como se defender do bandido”, opina Carlos Vainer.

Ele também cita como exemplo a noção de espaço público para os ca-melôs – que veem a rua como local de trabalho – e os moradores da Zona Sul, para os quais ela é apenas local de moradia ou lazer. Em bairros mais abastados, predomina a ideia de cercar praças para que não sejam frequenta-das por mendigos ou tomadas pelos camelôs.

As técnicas de planejamento ado-tadas nas últimas décadas fecharam os

olhos a essas con-tradições sociais e regionais presen-tes no espaço ur-bano e buscaram harmonizá-las ar-tificialmente, ou mesmo anulá-las pelo uso da for-ça. Para Vainer, a utopia de uma cidade pacificada tem duas verten-tes. Uma, de viés autoritário, tem como objetivo re-

mover o conflito por meio da repres-são. A outra pretende refrear a organi-zação de sujeitos coletivos por atos de violência simbólica. “Se o Rio quer ser uma cidade olímpica, não pode apa-recer como cidade conflituosa. É pre-ciso produzir determinada imagem e o agente do conflito passa a ser visto como traidor da pátria”, exemplifica o pesquisador.

“Polis” versus “city”A ideia da cidade harmônica,

portanto, não constituiria senão um mito que esconde a verdade acerca da cidade. De acordo com o profes-sor do Ippur, a conflituosidade si-naliza a diversidade da cidade – “o que é algo bom” – e denuncia a desi-gualdade urbana, porque nem todos promovem manifestações ou ações de protesto pelos mesmos motivos. Vainer afirma que a cidade não é ho-mogênea e sua organização espacial projeta sobre o território urbano as desigualdades sociais. “Há uma divi-são socioespacial do território. Por-tanto, analisando o mapa dos confli-Para Carlos Vainer, o conflito entre a “polis” e a “city” é constitutivo da vida urbana.

“A ‘polis’ sempre se insurgiu contra a ‘city’, desde o

surgimento das

primeiras cidades.”

13UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 Cidade

Na Jornada de Iniciação Cien-tífica, Artística e Cultural Júlio Massarani de 2010, da UFRJ, as estudantes Paula Gralato Santos (graduanda em Geografia) e Rena-ta Nogueira Martins (graduanda em Ciências Sociais) apresentaram um trabalho – com base nos da-dos levantados pelo Observatório de Conflitos Urbanos – intitulado “Como a população carioca se ma-nifestou contra a Polícia Militar nos últimos 15 anos”.

Com a leitura de relatos de 325 conflitos que reclamavam de ações da Polícia Militar, elas constataram que a absoluta maioria (93,8%) de-nunciava o excesso de repressão po-licial. Havia reclamações por abuso de poder, cobrança de propinas, roubos, injúrias, estupros, agres-

sões e assassinatos. O restante dos con-flitos (6,2%) teve origem em denúncias de ineficiência da polícia.

Quanto às regiões da cidade, as es-tudantes verificaram que 63% dos conflitos que tinham como alvo a PMERJ se deram na Zona Norte, 15% na Zona Sul, 14% na Zona Oes-te e 7% na Zona Central. Os que ti-veram alguma favela como origem somaram expressivos 86%, enquan-to apenas 14% se originaram no as-falto.

Chamou a atenção das bolsistas do Observatório o fato de que a gran-de maioria protestava contra agres-sões e assassinatos cometidos por membros da PMERJ em incursões em favelas. Os relatos apontam 385 homicídios e 113 feridos que seriam resultantes de ações da Polícia Militar.

De acordo com a análise de Pau-la Gralato Santos e Renata Nogueira Martins, existe uma padronização nas respostas dadas pela Polícia Mi-litar quando questionada a respeito dos conflitos. Se os mortos ou feridos são crianças, mulheres ou idosos, na maior parte das vezes a polícia alega que os tiros foram disparados por tra-ficantes. Mas quando as vítimas são jovens e adultos do sexo masculino, a polícia justifica a ação como “autos de resistência” e acusa as vítimas de serem traficantes, segundo o relato das estu-dantes.

Em vários casos, elas observaram uma contrarresposta da população que presenciou a ação policial, que busca reunir provas da inocência das vítimas ao mostrar boletos de faculdade, car-teira de trabalho e outras referências.

As graduandas da UFRJ desta-cam que a arbitrariedade das ações da Polícia Militar vem transferin-do, ao longo dos anos, a decisão do uso da força do Estado para o pró-prio policial. Segundo elas, arrai-gou-se na sociedade o pensamento de que as políticas de segurança mudam de perspectiva de acordo com os setores sociais aos quais são dirigidas.

Em relação aos setores mais abastados, concluem as estudan-tes, predominam cobranças de propinas e ações que passam longe de qualquer punição aos transgres-sores. Aos menos favorecidos eco-nomicamente, estão reservadas as medidas violentas e repressoras, na maioria das vezes não perceptíveis aos olhos do resto da população.

tos, é possível visualizar os problemas de diferentes grupos sociais e como eles se manifestam”, resume o especia-lista.

Para enfrentar as tensões e os pro-blemas urbanos, durante a ditadura militar, imperava a ideia de planeja-mento tecnocrático, formatado em gabinetes hermeticamente fechados a qualquer influência da sociedade. Hoje, segundo Carlos Vainer, o que predomina é o chamado planejamen-to estratégico para o negócio. “Essa é a cidade-mercadoria, onde o conflito é uma ameaça ao lucro e a ‘city’ domina a ‘polis’. Na concepção que defende-mos, a cidade é o espaço da cidadania, que se insurge e surge como sujeito da cidade, onde a ‘polis’ domina a ‘city’. Não estou propondo ainda o fim do mercado, mas que a cidadania se so-breponha ao mercado, e não o contrá-rio”, sustenta o docente.

O planejamento dos tempos atuais, segundo Vainer, propõe flexibilidade para aproveitar as oportunidades de negócio. Se uma determinada regra está impedindo o negócio de um ca-pitalista, põe-se então a regra de lado – ou se “flexibiliza a regra” – para que não se perca a oportunidade de negó-cio.

Segundo ele, o conflito entre a “polis” e a “city” é um processo cons-titutivo da vida urbana. O problema – acrescenta – é quando a ideia de cidade-negócio, que deve ser dirigida como empresa, se sobrepõe e esmaga a política, em seu sentido mais pleno, e despolitiza o espaço urbano, como acontece hoje. “Por essa visão, a cidade deixa de ser um espaço de políticas pú-blicas para ser um espaço de gestão de negócios”, destaca o professor.

Cidade de exceçãoA cidade na qual a política não tem

lugar, para Vainer, é uma cidade de ex-

ceção. Ou seja, todas as regras valem desde que sejam para assegurar o bom andamento dos negócios. Por exem-plo, define-se que o gabarito em deter-minado bairro é 10, mas, como o in-corporador imobiliário quer gabarito 20, cria-se uma lei de exceção para contemplar os interesses do capital imobiliário. Em outubro, por exem-plo, a Câmara Municipal aprovou uma série de isenções de impostos para, supostamente, facilitar proje-tos que interessam à realização das Olimpíadas de 2016.

“No caso do Rio, temos uma cidade de exceção nos territórios pobres, nos quais não há lei, ou onde vale a lei do mais forte. E também temos uma cida-de de exceção nas chama-das áreas nobres, porque nelas também vale a lei do mais forte, enten-dido não como aquele que possui mais armas, mas como o que possui mais capi-tal. Tem-se, então, a duplicidade da cidade de exceção, que, num caso e nou-tro, é a destruição da possibilidade da ci-dade como espaço público da política, da ação coletiva dos cidadãos visando ao interes-se público”, completa Carlos Vainer.

Em contraposição às visões tradicionais, o pesquisador aponta a difusão e a conso-lidação da ideia de planeja-mento conflitual. “Nele, o conflito deve ser visto como algo virtuoso. É um planeja-mento que pode se transformar

em instrumento de luta de agentes co-letivos, e não em instrumento de po-der do Estado sobre as cidades”, afirma Vainer.

Uma grande aliada do planejamen-to conflitual será a expansão da Rede de Observatórios – e de sua metodo-logia –, cuja ambiciosa meta é estar

presente, até o ano que vem, em

todas as capitais brasileiras e em cida-des com mais de 500 mil habitantes. E se, de fato, a “polis” sempre se insur-giu contra a “city”, desde o surgimento das primeiras cidades – como sustenta Vainer –, não faltarão conflitos para alimentar o trabalho da rede e subsi-diar políticas públicas de novo tipo.

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 14 Especial

Qual UFRJ queremos ser?

Luiz Carlos Maranhão

Nesta segunda rodada de conversas organizadas pelo Jornal da UFRJ para discutir o futuro da instituição, são raros os pontos de convergência entre os entrevistados.

Os professores Ericksson Rocha e Almendra, da Escola Politécnica (Poli), Maria Fernanda dos Santos Quintela, do Instituto de Biologia (IB), Ricardo Silva Kubrusly, do Instituto de Matemática (IM), e Roberto Leher, da Faculdade de Educação (FE), apresentam abordagens distintas acerca da agenda de temas controversos postos à mesa quando se discute a UFRJ. O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) está no centro deste debate que envolve, entre outros assuntos, a democratização do acesso à universidade e as relações com o mundo mercantil.

Part

e II

15UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 Especial

“Democratismoestapafúrdio”

Ericksson Rocha e Almendra

Jornal da UFRJ: Que perspectivas o Reuni abriu para o futuro da UFRJ?Ericksson Almendra: Eu enxergo o Reuni como um mecanismo de financiamento de determinadas políticas governamentais. Certamente que ele significou uma guina-da. Houve significativo aporte de recursos vinculados, sobretudo, ao aumento de va-gas. O que é positivo, porque há carência de mão de obra qualificada no Brasil. Au-mentou a quantidade de dinheiro que veio vinculada a metas essenciais, com as quais eu concordo.

Jornal da UFRJ: Aumento de vagas e quali-dade de ensino podem andar juntos?Ericksson Almendra: Qualidade e quan-tidade não se opõem. O fato de nas dé-cadas de 1960 e 1970 ter havido uma ex-pansão dos ensinos Fundamental e Médio com a deterioração da qualidade leva as pessoas a avaliar que isso sempre acontece. Não é verdade. Exemplo típico é a minha unidade, que há mais de 10 anos cresce a uma média de 5% ao ano em número de vagas, e continuamos sendo bem avalia-dos. A Engenharia da UFRJ é a melhor do Brasil. As pessoas, quando querem ser contra, têm enorme tendência a apresentar argumentos falaciosos.

Jornal da UFRJ: Foi correta a instituição de cotas sociais na política de acesso à UFRJ?Ericksson Almendra: Eu avalio que deve-mos introduzir as cotas sociais. Mas acho também que a decisão da UFRJ em fazer mudança no vestibular, inclusive com as cotas sociais, representa um risco muito grande, risco que a universidade resolveu correr.

Professor-adjunto e diretor da Escola Politécnica (Poli), Ericksson Rocha e Almendra aponta a existência de um “democratismo estapafúrdio” que dificulta a tomada de decisão na UFRJ. O professor cita o debate sobre a transferência de unidades da Praia Vermelha. “Uma decisão tomada há décadas e ainda continuamos discutindo o assunto”, critica.Rocha e Almendra aponta riscos na implantação do sistema de cotas sociais e diz não ver qualquer heresia no fato de a universidade dispor sua competência a serviço de empresas privadas. “Todos os setores da universidade podem prestar serviços. Há uma mística de que isso é somente na área da Tecnologia”, afirma o professor.

Part

e II

Especial UFRJJornal da 16Setembro/Outubro 2010

Jornal da UFRJ: Qual é o risco?Ericksson Almendra: Hoje nós conhece-mos nossos estudantes. Sabemos que tipo de aluno o vestibular vai nos entregar. Isso permite nos adaptarmos a esse aluno. O que virá no ano que vem vai ser uma novi-dade. Não são necessariamente estudantes piores, mas de qualidade diferente. E isso significa que a universidade deve se adap-tar a esses. E não fazemos isso com boa velocidade. Acho que a forma a que che-gamos de reserva de vagas tem um lado extremamente positivo e um que acho errado.

Jornal da UFRJ: O que foi positivo?Ericksson Almendra: Extremamente po-sitivo foi escolher a escola pública. Porque cota apenas tem sentido se for para resol-ver um problema: a qualidade da escola pública. A forma correta de resolver e, sobretudo, democrática, é dizer pra todos que a escola pública é um problema e por isso que as cotas têm que existir.

Jornal da UFRJ: Quais, então, as suas res-trições?Ericksson Almendra: Agora, a maneira de aplicar as cotas eu acho que tem que ser aperfeiçoada. E baseado em simples ques-tão: se um aluno vem da melhor escola da cidade e outro de uma pequena escola pú-blica do subúrbio, e os dois tiveram a nota sete, o melhor aluno é certamente o cara que estudou na pior escola. Então daremos um bônus a ele. Acrescente-se determina-da quantidade de pontos à nota que ele ti-rou. Eu acho que esse sistema é mais justo, permite que se faça ajuste de ano a ano, o que é mais difícil com a reserva automática de vagas.

Jornal da UFRJ: E o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é caminho adequa-do?Ericksson Almendra: O vestibular é um horror. Enem, em tese, é um mecanismo interessante. Um grande exame nacional. A implantação foi feita de forma atabalho-ada, tardiamente, quase no fim de governo, comprometeu a credibilidade do sistema.

Jornal da UFRJ: Voltando ao Reuni: uma das críticas é a de que a universidade não teria se preparado para receber esse pro-grama. O Plano de Reestruturação e Ex-pansão (PRE) não teria respondido a isso?Ericksson Almendra: Eu acho que a críti-ca correta não é essa. Certamente, se com-pararmos a velocidade das obras que estão sendo realizadas aqui com a velocidade das obras que estão sendo realizadas em outras universidades, vamos verificar que a UFRJ está começando muito tarde. Ela poderia ter aproveitado melhor o Reuni. Isso é verdade. Eu acho que a origem da crítica é essa constatação. Agora, o diagnóstico está errado. Eu não acho que a UFRJ não tenha se preparado. O problema é que a UFRJ é

grande demais, com estruturas muito ve-lhas, e, sem dinheiro, digamos assim, essas estruturas ficaram empedradas. Então há uma dificuldade enorme de tomada de decisão. Há a enorme tendência de demo-cratismo estapafúrdio.

Jornal da UFRJ: Como assim?Ericksson Almendra: Toda vez que se toma decisão se quer retomar a discussão. Um exemplo típico é a vinda de unidades da Praia Vermelha para a Cidade Univer-sitária. Essa decisão foi tomada há décadas, quando se decidiu construir a Cidade Uni-versitária na Ilha do Fundão. No entanto, nós não apenas tomamos a decisão de vir para cá, como continuamos discutindo o assunto de dois em dois anos, de três em três anos. Essa discussão já deveria estar encerrada. Ela já está tomada, no meu en-tender. O que tem que ser discutido são as condições para vir. Mas não usar isso para atrapalhar a vinda.

Jornal da UFRJ: Onde há democratismo? Ericksson Almendra: Um exemplo: anuncia-se que um tema vai ser discutido no Con-suni. Pede-se reunião de departamento, de congregação, de centro. Mesmo que as reuniões aconteçam, pouca gente participa. Aí o Consuni decide. Surge a crítica de que o assunto não foi bem discutido e se pede nova discussão. Isso atrapalha. E as pessoas cedem à pressão em nome da democra-cia. Essa é a crítica aos nossos dirigen-tes. Temos que dar um basta nisso. Tomar a decisão e implan-tar a decisão.

Jornal da UFRJ: A estrutura de departa-mentos é ruim?Ericksson Almendra: Eu conheço aqui na UFRJ departamentos que funcionam, não são barreiras para integração com outras áreas, sem burocracia. O meu departa-mento, o de Metalurgia e Materiais, não tem regimento. As pessoas simplesmente se respeitam. O departamento se resolve porque as pessoas se encontram no cafe-zinho, têm reuniões periódicas, vida social intensa. Mas ele é sólido, institucional, tem excelente nota na Coordenação de Aper-feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), faz e acontece. Não é que eu esteja defendendo, mas quando é para falar das mazelas da universidade sempre se come-ça pelos departamentos.

Jornal da UFRJ: A política de Extensão atende às necessidades atuais?

Ericksson Rocha Almendra: O problema é discutir o que vem a ser exatamente Ex-tensão. Há várias maneiras de definir. Ex-tensão é colocar as competências existen-tes na universidade a serviço da sociedade. Vamos supor que a Companhia Vale do Rio Doce esteja construindo seis ou sete portos no mundo afora. Então nos contra-ta para dar um curso específico de espe-cialização em Engenharia para uma turma fechada. É correto a universidade não co-brar esse curso? E se cobrar, não é Exten-são? Ora, é a competência da universidade posta a serviço de uma empresa brasileira. Aí dizem: “Mas é uma empresa”. Sim, mas por acaso a empresa não é um ente social, que gera renda, paga salários? Tem lucro. Mas aí vamos discutir a legislação que controla isso. Outra forma de Extensão é colocar nossos alunos para fazer obras sociais na favela carente. Isso é valioso para eles. É formação. As empresas estão

querendo pessoas com capacidade de entre-ga. São dois mode-los completamente

distintos. Eu posso ter críticas para um e para outro. Não se deve cair no erro fácil de que uma Extensão é correta e ou-tra é errada.

Jornal da UFRJ: Existem críticas radicais contra cursos pagos na UFRJ.Ericksson Almendra: Minha opinião: o ensino deve ser gratuito, sim, é um investimento e o Brasil está carente nisso. O que o Brasil fez de pior

na sua história foi a Educação. Agora, eu acho que o curso para a Vale tem que ser cobrado. Não vou dar curso para a Coca-Cola, para a Mercedes-Benz de graça.

Jornal da UFRJ: É necessário instituciona-lizar a relação da UFRJ com o mercado e a relação de pesquisadores com as empresas?Ericksson Almendra: A forma da insti-tucionalização já existe. São as fundações universitárias. Essas fundações são criti-cadas por setores da sociedade e da uni-versidade. Curiosamente todos os setores da universidade podem prestar serviços para empresas. Há uma mística de que isso se dá somente na área da Tecnologia, somente na Engenharia. O fato é que qual-quer competência existente é demandada em maior ou menor grau pela sociedade. Professor de Filosofia é convidado para palestras e – acontece cada vez mais – es-tabelecimentos pagam por isso. Empresas demandam estudos de Linguística, na área de Comunicação, de Psicologia, de Recur-sos Humanos, trabalhos são encomenda-dos de tudo o que é lado. Trabalhos são fei-tos de forma não institucional. A diferença

é que aqui na Politécnica, na Coppe, você pode aceitar as demandas, mas a institui-ção tem que saber e aprovar. Então o Erick-son pode dar palestra? Pode. Pode ganhar dinheiro? Pode. Só que, antes de qualquer coisa, a instituição tem que saber e aprovar. O dinheiro não vai para o meu bolso, vai para a fundação. A instituição vai retirar, no mínimo, 33% do que estava no projeto. É norma da casa. Se você ganhar dinheiro, a instituição tem que ganhar mais do que você. Eu incentivo, eu controlo, eu tenho recursos adicionais. E socialmente é mais correto.

Jornal da UFRJ: Há hipertrofia na presen-ça da UFRJ no campus da Cidade Univer-sitária? Ericksson Almendra: Todo mundo faz um discurso de que a universidade tem que servir ao meio em que vive, à socie-dade em que está inserida. Para o bem ou para o mal o Rio de Janeiro tem petróleo. Se fosse ouro, seria a “Ourobras”. Isso não é necessariamente ruim. Mas é claro que eu tenho que ter as minhas preocupações. Eu fiz agora um esforço danado para trazer para o Parque Tecnológico uma empresa não ligada diretamente ao petróleo, a Usi-minas. Isso é positivo. Livrei a universida-de do petróleo? Coisa nenhuma. A empre-sa veio aqui e vai pesquisar aço para a in-dústria do pré-sal. Temos que fazer esforço para trazer empresas de outros setores.

Jornal da UFRJ: A contrapartida da em-presa está à altura?Ericksson Almendra: Diz-se que a Petro-bras não beneficia as áreas de Letras e de Ciências Humanas. Que privilegia a área tecnológica. E eu sou obrigado a concor-dar. Mas dizer que não beneficia outras áreas é cegueira.

Jornal da UFRJ: Como o senhoravalia a articulação entre a graduação e pós-gradu-ação?Ericksson Almendra: Na década de 1950 o governo criou duas agências, a Coor-denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e elas sobrevive-ram 60 anos a todo tipo de governo. O resultado é essa extraordinária produção científica crescente. Consequência drás-tica: desbalanceou a relação graduação/pós-graduação. Como 90% da produção universitária são relacionados à pós-gra-duação, criou-se a mística de que o im-portante é a pós-graduação. Eu não estou criticando. Agora, professor que se dedica à graduação tem muito menos possibili-dade de prestígio do que o que se dedica à pós-graduação. Mas quero frisar que eu não acho que deva haver professor de graduação e pós-graduação. A carreira do professor universitário tem como primeira atribuição dar aula na graduação.

A carreira

do professor

universitário tem

como primeira

atribuição

dar aula na

graduação.

17UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 Especial16

A professora Maria Fernanda dos Santos Quintela, ex-diretora e professora do Instituto de Biologia (IB) da UFRJ, afirma que o maior desafio do Plano de Reestruturação e Expansão (PRE) é garantir a expansão da UFRJ com qualidade. Maria Fernanda, que assumiu recentemente a Decania do Centro de Ciências da Saúde (CCS), defende o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), embora considere que a forma como o programa “foi induzido pelo governo” não tenha sido a mais democrática. A professora, que também apoia as cotas sociais, diz que a democratização do acesso à universidade deve levar em conta a ocupação de vagas ociosas. A decana do CCS considera o vestibular “um processo perverso e elitista” e acha que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deve ser consolidado.

Enem deve ser consolidado

Maria Fernanda dos Santos Quintela

Jornal da UFRJ: O Plano de Reestrutura-ção e Expansão (PRE) é instrumento ade-quado para preparar a UFRJ para o futuro?Maria Fernanda Quintela: Acredito que sim. O plano permite a discussão ampla e aberta acerca do planejamento estraté-gico da universidade. Uma das maiores questões dessa discussão é o crescimento da universidade com qualidade, que con-sidero como o seu maior desafio. Para isso é necessário envolver a comunidade acadêmica em torno dessa ideia e ampliar a discussão de forma que cada segmento assuma as responsabilidades em suas com-petências e atribuições. Há necessidade de um planejamento estratégico, um plano de ações de curto, médio e longo prazos, além de uma modernização da gestão.

Jornal da UFRJ: Há críticas que identifi-cam no Reuni interferência nas decisões da universidade. São corretas?Maria Fernanda Quintela: Eu apoio o Reuni. Considero que a forma como foi induzido pelo governo não foi a mais de-mocrática, mas a adesão ao programa era voluntária. No CCS a participação de vá-rias unidades acadêmicas foi forte e com propostas que já vinham sendo construí-das com discussões antes do Reuni. No en-tanto, na UFRJ, esse processo foi discutido amplamente, houve discussões nas unida-

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 18 Especial

Sou contra o tipo

de acesso que é

realizado pelo

vestibular, que

considero um

processo perverso

e elitista.

des, nas bases e aprovação nos colegiados superiores. Não foi uma discussão fácil, mas o resultado foi positivo e atualmente temos que aperfeiçoar as ações propostas, para que possamos avançar no processo. Não considerei que houve interferência di-reta nas decisões das universidades. Hou-ve uma indução, assim como outras que acontecem com editais na área de Pesquisa e Extensão.

Jornal da UFRJ: A expansão de vagas, nas condições atuais, poderá comprometer a qualidade do ensino?Maria Fernanda Quintela: O aumento de vagas para estudantes na UFRJ tem que vir acompanhado de várias medidas de gestão e de aporte de novos recursos financeiros que permitam a velocidade da gestão, a modernização das salas de aulas, labora-tórios de aulas práticas, equipamentos e laboratórios de pesquisa. Há necessidade da melhoria da infraestrutura como um todo e das condições de trabalho. Há ne-cessidade da capacitação dos servidores técnico-administrativos em Educação de apoio e técnicos mais especializados, as-sim como de realização de concursos para técnicos mais qualificados. Há também a necessidade de consolidação de uma po-lítica moderna de Tecnologia da Informa-ção. Aos estudantes, deve ser assegurada uma política de assistência e permanência estudantil.

Jornal da UFRJ: Como a senhora avalia as políticas afirmativas?Maria Fernanda Quintela: Sou a favor das cotas sociais. Em relação às cotas raciais, tenho postura contrária, porque acredito que no Brasil a questão não é racial, mas social. No entanto, após a discussão no Conselho Universitário (Consuni) e ou-vindo com atenção o discurso do professor Marcelo Paixão, tenho refletido acerca do assunto e procurado conhecer mais pro-fundamente os argumentos, para poder entender melhor essa questão complexa. Acho que uma forma de contribuir para a democratização do acesso à universidade é a implantação de uma política efetiva de ocupação das vagas ociosas, o fortaleci-mento de mecanismos que interfiram na melhoria da qualidade do Ensino Médio e a consolidação da política de assistência e permanência estudantil. Na questão dos mecanismos a serem implementados para o fortalecimento do Ensino Médio, o papel da Extensão Universitária se coloca pre-ponderante com a participação ativa dos estudantes da universidade.

Jornal da UFRJ: O Enem é o caminho? Qual é a sua opinião sobre o vestibular?Maria Fernanda Quintela: Eu sou a favor do Enem, mas é um sistema que preci-sa de avaliação efetiva e de modificações fundamentais na logística, além de moni-toramento acadêmico, para que se possa

consolidar como um processo de acesso a todas as universidades. Em primeiro lugar quero fazer um elogio aos colegas que ao longo dos anos têm trabalhado com o ves-tibular na UFRJ, dando contribuição valio-síssima. No entanto, sou contra o tipo de acesso que é realizado pelo vestibular, que considero um processo perverso e elitista.

Jornal da UFRJ: A estrutura departamen-tal é obsoleta?Maria Fernanda Quintela: Acho que essa estrutura foi importante na estruturação organizacional da universidade em deter-minada época, mas atualmente acredito que seu papel se esgotou. Os docentes e pesquisadores devem se organizar de acor-do com as áreas de interesse, e devem ter a liberdade de escolha em diferentes perío-dos de sua vida acadêmica.

Jornal da UFRJ: A transferência de unida-des da Praia Vermelha para a Cidade Uni-versitária é relevante para a integração da UFRJ?Maria Fernanda Quintela: Concordo com a transferência das unidades da Praia Vermelha e do centro da cidade para o cam-pus da Cidade Univer-sitária. A permanência de todos em um único campus poderia nos facilitar o convívio e a integração, em especial em relação aos estudan-tes, proporcionando uma vida universitária mais rica e integrada. No entanto, algumas questões de logística são importantes e pos-so dar alguns exem-plos: ligação rápida e efetiva entre os diferentes prédios no campus, ligação através dos meios de transporte de massa com a cidade do Rio de Janeiro para que a circulação da comu-nidade acadêmica ocorra de forma rápida e segura.

Jornal da UFRJ: O Plano Diretor UFRJ 2020 é adequado?Maria Fernanda Quintela: Sim. O projeto está bem estruturado e pode ser moderni-zado ao longo do tempo com avaliações periódicas. Tais avaliações devem ter a participação da comunidade universitária e levar em conta as questões ambientais no gerenciamento dos resíduos, conservação de energia, reúso de água e utilização de energia limpa. Há necessidade de planejar áreas de paisagismo que tornem o campus mais agradável para aqueles que o fre-quentam todos os dias.

Jornal da UFRJ: A licenciatura está des-prestigiada?

Maria Fernanda Quintela: Não conside-ro, pelo menos nos cursos de licenciatura do CCS. A procura continua alta e a maio-ria dos estudantes que se graduam no ba-charelado solicita reingresso para curso de licenciatura. O que ocorre é um desprestí-gio da carreira de professor, que não tem sido valorizado por sucessivos governos nos diferentes âmbitos de poder.

Jornal da UFRJ: Como melhor aproximar a graduação da pós-graduação?Maria Fernanda Quintela: Uma das for-mas de integração entre a pós-graduação e a graduação já praticada na universidade é a participação de alunos de graduação em iniciação científica nos laboratórios, inse-ridos em projetos de pesquisa, nos quais mestrandos e doutorandos desenvolvem suas dissertações ou teses. Esse convívio entre os diferentes estudantes e a integra-ção nas discussões nos projetos facilitam a integração entre os dois níveis de ensino.

Ao mesmo tempo, alu-nos de pós-gradua-ção podem ser envol-vidos nas atividades

de ensino de graduação, através de programas de tutoria, o que lhes dá a possibilidade de ganhar experiência pedagógica no ensino de graduação. Em algumas unidades existem disciplinas co-muns entre graduação e pós-graduação. Esse tipo de iniciativa permite de-bates e discussões mais amplas e com maior pro-fundidade em relação a determinados assuntos.

Jornal da UFRJ: Os professores deveriam ser obrigados a dar aulas na graduação e na pós-graduação?Maria Fernanda Quintela: Considero importante a participação de todos os do-centes no ensino de graduação, dando sua contribuição para a formação da maioria dos estudantes da universidade. Na pós-graduação, desde que o docente tenha a qualificação exigida para os programas, ele deverá também contribuir. Existem al-guns casos excepcionais em que o docente tem qualificação muito específica e dife-renciada e sua participação se torna funda-mental em determinado programa de pós-graduação; desta forma, poderá diminuir a sua participação no ensino de graduação. Porém, não concordo com a ausência des-ses docentes nos cursos de graduação.

Jornal da UFRJ: Qual deve ser o relaciona-mento entre a UFRJ e as empresas privadas? Ela deveria levar mais em consideração o mercado na formação de seus estudantes?Maria Fernanda Quintela: A UFRJ não pode ficar isolada da sociedade e do con-

texto em que se insere, devendo considerar as grandes questões nacionais e internacio-nais do presente e do futuro. Assim, tem que contribuir para a tomada de decisões e preparar os jovens para enfrentar os gran-des desafios que estão se delineando para o futuro. Existem várias formas de a univer-sidade se relacionar com o setor privado, e estas devem ser normatizadas nos diferen-tes fóruns de discussão e de decisão.

Jornal da UFRJ: Há críticas em relação à exuberância física da Petrobras na Cidade Universitária. Maria Fernanda Quintela: A relação da UFRJ com a Petrobras no campus da Cidade Universitária é antiga e data da década de 1970. Mas recentemente a uni-versidade, em seus conselhos superiores, discutiu e aprovou a ocupação da área ce-dida anteriormente e a contrapartida da Petrobras para a UFRJ. A exuberância do projeto do Centro de Pesquisas e Desen-volvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello (Cenpes) na Cidade Universitária contrasta com a infraestrutura projetada na década de 1960 pelo governo federal para instalar a UFRJ. Essa infraestrutura durante todo esse período sofreu com a falta de recursos financeiros para aplicar na sua conservação e modernização. O projeto do Cenpes reflete a grandiosidade da Petrobras.

Jornal da UFRJ: Qual é a sua opinião sobre a existência de cursos pagos na UFRJ?Maria Fernanda Quintela: Existem cur-sos pagos em várias unidades da UFRJ, geralmente cursos de especialização lato sensu e cursos ditos de Extensão Universi-tária (atualização, capacitação, treinamen-to etc.). Considero tais cursos como ativi-dades de Educação Continuada que não são o objetivo primordial da UFRJ, mas acredito que a universidade deve dar essa contribuição à sociedade. Assim, não vejo problema na questão do pagamento des-sas atividades por empresas, por grupos de profissionais, entidades de classe, e ain-da por pessoas que estão interessadas no seu desenvolvimento pessoal. O que deve ser discutido é a forma como o pagamen-to ocorre, qual a aplicação dos recursos oriundos dos cursos e quais os percentuais destinados a unidades e laboratórios en-volvidos e à manutenção da infraestrutu-ra. A questão deve ser regulamentada pela UFRJ. Acredito que um dos pontos impor-tantes da discussão é a existência de um percentual das vagas sem pagamento para alunos e técnico-administrativos em Edu-cação da UFRJ. O que ocorre atualmente é que muitos desses cursos são importantes na complementação da formação de nos-sos estudantes para o mercado de trabalho e para atualização e treinamento de nossos servidores técnico-administrativos, e mui-tas vezes eles não podem fazer esses cursos oferecidos devido ao custo.

19UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 Especial

Banir cursospagos

Ricardo Silva KubruslyProfessor-adjunto do Instituto de Matemática da UFRJ, Ricardo Silva Kubrusly defende a extinção do Conselho de Ensino de Graduação (CEG) e do Conselho de Ensino para Graduados (CEPG). “Eles têm uma intencionalidade que é perversa”. Critica a hegemonia do pesquisador “senhor dos acontecimentos na universidade”, no ambiente de distorção que faz surgir a figura do professor que não gosta de estudante. Iconoclasta, Kubrusly relata uma história acerca de cursos pagos na UFRJ: “Fui coordenador de Extensão e o que me aparecia de curso pago dizendo que era de Extensão não era brincadeira. Eu dizia (ao professor): isso é extensão do seu bolso”.

Jornal da UFRJ: O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), que deu base ao Plano de Reestruturação e Expan-são (PRE), atende às necessidades de um horizonte estratégico para a UFRJ?Ricardo Kubrusly: O Reuni tem coisas boas e ruins. Mas a forma como ele acon-teceu nas universidades foi muito intem-pestiva. Ou as universidades tinham que se filiar às ideias do Reuni ou então seriam banidas de certa ajuda paternalista que vi-ria lá do Ministério da Educação. E a ma-neira como foi discutido aqui foi o pior dos caminhos, com participações truculentas e com pouca voz aos estudantes.

Jornal da UFRJ: O que o senhor destaca como positivo no programa?Ricardo Kubrusly: A tentativa de uni-versalizar a universidade é vista com bons olhos, claro. Por mim. Por muitos não. Por muitos a universidade é vista como coisa elitista, separada do que venha a ser ca-racterizado como massa. O que acho mais complicado nesse processo é a falta de par-ticipação dos estudantes. A universidade tem que entender que é fundamental a participação dos estudantes.

Jornal da UFRJ: Quais são os gargalos que a universidade deve superar?Ricardo Kubrusly: Uma das coisas que na universidade eu acho mais gritante é essa proposição de Ensino, Pesquisa e Extensão como estamentos iguais, com o mesmo valor, e a prática mostrar que Pesquisa, En-sino e Extensão têm um valor “estamentá-rio” nessa ordem. Você tem o pesquisador, que é o senhor de todos os acontecimen-tos. Que ganha, além dos seus salários,

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Nós temos o

professor que não

gosta de aluno, é

feito um padre que

não gosta de rezar,

um médico que

detesta diagnóstico.

algumas inserções financeiras pelos proje-tos, aos quais se acopla a todos. E se acopla por interesses pessoais, mesquinhos, sem nenhum amor, quer seja à Ciência, quer seja à Nação. Supondo que não houvesse mais Extensão, Pesquisa e Ensino, o sujeito que está aqui na universidade, professor, estudante ou técnico-administrativo, está operando com esse trinômio. Ou isso não é uma universidade. Sem mudanças efeti-vas, avalio que os nossos caminhos serão paliativos e que não nos levarão a bons re-sultados.

Jornal da UFRJ: E o que nos leva a essas dificuldades?Ricardo Kubrusly: A universidade agora é toda gerida por edital. É edital para isso, edital para aquilo. Primeiro, que o edital privilegia quem já tem. É igual financia-mento de banco, que é para beneficiar quem já tem. O edital é democrático? Eu não vejo muita democracia, não. Eu acho que a universidade tinha que ter coragem de pensar os problemas brasileiros e esta-belecer metas de pesquisas a serem reali-zadas, e distribuísse esses editais para to-dos, e não para aqueles que tivessem uma secretaria mais bem organizada, mas que atendesse quem está alijado do sistema e, por isso, despojado de outros interesses.

Jornal da UFRJ: O senhor defende a extin-ção do CEG e do CEPG?Ricardo Kubrusly: Nós teríamos que aca-bar com essas instâncias. Não seria o caso de o Conselho Universitário (Consuni) simplesmente substituí-los, mas que se criasse somente um colegiado. Não tenho a fórmula. Não é que o CEG e o CEPG se-jam obsoletos, o que dá ideia de que eles passaram no tempo. É que eles têm uma intencionalidade que é perversa. Eles estão vivos e empurram a universidade para o lugar que não é o melhor. O CEG se fecha com posições corporativistas de um grupo e o CEPG fica pensando como uma uni-versidade norte-americana. Aqui, grande parte de nossos pesquisadores não vive no Brasil, não tem noção de Brasil, fala e es-creve apenas em inglês. Eles somente con-versam internacionalmente porque plan-taram dentro de si uma ideia de ciência internacionalista que não existe, porque os problemas são regionais. O resultado dessa mentalidade é que não se encaram os problemas regionais porque às vezes passamos a encarar problemas que são de países que estão construindo aceleradores de partículas. Mas nós, antes de construir-mos aceleradores de partículas, temos que construir rede de esgotos, coisas mais bási-cas, mais baratas e com mais futuro para a nossa realidade.

Jornal da UFRJ: Temos, então, uma agen-da de pesquisa conservadora e equivocada?Ricardo Kubrusly: Temos uma univer-sidade conservadora e com uma agenda

muito equivocada, em alguns casos. Uma universidade que tem medo do novo. E olha que eu participo de um programa que é novo, interdisciplinar, que tem enorme apoio da Reitoria, à qual eu sou muito gra-to. Agora, uma coisa é a ideia das pessoas; outra é essa massa que se move inercial-mente. Esse é que é o problema.

Jornal da UFRJ: A estrutura de departa-mentos é um entrave? A burocracia atrapa-lha?Ricardo Kubrusly: Isso não me preocupa muito. A burocracia tem que existir. Os burocratas são pessoas normais, preci-sam de emprego, merecem viver, às vezes até beijam bem. Sou contra o império da burocracia, que vende facilidades, criando dificuldades para valorizar o seu produto. Quero dizer que, quando ataco as diretri-zes da universidade, não estou atacando as pessoas. Agora vejo que a universidade vai numa direção precária, de se acomo-dar. E nisso eu acho que a UFRJ é muito semelhante ao governo federal brasileiro. A gente elegeu o Lula há alguns anos e nós esperávamos grandes mudanças, e tudo isso ficou num estado meio lamentável. E agora tivemos essa elei-ção presidencial que é a mais sem graça que nós já vivemos. E vamos ter eleições para a Reitoria; pelo andar da carru-agem, vai no mesmo rumo, sem proposta de grandes mudanças.

Jornal da UFRJ: No esforço para democra-tizar o acesso à UFRJ contamos, agora, com as cotas sociais. Qual a sua opinião?Ricardo Kubrusly: Se você tirar uma fotografia da Cidade Universitária e do seu entorno, verá uma ilha branca num mun-do preto. Isso tem que ser mudado. Então, cotas são um caminho que vai mudar isso. Temos que botar mais cor aqui dentro, e isso é bom. Por outro lado, qualquer solu-ção que passe por um conceito de raça, ou de cor, faz ressurgir o conceito de racismo, porque o racismo é que inventa raça. Eu não sei se esse é bem o caminho. Talvez o melhor fosse mobilizar o país para que as escolas públicas, nos seus graus inferiores, fossem realmente de qualidade. Tem que ser feita alguma coisa, e está sendo feita al-guma coisa. Vamos aplaudir. No entanto, acho que se poderia fazer mais e diferen-te. Fazer com que o jovem que chegasse à universidade não fosse diferenciado por classe social. Nem que para isso fosse ne-cessário acabar com o ensino privado. O ensino privado é meio medieval mesmo. Agora, precisamos formar professores. A

formação de professores não está sendo privilegiada.

Jornal da UFRJ: A licenciatura perdeu seu lugar social?Ricardo Kubrusly: Olha, o prestígio está nos pesquisadores, que durante a ditadura saíram do Brasil para criar uma estrutu-ra científica, entre os quais eu me incluo. Nunca tivemos tantas bolsas como no tempo da ditadura, e lutávamos contra ela. E isso - eu não estou elogiando - surge de um plano que passa pela vontade de um país diferente do que a gente deseja. E hoje temos essas pessoas dominando a pes-quisa no Brasil e dominando em todas as universidades. Porque uma universi-dade é valorizada apenas pelas pesquisas de ponta que está fazendo. E uma pes-quisa somente é considerada de ponta quando os caras que estão lá em cima dizem se esta é ou não uma pesquisa de ponta. E isso cria um jogo de perversão completamente absurdo.

Jornal da UFRJ: O que deve ser feito com os cursos pagos

da UFRJ?Ricardo Kubrusly: Deveriam ser bani-dos. E são muitos. E às vezes há alguns com título de Extensão. Eu fui coordenador de Extensão e o que me aparecia de cur-so pago dizendo que era de Extensão não é brincadeira. Eu dizia: isso não é Extensão. Isso é extensão de seu bolso. É uma coisa de louco. Já passou aqui

no sábado? É cheio de cursos funcionan-do. Existem telefones de ramal da uni-versidade para os quais você liga e aten-de alguém dizendo que é da empresa tal funcionando aqui dentro. No Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) há várias.

Jornal da UFRJ: Há problemas nas rela-ções de pesquisadores da UFRJ com em-presas privadas?Ricardo Kubrusly: Isso é muito ruim porque você cria várias categorias de professores. Você tem, por um lado, aquele professor que é grande cientista e tem benesses via projetos, via bolsas de pesquisa. E temos outros, aqueles que são os mais espertos, que conseguem se embrenhar no mundo empresarial e recebem também. Então, a universidade passa a ser um ponto de partida para ele se dar bem saindo dela, e não entrando nela. Aí é criado um professor universi-tário que não tem a essência de professor.

Não é o cara que quer entender o mun-do. A universidade vira uma espécie de trampolim para entrar nas empresas.

Jornal da UFRJ: Esse tipo de cultura afasta o professor da sala de aula?Ricardo Kubrusly: Nós temos o profes-sor que não gosta de aluno, é feito um padre que não gosta de rezar, um médico que detesta diagnóstico. Em alguns ca-sos, aula se transforma em punição. Não acredito que dentro de uma universida-de o ensino seja uma punição.

Jornal da UFRJ: No Plano Diretor UFRJ 2020, a transferência de unidades para a Cidade Universitária é polêmica.Ricardo Kubrusly: Eu acho que é uma bobagem o sujeito não querer sair da Praia Vermelha. Agora, acho também que a universidade não deveria tirar os cursos de onde eles estão. Deveria criar outros cursos. Por exemplo: tem a Filo-sofia lá no Centro; deixa a Filosofia lá, cria outra Filosofia aqui. Isso acontece em várias universidades na França. Nós temos o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) fazendo Antropologia e temos o Museu Nacional também fa-zendo Antropologia em pós-graduação. Agora, tirar de lá para vender o prédio à Petrobras, isso não é uma boa atitude. Já venderam quase o campus todo para a empresa.

Jornal da UFRJ: O senhor tem críticas sobre a Petrobras na Cidade Universitá-ria?Ricardo Kubrusly: Acho que nem bom-ba resolve isso. Nós devíamos botar a Petrobras para fora daqui. A Petrobras deixou de ser uma aliada de nossas pesquisas e passou a ser um patrão de nossos pensamentos. Essa hipertrofia da Petrobras é humilhante para os pro-fessores da UFRJ. Interfere nas linhas de pesquisa. Interfere na nossa vontade de ter uma universidade. Porque nós temos uma universidade atravessada por empresas que têm interesses que não são os da UFRJ. Os interesses da universidade não podem ser tão direta-mente influenciados pelas empresas que estão aqui.

Jornal da UFRJ: As relações entre a gra-duação e a pós-graduação podem ser me-lhoradas na UFRJ?Ricardo Kubrusly: Eu acho que não deveriam existir graduação e pós-gra-duação. Eu sou coordenador de uma pós-graduação e afirmo que essa que eu dirijo deveria estar integrada à gradua-ção e ser outra coisa. É mais uma “disci-plinarização”: o aluno de pós-graduação, o aluno de graduação, de doutorado, o professor pós-doc no exterior. Você cria uma hierarquização que existe apenas para perpetuar benesses.

21UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010

Discutir o futuro da UFRJ é um

desconforto

Roberto LeherO professor Roberto Leher, da Faculdade de Educação da UFRJ, é cáustico em suas críticas ao Reuni: “É um contrato de gestão” que exacerba a perda de autonomia da universidade. Suas baterias também se voltam contra o Plano Diretor UFRJ 2020, que, segundo ele, se sustenta na interdisciplinaridade pós-moderna, “que é um vale-tudo”. Roberto Leher acusa a existência de grupos de excelência que atuam movidos pelos interesses “particularistas” de empresas privadas. “Para esses, discutir o futuro da UFRJ é um desconforto.” O professor lança mão de uma sigla fictícia, a “Petroufrj”, para traduzir suas restrições às relações entre UFRJ e Petrobras.

Especial

Jornal da UFRJ: o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) comprome-te a autonomia da UFRJ?Roberto Leher: A autonomia da univer-sidade em geral e da UFRJ, em particular, nunca se materializou. A Constituição de 1988 representou um avanço importan-te ao definir que a universidade é uma instituição autônoma, sem remeter esse conceito a qualquer legislação infracons-titucional. Mas a correlação de forças na década de 1990 submeteu a universida-de ao Estado e, sobretudo, aos governos. O Reuni é a exacerbação dessa perda de autonomia. É um contrato de gestão na medida em que submete a liberação de re-cursos ao cumprimento de determinadas metas. Isso é a base do contrato de gestão do Bresser Pereira (ministro do governo FHC 1995-2002).

Jornal da UFRJ: Quais metas? Roberto Leher: Metas como taxa de conclusão de 90%. Algo que inexiste no mundo, mesmo em países com assistên-cia estudantil e condições de vida muitos melhores dos estudantes. Mas o pior é a correlação entre estudantes e professores. Nós passaríamos do patamar de 1 para 11, como existe atualmente, para o pata-mar de 1 para 18. Isso não quer dizer que cada professor tenha hoje 11 alunos. Isso é uma média na qual se leva em conside-ração vários fatores, com diversas variáveis em jogo. Mas, para você ter uma ideia, 1 para 18 hoje é a mesma taxa que existe nos colégios de Ensino Médio da rede pública estadual e nas piores instituições privadas.

Jornal da UFRJ: Qual seria o impacto des-sa medida?

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 22

Mas pensar o

futuro não é

somente pensar os

prédios, é pensar

o que a gente vai

fazer com eles.

Especial

Roberto Leher: O Reuni tem como pres-suposto uma mudança no parâmetro no trabalho docente. Ou seja, a universida-de pública passa a ter como balizador da relação professor/aluno a mesma taxa da universidade com “c”, da Estácio, da Gama Filho, da Uniban, das instituições com fins lucrativos. O resultado disso é aproximar a universidade brasileira de um modelo massificado que já está em curso na Eu-ropa neoliberal e em algumas instituições dos Estados Unidos. Esse modelo vai des-locar as poucas universidades públicas no Brasil – vale lembrar que 89% das institui-ções de Ensino Superior no Brasil são pri-vadas – para um modelo massificado, uma temeridade.

Jornal da UFRJ: No plano estratégico, quais as consequências?Roberto Leher: Estamos abrindo mão do conceito de que a universidade pública é uma instituição estratégica para o processo de Nação. É ela que pode estudar e anteci-par problemas com autonomia, protegida dos interesses mercantis.

Jornal da UFRJ: Ampliação de vagas e pre-juízo na qualidade do ensino é uma falsa questão?Roberto Leher: Qual a razão de não po-dermos ampliá-las mantendo um padrão de qualidade, de espaço para produção de conhecimento novo, engajado num pro-jeto de Nação democrática? Hoje o Brasil gasta 4% do Produto Interno Bruto (PIB) com educação pública, índice dramatica-mente baixo. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cul-tura (Unesco) recomenda no mínimo 7%. Desses 4%, a União entra com apenas 1% do PIB. Os outros 3% são bancados por es-tados e municípios. Da verba federal, 0,5% do PIB vai para o Ensino Superior. Mas a União fica com mais de 60% dos tributos. Ou seja, a União não tem feito um esforço educacional. É óbvio que os recursos das universidades estão estrangulados não por falta de dinheiro. Sabemos o quanto paga-mos de juros.

Jornal da UFRJ: Mas mesmo críticos do Reuni afirmam que nunca viram tanta ver-ba para a UFRJ nos últimos 30 anos como agora.Roberto Leher: Sim. É fato. Mas é preciso dizer que a verba aumentou em relação ao período de governo de Fernando Henri-que Cardoso, quando não havia nenhum recurso para investimento. Agora o gover-no libera recursos e parece que estamos vivendo um período de ouro da univer-sidade. A ordem de grandeza de recur-sos não autoriza dizer isso. O que é mais positivo nas contradições do Reuni é que o seu estágio inicial exigiu contratação de professores. Nós tivemos um crescimen-to relevante de professores na UFRJ, em

particular. Creio que nenhuma outra ins-tituição realizou tanto concurso quanto a UFRJ, o que mostra o peso dela no sistema federal.

Jornal da UFRJ: Existe a crítica de que UFRJ não se preparou para aproveitar me-lhor os recursos do Reuni.Roberto Leher: Por causa do sucateamen-to resultante da falta de recursos, as univer-sidades perderam a capacidade de projetar o futuro. Tanto é verdade que, no caso da UFRJ, os modestos recursos do Reuni não foram inteiramente aplicados. Você olha para o campus, excetuando a Petrobras, não há obras. A grande obra foi o Res-taurante Universitário, pra lá de modesto. De fato, o que nós estamos fazendo é criar vagas. Mas pensar o futuro não é somente pensar os prédios, é pensar o que a gente vai fazer com eles, o sentido da expansão da universidade. E temos um cenário pre-ocupante para o futuro. Vamos entrar no governo da Dilma Rousseff com constran-gimentos enormes. Nada garante que o dinheiro vai continuar vindo. No governo FHC houve expansão, mas faltaram recursos.

Jornal da UFRJ: Uma expansão de vagas? Como assim?Roberto Leher: Uma expansão enorme de vagas. É que os reito-res fizeram um pacto para expandir as vagas, mas a contrapartida de investimentos nunca veio. De 1995 a 2005 nós tivemos a ampliação de 65% no número de estu-dantes da graduação. Só que o acréscimo do número de professores não chegou a 20%. Agora nós vamos, com o Reuni, em cima do crescimento de 65% até 2005, para mais 60%, 65%, o que signi-fica um aumento de 120% a 140%, depen-dendo da instituição. Mas o orçamento, em relação a 1995, se corrigirmos, não terá mais do que 20%. Uma expansão não sus-tentável: 140% a mais de alunos com 20% a mais de recursos em 2011. Então estamos reduzindo drasticamente o custo/aluno.

Jornal da UFRJ: As cotas sociais são um avanço?Roberto Leher: As políticas de ações afir-mativas são absolutamente necessárias. Não existe universalismo numa socieda-de liberal burguesa. O universalismo do mérito não é real. É um falso universalis-mo. As crianças de classes populares têm escola com menor infraestrutura, menor tempo de aula. Há mecanismos sutis de segregação em que a questão de classe se imbrica com a questão de etnia. A minha divergência da política de cotas é que ela

abandonou a perspectiva do universalis-mo. Ela pode atender jovens pobres que conseguem concluir o Ensino Médio, sobreviventes. Criamos uma regra que vai democratizar aquela ponta. Mas e o restante? Os milhões de jovens que não concluem o Ensino Médio, a gente finge que não viu? A política de cotas não tem nenhum nexo com a Educação Básica e com mecanismos que permitam estru-turalmente assegurar que uma parte dos jovens das camadas populares aumente paulatinamente a sua formação no Ensino Médio e na Educação Superior.

Jornal da UFRJ: A universidade poderia ter algum papel nessa direção?Roberto Leher: Na universidade de Cha-pingo, no Sul do México, em vez de cotas, os professores da universidade passaram a atuar em algumas escolas que eles chamam de preparatórias, nas quais, em alguns casos, o estudante entra por sorteio. Quem entra

nessas escolas vai para a universidade sem vesti-bular. A vantagem disso, entre outras, é a estrutu-ração da Educação Bási-ca na região.

Jornal da UFRJ: Há hierarquização excessi-va na UFRJ?Roberto Leher: Pri-meiro criou-se um sistema de hierarquia entre professores, entre centros, entre institu-tos. Esses mecanismos

de hierarquia pressupõem que exista uma rota para a excelência acadêmica. Só que essa rota é arbitrária porque os grandes centros e os grandes pesquisadores que hoje estão no “Olímpo” não passaram por ela. A origem disso é o momento da expansão da pós-graduação no projeto de modernização conservadora na ditadu-ra civil-militar. As rotas de excelência são rotas tardias criadas por esses grupos na defesa de seus privilégios. Essa hierarquia deforma a universidade.

Jornal da UFRJ: Como assim?Roberto Leher: Esses grupos de excelên-cia, como antes, vivem dos editais. Só que os editais hoje não trazem a lógica do na-cional desenvolvimentismo que, de algu-ma forma, ainda que contraditória, apon-tava para a necessidade de um Estado que fosse forte e que produzisse conhecimento em áreas estratégicas. Hoje, os editais estão demandando para a universidade cada vez mais serviços. Não há a preocupação com a formação de cientistas. Tirando pouquíssimas áreas, a quase totalidade dos editais de Inovação Tecnológica é de inte-resse das empresas, e não da sociedade. E esses grupos de excelência dependem cada

vez mais da mediação da Lei de Inovação Tecnológica. Isso feito através de funda-ções privadas, em espaços não coletivos. Só que é de se indagar se muitos desses grupos ainda têm características universi-tárias. Daí alguns professores começarem a se perguntar: qual o sentido de dar aula. Qual o controle social sobre as fundações privadas? Quando se levantam esses pro-blemas, o debate é evitado. Para os nichos vinculados aos processos de Inovação Tec-nológica ou particularistas de determina-das empresas, discutir publicamente o fu-turo da UFRJ, o seu modelo de expansão, é um desconforto.

Jornal da UFRJ: O senhor tem críticas ao Plano Diretor UFRJ 2020?Roberto Leher: O Plano Diretor se susten-ta na interdisciplinaridade pós-moderna, que é um vale-tudo. Quer reunir Ciências Contábeis com Educação. Esse plano não tem um projeto estratégico que diga qual é o futuro das Ciências Sociais e Huma-nas na UFRJ. Qual é o nosso sonho aqui na Praia Vermelha? Nós poderíamos ter excelentes mestrados e doutorados inter-disciplinares. Hoje, quanta gente do Ser-viço Social, pensando a questão social, quer entender melhor a problemática da Educação, e vice-versa? O Plano Diretor foi se organizando mais por um impera-tivo pragmático. Quanto dinheiro tem? O que dá para transferir? Eu não quero que a Educação seja uma área técnica de serviço. Reivindico a Educação com uma dimensão da formação humana que esta-mos investigando. É a formação humana imbricada com as questões social, econô-mica, política, com o campo da Psicologia.

Jornal da UFRJ: A presença da Petrobras no campus ganhou uma dimensão que di-vide opiniões.Roberto Leher: É chocante. Pegaram o campus e cortaram ao meio. Nem mais contínuo é. Eu sou a favor que a UFRJ esteja engajada na tecnologia da pros-pecção de petróleo, no conhecimento da energia de hidrocarburos. Avalio que seja importante para o país. Mas eu pergunto: será que o papel da universidade, distin-tamente do da Petrobras, não seria fazer uma reflexão sobre a prospecção, sobre o uso dos hidrocarburos, mas pensando nos seus nexos com a questão socioambiental? Não seria isso que a universidade poderia fazer de original, de importância para o país? Será que o papel da universidade não seria questionar os modelos dos leilões das bacias de petróleo? Mas se a universidade está toda financiada pela Petrobras, se nós temos a “Petroufrj”, a UFRJ não tem auto-nomia de crítica.

Jornal da UFRJ: O que o senhor diz sobre os cursos pagos na UFRJ?Roberto Leher: Devem ser extintos!

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Marcos Dantas

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Os grandes conglomerados da mídia não mediram esforços para fabricar fatos e influir no roteiro político das eleições presidenciais de 2010. No papel de oposição declarada, chegaram às fronteiras do obscurantismo ao estimular preconceitos de ordem religiosa para tornar bem-sucedido o programa político que consideravam o mais conveniente aos seus interesses.Na avaliação de Marcos Dantas, professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, não é exatamente uma novidade histórica o alinhamento da mídia brasileira a projetos conservadores que, em algumas ocasiões, desaguaram em golpes de Estado, como ocorreu em 1964. “O que diferencia o momento atual é que não dá mais para contar com um golpe militar e, por isso, são necessárias outras estratégias de convencimento”, salienta o especialista em Economia Política da Comunicação e doutor em Engenharia de Produção pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. Estudioso das novas tecnologias digitais, Marcos Dantas acredita que as mídias sociais vêm rompendo, em muitos casos, a pauta de debates imposta pelos meios tradicionais. “Na Internet, não se pode controlar a produção de conteúdo. O conglomerado que controla o setor de comunicação no Brasil tem consciência de que as novas mídias são uma ameaça aos seus negócios”, avalia o professor.

Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, Dantas defende uma “re-regulamentação” das comunicações voltada para a convergência das mídias e o fortalecimento da produção de conteúdo nacional. No entanto, adverte que a efetiva democratização dos meios de comunicação é muito difícil em uma sociedade movida pelo poder do mercado.

Entrevista

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A mídia se partidarizou

Jornal da UFRJ: Nesta última eleição presidencial, como o senhor avalia o papel da mídia tradicional? A mídia, de fato, se partidarizou?

Marcos Dantas: Podemos afirmar que a mídia se partidarizou por uma razão muito simples. A presidente da Asso-ciação Nacional de Jornais, Edith Frias, do grupo Folha, deu uma declaração pública dizendo que quando a oposição é débil a mídia deve assumir esse papel. É algo oficial, não uma análise feita de fora. A mídia assumiu oficialmente uma posição partidária e não sou eu que vou contradizê-la.

Jornal da UFRJ: Pode-se dizer que é algo que não acontece com tanta intensidade desde as eleições de 1989?

Marcos Dantas: Não sei. Mas esse com-portamento é recorrente. Muito pro-vavelmente os mais velhos lembrarão a crítica implacável dos meios de comuni-cação ao segundo mandato de Getúlio Vargas. A derrocada do Jango foi outro momento de união da mídia em torno de forças retrógradas. No golpe militar, os editoriais e as reportagens da maioria abso-luta dos grandes jornais foram todos am-plamente favoráveis aos militares. Do ponto de vista histórico, essa unanimidade da im-prensa em torno de determinadas posições políticas é tradicional e aconteceu também na eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989. Agora, a história se repetiu nesta elei-ção presidencial de 2010. É uma trajetória que mostra muita coesão da mídia em mo-mentos cruciais de nossa história.

Jornal da UFRJ: Seria exagero identificar um comportamento golpista da mídia, como alguns chegaram a apontar?

Marcos Dantas: Não diria que é exa-gero se levarmos em conta o que acon-teceu, por exemplo, na Venezuela. Sem dúvida alguma, houve uma tentativa de derrubada do governo constitucional de Chavez, em 2002, com a ajuda decisiva da televisão e dos jornais. E quase conse-guiram seu intento. Também há o exem-plo do apoio da mídia brasileira ao golpe de 1964. O que diferencia os momentos é que, agora, não dá mais para contar com um golpe militar. Por isso, são ne-cessárias outras estratégias de conven-cimento e de construção de consensos, que levem a população a dar consequ-ência a um projeto golpista através, por exemplo, de um impeachment. Aparen-temente, houve sim um esforço de fa-bricação de consenso para levar a uma mudança do rumo político e histórico do momento.

Jornal da UFRJ: A chamada grande im-prensa, no processo eleitoral, deu curso a debates retrógrados que vinculavam temas como o aborto, a opção sexual e visões religiosas. Instalou-se no país qua-se um clima de inquisição e perseguição religiosa. Como o senhor avalia isso?

Marcos Dantas: Olha, estamos muito perto dos acontecimentos para poder avaliar com segurança esses aspectos. Na minha condição de acadêmico, é preciso certa prudência. Quando digo que há um processo de fabricação de consensos por parte dos meios de co-municação, é porque existem estudos que comprovam isso. O momento que vivemos merece investigação mais aprofundada para que possamos com-preendê-lo melhor. O que posso dizer é que essas questões que você levanta me causam estupefação.

Jornal da UFRJ: Por quê?

Marcos Dantas: Porque hoje existe, ou deveria existir, um consenso em torno da defesa de um Estado laico e republi-cano. Um consenso em torno da defesa de um projeto de raízes iluministas. E os dois candidatos que participaram do pleito presidencial no segundo turno são pessoas que possuem essa raiz, mesmo com suas diferenças. Então é muito di-fícil entender que, de repente, os meios de comunicação venham a suscitar um debate fundamentalista no Brasil. Um debate obscurantista e absolutamente reacionário. Isso deveria ter sido alvo de combate por parte de todos os can-didatos. Eles não deveriam aceitar, em hipótese alguma, a interferência do obs-curantismo religioso nas discussões po-líticas, que significa abrir espaço para a construção no Brasil de uma República teocrática. Não vamos imaginar que esse fenômeno seja exclusivamente mu-çulmano. Nada impede que seja cristão também. E hoje existe uma parte grande da nossa população que está sendo arre-banhada por um projeto teocrático. Esse é outro fenômeno que merece discussão. Eu não consigo encontrar uma explica-ção de como se suscitou tal debate numa campanha presidencial, a não ser por uma espécie de golpismo superficial.

Jornal da UFRJ: Foi depois da realização da I Conferência Nacional de Comunica-ção (Confecom), em abril de 2009, que a grande mídia intensificou a estratégia de oposição ao governo com a intenção de resguardar os próprios interesses?

Marcos Dantas: A Confecom pode ter contribuído, mas penso que a mídia está expressando questões mais profundas

relacionadas à sociedade brasileira. Os seus interesses se articulam com um conjunto amplo de outros interesses, na-cionais e internacionais. O que estava em jogo nessas últimas eleições era o novo papel internacional do Brasil. Um papel que pode ser reforçado ou não, depen-dendo da orientação que se dê ao pré-sal, por exemplo, que criou uma nova dimensão geopolítica para o país. O que estava em jogo era um projeto de cons-trução de um espaço sul-americano para os sul-americanos. Além disso, houve a incorporação ao consumo de cerca de 30 milhões de brasileiros. É preciso, claro, que também tenham acesso à educa-ção, à cultura. Trata-se de um processo que não pode parar. Existem mudanças em curso e mais quatro ou oito anos do mesmo projeto podem torná-las irre-versíveis. Os meios de comunicação, ar-ticulados com outros interesses, tentam cumprir um papel de impedir que esse projeto prossiga.

Jornal da UFRJ: Nesse processo, qual a sua avaliação do fenômeno dos novos meios de comunicação, especialmente das redes sociais na Internet?

Marcos Dantas: Essa questão requer responsabilidade acadêmica para ten-tarmos compreender o fenômeno. Ain-da não temos muitos elementos. Há 15 anos, a televisão aberta tinha quase o monopólio da audiência, no mundo e no Brasil. Nesses últimos anos, esse mo-nopólio foi quebrado praticamente no mundo inteiro pela penetração da TV por assinatura e da Internet. Mas no Bra-sil isso ainda não aconteceu. Hoje, nos principais países capitalistas, a popula-ção tem à sua disposição centenas de canais de televisão. Assim, nenhum país

Coryntho Baldez

Entrevista

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Novembro/ Dezembro 2010

pode dizer que tem 50%, 40% ou 30% de audiência.

Jornal da UFRJ: E isso ainda acontece no Brasil?

Marcos Dantas: Sim, a Globo não tem mais uma audiência de 60% porque a Re-cord emparelhou com ela em alguns ho-rários, mas ainda detém índices médios de 30% a 40%. Mas em qualquer lugar do mundo hoje, grandes redes, mesmo a BBC inglesa, têm cerca de 10% de audi-ência e ficam felizes com esse percentual. E existem centenas de canais com 1% ou 2%, que mostram uma diversidade de oferta e segmentação do mercado que são imensas. A reconstrução da estraté-gia de audiência mudou completamente a maneira de fazer negócios em vários países.

Jornal da UFRJ: Mas as chamadas mí-dias sociais conseguem confrontar a mí-dia tradicional em termos de informação, escapando à lógica de produção monopo-lizada da notícia?

Marcos Dantas: Sim, conseguem. Na In-ternet não se pode controlar a produção de conteúdo. De repente, um cara lá na Austrália, como aconteceu recentemen-te, coloca na rede documentos secretos sobre ações de militares norte-ameri-canos no Afeganistão e muda a pauta. Um dos elementos mais importantes da estratégia de produção de consenso é exatamente o controle do agendamento. Quando se tem um conjunto pequeno de corporações controlando a informa-ção, esse grupo diz o que pode ou não ser notícia. Mas quando se tem uma diversi-dade grande de produtores de informa-ção essa pauta controlada começa a ser quebrada. O conglomerado que controla o setor de comunicação no Brasil há cer-ca de 50 anos tem perfeita consciência de que o fenômeno das novas mídias é uma ameaça aos seus negócios.

Jornal da UFRJ: E como esses grupos li-gados à mídia tradicional estão se prepa-rando para enfrentar essa mudança?

Marcos Dantas: Bem, eles sabem que a transição vem. E raciocinam da mesma maneira que D. João VI ao aconselhar o filho D. Pedro a respeito da Independên-cia do Brasil em relação a Portugal. Se ela é inevitável, “antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para alguns desses aven-tureiros”. Ou seja, eles estão tentando con-trolar a transição. Com o atual processo de mudança política, econômica e social no Brasil, inclusive com a realização da Confe-com, temem perder o controle do ritmo e do rumo dessa transição que acontece em seu próprio negócio. Daí também a feroci-dade com que tentam barrar tal processo.

Jornal da UFRJ: E daí também a dificul-dade de regular o oligopólio no setor de co-municações, como acontece em qualquer país do mundo?

Marcos Dantas: Temos um dispositivo constitucional de 1988 que nunca foi aplicado. Esse é o exemplo mais óbvio de como o sistema consegue controlar o ritmo da mudança e tem o poder até mesmo de barrá-la. Mas é possível que agora se consiga abrir o debate porque existem novos atores envolvidos, como ficou claro na Confecom. A sociedade está querendo discutir e influir nos ru-mos dessa discussão.

Jornal da UFRJ: No Rio de Janeiro, um mesmo grupo empresarial controla a TV aberta, as tevês pagas e a rádio AM de maior audiência, além dos dois jornais mais lidos. Há exemplo disso no mundo?

Marcos Dantas: Não. Mas a questão do oligopólio tem que ser vista de modo mais complexo. É um conceito econô-mico que indica que há um pequeno grupo de empresas de determinado setor controlando o mer-cado. Por esse estrito viés econômico, seria possível dizer que não há monopólio no Brasil. Existem centenas de emisso-ras de rádio, dezenas de jornais. Ao todo no Brasil existem, se não me engano, 470 emissoras de televi-são pertencentes a grupos empresariais diferentes. Mas não se pode olhar a ques-tão pelo conceito estritamente econômi-co, não é um problema para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão que fiscaliza casos de abu-so de poder econômico. Devemos ana-lisar como funciona o setor das comu-nicações, do ponto de vista econômico, mas também entender os seus elos com a política e com a cultura.

Jornal da UFRJ: Há modelo no mundo parecido com o brasileiro?

Marcos Dantas: O modelo norte-ameri-cano é muito parecido com o brasileiro. Mas nos Estados Unidos existiam, não sei se ainda existem, mais de mil emis-soras de televisão aberta espalhadas pelo país. E havia uma legislação que obri-gava que 25% da programação dessas emissoras tivessem origem local. O res-tante da programação era da cabeça de rede. A estrutura de rede nacional é bem parecida com a que existe no Brasil

Jornal da UFRJ: Essa obrigatoriedade de programação local é uma das demandas da Confecom?

Marcos Dantas: É, mas quando falo nos Estados Unidos lembro, de imediato, de cerca de seis ou sete polos econômicos distribuídos pelo país, como Nova Ior-que, Miami, Seattle, Houston, São Fran-

cisco, Los Angeles, Chicago, Detroit. E quando falo de Brasil, lembro de São Paulo. Então, quando defendo a produ-ção local sei que é preciso também um dinamismo econômico local para sus-tentá-la. Portanto, a questão do oligopó-lio da mídia vai além da lei e faz parte de um processo amplo de mudança.

Jornal da UFRJ: E é possível vislumbrar alguma mudança nessa direção?

Marcos Dantas: Recentemente parti-cipei de um seminário no Nordeste e fiquei admirado com o que ouvi. Está havendo hoje um crescente dinamis-mo econômico do interior e já existem cidades médias que são relativamente autossustentáveis do ponto de vista eco-nômico.

Jornal da UFRJ: Isso já se reflete na pro-dução de cultura?

Marcos Dantas: Eu não ousaria dizer que já se reflete, mas há uma clara expec-tativa de que esse processo reflita no plano da cultura. Se tivermos políticas públicas adequadas, é possível fazer com que o dinamismo econômico também estimule a produção local. Nesse caso, um dispositivo regulador que determine que

a programação tenha 25% de produção local vai certamente acelerar esse proces-so.

Jornal da UFRJ: Por que é tão difícil no Brasil aprovar uma lei geral que regule o setor de comunicações?

Marcos Dantas: É um processo. No Bra-sil, existe uma estrutura que se organi-zou, há cerca de 50 anos, com o controle de determinadas corporações, e elas não vão querer “largar o osso”. Como disse, estão brigando para controlar o ritmo e a direção da mudança. Um exemplo de que isso já vem acontecendo é a “Lei do Cabo”. Houve um momento em que, es-pontaneamente, começaram a aparecer operadoras de TV a cabo. Quando isso aconteceu, a produção de conteúdo era um monopólio das emissoras de TV, inclusive regulado pela própria Cons-tituição. Criou-se então um vazio legal. Encaminhou-se um projeto de lei, o tempo inteiro instrumentalizado pela Rede Globo, que gerou um mercado de televisão a cabo sob o seu controle. Foi uma lei feita sob medida. E alcançava apenas o cabo, deixando de fora a outra modalidade de TV por assinatura, por meio de satélite. Ali, a Globo fez uma negociação com o Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações, dando algumas migalhas, como um ca-

nal comunitário, e aprovou uma lei que lhe permitiu criar a Net e dominar 60% do mercado. Com isso, o mercado parou de crescer no Brasil. Estacionou.

Jornal da UFRJ: Parou de crescer por causa da renda média dos brasileiros, já que os serviços monopolizados pela Net são caros?

Marcos Dantas: Sim, pela renda e tam-bém pelo tipo de conteúdo, que não inte-ressava ao público. Enquanto isso, a Glo-bo foi se preparando para a transição, construindo seus próprios canais para concorrer no mercado do cabo, como os telecines, o GNT, entre outros. Ela come-çou a testar esse tipo de mercado e a se transformar em uma grande produtora de conteúdo. E é exatamente o que ela é hoje. Diria até que a Rede Globo terá um grande futuro se assumir esse perfil para disputar, por exemplo, com os grupos Warner e Fox. Mas aí entra a cultura de emissora da TV Globo. Ela se pergunta: o que sei fazer? E responde: produzir e emitir. E não admite que lhe digam que, agora, não pode mais possuir um canal de VHF.

Jornal da UFRJ: A implantação do Con-selho Nacional de Comunicação, que é uma das resoluções da Confecom, seria um instrumento importante para demo-cratizar a mídia no Brasil?

Marcos Dantas: Vou tentar discutir melhor essa questão da democratização da mídia. Digo com clareza o seguinte: em uma sociedade de mercado, é muito difícil democratizar os meios de comu-nicação. Não vamos confundir mercado com democracia. Para alcançarmos a democratização da mídia é preciso de-mocratizar a sociedade. Posso até afir-mar, dialeticamente, que para a demo-cratização da sociedade um dos aspectos importantes é democratizar a mídia. São como dois pedais de uma bicicleta. Mas não vejo como a criação de um Conse-lho de Comunicação resolverá isso sozi-nha. É necessário um conjunto amplo de mecanismos para democratizar a socie-dade e, com base nessa perspectiva, in-troduzir uma questão importante nesta discussão.

Jornal da UFRJ: E qual é?

Marcos Dantas: É a própria visão dos meios de comunicação, que é funcio-nalista. Por essa visão, cuja referência mais distante é o liberalismo na acepção mais legítima, os meios de comunica-ção teriam uma função ligada à cultu-ra, à democracia, à informação ampla. Acontece que, numa sociedade capita-lista moderna, os meios de comunicação são empresas capitalistas voltadas para o lucro. Se quisermos adotar uma visão funcionalista, teríamos que dizer que a função deles é dar lucro e ponto final. O seu objetivo não é a democracia. São em-presas que produzem para lucrar e têm

“Numa sociedade

capitalista

moderna, os meios

de comunicação

são empresas

capitalistas

voltadas para o

lucro.”

Entrevista

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no capitalismo uma dimensão cada vez mais importante. O conhecido econo-mista John Kenneth Galbraith disse que é impossível pensar a sociedade indus-trial sem a televisão. Lamentavelmente, boa parte dos economistas, inclusive os marxistas, não atentou para todas as consequências dessa conclusão. De fato, não se pode pensar o capitalismo con-temporâneo sem compreender o lugar que os meios de comunicação ocupam nele, que é o de produção de consumo. Eles não estão nem aí para discutir ideias, para a democracia ou para a liberdade de expressão. Querem produzir consumo e é isso o que fazem.

Jornal da UFRJ: O negócio é mover a roda?

Marcos Dantas: Exatamente. Claro, as pessoas precisam de mais crédito e mais renda para consumirem. Mas apenas isso não é suficiente. É necessário criar uma mentalidade voltada para o consu-mo. Não apenas pela publicidade, que tem um foco direto, mas pelas ideias e valores que chegam às pessoas que as-sistem a uma novela, a um programa de auditório ou a um jogo de futebol. Todo esse ambiente está criando uma visão que associa a vida ao consumo. Quan-do a renda cresce, a primeira coisa que a pessoa faz, impulsivamente, é comprar. Por isso, numa economia de mercado, o máximo possível é expandir, criar e di-versificar os canais competitivos de pro-dução de consumo. A remodelação capi-talista dos últimos 20 anos, apoiada pelas novas tecnologias, gerou tal efeito nos Estados Unidos, Europa e Japão. Os ca-nais competitivos foram multiplicados, mas isso não é democratizar os meios de comunicação. É apenas ampliar a faixa de oferta de consumo. Quem gosta de futebol sintoniza em um canal específi-co e não precisa mais ficar esperando o domingo à tarde para ver uma partida. Da mesma forma, não é mais preciso esperar o “Corujão” para ver um filme. Isso significa a diversificação de ofertas e a criação de outros valores sempre volta-dos para a produção de consumo.

Jornal da UFRJ: Que propostas da Con-fecom o senhor citaria como as mais im-portantes?

Marcos Dantas: Bom, não quero brigar com meus amigos. É claro que, se tiver-mos que criar um conselho, vamos fazê-lo, até porque ele pode ser um espaço de debate interessante. Mas eu, contrarian-do boa parte de meus colegas, não acho a proposta do conselho a mais importante. As propostas mais importantes produzi-das na Confecom são aquelas que focam numa re-regulamentação das comuni-cações brasileiras voltada para a conver-gência e para a produção de conteúdo. São aquelas que identificam a necessi-dade de se ter uma regulamentação que considere o conteúdo em seu conjunto, indiferentemente da plataforma tecno-

lógica. Ou seja, não importa se assisto à televisão na telinha, na telona ou no computador. Em relação à plataforma, interessa apenas a possibilidade de se ter a oferta mais diversificada possível. Ago-ra, do ponto de vista do conteúdo, é pre-ciso uma política pública que fortaleça, primeiramente, a identidade nacional, que passa pelas identidades regionais e culturais existentes no país. Em segundo lugar, essa política deverá garantir espaço para a produção de conteúdo não comer-cial, ou seja, de natu-reza exclusivamente cultural, educacional, lúdica. As propostas da Confecom que fortalecem a ideia de produção de conte-údo nacional são, na minha avaliação, as mais importantes.

Jornal da UFRJ: Decorrido mais de um ano do término da Confecom, o que aconteceu com as pro-postas aprovadas e como anda a mobilização em torno delas? Pode haver avanço no próximo governo?

Marcos Dantas: O atual governo criou um grupo de trabalho e prometeu deixar pronto um projeto de regulamentação para o próximo ano. No próprio governo de Fernando Henrique Cardoso havia uma proposta elaborada de regulamen-tação para os meios de comunicação eletrônica, deixando de fora as chama-das telecomunicações, porque já existia a Lei Geral das Telecomunicações (LGT). É muito provável que, agora, depois de oito anos e todas essas mudanças, tenha-mos um projeto de lei que trate das co-municações em um mesmo pacote, se-

parando o que é infraestrutura e o que é conteúdo. É a proposta que defendo. Um modelo muito interessante é o do Proje-to de Lei 29, já aprovado na Câmara e que está tramitando no Senado.

Jornal da UFRJ: Qual a novidade desse projeto?

Marcos Dantas: Ele desagrega a ca-deia produtiva, ou seja, identifica quem

produz conteúdo, quem programa e quem transporta. A partir daí, para cada um desses atores, o projeto estabelece as regras adequadas. A proposta nasceu de um movimento feito pelas teles para comprar pequenas operadoras de TV a cabo. Isso gerou uma reação da Associação Brasileira de Televi-são por Assinatura (ABTA), dominada pelas organizações Globo, para impedir

a iniciativa das teles. A alegação era a de que, pela LGT, as teles não poderiam ser proprietárias de operadoras de TV a cabo. Começa então uma guerra de pro-jetos de lei no Congresso, com posições opostas.

Jornal da UFRJ: E o que aconteceu de-pois?

Marcos Dantas: Um desses projetos aca-bou nas mãos do deputado Jorge Bittar (PT/RJ), que foi o seu relator na Comis-são de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal. Ele teve a sensibilidade para reunir projetos capengas e propor uma grande regulamentação de TV por assi-

natura. Primeiro, trouxe para o PL 29 a TV por satélite, que não está na “Lei do Cabo”, e a chamada MMDS, outra tecno-logia, mas que está em extinção. Isso sig-nifica criar um serviço de acesso condi-cionado, não importando a plataforma. E depois, propôs a discussão a respeito do conteúdo, até porque TV por assinatura, hoje, no Brasil, é sinônimo de programa-ção estrangeira. Já na televisão aberta, por uma política de pressão da ditadura militar, existe forte presença de conteúdo nacional. E a população se habituou a ver a novela brasileira e o Jornalismo brasi-leiro. Pode-se achar bom ou ruim, mas a população se acostumou com o jeito bra-sileiro de fazer televisão. Então, começa-mos uma briga para que se colocasse um forte percentual de conteúdo nacional na TV por assinatura. Apesar dos lobbies e de alguns recuos, o projeto manteve a ideia central de que qualquer pacote de TV por assinatura tem que ter 1/3 de ca-nais brasileiros e pelo menos três horas e meia diárias de programação nacional qualificada.

Jornal da UFRJ: Explique melhor essa ideia.

Marcos Dantas: Fomos buscar na le-gislação europeia o conceito de espaço qualificado, que é definido por exclusão. Ou seja, programação qualificada é o que não é jogo de futebol, programa de audi-tório, noticiário. Por exclusão, sobram os documentários, filmes, seriados, enfim, esse tipo de programação. É um avanço e há uma possibilidade de aprovar esse projeto antes do fim do ano.

Jornal da UFRJ: Qual a sua opinião acer-ca do papel das escolas de Comunicação, atualmente?

Marcos Dantas: Não se pode deixar de dar ao jovem a formação necessária para que ele seja um bom profissional, mas acho que o papel de qualquer universida-de é construir consciência crítica. E está cada vez mais difícil. Quando Karl Marx escreveu naquele velho manifesto que o capitalismo penetra em tudo, ele não imaginava a que níveis isso chegaria na sociedade atual. As pessoas com maior visão crítica optam, normalmente, pela carreira acadêmica. E aí há o risco de se ter uma produção acadêmica crítica, que fica fazendo discurso contra os meios, e a realidade do mercado é outra. É algo que não se sustenta porque, pela ordem natural das coisas, as novas gerações co-meçarão a produzir na academia tam-bém para o mercado. Já existe, por exem-plo, a Globo Universidade. Em outros setores da Ciência, como a Biologia, já há uma forte imbricação entre universidade e empresa. No campo das Ciências Hu-manas e Sociais, existe uma herança crí-tica, mas o fato é que a universidade não está fora da sociedade. Fica a pergunta: até que ponto essa herança vai resistir, a não ser que se comece a reconstruí-la na própria sociedade?

“Não se pode

pensar o

capitalismo

contemporâneo

sem compreender

o lugar que

os meios de

comunicação

ocupam nele.”

Entrevista

Angelo Agostini

27UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010

Jornalista, ilustrador, artista, chargista. Esse foi Angelo Agostini, nascido em Ver-celli, norte da Itália, que escolheu, em 1859, a cidade do Rio de Janeiro para vi-ver. Adorado e odiado por muitos, Agostini é reconhecido como o pioneiro das

histórias em quadrinhos no Brasil, país ao qual chegou e onde encontrou o Segundo Reinado, um imperador como D. Pedro II, a Guerra do Paraguai, o trabalho escravo e a proclamação da República.

Ele é considerado o primeiro a alinhar a charge com um projeto consistente de intervenção no cotidiano político e na sociedade. Com humor irreverente, seus traços produziam sátiras políticas e duras críticas ao sistema vigente na época. Era o começo da imprensa humorística no país, a história sendo contada atra-vés das imagens, das charges, das ilustrações e das histórias em quadrinhos.

Para Antonio Luiz Cagnin, doutor em Semiologia pela Es-cola de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), instituição na qual lecio- na, e um dos mais antigos estudiosos de Angelo Agos-tini, o artista era mais do que um caricaturista, era um grande contador de his-tórias – em quadrinhos, cla-ro. “Tudo ele transformava em quadrinhos, até as cartas. Se engajou no desenho político e nunca mais parou”, analisa o semiólogo.

Revistas: espaço e temas recorrentesE o espaço utilizado pelo artista eram as revistas

ilustradas, muito comuns naquela época. Em São Paulo, Diabo Coxo foi o primeiro periódico da cidade a dar espaço para charges, caricaturas e imagens. Já no Rio de Janeiro as revistas sur-giam com mais abundância, e uma das mais

conhecidas era a Revista Ilustrada, criada pelo próprio Agostini. Ela circulou durante

os anos de 1876 a 1898.A proposta era produzir uma pu-

blicação com tiragem semanal com linguagem satíri-ca, política, abolicionista e republicana. Para Antonio Luiz Cagnin, a Revista Ilustrada ajudou a construir o pensamento crítico de muitas pessoas naquela época: “Creio que a opinião pública da época era formada por Agostini e sua revista. Não havia rádio, televisão e nem cinema. Somente a Ilustrada”.

Guerra do Paraguai, escravos, relação entre Estado e Igreja foram alguns dos as-suntos trabalhados por Agostini. Isso sem falar de D. Pedro II, um de seus personagens preferidos.

Muitas foram as charges ou caricaturas produzidas pelo artista. Até mesmo a capa da Revista Ilustrada deu espaço para uma ilustração em que o artista mostra D.

Pedro II dormindo sentado. “Ele fazia oposição à Guerra do Paraguai, guerra esta que não aceitava. Em São Paulo ele documentou a briga entre os tropei-ros e o surgimento da ferrovia, por exemplo. Agostini retratava a política, já que não existia documentação do que estava acontecendo na cidade. Mas ele

fazia isso sempre com a sua interpretação pessoal”, analisa Cagnin.

Disputa pelo primeiro lugarQual foi a primeira história em quadrinhos no mundo? Essa é uma per-

gunta polêmica. Para muitos especialistas, quase a unanimidade, a primeira HQ é a Yellow Kid, criada pelo norte-americano Richard Outcault, em 1895.

As tiras do menino amarelo eram apre-sentadas nos jornais de Nova Iorque

e mostravam um personagem fixo, c o m ação fragmentada e balõezinhos

de texto.Contudo, há uma corrente que coloca Angelo

Agostini no rol dos pioneiros da arte em quadri-nhos, apesar de não usar o balão e a onomatopeia –

figura de linguagem muito utilizada no universo das HQ. E há quem diga até ser essa diferença justamente o que faz dele o pioneiro. “Sempre ouvi falar que eram os norte-americanos, com o Yellow Kid. Mas depois eu vim a saber que essa não era a primeira, uma vez que ela não era considerada história em quadrinhos, pois havia a interferência da palavra. Foi quando encontrei Angelo Agostini e percebi que essas, sim, eram as verdadeiras HQ – nas quais a história se desenvolve na imagem, e não na palavra”, acredita Cagnin, referindo-se às histórias sobre as experiências de um caipira perdido na cidade grande, As Aventuras de Nhô-Quim, lança-

das em 1869 e publicadas na revista Vida Fluminense.Para Octávio Aragão, professor da Escola de Comunicação

(ECO) da UFRJ, não importa se ele foi primeiro ou não. O impor-tante é a presença que ele teve na política do país: “Ele foi uma pes-

soa plural e marcante. Sem dúvida, foi ele quem fez, naquela época, charge, ilustração e caricaturas por mais tempo”.

Referências e influênciasA importância e a relevância de Angelo Agostini se refletem

também no quanto ele influenciou outros artistas. Até mesmo tempos depois da sua morte.

Monteiro Lobato, por exemplo, chegou a comparar a impor-tância da obra do artista com a da documentação histórica dos trabalhos de Debret e Rugendas. Para Lobato, Angelo Agos-

tini era como o construtor da imagem brasileira. Octávio Aragão vai além: “Avalio que Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato, foi claramente influenciado pelo uni-

verso do Nhô-Quim. E o reflexo da obra de Agostini vai muito mais longe, chegando até Mazzaropi, que conquistou fama interpretando o personagem Jeca Tatu”.

Para Aragão, “o humor que a turma do Casseta e Planeta, por exemplo, faz é também influenciado por Agostini. Exemplo disso são as ‘Organizações Tabajara’. O Agostini também fazia isso, mas de outra maneira: ‘Seu escravo é fujão, quer manter ele perto de você? Compre as nossas algemas especiais para agarrar seu escravo. Nunca mais ele sairá de perto de você ’. Isso não seria uma algema Tabajara? De onde vem isso? Não sei se é uma questão junguiana. Pode ser uma piada tão boa que você esquece quem contou primeiro”, acredita o professor da ECO.

Caipora e Nhô-Quim – e suas aventuras – são alguns dos famosos personagens que ganharam vida através das mãos e dos traços de Angelo Agostini.

Rafaela Pereira

Cultura

Angelo Agostini

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 28 Saúde

Gustavo não fala e não anda. Não distingue co-res ou odores. Também

não se alimenta sozinho, tampouco é capaz de reconhecer seus familia-res. Gustavo tem 60 anos. Há 10, começou a desenvolver Alzheimer, doença degenerativa caracterizada pela atrofia cerebral.

Assim como ele, cerca de 35 mi-lhões de pessoas em todo o mundo sofrem desse mal, que, em sua fase inicial, compromete a memória do indivíduo, tornando-o incapaz de realizar mesmo a mais simples das tarefas. Casos como o de Gustavo intrigam a comunidade médica e levam pesquisadores a se questio-nar: como alguém pode esquecer

Aline Durães

uma vida inteira? Para a maior par-te deles, a compreensão dos meca-nismos do esquecimento envolve o entendimento dos processos relati-vos à memória.

Dentro do funcionamento cere-bral, a memória desempenha papel crucial. Ela resgata fatos e experi-ências passadas que visam a pre-servar a integridade do corpo. “Lu-tar pela sobrevivência é a função principal do cérebro. Todas as suas habilidades e sentidos são organi-zados no sentido de manter o or-ganismo vivo. A memória tem uma função fundamental nesse proces-so de proteção. Diante de qualquer ameaça à vida, o cérebro dispara mecanismos de defesa. Esses meca-

nismos estão intimamente ligados a vivências anteriores”, explica José Mauro Braz de Lima, neurologista e professor, diretor do Hospital-Es-cola São Francisco de Assis (Hesfa) da UFRJ.

A memória é uma capacidade cognitiva complexa e ainda pouco conhecida. Cada vertente da Ciên-cia a define e classifica de manei-ra própria. Para a Neurologia, por exemplo, ela pode ser de dois tipos: recente ou antiga. “A memória an-tiga é a remanescente nos pacientes que ingressam na senilidade e nos portadores de Alzheimer. Ela tem muito mais a ver com os fatos que ameaçaram a vida do que com epi-sódios bonitos e saudáveis. Já a re-

cente é aquela que, por não ter sido bem constituída nesses indivíduos, não se consolida. Eles deixam de registrar os fatos. Se não registram, consequentemente, não lembram”, afirma o médico.

Já a Psicologia qualifica essa ca-pacidade como implícita ou explí-cita. Segundo Paula Rui Ventura, professora do Instituto de Psicolo-gia (IP) da UFRJ, a primeira é qua-se automática. A segunda, entre-tanto, exige esforço voluntário para ser evocada. “Tocar instrumentos, andar de bicicleta, dirigir e digitar são alguns exemplos de memória implícita. Já a memória explícita pode ser dividida em memória de trabalho e memória de longa du-

29UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 Saúde

ração. A memória de trabalho é o quadro-negro da mente. É onde ar-mazenamos a informação por cur-to período até que ela seja esqueci-da ou transferida para a memória de longo prazo. Esta, por sua vez, pode ser dividida em memória se-mântica e episódica. A semântica refere-se ao nosso conhecimento de mundo; das regras gramaticais e do vocabulário, por exemplo. A memória episódica refere-se aos eventos armazenados com contex-to espaço-temporal específico. Por exemplo, no momento em que re-cebemos a notícia de que havíamos passado no vestibular, em geral nos lembramos onde estávamos, em que dia aconteceu e até que roupa estávamos usando”, elucida Paula.

Lembrar versus EsquecerEsquecer o nome de um grande

amigo de infância. Lembrar deta-lhes do término doloroso de um relacionamento. Eventos como es-ses são comuns e geram ainda mais curiosidade acerca do funciona-mento da memória. Que fatores estão por trás da seleção das infor-mações que serão armazenadas em nossas mentes?

Para José Mauro, o ser humano tende a guardar melhor as experi-ências negativas: “As vivências do-lorosas são mais marcantes porque serão utilizadas em novas situa-ções. Se você apaga o que lhe acon-teceu de ruim, pode voltar a agir para que aquela experiência se re-pita. Mas existem outras dinâmicas relacionadas à emoção que estão envolvidas no processo de esquecer e lembrar. São elas que fornecem a cada cérebro a característica de in-divíduo. Cada cérebro é um, cada pessoa é única, e o que acontece com uma pode não acontecer com outra, embora os processos men-tais sejam semelhantes”, esclarece o neurocientista.

Para Paula Ventura, o grau de importância do ponto de vista emocional será determinante no processo de seleção. “Situações que tenham conteúdo emocional mais forte tendem a ser mais facilmente armazenadas”, afirma a psicóloga.

Inimigos da memóriaO tempo é o maior inimigo da

memória. Isso porque é natural que, com o passar dos anos, o indivíduo comece a desenvolver dificuldades em reter novas informações. Com o envelhecimento, os neurônios morrem e o cérebro se atrofia.

O que nem todos sabem, entre-tanto, é que algumas substâncias podem produzir efeitos semelhan-tes aos da senilidade. É o caso do álcool, por exemplo. Ele é uma das maiores causas de distúrbios cog-nitivos do cérebro. Perde somente para a velhice, mas ganha do Mal de Alzheimer, de acidentes vascu-lares cerebrais (AVC) e de trauma-tismos cranianos. O uso contínuo e abusivo de bebidas alcoólicas, bem como o de drogas sintéticas, provoca, entre outras coisas, des-povoamento neuronal progressivo e arteriosclerose (espessamento e endurecimento da parede arterial).

As drogas medicamentosas, como ansiolíticos e antidepressi-vos, também costumam ser respon-sáveis por problemas de memória, mas, ao contrário do álcool, não acarretam danos irreversíveis. “Re-médios podem prejudicar o desem-penho cerebral, pois, enquanto são usados, impedem o indivíduo de registrar adequadamente as infor-mações. O álcool e as drogas não. Eles atuam diretamente no cérebro e afetam mesmo os neurônios”, ob-serva José Mauro.

Os especialistas garantem, en-tretanto, que nem todo esqueci-mento é indicativo de problemas cerebrais. Os lapsos são normais diante do excesso de informação ao qual o ser humano é submetido na atualidade. “As falhas de memória são comuns em associação com a ansiedade, com momentos de es-tresse, com preocupação excessiva. A depressão também está bastante associada a problemas de memó-ria. Quando são muito frequentes e provocam prejuízo funcional, de-vem ser investigadas por um pro-fissional”, analisa Paula Ventura.

Lembrar mais ou lembrarmelhor?

No conto “Funes, o memorioso”, o escritor argentino Jorge Luis Borges narra a saga de Ireneo Funes, um

Uma série de reações bioquímicas acontece no cére-bro cada vez que um fato é registrado. “A base da me-mória ou a maior parte dela estaria nas conexões entre os neurônios. Um impulso elétrico faz com que um neu-rônio dispare um neurotransmissor. Esse neurotrans-missor provoca um estímulo no receptor do neurônio seguinte, passando informação para ele. A ideia é que a memória seja uma alteração nas conexões. Ela seria o resultado de alguma mudança provisória ou permanen-te nas sinapses entre neurônios que fazem com que a in-formação que, primeiro, entrava e ativava determinados neurônios passe a ativar outros”, explica Olavo Amaral, professor do IBqM-UFRJ, que desenvolve, há cerca de um ano, pesquisa na qual, através de modelos computa-cionais e de experiências em ratos, tenta entender como funcionam os processos de extinção e consolidação da memória: “O interesse está em saber como o cérebro consegue armazenar informação de alguma complexida-de. Tentamos compreender como, a partir de alterações sinápticas muito simples, a gente consegue elaborar uma informação complexa para um organismo vivo”.

O conhecimento sobre esses processos possibilitará, futuramente, aperfeiçoar o tratamento de doenças como o Alzheimer e transtornos psíquicos, como o estresse pós-traumático. E pode provocar mudanças até mesmo na forma de o homem apreender o mundo. “Fortalecer e flexibilizar memórias podem refletir em bem-estar para as pessoas. Não significa que pretendemos criar super-humanos que se lembrem de tudo ou que quere-mos apagar as mentes. Entender memória é entender como funciona o aprendizado e, assim, produzirmos uma educação melhor com base nas Neurociências”, conclui o pesquisador.

Bioquimicamente falando...

homem que, depois de ficar paralí-tico em um acidente, passou a con-seguir memorizar cada detalhe do seu dia e do mundo ao seu redor. O curioso da narrativa é que, ao passar o tempo recorrendo a anti-gas lembranças e registrando dados novos, Funes esquecia, efetivamen-te, de pensar.

A história de Borges levanta uma dúvida que muitos pesquisadores ainda não conseguiram decifrar. O que é mais interessante, ter uma memória mais forte ou mais sele-tiva? Na opinião de Olavo Bohrer Amaral, professor e pesquisador do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM) da UFRJ, apesar do desejo humano ser o de ter a capacidade de registrar uma quantidade maior de fatos, guardar todas as lembran-ças é contraproducente. “Provavel-mente, a gente não quer se lembrar

de tudo o tempo todo. Duvido que alguém queira se recordar do que lhe fez mal. Funcionar, viver, con-seguir estar no mundo envolvem esquecer e lembrar. Talvez mais es-quecer do que lembrar. O ideal não é lembrar mais de tudo, mas realçar coisas importantes e descartar da-dos inúteis”, avalia o neurocientis-ta.

Já para José Mauro, o ser hu-mano deve entender seus limites e cessar a busca por remédios mila-grosos. “A memória é uma das ha-bilidades da função cerebral e ela deve funcionar para o bem-estar e para evitar situações ameaçadoras da integridade do indivíduo. Não existe remédio de memória. Te-mos que desmistificar um pouco o conhecimento cartesiano de que certos sintomas do cérebro podem ser revertidos. Assim não teremos a crença de que há um remédio má-gico para determinado sintoma”, pontua o pesquisador.

Novembro/ Dezembro 2010UFRJJornal da 30

Brasil avança na política ambientalUm grave problema tornou-

se pauta constante na agen-da pública mundial: o que

fazer com o lixo produzido em larga escala pela sociedade? Nos países mais desenvolvidos, programas de coleta se-letiva e reciclagem cumprem o papel do desenvolvimento sustentável e minimi-zam os impactos ambientais provocados pelo descarte inadequado do lixo através de seu reaproveitamento.

No Brasil, um avanço em relação a antigos problemas ambientais foi alcan-çado. Após quase 20 anos de tramitação no Congresso Nacional, foi aprovada e sancionada, em agosto deste ano, a Lei 12.305/10, que institui a Política Nacio-nal de Resíduos Sólidos (PNRS). Ela en-cerra as diretrizes para o gerenciamento dos resíduos sólidos, além de defini-los e classificá-los, criando um padrão que facilitará a organização e gestão do lixo no país, visando a padrões sustentáveis de produção e consumo de bens e ser-viços.

A nova lei implica mudanças com-portamentais e culturais significativas à sociedade, que terá de se adequar às novas maneiras de descarte dos resídu-os sólidos. No entanto, a sociedade civil não é a única a ser responsabilizada a partir da lei. As esferas pública e priva-da também terão obrigações no manejo adequado de resíduos.

Responsabilidade compartilhadaA responsabilidade compartilhada

pelo ciclo de vida dos produtos, agora dividida entre os diferentes segmentos da sociedade, tem como objetivo pro-mover o aproveitamento de resíduos sólidos, reduzir a sua geração, evitar o desperdício de matéria-prima, dimi-nuir a poluição e os danos ambientais, assim como estimular tanto o consumo de produtos derivados de materiais re-ciclados e recicláveis quanto atividades econômicas voltadas para a reciclagem. Para Luciano Basto Oliveira, especia-lista em Desenvolvimento Sustentável, pesquisador do Instituto Al-berto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, a importância da lei está no fato de ela “estabelecer um marco regulatório para o setor”, equipa-rando-se a legislação internacional através da responsabilidade consorciada. Júlio Carlos Afonso, es-pecialista em Polui-

Vanessa Sol

ção Ambiental e Processamento de Lixo Tecnológico, professor do Instituto de Química (IQ) da UFRJ, concorda que a PNRS representa um avanço ambiental ao país por instituir “a responsabilidade pós-consumo de produtos que seriam descartados inapropriadamente”.

Na opinião de Elen Vasquez Pacheco, professora do Instituto de Macromolé-culas Eloisa Mano (IMA), o consumidor tem que entender que é também respon-sável pelo lixo que produz. Antes essa responsabilidade era imputada apenas às indústrias e aos municípios. “O gerador (consumidor) tem que se sentir respon-sável pelo que ele consome e produz em termos de resíduos. Essa responsabili-dade vai proporcionar um descarte ade-quado ou fazer com que ele participe vo-luntariamente da coleta seletiva”, ressalta a especialista em Tratamento e Aprovei-tamento de Rejeitos Sólidos Poliméricos.

Gestão integrada de resíduos sólidosCom a nova política, os estados e

municípios terão prazo de dois anos para o desenvolvimento de ações voltadas ao gerenciamento dos resíduos e descar-te adequado do lixo, através dos Planos Estaduais de Resíduos Sólidos (PERS) e dos Planos Municipais de Gestão Inte-grada de Resíduos Sólidos (PMGIRS), respectivamente. Ambos terão de im-plantar programas de coleta seletiva para serem beneficiados com incentivos ou financiamentos de entidades federais de crédito ou fomento às políticas ambien-tais.

Por essa nova perspectiva que a lei apresenta, Elen Pacheco destaca que a PNRS terá mais reflexos na esfera pública por esta não ter implantado, efetivamente, um sistema de gestão e gerenciamento de resíduos sólidos. A pesquisadora afirma ainda que vai levar algum tempo até que todos os estados e municípios, bem como seus órgãos e instituições, se adaptem às mudanças. “Imagine a Prefeitura do Rio de Janeiro: ela tem um programa de coleta seletiva implantado? Trata seus efluentes? Basta olharmos esses dois pontos para imagi-narmos quanto tempo demorará para a

adaptação”, enfatiza a professora.

Logística reversaOutra inovação da PNRS é a

logística reversa. Através dela, se-rão necessárias a elaboração e a implantação de mecanismos ade-quados de descarte para que os re-síduos possam ser reaproveitados e voltem ao seu ciclo de vida produ-tiva. “A logística reversa privilegia a reciclagem, que tem um ingredien-

te social muito importante, uma vez que sua aplicação pode ser imediata”, destaca

Luciano Basto. No entanto, quando o assunto é a lo-

gística reversa, Júlio Afonso explica que seu desenvolvimento, por ela ser onero-sa, é um dos grandes desafios a serem enfrentados pela PNRS. “Imaginemos diferentes produtos (lâmpadas, pilhas, eletroeletrônicos, entre outros) sendo consumidos e descartados em todo o país. A logística reversa tem que prover uma escala mínima para a reciclagem poder atuar. Esse é um dos desafios que teremos que enfrentar quando a lei esti-ver na sua fase de implantação”, explica o professor.

Fortalecimento da reciclagem eda coleta seletiva

Com os novos dispositivos da lei, a coleta seletiva será fortalecida. Elen Pa-checo conta que para implantá-la é ne-cessário ter indústrias para reciclagem de material coletado e que, portanto, o mu-nicípio, ou o estado, terá que criar incen-tivos para a instalação dessas empresas em sua região. “Precisaremos de recicla-doras bem-estruturadas para processar o material coletado, que se transformará em outro artefato e voltará à cadeia pro-dutiva. O material separado na coleta se-letiva que não pode ser reciclado conti-nuará sendo encaminhado para o aterro sanitário”, diz a especialista, destacando, contudo, que “temos um problema hoje no Rio de Janeiro que é a falta de espaço

nos aterros sanitários. O aterro de Gra-macho já está, teoricamente, saturado”.

O desenvolvimento de programas de coleta seletiva e reciclagem, na opinião de Júlio Afonso, amplia e diversifica o rol de atividades econômicas. Afirma, ainda, o professor que a medida será im-portante para tratar um problema proe-minente no mundo atual, o lixo eletrôni-co. No Brasil, sua produção cresce com velocidade superior a do lixo comum, o que o torna um dos países emergen-tes que mais produzem lixo eletrônico no mundo, superando, inclusive, a Chi-na. “A tecnologia de reciclagem de lixo eletrônico é muito complexa porque os inúmeros tipos de materiais dificultam o processo, e o Brasil não tem mão de obra especializada para esse tipo de re-ciclagem. Porém, a partir de agora nós teremos condições de criar atividades econômicas nesse segmento”, esclarece Júlio Afonso.

Segundo dados do Instituto de Pes-quisa Economia Aplicada (Ipea), o Bra-sil produz cerca de 60 mil toneladas de lixo por ano; no entanto, apenas 2,5% são reciclados. O fato reflete um atraso do país no desenvolvimento e incenti-vo a políticas ambientais. Para Luciano Basto, isso acontece porque há “muitas forças contrárias e falta de percepção de que existem dezenas de bilhões de dóla-res sendo desperdiçados no lixo todos os anos, enquanto convivemos com deze-nas de milhões de miseráveis. É o que os

Meio Ambiente

31UFRJJornal da

Novembro/ Dezembro 2010 Meio Ambiente

Brasil avança na política ambientalA Política Nacional de Resíduos Sólidos

(PNRS) apresenta as diretrizes para o descarte adequado do lixo produzido

no Brasil. A nova lei, considerada um avanço, representa um marco regulatório da questão ambiental

no país, implicando mudanças comportamentais e estruturais para os

diferentes segmentos da sociedade.

economistas chamam de imperfeição de mercado”.

O panorama em países da Europa e nos Estados Unidos é bem diferente do brasileiro. Nesses países reciclam-se mais de 45% dos resíduos produzidos.

Apesar de o atual cenário refletir o atraso do país frente às políticas ambien-tais, o Brasil se destaca na reciclagem de latas de alumínio. Hoje, são recicladas 90% das latas produzidas. Júlio Afonso explica que o fenômeno ocorre em fun-ção do alto valor agregado do alumínio: “Ao reciclá-lo chega-se a uma economia de 95% de energia em relação ao que seria consumido no processamento da matéria-prima”.

Além dos tradicionais materiais que são reciclados, como papel, vidro, plástico e alumínio, outros resíduos têm potencial para reciclagem, como os alimentos orgâ-nicos, passíveis de compostagem.

A favor do meio ambienteAntes mesmo de a PNRS ser apro-

vada, a UFRJ já desenvolvia projetos de reciclagem. O Centro de Tecnologia foi escolhido para estabelecer um projeto-piloto de coleta seletiva, o “Recicla CT”, implantado em fevereiro de 2007. Nele,

foi desenvolvida uma metodo-logia que pretende ser expandida para as demais unidades da UFRJ. A escolha não foi aleatória. O centro foi se-lecionado por agregar o maior número de pesquisas na área de resíduos sólidos e ter, inclusive, um programa de coleta seletiva pontual já implantado.

De acordo com Elen Pacheco, que foi também coordenadora da comissão de implantação do “Recicla CT”, a univer-sidade desenvolve muitas pesquisas na área de reciclagem, cujo objetivo é o ge-renciamento dos resíduos sólidos, além de desenvolver produtos sustentáveis a partir de resíduos e pesquisas sobre ater-ros sanitários.

No IMA, há um programa de coleta seletiva para resíduos comuns e perigo-sos implantado desde 1996. Além disso, a unidade da UFRJ tem a licença de ope-ração do órgão ambiental desde 2005 e realiza pesquisas na busca de tecnologias limpas, isto é, desenvolvendo processos que gastem menos água e energia, me-nor quantidade de produtos químicos, além de substituí-los por outros menos nocivos. Para Elen Pacheco, a universi-dade tem papel fundamental no desen-volvimento de tecnologias sustentáveis

para o meio ambiente. “A universidade pública trabalha para o país e o que nós queremos é fortalecê-lo com as pesqui-sas nessa área, assim como fortalecer o Rio de Janeiro, uma vez que querem transformá-lo na capital recicladora”, destaca a professora.

Educação ambientalA sociedade precisa se conscientizar

de que mudanças de hábitos são bené-ficas para o meio ambiente e a tornam sustentável, permitindo que as gerações futuras tenham acesso à matéria-prima como a geração atual e a passada tive-ram. A escola terá papel importante nesse contexto, sendo dissemi-nadora do conhecimento mul-tidisciplinar e incentivando a participação efetiva do cidadão. Cabe à universidade formar profissionais mais capacitados para

Projeto prevê a transformação de lixo em energia elétrica

O Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesqui-sa de Engenharia (Coppe) e a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) assinaram um acordo de cooperação técnica no qual firmam parceria para avaliar a viabilidade técnica e am-biental da implantação de usinas de geração de energia elétrica a partir de resíduos sólidos. De acordo com Luciano Basto, a ini-ciativa “decorre de um trabalho realizado pela Coppe há mais de uma década sobre o tema”.

A previsão é de que as usinas funcionem onde são as atuais estações de transferência e nos aterros sanitários. Porém, o pes-quisador afirma que é “preciso confirmar se há restrição de licen-ciamento em alguma dessas áreas”. As usinas terão capacidade para receber 9 mil toneladas diárias de lixo. Para esse montante,

poderão ser criadas seis usinas com capacidade de gerar até 30 megawatts de eletricidade cada

uma, valor permitido pela legislação brasileira para usinas que utilizam lixo na geração de energia.

De acordo com Luciano Basto, a medida desafoga os aterros sanitários e aumenta sua vida útil. No entanto, “a

técnica de mineração de aterros para retirar o que neles já foi depositado evita tragédias como a que ocorreu no início do ano no Morro do Bumba, em Niterói, no Rio de Janeiro”.

Os benefícios da produção de energia elétrica a partir de resíduos sólidos, de acordo com o professor da Coppe, estão

no “consumo de lixo como combustível, gerando eletricidade, na descentralização da geração de energia, na redução das perdas da transmissão (que chega a cerca de 15% atualmente), além da mitigação de gases do efeito estufa”.

lidar com a questão ambiental, como multiplicadores de uma nova cultura e de novos costumes.

Para Júlio Afonso, a Educação Am-biental tem a característica de agregar pessoas em um objetivo comum, com consequências positivas e com garantia de uma qualidade de vida melhor para todos: “É preciso valorizar a Educação Ambiental como ferramenta transfor-madora da sociedade”.

Novembro/ Dezembro 201032 UFRJJornal da

Persona

Pedro Barreto

Na meninice, convidada pelo vizinho João Cartolinha, aprendeu a cantar ranchos pastoris, de tradição católica portuguesa, incorporada aos folguedos do Carnaval ca-rioca no início do século XX. No cortejo que saía às ruas na noite de Natal recolhendo brindes, comidas e doces, Clementina interpretava a pastora Peixeira. Foi também João Cartolinha que a levou a Oswaldo Cruz, onde teve seu primeiro contato com sambistas como a zelado-ra de santo Dona Esther, o macumbeiro Mané Pesado e a mãe de santo Maria de Neném, madrinha de Laís, primeira filha de Clementina. Católica praticante, Que-lé frequentava as cerimônias nos terreiros de Oswaldo Cruz unicamente em razão da música. “Eu gostava de cantar, porque tinha prazer”, afirma Clementina, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS), em 25 de setembro de 1967. No entanto, incorporou o traço ritual de tradições afro-brasileiras: um lanho no peito, para fechar o corpo, aprendido nas cerimônias em Oswaldo Cruz.

“Baobá musical”A primeira apresentação de Clementina para o gran-

de público aconteceu no dia 7 de dezembro de 1964, a par-tir do “Movimento Menestrel”, idealizado por Hermínio e realizado no Teatro Jovem, ao lado do violonista Turíbio Santos. O sucesso de crítica e público fez com que, no ano seguinte, Hermínio criasse, no mesmo local, o espe-táculo “Rosa de Ouro”, uma ampliação do “Menestrel”, com mais componentes e de formato despojado. Ali, Clementina viveu seus melhores dias, ao lado de nomes como Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Paulinho da Viola e Anescar Pereira Filho, o Nescarzinho do Salguei-

ld o Br

as i

ro. Hermínio Bello de Carvalho recorda o que aconteceu naquela noite de março de 1965: “Clementina tinha no repertório uma coisa absolutamente de gênio, e o povo urrava, ninguém entendeu nada. Aquela preta velha linda no palco. Ela tinha um negócio bonito de mãos, cantava fazendo aquele negócio, e quando ela levantava para dan-çar aqueles partidos-altos, aquelas batucadas, aí o público vinha abaixo, diante de algo muito novo para ele”.

Em 1966, Clementina representou o Brasil no Festi-val de Arte Negra, no Senegal, e no Festival de Cinema de Cannes, na França, onde dividiu o tapete vermelho com Sophia Loren. Mas todo o carinho de seus pares foi demonstrado no espetáculo realizado no Theatro Muni-cipal, em agosto de 1983. Idealizada pelo então secretário estadual de Cultura, Darcy Ribeiro, a iniciativa chegou a assustar as senhoras da high society, ao verem o palco centenário dominado por sambistas tais como João Nogueira, Beth Carvalho, Paulinho da Viola e Elizethe Cardoso. Todos a reverenciar Quelé. “Clementina é a voz de milhões de negros desfeitos no fazimento do Brasil”, justificou Darcy Ribeiro.

O último show aconteceu em 24 de maio de 1987, em um restaurante no Méier. Já idosa e po-bre, a ex-empregada doméstica, rainha absoluta do Partido-Alto, passava dificuldades no final da vida, vítima de empresários aproveitadores. “Ela é um baobá musical maltratado e explorado”, disse, à época, Hermínio Bello de Carvalho, em comparação à frondo-sa árvore africana. Internada no dia 16 de junho, após o quinto derrame cerebral em poucos anos, Clementina de Jesus da Silva faleceu no dia 19 de julho.

Raiz“Clementina vem

preencher um espaço vazio que a gente não

consegue preencher, com a memória ancestral que as

pessoas de origem negra nos contam”.

Clementina de Jesus

Tina, vai acender esse cachimbo”, mandava Amélia Rezadeira à fi-

lha Clementina, entre uma e outra peça de roupa lavada à beira do rio. “Sim, senhora”, respondia a pequena Clementina, “aspirando o cheiro-gosto áspero do fumo de rolo pica-do, aquilo se grudando na garganta, temperando as cordas vocais”, relata a jornalista Lena Frias, no artigo “A saga de uma rosa negra”, publicado em Rainha Quelé: Clementina de Jesus (Prefeitura de Valença e Finep, 2001), organizado pelo diretor tea-tral e musical Heron Coelho.

E assim foi se formando, desde a tenra infância, aquela “voz singular, rascante e musguenta”, como des-creve Hermínio Bello de Carvalho, compositor, produtor cultural, poeta e, acima de tudo, descobridor do ta-lento de Clementina de Jesus. Foi em 15 de agosto de 1963, durante a festa em homenagem a Nossa Senhora da Glória, na base do Outeiro, que Hermínio descobriu a católica e misseira Quelé, como também era conhecida, entoando sambas, jongos, corimás, caxambus e lundus, herança africana dos avós, escravos forros de engenhos do Sul Fluminense. Hermínio vinha da praia, ainda em trajes de banho, para homenagear a santa e “tomar umas” na Taberna da Glória. Foi ali, na “festa profana em louvor à Senhora do Outeiro”, que escutou pela primeira vez a voz áspera de timbre singular, saída dos pulmões daquela ne-gra já sexagenária.

Difícil identificar que havia ali o elo perdido das mais legítimas tradições de ancestralidade africana, um dia-mante em estado bruto? “Não foi difícil. Já tinha o pa-râmetro de outra voz cheia de estranhezas: Pastora Pa-vón, La Niña de los Peines, grande fonte de inspiração para Garcia Lorca”, explica Hermínio Bello de Carvalho. “Clementina vem preencher um espaço vazio que a gente não consegue preencher, com a memória ancestral que as pessoas de origem negra nos contam”, analisa Regi-na Meirelles, professora da Escola de Música (EM) da UFRJ.

Impossível precisar a idade exata de Clementina, pois os registros de seu nascimento variam entre 1900 e 1907. O fato é que ainda jovem veio com a família morar em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio. O pai, o violeiro Paulo, rejeitou o serviço de zelador que lhe foi oferecido. Festeiro, não aceitou a condição imposta de não receber gente em casa. Restou a Amélia Rezadeira entregar-se ao ofício de tirar quebranto, ventre virado, olho gordo e espinhela caída. Já Clementina dedicou-se aos afazeres domésticos, trabalho que exerceu até pouco depois de iniciar a carreira artística.