fundação mary harriet speers - um legado de cidadania

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Para celebrar os 30 anos de existência da Fundação Mary Harriet Speers, foi publicado o livro "Um Legado de Cidadania".

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Page 1: Fundação Mary Harriet Speers - Um Legado de Cidadania

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Ao dr. Osório Faria Vieira, ilustre advogado que, com sabedoria, ética e discernimento, possibilitou a concretização do sonho acalentado

por Mary Harriet Speers de contribuir para um mundo melhor, bem como a perpetuação de seu legado por meio desta Fundação.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Fundação Mary Harriet Speers – Um legado de cidadania / Fundação Mary Harriet Speers. São Paulo: Tempo & Memória, 2012.

Bibliografia.

1. Assistência social – Brasil 2. Brasil – Fundações e instituições – História 3. Cidadania 4. Fundação Mary Harriet Speers – História 5. Solidariedade.

12-11782 CDD-361.00981

Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Fundação Mary Harriet Speers : História361.00981

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Page 6: Fundação Mary Harriet Speers - Um Legado de Cidadania

Um grande gesto de amor

Uma vida entre a riqueza e a solidariedade

Ares de modernidade

Paisagens bucólicas

Educação de elite

Intensa vida social

O peso da herança

A leveza do legado

Fundação Mary Harriet Speers,olhar autossustentável

Primeiros passos

Os bens de origem

Adequações necessárias

Percalços e soluções

Decisões cruciais

Vendas inadiáveis

Lições da história

Primeiras bolsas

Primórdios assistenciais

Evolução contínua

Futuro 10

Revisão contínua

Perspectivas para o futuro

Diretorias

Bibliogra�a

Depoentes

Créditos das imagens

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Um grande gesto de amor

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Alegro-me com a diretoria da Fundação Mary Speers pela feliz iniciativa

desta publicação comemorativa de seus trinta anos de existência. Ao mesmo

tempo, agradeço a honra do convite para prefaciá-la. É uma publicação decisiva

para a preservação da memória histórica desta instituição e será, por certo, uma

referência fundamental para conhecimento e inspiração das futuras gerações.

A título de prefácio, faço cinco observações:

1. O Nome – um símboloA Fundação, como não poderia deixar de ser, traz o nome de sua instituido-

ra: Mary Speers. Mas essa é uma forma abreviada de seu nome. Aqui eu a tratarei

por “Dona Mary”, porém seu nome completo é Mary Harriet Gertrudes Ignez da

Fonseca Cotching Speers. Vejo nesse nome, antes de mais nada, um verdadeiro

símbolo. É o símbolo de uma tradição cultural europeia, na qual ela foi educada e

carregava consigo. É o símbolo de uma tradição familiar unindo vários ramos num

só tronco genealógico.

Parece que, ao lhe dar esse nome de batismo, os pais queriam fazer dela a

síntese de uma história familiar rica, que não poderia se perder e precisava ser pre-

servada. É, ao mesmo tempo, o símbolo de uma elite dominante na época e será

lembrada perpetuando seu nome em ruas, avenidas, alamedas, praças e parques,

daquela que mais tarde será imortalizada na tão cantada Pauliceia Desvairada de

Mario de Andrade.

Seu nome, por fim, é bem o símbolo de uma personalidade rica, denotando

a força de seu caráter.

Essa é a mulher que, ao mesmo tempo, se revela e se esconde atrás de nome

tão singular. A Fundação é um pedaço de sua história de vida.

2. A Instituição – um exemploA Fundação Mary Speers nasceu como resultado de um gesto altruísta de

sua instituidora. Solteira, herdeira de uma apreciável fortuna, viu-se, ainda jovem,

diante de um grande e inesperado desafio: administrar tamanho patrimônio. Mas

ela o fará de maneira decidida e competente, por mais de três décadas. Porém, à

medida que os anos passam, ela começa a se preocupar com o destino de seu

patrimônio depois de sua morte.

Não tinha a quem deixar seu legado. Era seu desejo encontrar uma so-

lução para esse dilema. Queria garantir a aplicação de seus bens a favor da so-

ciedade. Foi quando seu advogado, dr. Osório Faria Vieira, secundado por seu

médico, dr. Cesário Mathias, ambos seus amigos e também seus conselheiros,

incentivaram-na a criar uma fundação.

As fundações, como sabemos, são instituições de caráter privado. Elas

não são constituídas, como se pode pensar, para obtenção de lucros. Sua fina-

lidade, conforme reza trecho da 3ª Carta da Associação Paulista de Fundações,

é a de “apoiar o saber, aprimorar o fazer e elevar a qualidade do viver, mediante

a utilização e a administração de bens, serviços e recursos humanos e financei-

ros...”. Enfim, tudo que contribua para elevar a dignidade humana. Estava decidi-

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do: este era o destino dos bens de Dona Mary. No fundo, era um grande gesto

de amor e, nessa medida, um exemplo inspirador. Nascia a Fundação Mary

Speers – “Um legado de cidadania”.

3. A Igreja – um desa�o Tomada a decisão de constituir a Fundação, um novo desafio surgiu: era

preciso que ela tivesse o respaldo de uma instituição séria, responsável, com

bases sólidas, voltada para as obras de ação social, que pudesse dar a tranquili-

dade e a segurança de que os objetivos da novel empreitada fossem respeita-

dos e cumpridos. Escolher uma instituição responsável pela gestão de imenso

patrimônio não é tarefa fácil. Mesmo quando cercada de cuidados especiais,

como é o caso de uma fundação.

Mais uma vez, foi seu advogado e conselheiro, dr. Osório, quem propôs que

Dona Mary escolhesse uma Instituição de confiança e tomou a liberdade de indicar

o Conselho da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, também

conhecida como Catedral Evangélica de São Paulo.

Mas o que é a Primeira Igreja? Não é uma igreja qualquer. Quando Dona

Mary nasceu, em 1906, a Primeira Igreja já tinha quarenta e um anos de existên-

cia. É uma igreja com rica tradição de fé. É uma igreja com uma história bonita.

Nascida em meados do século XIX (1865), atravessa todo o século XX e entra no

século XXI, honrando sempre sua tradição de pioneirismo na área social.

A Primeira Igreja tem trazido à vida organizacional algumas genero-

sas e hoje históricas instituições, algumas delas já centenárias. Entram nesse

rol o Instituto e Universidade Mackenzie, a Associação Cristã de Moços, o Hos-

pital Samaritano, a Associação Evangélica Beneficente, o Dispensário Oto-

niel Mota (hoje, Centro de Promoção Humana Otoniel Mota), a Fundação

Francisca Franco e outras mais recentes. Não foi preciso muito esforço para Dona

Mary perceber que estava diante de uma Instituição singular, digna de toda con-

fiança. A decisão da escolha da Primeira Igreja como a instituição que daria respal-

do à futura Fundação foi selada num encontro histórico, numa reunião ocorrida

no Hospital Oswaldo Cruz, onde Dona Mary estava internada em tratamento de

sua saúde.

A Fundação Mary Speers e a Primeira Igreja se abraçavam no grande ges-

to de amor para cumprimento da bendita e abençoada missão de servir a Deus,

servindo ao próximo.

4. A Homenagem – uma questão de justiçaNeste registro histórico, não poderia deixar de prestar uma justa e mereci-

da homenagem a duas figuras muito especiais, que tiveram participação decisiva

na história da Fundação.

A primeira delas é a pessoa do dr. Osório Faria Vieira, que, com sabe-

doria e discernimento, deu corpo jurídico à Fundação e, a pedido e por reco-

mendação de Dona Mary, a conduziu em seus primeiros passos. Na pessoa do

dr. Osório, homenageamos todos os companheiros de primeira hora, amigos

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de Dona Mary, pessoas de sua inteira confiança, que constituíram o primeiro

Conselho de Curadores.

A segunda pessoa a quem rendo profunda gratidão é o dr. Darnei Macha-

do, primeiro presidente da diretoria da Fundação, cargo que exerceu com visão e

competência, por vinte e sete anos. E, na pessoa do dr. Darnei, minha homenagem

e reconhecimento a um verdadeiro exército de voluntários, que colocaram seu

tempo, seus dons e talentos, graciosamente, a serviço da Fundação, para que ela

cumprisse sua vocação maior.

Não buscavam reconhecimento, mas sentiram-se gratificados pelos frutos

colhidos por seu trabalho e dedicação ao longo desses trinta anos. Que Deus re-

compense a todos.

5. O Pastor – um privilégioCompletei, neste ano de 2012, cinquenta anos de pastorado, ordenado

que fui no dia 11 de fevereiro de 1962. Desse total, quarenta anos foram como

pastor da Primeira Igreja. É claro que, ao longo desse meio século de ministé-

rio, tive experiências gratificantes e marcantes. Entre elas está o privilégio de

ter conhecido e convivido com Dona Mary e, sobretudo, ter participado do

processo de organização da Fundação por ela instituída.

Conheci Dona Mary conduzido pelas mãos do dr. Osório. O primeiro en-

contro se deu na residência de Dona Mary, uma bela mansão na confluência das

alamedas Joaquim Eugênio de Lima e Jaú, onde hoje se ergue o Edifício Mary

Speers. A curiosidade era recíproca, mas, dada a natureza do encontro, era natural

que ela tomasse a iniciativa de conhecer melhor aquele jovem pastor de 42 anos

que estava diante dela. Houve uma empatia recíproca, o que facilitaria, em muito,

nosso convívio futuro.

Ela me elegeu como seu pastor e foi nessa condição que eu a acompanhei

nos dois anos seguintes, especialmente no último, marcado pelo agravamento de

seu estado de saúde. Suas internações constantes exigiam acompanhamento e

assistência espiritual cuidadosa.

Guardo em meu coração os momentos especiais de conversas, de

leituras bíblicas e de orações nessas visitas pastorais marcadas pela fé em

Deus. Tive o privilégio de ser seu pastor e também, por isso mesmo, tive a

tristeza inevitável de oficiar em seu sepultamento, ocorrido em 14 de abril

de 1982. Uma vida bonita, emoldurada por gestos de amor, terminava sua

peregrinação terrena para ganhar a eternidade.

Deus abençoe sua memória!

Rev. Abival Pires da SilveiraPastor emérito da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo

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O século XX apenas começava quando Mary Harriet Speers veio ao

mundo. Foi “abençoada por Deus” por ter conseguido “amealhar

um valioso patrimônio”. Riqueza que deixou para ser distribuída, com o

desejo de “contribuir para o bem da coletividade” e “melhorar o padrão

de vida de pessoas menos protegidas de fortuna”.

São palavras dela mesma, em seu testamento. E revelam os traços

de uma personalidade forjada entre a abundância pecuniária e a cons-

ciência da solidariedade. Sua família contribuiu decisivamente para o

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UMA VIDA ENTRE A RIQUEZAE A SOLIDARIEDADE

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progresso de um Brasil que saiu da Monarquia para a República com

a tarefa de se construir e a seu povo, uma ampla mistura de etnias e

nacionalidades. Já recebera de braços abertos imigrantes da Itália, da

Espanha, da Alemanha.

A família Speers, porém, mesclou brasileiros e ingleses. Estes

não vieram como imigrantes, mas contratados para encarar a dura e

promissora missão de abrir ferrovias. Trouxeram consigo, assim como

os imigrantes, sua própria cultura, traduzida em costumes, aos poucos

mesclados aos do povo local, também formado por colonizadores por-

tugueses, além de nativos e escravos africanos. Um país de múltiplas

facetas que cresceu com uma população culturalmente diversi�cada.

Mary Harriet Gertrudes Ignez da Fonseca Cotching Speers

nasceu em São Paulo, em 5 de julho de 1906, época em que a cidade

vivia intensas transformações sociais e urbanas e o País, após longo

período imperial, ainda engatinhava na construção de sua Repúbli-

ca. As mudanças ocorriam em função dos recursos gerados pela ex-

portação de café, uma cultura em expansão no Estado de São Paulo

desde o século anterior. Basta conferir o volume de sacas embarca-

das no Porto de Santos: na safra de 1888-1889, foram 2,5 milhões,

quantidade quase duplicada no período seguinte, de 1900-1901,

quando saltou para 7,8 milhões.

A cidade de São Paulo, nesse começo de século, ainda era um

local bucólico, marcado pela topogra�a montanhosa, entre acli-

ves, declives e vales, com abundância de cursos d’água – o Tietê,

o Tamanduateí e o Anhangabaú corriam livres e límpidos. No

centro, a principal referência era a Avenida São João, que só se-

ria alargada na década de 1920; pela via estreita original já cir-

culavam bondes elétricos, enquanto o comércio recebia sofistica-

das lojas de acessórios, como bengalas, sapatos e guarda-chuvas.

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Embarque de café no Porto de Santos, década de 1910.

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O lazer, por sua vez, era proporcionado por teatros muito fre-

quentados – como o Eldorado, o Politeama e o Cassino Paulista.

Nas proximidades, destacava-se o majestoso Teatro Munici-

pal, que estava sendo erguido desde 1903, com projeto dos

arquitetos Ramos de Azevedo, Cláudio Rossi e Domiziano Rossi.

Inaugurado em 1911, permitiu a apresentação de grandes espetá-

culos internacionais.

Na gestão do prefeito Raymundo da Silva Duprat, que se

estendeu de 1911 a 1914, o urbanista e paisagista francês J. A.

Bouvard foi contratado para projetar parques e praças capazes de

embelezar o perímetro urbano. De fato, foram implantados dois

Teatro Municipal de São Paulo, anos 1910.

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Detalhe da Avenida São João, Centro de São Paulo, início do século XX.

grandes jardins públicos por ele concebidos, um no Vale do Anhan-

gabaú e outro na Várzea do Carmo, depois denominado Parque D.

Pedro, além do impressionante belvedere do Trianon, na Avenida

Paulista. Esta havia sido inaugurada em 1891, a partir de projeto

do engenheiro Joaquim Eugênio de Lima, e recebeu, ao longo das

décadas seguintes, os grandes cafeicultores, comerciantes e indus-

triais que ali construíram suas luxuosas moradias, bem como nos

bairros de Campos Elíseos e Higienópolis. Eram residências tão

distintas entre si como a origem de seus proprietários, entre ita-

lianos, portugueses e sírios: Matarazzo, Pinotti Gamba, Siciliano,

Pereira, Oliveira, Mello, Scurachio, Andraus.

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A família de Mary Speers participou ativamente do desenvolvimento

do Estado de São Paulo, pois muitos de seus membros estiveram ligados à

cultura do café, à consolidação de ferrovias e – em grande e decisiva esca-

la – à expansão urbana da própria capital do Estado. Enquanto a mãe de

Mary, Maria Victoria da Fonseca Cotching Speers, descendia de paulistas

tradicionais, aqui radicados desde os tempos coloniais, seu marido, �omaz

Percival Speers, pertencia a uma das várias famílias da Inglaterra que �nca-

ram raízes no Brasil, para instalar, aqui, empresas de seu país.

Entre esses empreendimentos estavam o Bank of London, a Light

and Power Company e a São Paulo Railway.

Ares de modernidadeMaria Victoria nasceu em Itu, em 12 de março de 1883. Era �lha

de Gertrudes da Fonseca Cotching e William Mackrell Cotching, imi-

grante enviado pela coroa inglesa ao Brasil para avaliar as possibilida-

des de aqui estabelecer uma colônia inglesa, tal como ocorrera com o

grupo de suíços Helvetia, igualmente instalado na região de Itu.

William, no Brasil chamado de Guilherme, foi conhecer a expe-

riência e viu Gertrudes, pela primeira vez, em uma festa. Por coinci-

dência, ela morava exatamente na mesma fazenda que o hospedava,

embora ele ainda não a tivesse visto. O interesse inicial acabou em ca-

samento, uma união que, além de Maria Victoria, deu outros três �lhos

ao casal: José Manoel, Gertrudes e Eduardo.

Embora, na época, fosse mais comum estabelecer laços de matri-

mônio com integrantes de clãs já solidamente enraizados no País, eram

abertas exceções para pretendentes de origem anglo-saxônica – de fa-

mílias bastante conhecidas, como Ellis, Daunt, Simonsen e Whitaker –,

provavelmente por trazerem elementos de modernidade e so�sticação.

Uma inspiração que se estendia à prole aqui nascida.

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No seio dos Cotching, não foram poucas as contribuições que sua

descendência ofereceu à comunidade. Com especial destaque para Eduardo

da Fonseca Cotching, que nasceu em 1881 e faleceu aos 49 anos, em 1930.

Ele era agrimensor, formado pela Escola de Engenharia Mackenzie, e

advogado, com diploma da Faculdade de Direito de São Paulo.

Entre suas realizações, encontram-se a elaboração do Plano

de Defesa Permanente do Café, a fundação da Sociedade Rural

Brasileira, em 1919, e a criação de bairros como Vila Maria e Vila

Medeiros, onde sua família mantinha muitos imóveis. Eduardo,

aliás, foi um dos diretores da Companhia Paulista de Terrenos, junto

com Rafael de Abreu Sampaio Vidal, Alberto Byington, Guilherme

Cotching e Paulo Cotching.

A família Speers também deixou

sua marca. O inglês William Speers,

por exemplo, participou ativamente da

comunidade, com papel de destaque na

criação do Hospital Samaritano, uma

instituição que ainda hoje existe e se-

gue em constante aperfeiçoamento, no

bairro de Higienópolis.

Casado com Harriet, o patriarca teve cinco �lhos nascidos

no Brasil: William Gordon e Charles, ambos médicos-cirurgiões

formados na Inglaterra; Francis Shepley, funcionário do British Bank;

Herbert Speers; e �omaz Percival Speers, que, como seu pai, viria a

ser funcionário da São Paulo Railway, ferrovia inaugurada em 1867,

ligando as cidades de Santos e São Paulo. Depois, foi prolongada pela

Companhia Paulista de Estradas de Ferro até Campinas – esse trajeto,

que antes demorava mais de um dia para ser realizado, transformou-se

em uma confortável viagem de pouco mais de uma hora.

Sentado, à esquerda, o médico William Gordon Speers, tio de Mary Speers, em foto tirada na sede do Hospital Samaritano, 1916.

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Fachada do Hospital Samaritano, na cidade de São Paulo, anos 1920. Ao lado, capa de publicação com caricatura do sanitarista Oswaldo Cruz, um dos principais nomes do combate a doenças infectocontagiosas no início do século XX, que contou com campanhas organizadas pela família de Mary Speers.

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Na década de 1920, os antigos trens movidos a carvão foram

substituídos por máquinas muito mais rápidas, alimentadas a diesel. E

os Speers estavam ligados diretamente a esse movimento de progresso.

William Speers chegou a ocupar o cargo de superintendente da São

Paulo Railway, posto mais alto da empresa.

Foi justamente com �omaz – um dos �lhos de William – que se ca-

sou Maria Victoria Cotching, uma mulher ativa, que não se resignou exclu-

sivamente ao papel de mãe e mulher da alta sociedade. Era muito dedicada

a obras assistenciais, em especial ao atendimento hospitalar dos portado-

res de hanseníase, na época uma doença crivada de preconceito, relegando

seus portadores à profunda rejeição. Ela foi vice-presidente da Sociedade de

Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, para a qual eram realiza-

dos eventos bene�centes que reuniam a alta sociedade paulistana disposta a

contribuir com dinheiro e recursos para a causa. Entre essas atividades, ha-

via os tradicionais chás dançantes, realizados no meio da tarde, em lugares

como o famoso Salão Egypcio, do �eatro Santa Helena.

Mary Speers foi �lha única de �omaz e Maria Victoria. Teve,

porém, uma companheira constante de infância e adolescência na �-

gura de sua prima Mary Jessop Cotching da Fonseca Dodd, que tam-

bém nasceu em 1906, em um casarão localizado no início da Avenida

Paulista, na época dividida em vias separadas por árvores frondosas e

pavimentada com macadame, desde 1903. A menina era �lha de sua tia

Ana da Fonseca Cotching, também casada com um membro da colônia

britânica no Brasil, Frank Dodd, com quem teve, além de Mary, outros

dois �lhos, Edward e Gertrudes.

Paisagens bucólicasDiferentes nas feições e na cor do cabelo, as primas compar-

tilhavam tanto a vida urbana quanto a rural. Mary Speers passava

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temporadas na Fazenda Cachoeira do Jica, que, embora o�cialmente

denominada Cachoeira, acabou agregando o apelido de seu pri-

meiro proprietário, o capitão José de Almeida Prado. Foi uma das

terras herdadas por José Manoel da Fonseca Leite, em função de

seu casamento com Theresa de Almeida Prado, filha do Jica, assim

como outras duas fazendas, a Pau Preto e a Bela Vista, além de

ações e imóveis em São Paulo.

O casal teve quatro �lhos, entre os quais Gertrudes da Fonseca, a

avó de Mary, por quem o inglês Guilherme Cotching se apaixonou. No

�nal do século XIX, os trilhos da ferrovia que ligava as cidades de Itu e

Jundiaí atravessavam as bucólicas paisagens da Cachoeira do Jica.

Filha única e de família abastada, Mary Speers tinha o sonoro

apelido de “Neneca”, talvez em alusão a “boneca”. Seus longos cabe-

los escuros, invariavelmente soltos nas fotos de infância, ganharam

cortes modernos na juventude. As imagens em branco e preto eter-

nizaram seu belo sorriso e momentos vividos em viagens e festas.

Como era comum à época, sempre estava acompanhada de algum

familiar nas mais diversas ocasiões, de bailes de Carnaval a cruzei-

ros em alto-mar.

Neneca recebeu uma formação típica das moças da alta sociedade

de seu tempo, seguindo a linha iniciada com a geração anterior. Tanto sua

mãe como suas tias cursaram o colégio Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu.

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Acima, à direita, Mary Speers com a prima Mary Dodd. Na página ao lado, imagens de sua infância.

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Pertencente à Congregação das Irmãs de São José, fora funda-

do em 1859, constituindo-se na primeira instituição de ensino

destinada à educação de meninas, para onde iam as filhas dos

cafeicultores. Antes, quem quisesse oferecer à prole feminina uma

formação aprimorada tinha de recorrer a preceptoras estrangei-

ras, que trabalhavam em domicílio. Nada de salas de aula, antes

exclusivamente masculinas.

Educação de eliteMary Speers estudou em São Paulo, no requintado Colégio

Notre-Dame des Oiseaux, um casarão projetado pelo arquiteto

francês Victor Dubugras, em um terreno de 24 mil metros quadrados,

com fachada art nouveau e imenso jardim, na Rua Caio Prado.

Havia sido fundado em 1906 pela Congregação das Irmãs de Santo

Agostinho, e parte dessas religiosas provinha de tradicionais famílias

paulistas, da mesma forma que as professoras, não raro ex-alunas.

Essa continuidade garantia que a formação religiosa e os valores desse

extrato social fossem passados adiante e incorporados.

A filha de Maria Victoria e de Thomaz Percival Speers

recebeu uma educação escolar formal e rígida. O currículo das sa-

las de aula era complementado por aulas particulares, ministradas

em casa, e viagens culturais à Europa. Aliás, uma das caracte-

rísticas dos colégios de elite era ensinar ao menos uma língua

estrangeira, além do latim obrigatório. Em geral, os alunos

aprendiam francês.

A jovem Mary Speers teve acesso a uma formação bem ampla,

como era tradição em sua camada social. Aprendeu pintura – entre

seus temas prediletos estavam os beija-flores – e piano. Também se

dedicava ao desenho e, mais tarde, chegou a criar os figurinos de

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uma peça. Apreciava muito a cultura indígena e habitualmente ia a

exposições e locais de venda de artesanato.

Além da educação formal, sempre ampliada com longas estadas

no exterior – na época de sua infância e juventude –, algo que exigia

exaustivas travessias de navio, como o famoso Giulio Cesare, Mary

Speers foi sempre incentivada a praticar esportes, uma tradição familiar.

Seu avô, William ou Guilherme, foi um dos fundadores do São Paulo

Atlhetic Club, o SPAC, em 1888. Isso ocorreu, coincidentemente, no

mesmo dia 13 de maio em que a princesa Isabel, naquele momento

regente do País, assinava a Lei Áurea, libertando os escravos em nome

de seu pai, o imperador D. Pedro II.

Mary Speers teve uma juventude marcada pela educação de elite e o contato bastante próximo com a cultura e a arte.

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Momentos de viagem ao exterior realizada a bordo do famoso navio Giulio Cesare, costume então restrito às classes mais abastadas. No alto, imagem de Mary Speers entre familiares e amigos.

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Ao contrário da pompa e circunstância da cerimônia real, a reunião

que marcou o início das tratativas para a constituição do SPAC foi

realizada em um bar da Rua São Bento, entre drinques de gim-tônica e

muita conversa, com a participação de comerciários e cidadãos britânicos,

incluindo engenheiros da São Paulo Railway. Além de William Speers, lá

estavam Charles Walker, Percy Lupton, William F. Rule e William Snape.

A ideia inicial era criar um espaço destinado à prática de críquete, com

uma área de lazer para as famílias dos esportistas.

O local escolhido foi um terreno situado na Rua Visconde de Ouro

Preto, no bairro da Consolação, tendo sido inicialmente cedido pela senho-

ra Veridiana Prado e depois adquirido pelo clube. Entre seus famosos sócios

Vista do Largo de São Bento, na região central de São Paulo, anos 1900.

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encontrava-se Charles Miller, que introduziu o futebol no Brasil. No SPAC,

também se praticava rúgbi, hóquei sobre grama, squash, badminton e tênis.

A agremiação existe até hoje, popularmente conhecida como Clube Inglês,

embora sua denominação o�cial seja, agora, Clube Atlético São Paulo.

Intensa vida socialMary Speers não só praticava esportes – golfe, natação e tênis –,

como também participava de atividades bene�centes. Em 1926, inte-

grou a comissão social da Federação Paulista de Atletismo, fundada

dois anos antes, para arrecadação de fundos. Em geral, eram organi-

zados vesperais dançantes que reuniam a alta sociedade paulistana.

Mary Speers sempre foi incentivada a praticar esportes, como o tênis.

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Não é raro encontrar seu nome em notícias veiculadas por A Cigarra,

revista editada entre 1914 e 1975.

Bastante voltada para o público feminino, essa revista contava

com colaboradores consagrados no mundo da literatura, como Mon-

teiro Lobato, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida. Vez por ou-

tra, a publicação promovia concursos, para que seus leitores elegessem

“A Moça Mais Bela” da cidade. Em uma de suas edições, Mary Speers

esteve entre as que receberam votos.

A jovem mantinha os belos traços da infância e,

nas fotos, estava sempre sorrindo, ao contrário do que

ocorria nas imagens de criança, quando costumava

aparecer muito séria, às vezes ao lado da mãe, Maria

Victória, que morreu em 1931. Órfã aos 25 anos, Ne-

neca recebeu todo amparo do pai, �omaz, que admi-

nistrava o patrimônio e os investimentos da família.

Entre os negócios estavam cotas da Compa-

nhia Fazenda Belém, criada em 1922, para exploração

das Fazendas Belém, Cachoeira e Borda do Mato. Os

objetivos eram a exploração da atividade agrícola –

produção de milho, cana e mandioca – e a criação de

gado bovino, suíno e ovino. Cerca de 70 famílias viviam nessas propriedades,

cultivando a terra em troca de moradia.

Neneca manteve-se ligada à vida do campo, com especial predi-

leção pela Fazenda Cachoeira do Jica, não apenas na juventude, como

também na maturidade, contando sempre com a companhia de sua pri-

ma Mary Dodd, que passou a residir no Rio de Janeiro depois que se

casou com George Ferrez, neto do famoso fotógrafo Marc Ferrez, autor

de belas imagens de várias regiões do País. O neto seguiu os passos do

avô. O casal teve três �lhas, Denise, Silvia e Monica.

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Com intensa vida social, Mary Speers frequentava assiduamente as festas mais disputadas de sua época.

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Casa-sede da Fazenda Cachoeira do Jica, local predileto de Mary Speers para passar as temporadas de férias.

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O peso da herançaA vida em família foi o cotidiano de Mary Speers, que, ao con-

trário de sua prima, nunca se casou. Pouco a pouco, de uma for-

ma natural, inteirou-se dos detalhes patrimoniais, algo providencial

quando teve de geri-los, após a perda de seus tios William Gordon e

Herbert, na década de 1940, e de seu pai, � omaz, em 20 de janeiro

de 1952. Da família Speers, no Brasil, restou apenas seu tio Francis,

com quem teve convivência muito próxima

até 1974, quando faleceu.

Mary enfrentou não apenas a comple-

ta orfandade, mas também a obrigação de

cuidar da herança. Para quem nunca tivera

de enfrentar desa� os sozinha, não deve ter

sido fácil. A� nal, na década de 1950, a gran-

de onda de emancipação feminina ainda

não se delineara. Grande parte das mulheres

permanecia na esfera doméstica, cuidando

do lar e da família. Poucas se aventuravam a

trabalhar fora.

Mary Speers vivia no casarão da

Alameda Joaquim Eugênio de Lima, � ncado

em um terreno de 2.300 metros quadrados

– quase uma chácara em uma das áreas mais

nobres da cidade. Entre as dependências da casa estava uma biblioteca

com títulos de renomados escritores ingleses, como Daniel Defoe, autor

do clássico Robinson Crusoé, com dedicatória de sua mãe, Maria Victoria

– tratava-se de um presente de Natal, oferecido em 1915.

Ao contrário de sua rotina agitada na juventude, entre atividades

esportivas e festas, incluindo o Carnaval, a maturidade de Neneca foi

Imagem do caderno de poesias e anotações pessoais de Mary Speers, 1952.

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absolutamente discreta. Continuou a se dividir entre a cidade e o cam-

po. Mas, agora, com a pesada atribuição de cuidar dos bens da família.

Sempre com uma visão bem clara do quanto fora afortunada e de que

poderia usar essa riqueza em favor dos necessitados. As lições de soli-

dariedade que aprendera com a mãe estavam enraizadas em seu caráter.

Muito cedo acompanhava Maria Victoria em suas obras assistenciais,

especialmente no cuidado de portadores de hanseníase.

A responsabilidade de administrar a fortuna herdada, mesmo

sem contar com formação para tanto, fez com que Mary adotasse uma

rotina metódica e sistemática quando estava em São Paulo. Geralmen-

te, �cava em casa pela manhã e, no período da tarde, dirigia-se ao es-

critório, no centro da cidade. Muitas vezes, fazia esse trajeto de ônibus,

algo que revela sua absoluta falta de apego a qualquer tipo de osten-

tação. Não há registros de nenhuma atitude sua comparável ao que,

em sua época, era comum entre as mulheres providas de fortuna: joias,

festas suntuosas, aquisições milionárias. Mesmo as notícias que saíram

na imprensa, em sua juventude, eram mais ligadas a suas atividades

práticas, ao esporte ou a trabalhos assistenciais.

Ao enfrentar a gestão do patrimônio, passou a contar com a co-

laboração de uma pessoa de sua extrema con�ança, o advogado Osório

Faria Vieira. Essa relação pro�ssional teve início em 1957, motivada

por uma questão jurídica envolvendo o monsenhor Benedicto Mario

Calazans. Ele era inquilino de um imóvel bastante valioso da família

Speers, alugado em 1946, para instalação da Escola Lareira, que minis-

trava curso de formação familiar e preparava moças da classe média

para o casamento. A casa �cava no mesmo terreno onde, em outra edi-

�cação, morava a própria Mary. Em 1957, um ano após a morte de seu

pai, ela decidiu mover um processo de despejo contra Calazans, que

também era senador da República.

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Na ocasião, o advogado de Mary Speers era o dr. Noé Aze-

vedo, que se sentiu desconfortável para cuidar do caso, uma vez

que sua irmã era freira. Ele mesmo indicou, para substituí-lo, seu

colega dr. Osório, membro da Primeira Igreja Presbiteriana Inde-

pendente de São Paulo. Como a condução do processo agradou a

cliente, a partir desse episódio o jovem advogado passou a defen-

der os interesses de Mary Speers. Ao longo do tempo, ela passou

também a conviver com a família Vieira, em uma sólida relação

de amizade que implicava o compartilhamento de momentos fes-

tivos, como as comemorações de

final de ano.

Mary gostava muito dessas

festas anuais e a elas se dedicava

pessoalmente. Na época de Na-

tal, reunia seus funcionários ur-

banos na garagem de casa, com

mesa farta e muitos presentes,

que ela mesma escolhia, embala-

va e entregava.

Na fazenda, também havia

festa, com um costume bem particular. No começo de cada ano, ela

pedia aos colaboradores para escolherem um boi, do qual deveriam

cuidar com esmero, para ser sacri�cado em dezembro e suas partes,

distribuídas. Além disso, também oferecia lembranças. Era parte de sua

vida no campo, onde incentivava os ajudantes a plantar tudo o que fosse

necessário para a subsistência, de verduras e legumes, na horta, a frutas,

no pomar.

Seu apreço pela Fazenda Cachoeira do Jica era evidente nos

mínimos detalhes e foi consagrado em um poema, a que ela deu

Vista da Fazenda Cachoeira do Jica.

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o título em inglês On My Fazenda in Brazil, discorrendo sobre os

vários locais da propriedade que tanto apreciava. Teve, também,

o cuidado de manter o casarão da sede tal como sempre foi. Até

mesmo sem energia elétrica na maioria dos cômodos.

A única exceção era a cozinha, onde permitiu que houvesse a

instalação de um ponto de luz e de uma tomada, a pedido de uma

de suas duas ajudantes mais próximas, que gostava de assistir a

novelas na televisão. Ambas, Ana e Vicentina, permaneceram ao

lado de Neneca ao longo de toda a sua vida. Eram descendentes

de escravos da própria fazenda, como Severino e Benedita, avós de

José Fonseca, que também trabalhou para a família. Ana, tia dele,

era apenas três anos mais velha que Mary e foi auxiliá-la a cuidar

do casarão em São Paulo, uma tarefa que, em suas folgas, era assu-

mida pela mãe de José.

Ana e Vicentina receberam uma pensão vitalícia – foi uma

das cláusulas do testamento de Mary, junto com a recomendação

de que todas as despesas médicas de suas auxiliares diretas tam-

bém fossem ressarcidas.

A leveza do legadoAo contrário de si mesma, herdeira da vasta fortuna familiar,

Mary Speers não tinha a quem deixar seu legado. À medida que o

tempo passava, ela começou a se preocupar com o destino de seu

patrimônio depois de sua morte. Queria encontrar uma boa solu-

ção que garantisse a aplicação de seus bens em favor da sociedade,

evitando que fossem encampados pelo governo por falta de herdei-

ros legais diretos. Para seus familiares, só legou bens de maior valor

a duas das três filhas de sua prima Mary Dood: Denise e Monica.

Para outros parentes, deixou móveis e objetos de sua residência.

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Seu inventariante foi o dr. Osório Faria Vieira, com quem dis-

cutiu todos os detalhes da questão. Queria dar um amplo sentido

ao que seus antecessores amealharam e ela geriu, com muito zelo e

visão tradicional. Foi do dr. Osório a ideia – também incentivada

pelo médico particular de Mary – de criar uma fundação, tanto

para administrar o patrimônio como para destinar fundos à forma-

ção de profissionais ligados ao campo e outras áreas do conheci-

mento. Mary aceitou com entusiasmo a sugestão.

Ele a orientou sobre a necessidade da Fundação ter o respaldo de

uma instituição séria, com base sólida, voltada para obras sociais, que,

ao longo do tempo, garantisse a continuidade dos propósitos projeta-

dos. Propôs que Mary escolhesse uma instituição da sua con�ança e

indicou, como sugestão, o Conselho da Primeira Igreja que ele conhe-

cia. Na época, o dr. Osório já tinha elaborado estatutos de associações

ligadas à Primeira Igreja, como a Fundação Francisca Franco. Assim,

Mary quis conhecer um representante da Igreja.

Esse primeiro contato foi realizado, então, com o reverendo

Abival Pires da Silveira, que a visitou em sua casa. Mary lhe dis-

se, na ocasião, que estava refletindo muito sobre a possibilidade,

sem ter ainda nada de concreto para discutir. Queria amadurecer a

ideia e, depois, entraria em contato, algo que não tardou muito. O

segundo encontro foi bem objetivo, pois Mary já se convencera de

que a Fundação seria, mesmo, a melhor opção para assegurar que

sua herança fosse encaminhada para causas sociais, sem que isso

significasse um movimento simplesmente assistencialista. Queria

que fosse algo criativo e multiplicador.

A escolha da instituição que respaldaria sua futura Fundação

foi definida em uma reunião realizada quando ela, mal de saúde,

estava internada em um hospital. Na ocasião, Mary havia reunido

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informações suficientemente positivas para chegar àquela conclu-

são. Sabia que se tratava de uma entidade centenária e bem admi-

nistrada. A oficialização ocorreu em 9 de março de 1981, quando

ela reuniu em sua casa, na presença de seu advogado e testamen-

teiro, cinco testemunhas: Cesário Mathias, Gladys Evelyn Sinclair,

Luiz Antonio Machietto, Ernesto Whitacker Carneiro e José Ed-

mundo Briganti.

Naquele momento, redigiu seu testamento. Nele, deixou

bem claro que, por “ter sido ricamente abençoada por Deus, pois

conseguiu amealhar um valioso patrimônio”, queria “contribuir

para o bem da coletividade e para melhorar o padrão de vida de

pessoas menos protegidas de fortuna”. Determinou que isso deveria

ser concretizado “por meio do auxílio a estudantes carentes,

independentemente de sua cor, religião, sexo ou raça” e também

“mediante prestação de auxílio a instituições que cuidem de velhos

e de crianças necessitados.”

Esse passo decisivo foi dado em 1981, um ano antes de sua

morte, em 14 de abril de 1982, vítima de câncer. Uma dupla coin-

cidência foi o fato de sua prima, Mary Dodd, também nascida em

1906, ter vindo a óbito exatamente no mesmo ano do falecimento

da benemérita.

Aos 76 anos, Mary Speers havia dedicado três décadas de sua

vida ao trabalho de manter uma herança exatamente para garan-

tir que, no momento em que sua vida se extinguisse, essa herança

ganhasse outro destino, canalizada para o bem comum e com uma

finalidade bem distante do assistencialismo. É interessante refletir

sobre sua preocupação, porque muito se assemelha ao sentido do

investimento em atividades sociais autossustentáveis, conceito de-

senvolvido bem depois.

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Não se tratava, segundo sua concepção, de oferecer fundos

para manter entidades a perder de vista, mas sim recursos focados

na formação educacional e na oferta de fôlego inicial para que de-

terminados processos decolassem, de maneira a conseguirem, em

seguida, voar por conta própria. Uma visão ampla. Gratificante. De

quem viveu bem e a mesma coisa desejou para seus semelhantes.

Se pudesse ver o resultado de sua iniciativa, hoje, constataria

que seu desejo se transformou em realidade para instituições e pes-

soas. De fato, a Fundação é uma obra que se criou e recriou para

manter sempre vivo e em expansão o sonho de sua instituidora.

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Fundação, segundo a lei, é uma pessoa jurídica de direito pri-

vado. Tem, entretanto, natureza social, justamente porque se

destina à sociedade. É preciso que esteja muito claro – de antemão

e de maneira formal – o que pode ou não fazer.

Isso significa que seus limites têm a ver com o que estabelece

a legislação vigente e o alcance de sua atuação, conforme o que foi

estipulado em sua formação. Prevê-se que conte com uma supervi-

são geral, conselhos específicos – tanto fiscal como de curadores – e

FUNDAÇÃO MARY HARRIET SPEERS, OLHARAUTOSSUSTENTÁVEL

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diretoria. A garantia de integridade em sua condução se baseia em

uma ação coletiva e no fato de que o compromisso de cada um dos

envolvidos é não apenas com o patrimônio da instituição, mas com

toda a comunidade.

O Ministério Público tem grande importância nesse contexto,

pois atua como fiscalizador e controlador dos atos de gestão das

fundações, exercendo, ainda, um papel de provedoria, na acepção

do termo prover, derivado do latim providere, que significa auxiliar,

ajudar, trabalhar conjuntamente na busca de soluções; enfim, age

em parceria com as fundações.

Trata-se de uma ligação contínua, marcada por análise, chan-

cela de atas e constantes reuniões com os dirigentes. Cabe ao Minis-

tério Público aprovar transações com os ativos, seja de compra, seja

de venda. Além disso, tem de verificar as prestações de contas anuais

das entidades. Mas a intenção é de contribuir, impedindo que haja

desvios nos propósitos definidos. A atenção é focada na atividade

dos dirigentes, para garantir que seja profissional e transparente.

Escolher uma instituição responsável pela gestão de um

imenso patrimônio não é tarefa simples, apesar dos cuidados que

cercam a constituição e o funcionamento de algo que pertencerá à

sociedade. Quando atribuiu ao Conselho da Primeira Igreja Presbi-

teriana Independente de São Paulo a responsabilidade de conduzir

a Fundação que pretendia criar, como de praxe, Mary Speers ana-

lisou a fundo a história da instituição, começando por conhecer

seus representantes e por estudar sua história e a contribuição que

oferecera à comunidade.

Assim, embora tenha considerado as orientações de seu

advogado, a quem coube a indicação da pessoa responsável por

ser a guardiã de seu patrimônio, ela mesma reuniu informações

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objetivas a respeito, somando-as às impressões sentidas em cada

contato. Era sua maneira bem característica de gerir: antes de

delegar, ter certeza de que aquele era o caminho certo.

Estava diante de uma instituição centenária, o que por si já

era um indicador positivo. A Primeira Igreja Presbiteriana em São

Paulo surgiu em 5 de março de 1865, por iniciativa do missionário

norte-americano Alexander Latimer Blackford, cunhado de Ashbel

Green Simonton, fundador da Igreja Presbiteriana no Brasil.

Durante quase quatro décadas, a Primeira Igreja integrou a

Igreja Presbiteriana do Brasil. Nesse período, desenvolveram-se

diversas instituições ligadas a ela, as quais obtiveram renome em

âmbito nacional e internacional, como o Colégio e a Universida-

de Mackenzie, a Associação Cristã de Moços – ACM e o Hospital

Samaritano, em São Paulo, tendo este último contado com ativa

participação de William Speers.

Porém, em 31 de julho de 1903, sob a liderança do reverendo

Eduardo Carlos Pereira, onze presbíteros e seis pastores – Alfredo

Borges Teixeira, Bento Dias Ferraz de Arruda, Caetano Luiz

Gomes Nogueira Júnior, Ernesto Luiz de Oliveira, Othoniel Motta

e Vicente �emudo Lessa –, a Primeira Igreja Presbiteriana de São

Paulo desligou-se da Igreja Presbiteriana do Brasil, em razão de

algumas questões, como a autonomia da igreja nacional e seu então

relacionamento com a maçonaria. Com isso, no dia seguinte, o grupo

organizou a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil – IPIB.

Uma história de tantas realizações convenceu Mary de que

estava diante da melhor escolha. Por isso, formalizou a decisão em

seu testamento, já traçando os objetivos da Fundação, sem esmo-

recer, mesmo estando enferma. Teve força suficiente para concluir

essa tarefa, permitindo que seu patrimônio fosse destinado ao bem

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comum. Mas, desse momento decisivo até a realização de seu dese-

jo, foi uma longa trajetória.

Primeiros passosDar vida a uma instituição é um processo árduo, que implica –

assim como ocorre com os seres humanos – a geração, a nutrição, o

desenvolvimento, a consolidação e a maturidade. Tudo começa com

uma série imprescindível de trâmites legais. Desde a constituição,

tudo é acompanhado pelo Ministério Público, como ocorre com to-

das as instituições do gênero.

O primeiro passo para dar forma legal à Fundação Mary

Harriet Speers foi lavrar a escritura pública, o que ocorreu em

7 de outubro de 1982, seis meses após a morte de sua inspiradora. O

documento, lavrado no 15º Tabelionato de Notas de São Paulo, foi

registrado em 27 de outubro no 1º Ofício de Títulos e Documentos,

sob o número 44.570. A providência é fundamental, porque é no

momento desse registro que a pessoa jurídica nasce e adquire per-

sonalidade. Mas sua ferramenta essencial é o estatuto, que define

como será organizada e irá funcionar. É a baliza para que exerça

suas atividades.

No caso da Fundação Mary Speers, o estatuto, também devida-

mente submetido ao Ministério Público, foi redigido pelo dr. Osório

Faria Vieira. O texto reuniu as ideias e intenções de sua instituidora

para que seu patrimônio fosse destinado à formação de estudantes e

ao auxílio a idosos e crianças.

Uma das recomendações que se faz para instituições desse tipo

é que tenham, por de�nição estatutária, um conselho de curadores

capaz de ser o guardião do compromisso primordial previamente de-

lineado, cuidando para que essa missão seja vivida em sua plenitude.

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Ao mesmo tempo, cabe a este conselho garantir a escolha de uma

gerência competente, cujo desempenho avaliará continuamente.

Os órgãos da administração foram definidos no capítulo três

do estatuto registrado em outubro de 1982, que fixa três instâncias

de gestão: o Conselho de Curadores, o Conselho Fiscal e a Diretoria.

De acordo com o testamento de Mary Speers, o Conselho da Primei-

ra Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo ficou responsável

pela indicação do Conselho Fiscal e do Conselho de Curadores, ca-

bendo a este nomear a Diretoria.

O Conselho da Primeira Igreja Presbiteriana Independente

de São Paulo, sempre presidido pelo pastor titular, é composto por

presbíteros eleitos em assembleia, com a responsabilidade de cuidar

da administração e da disciplina da Igreja.

Foi exatamente esse órgão que, em 1982, indicou o primeiro

grupo de conselheiros da então recém-instituída Fundação Mary

Harriet Speers – a constituição de cada uma das partes componentes

permanece a mesma. O Conselho de Curadores tinha oito membros

efetivos e oito suplentes, com mandato de quatro anos, todos passí-

veis de reeleição. Já o Conselho Fiscal, para atuar por um ano com

possibilidade de recondução, era composto por três membros efeti-

vos e três suplentes. A Diretoria, por força do estatuto, foi nomea-

da pelo Conselho de Curadores, com quatro membros reelegíveis e

mandato de três anos.

Ao Conselho de Curadores cabe também nomear um adminis-

trador-geral, contratado por tempo indeterminado pela Diretoria –

cargo que passou a ser denominado gerente-geral, segundo o novo

estatuto. A ele compete a administração direta de todos os bens da

Fundação, sempre conforme as determinações e orientações traça-

das pelos curadores e diretores.

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Criança moradora do interior de Santa Catarina abrindo seu primeiro presente de Natal, doado pela Fundação Mary Speers por meio do projeto SOS Santa Catarina, Natal de 2008.

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O primeiro a ocupar essa função, para o período de 1982 a 1986,

foi, não por acaso, Osório Faria Vieira, testamenteiro e responsável pela

condução do inventário do espólio de Mary Speers. Ninguém melhor

que ele, conhecedor profundo das intenções da benemérita quanto ao

destino de sua herança, para dirigir a trajetória inicial da instituição.

À competência pro�ssional, ele somava uma grande amizade com sua

cliente, sedimentada ao longo de anos e anos de convivência não apenas

com ele, mas com toda a sua família.

A lista completa dos integrantes do primeiro Conselho de Curadores

da Fundação Mary Speers, eleitos em 1982, incluía: Cesário Mathias, pre-

sidente; Carlos Fernandes Franco, vice-presidente; Célio de Mello Almada,

Steen K. Frisch, Naur do Valle Martins, Maria Antonieta da Costa Vieira,

Rosa Tedeschi Viana Manso Vieira, Marlene Almenara de Freitas Silveira,

vogais; Acácio de Mello Amaral Camargo, João Daniel Migliorini, Darnei

Machado e Clovis de Morais, suplentes. O Conselho Fiscal, por sua vez, foi

composto por: Geofrey M. A. Haigh, Roberto Homem de Mello e Jadir Rosa

Franco, efetivos; Gilson Moreira, Edson Moraes e Joaquim Cassão Filho, su-

plentes. Já a Diretoria contou com José Edmundo Briganti, presidente; Luiz

Antônio Maschietto, vice-presidente; Raimundo Evangelista de Abreu, se-

cretário; e Paulo Bernardo Tavares de Lucca, tesoureiro.

O trabalho, então, apenas começava. Antes de iniciar efetivamen-

te qualquer ação externa, a Fundação Mary Speers tinha de se organizar

internamente. E foi uma tarefa muito mais ampla e demorada do que

seria possível prever, a princípio. A começar por uma completa e deta-

lhada relação de todo o patrimônio. Então, nos primeiros anos de sua

existência, as ações da Fundação foram direcionadas ao espólio deixa-

do pela instituidora.

Nas atas desse período, sempre devidamente acompanhadas

e aprovadas pelo Ministério Público, a primeira diretoria executiva

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ressaltou a morosidade do processo de inventário, justi�cando assim –

e com razão – a consequente di�culdade da administração para gerar

renda capaz de atender aos compromissos básicos da instituição. Quem

deu início ao inventário do espólio foi o próprio testamenteiro de Mary

Speers, assistido pelo Ministério Público, na ocasião representado por

Carlos Francisco Bezerra da Rocha Bandeira Lins.

Os bens de origemO patrimônio é um dos elementos básicos do modelo de pessoa

jurídica, portanto, deve existir de antemão para que seja criada uma

fundação. Sem um, a outra não existe. Os bens que formaram o alicer-

ce da Fundação Mary Speers reuniam 144 imóveis, divididos em pro-

priedades rurais – fazendas e chácaras –, casas e terrenos urbanos e

ações de empresas.

Grande parte das propriedades estava localizada na cidade de

São Paulo, em vários bairros, entre os quais Brooklin Paulista, Santa

Cecília, Centro, Vila Formosa, Vila Maria e Imirim. A maioria deles

estava alugada para �ns comerciais. Havia ainda a valiosa residência

particular da família, na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, além de

lotes industriais e residenciais em Osasco. Entre as várias cláusulas

estatutárias da Fundação, havia uma relativa à necessidade de não só

preservar o valor real do patrimônio, mas de ampliá-lo, desde que

fosse destinado à reserva de investimento imobiliário.

Passaram-se quatro anos entre a morte de Mary Speers e a esco-

lha de uma nova diretoria para a Fundação, tão logo foi concluído o

imprescindível inventário. A reunião com essa �nalidade ocorreu em

9 de dezembro de 1986, quando Darnei Machado assumiu a presidên-

cia e o contador e advogado José de Souza tornou-se o administrador-

-geral. Não por acaso, embora tenha sido constituída juridicamente

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em 1982, a Fundação começou a funcionar de fato no ano seguinte ao

do término do inventário, 1987, quando a segunda diretoria da enti-

dade iniciou sua gestão, em 1º de junho.

A tarefa que aguardava os novos dirigentes não era menos

complexa que a dos pioneiros, dedicados ao levantamento de

todo o patrimônio. Iniciava-se, então, uma fase marcada pela

transformação desses bens, tanto com investimento nos imóveis

bem localizados e de maior valor agregado como por meio da

venda das propriedades menos rentáveis no mercado. Foi um tra-

balho intenso, que exigiu grande empenho de todos, porque ha-

via pendências jurídicas a enfrentar e grandes decisões a tomar.

Mais de uma diretoria se debruçou sobre esse desafio, finalmente

resolvido a contento.

A fase seguinte exigiu a busca de perfis mais adequados à

nova missão, que era realizar um planejamento estratégico capaz

de gerar um novo modelo de gestão do patrimônio e atuação na

sociedade. Buscou-se parcerias capazes de apresentar resultados

não somente financeiros, mas, sobretudo, que propiciassem o

cumprimento da missão de transformar pessoas, de acordo com

a vontade de Mary Speers. Antes de tudo, uma missão inovadora.

No Brasil, o modelo de fundação, ao contrário do norte-

-americano, historicamente foi assistencialista, mais dedicado à

distribuição de benesses que vinculado aos possíveis resultados

obtidos pelos beneficiários. Não era esse, porém, o sentido da ins-

tituição imaginada por Mary Speers, que já nasceu inovadora, ao

investir na formação de estudantes, de maneira que seu aperfei-

çoamento gerasse frutos para a sociedade. Era uma visão avança-

da, com o intuito de garantir a expansão do próprio patrimônio,

não tratá-lo como um poço passível de esgotamento. Para evitar

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essa possibilidade, era preciso geri-lo profissionalmente, de acor-

do com as leis do mercado e apostando na alimentação e multipli-

cação de sua nascente.

Não por acaso, os gestores da Fundação Mary Speers trata-

ram de realizar um processo de reformulação de seus ativos, como

etapa fundamental de sua constituição, para só depois prospectar e

incrementar o desenvolvimento social. Era preciso manter a essên-

cia, consubstanciada no estatuto, garantindo, ao mesmo tempo, a

adaptação à dinâmica da sociedade. Não por acaso, as instituições

não profissionalizadas do Terceiro Setor entraram em crise. Entre

outros fatores negativos, a falta de transparência fez com que ficas-

sem vulneráveis a gestões não comprometidas com a missão social.

Adequações necessáriasExatamente para assegurar a continuidade da valorização e ex-

pandir o montante do patrimônio inicial, a segunda diretoria da Fun-

dação Mary Speers tratou de analisar a situação naquele momento, o

ano de 1987. A renda que poderia ser auferida com o que estava dispo-

nível – não obstante a existência de inúmeros bens – não seria su�cien-

te sequer para cobrir a folha de pagamento dos colaboradores e quitar

débitos com os fornecedores.

Foi necessário recorrer a um empréstimo, solicitado ao Banco Itaú,

para honrar tais obrigações. Paralelamente, iniciou-se a reestruturação ad-

ministrativa da Fundação, algo que envolveu a adequação das instalações

do escritório e a contratação de colaboradores nas áreas de administração,

serviços de processamento de dados e contabilidade, uma providência im-

prescindível para permitir o efetivo acompanhamento dos resultados.

Essa readequação administrativa e �nanceira implicou a elaboração

de um plano diretor capaz de de�nir a real vocação de cada imóvel legado

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pela instituidora, visando à transformação e ao melhor aproveitamento

do patrimônio, tornando-o, de fato, rentável. Só assim poderia atender às

atividades para as quais a Fundação foi instituída. Os imóveis foram divi-

didos em duas categorias: aqueles que seriam conservados para aluguel

imediato e os que seriam transformados para viabilizar uma rentabilidade

maior, com exploração mais racional.

O plano, submetido ao Conselho de Curadores e ao Ministério

Público, foi aprovado em maio de 1989 e passou a nortear as ações sub-

sequentes. Entre as primeiras providências encontravam-se as renego-

ciações dos aluguéis vigentes – que estavam desatualizados –, a venda de

terrenos, os despejos de locadores inadimplentes e as reivindicações de

posses, pois muitos imóveis estavam sendo ocupados de forma indevida

por antigos inquilinos ou tinham sido alvo de invasões.

As invasões eram os casos mais complexos, por di�culdades para

conseguir a regularização. Ter determinadas propriedades, portanto,

não assegurava sua efetiva posse. Paradoxal, mas verdadeiro. Muitos in-

vasores alegavam ter direito às áreas por usucapião. Foram negociações

morosas e delicadas, mas necessárias para acertar toda e qualquer aresta.

Em determinados locais, os terrenos em litígio acabaram sendo

vendidos para os próprios ocupantes irregulares por valores de merca-

do. Outros foram considerados perdidos, porque não havia condições

de resgatá-los. Até por uma questão humanitária. Era o caso de terrenos

ocupados por favelas onde viviam dezenas de pessoas.

Mesmo assim, foi preciso regularizar a situação, com a transferên-

cia de posse para os usuários. Tratava-se de providência incontornável,

pois, se houvesse qualquer atraso no pagamento de impostos – como

o territorial urbano – ou contas de água e luz, o ônus seria cobrado da

Fundação, como titular de domínio. Não foram poucas as vezes que o

pessoal da instituição orientou os invasores a resolver essas questões.

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Mesmo para reivindicar usucapião, as pessoas têm de exercer a posse,

como verdadeiras donas, pagando, portanto, suas dívidas.

Percalços e soluçõesA realidade econômica também interferiu no andamento das

atividades da Fundação. O início da década de 1990 foi marcado

pela dificuldade orçamentária gerada pelas alterações econômicas

do País em função do Plano Brasil Novo, mais conhecido como

Plano Collor. As iniciativas do governo inibiram os investimentos e

congelaram os ativos financeiros, depreciando, entre outros itens, o

preço do leite e dos aluguéis.

Em contrapartida, as despesas operacionais cresceram despro-

porcionalmente à receita. A solução foi aprimorar o controle �nanceiro,

com redobrada atenção aos balanços patrimoniais, ao plano orçamen-

tário e aos relatórios �nanceiros e administrativos, sempre avaliados e

aprovados internamente e pelo Ministério Público. O conturbado ce-

nário econômico do País contribuiu para que, momentaneamente, a

transformação do patrimônio não fosse feita na velocidade planejada.

Isso, entretanto, não interrompeu o processo em curso, de maneira que

mesmo naquele difícil ano de 1990 foi realizada a primeira venda de

terrenos residenciais, em Campinas.

Em 1991, para assegurar a transparência da gestão, foi aprovada

a contratação de um auditor, responsável pela elaboração de parecer

sobre as contas da Fundação. A atividade desse pro�ssional contribuiu

para facilitar o acompanhamento da gestão, sempre focada na clareza

de princípios, e representou mais um passo em direção à modernidade

administrativa. Ao mesmo tempo, o processo de transformação patri-

monial seguia em frente, com negociações imprescindíveis para garan-

tir a efetivação dos recursos necessários para manter a Fundação.

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Decisões cruciaisOs trâmites relativos à propriedade localizada na Alameda Joaquim

Eugênio de Lima, nº 766, foram cruciais para o processo em curso. Das

duas construções erguidas naquele terreno de 2.300 metros quadrados,

uma tinha sido ocupada pela própria Mary Speers até seu falecimento. A

outra tinha sido alvo de uma questão judicial, solucionada �nalmente com

o despejo dos inquilinos. Mais um imóvel que precisou ser desocupado da

mesma forma e na área contígua: aquele onde estava instalado o restaurante

Hungaria. Assim, em uma das áreas mais valorizadas da cidade, a Fundação

decidiu dar novo destino à ampla propriedade, pois só assim poderia au-

mentar a renda dela decorrente.

Seus dirigentes entraram em contato com

algumas construtoras para levantar as possibi-

lidades de uso do terreno. Receberam dezoito

propostas para análise. Desse conjunto, foram

selecionados os três melhores projetos e, a partir

deles, abriu-se o processo de licitação. Quem ven-

ceu a concorrência foi a Ga�sa. Pelos termos do

acordo, caberia à empresa construir dois edifícios

na área: um prédio comercial – com área total de

7.051 metros quadrados, divididos em dois sub-

solos, térreo, loja, mezanino e mais doze andares

–, destinado à Fundação, e um condomínio residencial de alto padrão.

A pedra fundamental do edifício da Fundação foi lançada no dia 3 de

maio de 1995, em evento que contou com a presença de representantes da

Fundação e da Ga�sa Imobiliária. Durante a cerimônia, falando pela entida-

de, Osório Faria Vieira traçou o per�l de Mary Harriet Speers e o reverendo

Abival Pires da Silveira fez a oração de encerramento.

As obras começaram sob a responsabilidade da Ga�sa, mas acom-

Residência de Mary Speers, situada na Alameda Joaquim Eugênio de

Lima, região nobre da cidade de São Paulo. O espaço também abrigou

a Instituição Lareira e o conhecido restaurante Hungaria.

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panhadas pelo engenheiro Gilson Moreira, contratado pela Fundação.

Tudo transcorreu de acordo com o planejado, de maneira que a entrega

solene do prédio, denominado Condomínio Mary Harriet Speers, foi

realizada em 31 de julho de 1996. A locação dos escritórios permitiu à

Fundação ampliar em mais de dez vezes o valor que conseguiria obter

caso tivesse alugado o imóvel original.

Tais números indicavam que a estratégia de transformação do patri-

mônio estava correta. Assim, o processo seguiu o curso idealizado, que incluía

a venda de imóveis existentes em áreas de menor valor. Com o montante ar-

recadado, a Fundação concretizou novos investimentos,

entre os quais a aquisição de seis lajes em um edifício na

Alameda Santos, também na região da Avenida Paulista,

e, em 2007, de cotas do Shopping Pátio Higienópolis, na

região central de São Paulo.

Assim, a entidade não administrou simplesmente

os bens de origem, sem fazer uma avaliação pela pers-

pectiva do que poderiam gerar caso tivessem outra des-

tinação. É uma tarefa árdua, comparável à gestão de uma

grande companhia com diferentes rami�cações. Trata-

-se de pensar o patrimônio tanto em preservação como

em crescimento do valor, de maneira a gerar capital su�-

ciente para suportar seus próprios custos.

São decisões que dependem de uma acurada aná-

lise conjuntural e futura. Su�cientemente corajosa para impedir que parte do

patrimônio se desgaste, por falta de conservação ou de destinação correta.

Nem sempre são decisões que dependem apenas de contas matemáticas. E

aquelas tomadas pelas sucessivas gestões da entidade �zeram com que o pa-

trimônio fosse representado basicamente por imóveis de alto padrão e gera-

dores de renda por meio das locações.

Edifício Mary Speers, construído no lugar que originalmente correspondia à residência da benemérita, na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, em São Paulo.

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Vendas inadiáveisPropriedades rurais, a Fazenda Cachoeira do Jica e o sítio Joatuba, em

Indaiatuba, implicavam altos custos de manutenção. Ao longo da década

de 1980, várias iniciativas foram tomadas para melhorar a produtividade

da Cachoeira do Jica. Ainda nos anos 1980, foram feitos investimentos

imprescindíveis, como o aperfeiçoamento da produção agrícola, reformas

inadiáveis no estábulo e mudanças na alimentação do rebanho, para ampliar

as possibilidades de incrementar a produção de leite tipo B.

No entanto, após avaliação da Diretoria e do Conselho de Cura-

dores, a decisão mais indicada foi vender essas duas propriedades. Com

a devida aprovação do Ministério Público, as negociações foram con-

cluídas em 2009 e 2011, respectivamente. A Fazenda Cachoeira do Jica

passou a pertencer ao Grupo Oscar Americano, do qual fazem parte as

empresas Esdi Administração e Participações Ltda., Espírito Santo In-

daiatuba Desenvolvimento Imobiliário Ltda. e Oscar Americano Neto.

Já o sítio Joatuba foi adquirido pela Saint Romain Empreendimentos

Imobiliários, Incorporação e Participações Ltda.

Essa negociação marcou o �nal do longo processo de transformação

do patrimônio e, a partir daquele momento, o foco da Fundação foi geri-

lo e ampliá-lo. Uma vez resolvidas todas as questões relativas ao legado

original, a fase seguinte foi dedicada à gestão �nanceira e imobiliária. Os

valores obtidos com vendas foram aplicados em imóveis novos de alto

padrão e alugados de maneira competente.

Com raras e potencialmente bastante rentáveis exceções, a instituição

investe em lançamentos. O objetivo maior é gerar receita e garantir a

sustentabilidade da Fundação, com base no princípio de que quanto

melhores e mais bem localizados forem os imóveis, mais vultosa será

sua receita e, consequentemente, mais numerosos serão os atendimentos

realizados pela Fundação Mary Speers.

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Fazenda Cachoeira do Jica, parte do patrimônio de Mary Speers, anos 1980. Ao lado, imagem de azulejo pintado à mão na entrada da casa-sede da referida propriedade.

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Lições da história A ação do homem no auxílio a seus semelhantes remonta às primeiras

organizações sociais. Está, portanto, gravada na história da humanidade. Nos

povos primitivos, essa ajuda ocorria no âmbito da família, do clã ou da tribo.

Já na Grécia Antiga, em Atenas, assim como na Roma Imperial, o próprio

Estado assumia a responsabilidade por ações em benefício dos necessitados,

como órfãos, viúvas e enfermos, fosse pela oferta de pensões, fosse pela dis-

tribuição de itens fundamentais para a sobrevivência, como farinha e azeite.

Entre os pioneiros nesse cuidado, estava o imperador romano Marco

Neiva, que reduziu impostos para os não abastados e tratou de garantir boa

alimentação para as crianças. Ele exerceu o poder no �nal do primeiro século

da era cristã, quando também os seguidores de Cristo se organizavam para

cuidar dos necessitados, oferecendo donativos. No Oriente, entre os povos

islâmicos, a �lantropia também era praticada, especialmente para a constru-

ção de centros de atendimento e cura de doenças. E a área da saúde é um

exemplo moderno desse tipo de destinação.

No Brasil, as Santas Casas de Misericórdia exerceram papel funda-

mental de assistência aos enfermos, principalmente no período colonial,

quando dependiam essencialmente de doações voluntárias e de espólios de

ricos senhores – um costume que se consolidou ao longo do Império.

O período de transição entre os séculos XIX e XX foi marcado princi-

palmente pela deposição da Monarquia, com a Proclamação da República, e

pelo fortalecimento do poder político e econômico das oligarquias. No pe-

ríodo conhecido como República Velha (1889-1930), o País tentava seguir

as tendências europeias de modernização, desenvolvimento e progresso de-

sencadeadas a partir da Revolução Industrial; no entanto, era marcadamente

agrícola, tendo no café seu principal produto de exportação.

Em termos de assistência à saúde, havia muito trabalho a ser feito. Sua

população enfrentava epidemias devastadoras de febre amarela, varíola e

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cólera, uma situação que di�cultava bastante a consolidação do País como

Estado moderno. Em 1904, Oswaldo Cruz liderou a reforma sanitária e o

debate cientí�co, cada vez mais acirrado, sobre o tratamento das principais

doenças que atacavam o povo brasileiro.

Além da febre amarela, da tuberculose e da varíola, outro tipo de

enfermidade, a lepra, hoje conhecida por hanseníase, implicava conse-

quências dolorosas, além das físicas, para seus portadores. Carregava

consigo um estigma secular, pelo risco de contágio via contato físico

e pela evidente degeneração da superfície da pele. Feridas e deformi-

dades faziam com que o doente fosse rejeitado, privado de qualquer

convívio social com pessoas sadias. Nas primeiras décadas do século

XX, a assistência aos hansenianos e suas famílias mobilizou o governo

e a sociedade civil, principalmente por meio de ações e campanhas or-

ganizadas por senhoras da alta sociedade.

Era o caso da mãe de Mary, Maria Victoria da Fonseca Cotching

Speers, que foi vice-presidente da Sociedade de Assistência aos Lázaros

e Defesa contra Lepra, instituição fundada por Alice Toledo Tibiriçá, em

fevereiro de 1926. Nessa atividade, ela, que sempre exercera in�uência

positiva sobre a �lha, a incentivava a participar de campanhas e eventos

para arrecadação de donativos para as vítimas da hanseníase. Não era

estranha à jovem, portanto, a importância de desenvolver uma atividade

bene�cente. Sobretudo se tivesse um caráter contínuo e frutífero. E ela

foi muito além da simples contribuição.

A Fundação que leva seu nome realizou um trabalho em profundidade

para garantir que o desejo de Mary Speers se tornasse uma realidade,

com frutos contínuos. Assim, a elaboração e a aprovação dos critérios e

regulamentos para o estabelecimento de parcerias e a concessão de bolsas

foram realizadas ao mesmo tempo em que a Fundação dava continuidade

ao trabalho de transformação do patrimônio, assegurando sua rentabilidade.

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Primeiras bolsasQuando decidiu criar uma fundação, Mary sabia muito bem a

que �nalidade deveria ser destinado seu patrimônio. Basicamente,

queria que fosse investido no fornecimento de bolsas de estudo a es-

tudantes carentes, independentemente de cor, religião, sexo ou raça, e

também no auxílio a instituições que atendessem crianças e idosos. Sua

preocupação em oferecer recursos para quem chegasse à velhice em

desamparo �cou patente inclusive na destinação de parte de seu legado.

Em seu testamento, deixou alguns imóveis para o asilo Stacy House,

localizado no bairro de Santo Amaro, na cidade de São Paulo.

Quanto à escolha das áreas para a conces-

são de bolsas de estudo – Agronomia, Zootecnia

e Veterinária –, levou-se em consideração a ex-

periência de Mary Speers, que teve uma vivência

familiar estreitamente ligada ao setor de produ-

ção agrícola, principalmente o café, e a de seu ad-

vogado, Osório Faria Vieira, que era proprietá-

rio de uma fazenda em Minas Gerais. A inclusão

de mais uma área, a Teologia, foi uma forma de

retribuição aos serviços prestados pela Primeira

Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, que aceitou a complexa

incumbência de respaldar o processo de condução da entidade.

Pelo estatuto, os recursos deveriam ser investidos na concessão

de bolsas a estudantes carentes de Agronomia, Zootecnia e Veterinária;

no auxílio a instituições que cuidassem de idosos e menores; e para

alunos de pós-graduação em Teologia, que passaram a receber o auxílio

em 1988, precisamente José Rubens Lima Jardilino, do Presbitério do

Vale do Paraíba, e Édson Zemuner de Paula e Eli da Silva, do Presbité-

rio de Osasco. Em 1990, alunos dos outros campos do conhecimento

Atividades desenvolvidas com idosos estimulam o aprendizado

de trabalhos manuais e o convívio social.

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começaram a ser bene�ciados, a começar por Rosa Maria Miguelão,

estudante da Faculdade de Agronomia do Paraná, em Curitiba.

Flávio Gimenes Fernandes é um bom exemplo da colheita que se

pode obter tendo como base o auxílio oferecido pela Fundação Mary

Speers. Ele recebeu bolsa, de 1996 a 2000, para o curso de graduação

em Medicina Veterinária na Universidade do Grande Rio – Unigranrio.

Atualmente, ele é pesquisador no Laboratório de Bacteriologia Médica

do Instituto de Microbiologia Professor Paulo de Góes – IMPPG, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É, também, professor da

Escola de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques e

1º tenente-veterinário do Exército Brasileiro, no Instituto de Biologia do

Exército. Um currículo extenso, para sua imensa

gratidão, expressa em suas próprias palavras:

“Desde a conclusão do curso, tive a oportuni-

dade de realizar os programas de especialização em

Microbiologia, mestrado em Doenças Parasitárias e

doutorado em Ciências (UFRJ). Tenho um carinho

todo especial por essa louvada Instituição, que repre-

sentou um marco muito importante em minha vida,

por acreditar em mim e nos meus sonhos. Assim,

agradeço de todo o meu coração à oportunidade que

me foi dada. Deus abençoe a todos que, nessa insti-

tuição, enxergam um futuro de sucesso no próximo”.

Primórdios assistenciaisAs contribuições iniciais da Fundação foram destinadas ao

Dispensário Otoniel Mota. Localizado na Rua Nestor Pestana, região central

da cidade de São Paulo, seu foco era atender a população do entorno,

principalmente moradores de rua e famílias residentes em cortiços.

Apresentação de choro e samba por alunos do projeto SoArte – Centro de Desenvolvimento Cultural e Artístico, que atua no campo da arte e da música com apoio da Fundação Mary Speers.

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Rebanho da Fazenda Cachoeira do Jica, 1990. O gado, de raça holandesa, produzia o leite tipo B, extraído com os mais modernos equipamentos de ordenha existentes na época.

Como a base já existia, a Fundação contribuiu com recursos

para a compra de alimentos destinados à montagem e distribuição de

cestas básicas e também de tecidos, que a o�cina de costura já montada

transformava em roupas a serem doadas. Isso permitiu ampliar o

número de assistidos. A Fundação ainda adquiriu um consultório

odontológico – tipo de cuidado não disponível, habitualmente, nem

sequer na rede pública de saúde.

Também eram fornecidos, gratuitamente, exames laboratoriais e

medicamentos, e contava-se com o trabalho voluntário de pro�ssionais

de diferentes áreas. Em 2003, o alcance da iniciativa foi ampliado com a

implantação do Projeto Reviver, cujo objetivo era organizar os critérios

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Árvore denominada Juazeiro, localizada em Cipó, interior do Ceará, sob a qual teve início, em 1994, o Projeto de Educação em Células Cooperativas, que conta com recursos da Fundação Mary Speers.

de atuação, expandir as parcerias e promover cursos pro�ssionalizan-

tes, proporcionando aos assistidos condições de ingressar no mercado

de trabalho.

A evolução no atendimento fornecido pelas entidades está ligada

diretamente às mudanças na própria história do Terceiro Setor, justa-

mente aquele de�nido por instituições sem �ns lucrativos que atuam

em áreas como a assistência social e a defesa dos direitos humanos e

do meio ambiente. Antes, as práticas nesse sentido eram caracterizadas

por �lantropia, caridade e mecenato, limitando-se à oferta de recursos

e não ao desenvolvimento de novas perspectivas que permitissem aos

bene�ciados alterar sua própria condição e ter autonomia.

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O conceito de Terceiro Setor começou a ser discutido e difun-

dido a partir da década de 1970, com um olhar acurado sobre a ques-

tão da cidadania, do direito do ser humano a ter uma vida digna e

também do que deve retribuir à comunidade. Desse debate surgiu a

necessidade de criar uma legislação especí�ca, o que de fato ocorreu,

com a de�nição de critérios e de pro�ssionalização.

Muitas instituições buscam adaptar-se ao novo conceito, de

maneira a deixarem de ser assistencialistas. Não é um movimento

simples, porque implica mudança de pensamento e de perspectivas.

Evolução contínuaA evolução rumo ao novo conceito de Terceiro Setor foi amplamente

vivida pela Fundação Mary Speers. Em 1994, Jacyra Amaral Freixo –

que fazia parte do grupo de voluntários responsável pelo Dispensário

Otoniel Mota, além de outras entidades e órgãos congêneres –

aceitou a incumbência de atuar no projeto de atendimento desenvolvido

pela área social do Dispensário, com apoio da Fundação.

Mais adiante, em 2001, foi contratada a consultora de projetos

sociais Donna Fernandes, para visitar os projetos em andamento e

prestar assessoria na parte burocrática de organização, administra-

ção e prestação de contas. A princípio, ela trabalhava apenas duas

vezes por semana, mas pouco a pouco houve necessidade de ampliar

sua atuação, tamanha era a envergadura do desa�o.

A Fundação tinha poucos projetos em curso. Embora alguns

fossem bons e já adequados aos novos conceitos, haviam sido indi-

cados por pessoas de con�ança da Fundação, não por pro�ssionais

especializados em Terceiro Setor. Outros tinham sido iniciados por

grupos da própria Igreja, mas ainda não havia uma clara diretriz para

a seleção e aprovação.

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Por isso, depois de sair a campo, Donna Fernandes indicou

a necessidade de criar um documento instrumental para a apre-

sentação de projetos que pleiteassem recursos da Fundação. Nele

deveriam constar informações de como a organização havia sido

criada, de que maneira soubera da Fundação, qual era a proposta e

a estimativa de orçamento para sua consecução. A sistematização

era necessária, porque muitas instituições nasciam com o intuito

verdadeiro de contribuir para com os necessitados, mas sem a de-

vida estrutura nem pessoal com formação técnica.

Não havia a intenção de cancelar projetos em andamento,

mas sim de qualificar os futuros proponentes. E também de ofe-

recer formação e orientação, indicando pessoas para participa-

rem de cursos. A decisão foi de concentrar-se, a princípio, exata-

mente nesse suporte técnico, não de liberar recursos financeiros.

Havia instituições que desconheciam até mesmo o que era um

estatuto, embora soubessem que precisavam cumprir essa

exigência formal para solicitar parcerias nos âmbitos privado

e público.

O passo seguinte foi criar um instrumento de prestação men-

sal de contas, capaz de abranger tanto a questão financeira quanto

os indicadores de resultados de atuação. Essas iniciativas contri-

buíram não apenas para o aperfeiçoamento da própria Fundação,

como das instituições que a ela recorriam. Foi um trabalho de

transformação em profundidade e emancipação.

Ao pensar nas bolsas de estudo, talvez Mary Speers não tivesse

uma ideia clara de como essa intenção desaguaria na emancipação de

entidades e de pessoas. Mas foi o que, de fato, aconteceu ao longo do

tempo. Essa evolução mostrou ser um processo contínuo, pois foram

criados mecanismos efetivos de aperfeiçoamento.

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Futuro 10Em outubro de 2008, em razão dos bons resultados obtidos com

o Projeto Reviver, implantado em 2003, a reverenda Ildemara Querina

Bom�m foi convidada a dirigir a área de atividade �m da Fundação Mary

Speers. Tão logo assumiu a tarefa, tratou de atualizar a documentação dos

projetos para submetê-la a uma auditoria.

No ano seguinte, a Fundação criou o slogan “Trabalhando em 2009

para que o futuro seja 10”, traçando novos rumos para o biênio 2009-2010.

Foram planejados encontros semestrais de liderança do Terceiro Setor com

o objetivo de aproximar pessoas e instituições.

Paralelamente, houve mudanças na administração interna com a cria-

ção de um novo modelo de gestão. O Conselho de Curadores da Fundação

passou a assumir de fato seu papel como responsável pelas decisões estratégi-

cas e o gerenciamento da instituição, com atuação mais dinâmica e presente

no dia a dia, analisando, discutindo e decidindo sobre os assuntos e propostas

submetidos à sua apreciação pela Direção Executiva. Com a nova con�gu-

ração organizacional, a instituição tornou-se modelo para outras fundações.

Até o �nal de 2011, havia trinta e dois projetos assistidos, sob a res-

ponsabilidade de dezenove entidades, localizadas no Ceará, em Minas Ge-

rais e em São Paulo – tanto no interior como na área metropolitana. Todos

relativos a áreas de abrangência da Fundação, destacando-se o atendimento

ao menor e ao idoso e a concessão de bolsas de estudo de Agronomia, Zoo-

tecnia, Veterinária e Teologia.

Ainda em 2011, a Fundação de�niu os procedimentos para os

projetos 2011-2012, e passou a avaliar as parcerias com base em re-

sultados, tempo de atendimento, distância geográ�ca e adequação

estatutária. Ao mesmo tempo, de�niu que as instituições que se can-

didatarem para receber recursos devem seguir as diretrizes de sele-

ção e o regulamento para aprovação de projetos.

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Também foi de�nido um prazo máximo de atendimento, bem como

uma sistemática de avaliação para cada caso. Outro aspecto a ser acompa-

nhado é sua capacidade de multiplicação e seu potencial de autonomia ou

mesmo de contar com mais parceiros, a depender dos objetivos propostos.

Um bom exemplo dessas características é o projeto do Ceará. Trata-se

de um instituto que nasceu da ampla visão do nordestino Manuel Andrade,

que morava na roça, onde não tinha acesso à escola. Quando se mudou

para a cidade, onde podia estudar, resolveu criar uma célula de educação. O

próprio Andrade passou a dar aulas.

No início, eram sete alunos e eles conseguiram passar no vesti-

bular da Universidade Federal do Ceará.

Em 2012, o Projeto de Educação Coope-

rativa – Prece atendeu 591 estudantes, to-

dos dessa mesma instituição superior de

ensino, que, graças a parcerias internacio-

nais, como a celebrada com a Brazil Foun-

dation, e recursos do governo federal, já

formou mestres e doutores.

Outro caso interessante é o da

parceria com a Faculdade Cantareira,

situada na capital paulista, para a área

de Agronomia, destinada a bolsistas dis-

postos a desenvolver projetos nas comunidades e com ampla visão

do quanto podem contribuir com seu trabalho. Incentivar, por exem-

plo, a formação de hortas nas escolas e nas casas, ensinando o passo

a passo e a importância dessa atividade, que pode inclusive produzir

alimentos orgânicos, tão preconizados para a boa saúde. É algo que,

ao mesmo tempo, ensina a lidar com a terra e seus frutos e desperta

a consciência ambiental.

Casa do Estudante, em Cipó – CE, mantida pelo Projeto Prece e destinada à moradia de estudantes durante preparativos para o vestibular na Universidade Federal do Ceará.

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Duas imagens de horta-escola do Projeto Prece, em Pentecoste, no Ceará, onde alunos do curso de Agronomia ensinam técnicas de cultivo sustentável aos camponeses.

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O caso de Eunice Seuaciuc Miranda ilustra bem o alcance dessa cons-

cientização. Ela recebeu bolsa, de 2004 a 2006, para graduação no curso de

Administração Rural da Faculdade Cantareira. Hoje, é assessora na área de

saneamento e economia de água para a prefeitura e o Estado de São Paulo.

Assim analisa sua experiência:

“Sou muito grata à Fundação Mary Speers, pois me deu a opor-

tunidade de fazer uma graduação. Sem sua ajuda �nanceira, eu não

conseguira completar meus estudos, uma vez que, na época, estava de-

sempregada e tinha família e um �lho. Graças à instituição, hoje eu

tenho uma formação que me possibilitou prestar concursos públicos e

ter uma carreira pro�ssional”.

Além da formação individual, há exemplos de multiplicação da cons-

ciência cidadã. É o que ocorreu com Fernanda de Figueiredo Beda, que foi

bolsista do curso de graduação em Medicina Veterinária, concluído em

2002, pela Universidade Paulista – Unip, na cidade de São Paulo. Ela se espe-

cializou, na sequência, em Gestão Pública e Educação Ambiental e passou

a trabalhar com elaboração e implantação de projetos na área de educação

ambiental e proteção aos animais. Colaborou, ainda, com a Frente Parla-

mentar em Defesa dos Animais do Congresso Nacional. Seu depoimento:

“Agradeço à Fundação Mary Harriet Speers pela bolsa parcial. Isso

permitiu que eu concluísse o curso de Medicina Veterinária, meu sonho e

objetivo desde a infância. Todas as minhas conquistas pro�ssionais eu atri-

buo a essa colaboração”.

Revisão contínuaUma das características marcantes da Fundação Mary

Speers é a capacidade de se organizar e reorganizar. Isso se revela

com transparência na preocupação inicial de enfrentar o desafio

de transformar o patrimônio, evitando, assim, o risco da perda

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de rentabilidade, o que proporcionou uma sólida base para o

financiamento dos projetos.

Na sequência, de�niu critérios para ampliar e aperfeiçoar a

aplicação dos recursos, a �m de garantir que fossem destinados ao que

realmente gerasse resultados para a sociedade. Tanto a providência

inicial quanto a sistemática subsequente são iniciativas que requerem

contínua revisão, porque a realidade muda, tanto em função da

conjuntura econômica, que provoca alterações no mercado imobiliário,

como pela transformação do contexto social e de suas necessidades.

A propósito, em 2012, a Fundação elaborou e aprovou novo estatuto,

com a devida homologação do Ministério Público, como medida de

atualização e adequação à Constituição Federal e ao Novo Código Civil.

A principal meta, contudo, é fazer com que as instituições

atendidas caminhem para a autossustentabilidade. Evitar, portanto,

que fiquem dependentes da Fundação Mary Speers, sendo capazes

de prover suas próprias necessidades. Para garantir que isso acon-

teça, o que se oferece a elas, além do inicial apoio financeiro para

viabilizar seus projetos, é sólido suporte logístico, administrativo e

educacional. Com o alerta de que não basta receber recursos, mas

sobretudo saber geri-los e encontrar formas de abrir frentes de sus-

tentação por conta própria.

A Fundação tem caráter assistencial, de acordo com o

previsto em lei, e aplica os recursos advindos de seu patrimônio

em instituições capazes de gerar valor agregado. Basta lembrar as

atividades que se seguiram aos movimentos feitos no âmbito dos

primeiros projetos fomentados pela Fundação, como a realização

de cursos profissionalizantes para oferecer novas perspectivas a

seus assistidos, de maneira a torná-los aptos a conseguir empregos

e, assim, sustentar-se.

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Esse é um processo altamente agregador, porque implica

aprender e internalizar valores de cidadania, que tornam o ser hu-

mano consciente de seus direitos e também de suas obrigações. Se,

no primeiro momento, a carência indica a necessidade de garantir

a sobrevivência das pessoas, como a oferta de alimentos e roupas,

no seguinte, o de acompanhamento, o indicado é levá-las a ampliar

suas perspectivas, capacitando-as ao trabalho remunerado.

O papel da Fundação, com base em seu planejamento, é so-

bretudo o de multiplicação de seu próprio exemplo. Por isso, apoia

a formação de profissionais para o Terceiro Setor, promove a for-

mação e a mobilização do voluntariado, incentiva parcerias e inves-

te em projetos que realmente tenham bom potencial de contribuir

com resultados para a sociedade, ao formar cidadãos conscientes

de seu papel.

A iniciativa privada fornece bens ou serviços. O governo as

controla. A tarefa de um empreendimento lucrativo termina quan-

do o cliente obtém o produto, paga por ele e fica satisfeito. O gover-

no cumpre a sua função quando suas políticas são eficazes.

A Fundação Mary Harriett Speers é uma instituição sem fins

lucrativos e seu produto é um ser humano transformado. É agente

de mudança, melhoria de qualidade de vida e promoção de justi-

ça social. Oferece oportunidade de ensino e de aperfeiçoamento a

quem encontra dificuldades para chegar à universidade. E, assim,

incentiva seus beneficiados a alimentarem o desejo de retribuição e

a propagarem um transformador ideal de cidadania.

É com esse sentimento que se constrói uma nação. Com amplas

perspectivas de desenvolvimento focadas em seu povo. A Fundação

cumpre, assim, o desejo de sua instituidora, que deixou um legado para

o bem comum.

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Perspectivas para o futuroAlgo que toda instituição deve prezar é a manutenção sempre

atualizada de suas atividades, devido à constante evolução das necessidades

sociais. Seja uma instituição de ensino, seja uma instituição religiosa ou

de qualquer outra natureza, sobretudo, do Terceiro Setor, sua atualização

diante das novas realidades da sociedade é fundamental. Entretanto, estar

atualizada não signi�ca desviar-se ou deixar de praticar seus princípios

originais. Por isso, não obstante a necessidade de atualização de seus

estatutos, como também o realinhamento de suas atividades �m, em

atenção a essa constante evolução social, a Fundação Mary Harriet Speers

continua �el aos princípios e desejos de sua instituidora.

Diante disso, com o término do projeto de transformação de seu

patrimônio, a Fundação entra em uma nova fase: a de gerir com pro-

�ssionalismo e competência a rentabilidade de seus imóveis, a �m de

aumentar os recursos destinados ao atendimento a pessoas em estado

de vulnerabilidade social. Assim, preservando seus objetivos originais,

ela deverá ampliar o alcance de suas ações por meio da multiplicação de

suas fontes de sustentabilidade e do aumento da quantidade de assisti-

dos e inseridos na sociedade.

O fortalecimento do legado de cidadania que lhe foi outorgado

por Mary é parte da visão e da missão estratégicas da Fundação, por

intermédio da aplicação sábia e solidária de seus recursos, com foco

voltado para a evolução dos mercados imobiliário e �nanceiro. A busca

de novas fontes de captação de recursos é outro desa�o importante,

além de promover o incentivo desa�ador aos mais afortunados para

que, a exemplo de Mary Speers, disponibilizem parte de seus recursos

aos menos favorecidos.

Desa�o imprescindível será o de manter a perenidade do

“DNA solidário” de Mary Speers nos futuros dirigentes da Fundação

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e das instituições assistidas, de forma a manter sempre viva a chama

que inspirou seu gesto de desprendimento e amor ao próximo, sem

qualquer tipo de preconceito. O estado da arte da Fundação será

sempre o de transformar vidas que sejam contributivas à sociedade,

independentemente do tipo de assistência que venham a receber:

educacional, social, ou ambas as modalidades.

Nesse espírito, o registro histórico deixado por meio da publi-

cação desta obra deverá servir de elemento de conhecimento de um

passado, embora não tão difundido até aqui, mas certamente de grande

valor para todos os que dele participaram, motivando muitos que veem

nas instituições do Terceiro Setor um meio de alcançar uma parcela da

sociedade muitas vezes alijada de benesses, em princípio naturais, mas

que para ela, por diversos motivos, são inatingíveis.

A atual diretoria da Fundação Mary Harriet Speers cumpre assim

seu papel de enaltecer um passado brilhante, tanto de alguém que dei-

xou um patrimônio para ser aplicado de acordo com sua vontade, como

é o caso da Sra. Mary Harriet Speers, como o da própria Fundação, que

atendeu rigorosamente aos anseios de sua instituidora e, sempre com

uma visão de vanguarda, continuará �el a essa vontade.

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Composição do primeiro quadro diretivo da Fundação Mary Harriet Speers – 1984 (vigência de quatro anos por mandato)

Conselho de CuradoresPresidente: Cesário MathiasVice-presidente: Carlos Fernandes Franco

ConselheirosNaur do Valle MartinsMaria Antonieta da Costa VieiraSteen K. FrischMarlene Almenara de Freitas SilveiraCélio de Melo Almada

SuplentesRosa Tedeschi Viana Manso VieiraAcácio de Mello Amaral Camargo

Diretoria ExecutivaPresidente: José Edmundo BrigantiVice-presidente: Luiz Antonio MaschietoTesoureiro: Paulo Bernardo Tavares de LucaSecretário: Raimundo Evangelista de Abreu

Conselho FiscalGeo�rey M. A. HaigRoberto Homem de MelloJadir Rosa Franco

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Composição do quadro diretivo atual da Fundação Mary Harriet Speers – 2012 (vigência de quatro anos por mandato)

Conselho CuradorPresidente: Osni de Lima

ConselheirosEber Maciel Ru�noDébora Keyla Goos MoriJosé Ricardo CanoMaria Antonieta da Costa VieiraMarly de SiqueiraNaur do Valle MartinsMonalisa Gomes Perroni

Suplentes Carlos Pereira de Magalhães NetoFernando �emudo Lessa de MoraesCelso Ricardo Piva CostaFrancisco de AlmeidaJuliana Rodrigues FigueiredoMarcos Vicente NobreCarlos Eduardo GoosDaniel Pereira

Diretoria ExecutivaPresidente: Ítalo Francisco CurcioVice-presidente: Rui Anacleto JúniorDiretor �nanceiro: Nelson Trigo

Conselho FiscalIndicados anualmente entre os membros do Conselho Curador

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TRIGO, Maria Helena Bueno. Os paulistas de quatrocentos anos: ser e pa-recer. São Paulo: Annablume, 2001.

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outubro de 1982.Estatuto Social da Fundação Mary Harriet Speers, 1982.Araujo, Heloisa A. “Considerações sobre D. Mary Harriet Speers”. São

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-as-margens-do-Rio-Jundiai><http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demogra�co/1900.php><www.arquivonacional.gov.br>. Arquivo Nacional. Coleção família Fer-

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DepoentesAbival Pires da SilveiraAirton Grazzioli Arnold Hermann FerleDarnei MachadoDonanciana Fernandes Jiruska (Donna Fernandes)Eber Maciel Ru�noEdelvert Figueiredo Pereira Pinto JuniorEdith Aparecida BentoEloá Maciel Ru�no FerrarioEunice Seuaciuc MirandaFernanda de Figueiredo BedaFlávio Gimenes FernandesGeofrey M. A. HaighGilson MoreiraIldemara Querina Bom�mÍtalo Francisco Curcio Heloisa Archêro AraújoJoão Daniel MiglioriniJoaquim Barreto de OliveiraJosé de SouzaJosé Fonseca RodriguesMaria Antonieta da Costa VieiraMaria Dulce da Costa VieiraNaur do Valle MartinsOsni de LimaOsório Faria VieiraPaulo Cintra DamiãoRui Anacleto JúniorVera da Apparecida Alves Germano

Agradecimento: A Arialdo Germano, pela colaboração com a pes-quisa e a revisão do conteúdo.

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Créditos das imagensAcervo Fiocruz Multimagens: pág. 18 (imagem menor).Acervo Fundação Mary Harriet Speers: págs. 11, 20, 21, 23, 24, 25, 27,

29, 30/31, 32, 34, 39, 41, 46, 54, 55, 57, 60, 61, 62, 63, 67, 68 (duas imagens).Acervo Sociedade Hospital Samaritano: págs. 17, 18 (imagem maior).Acervo Pulsar Imagens: pág. 47.Arquivo Público do Estado de São Paulo: págs. 13, 14, 15, 26, 28.

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Arte do Tempo Editora Ltda.Rua Capote Valente, 956 c. 3

CEP 05409-002 – São Paulo – SPTel: (11) 3062.4561

www.tempoememoria.com.br

Diretora Tempo&Memória Diretora Arte do Tempo Diretora Administrativa

FUNDAÇÃO MARY HARRIET SPEERS

Pesquisa histórica Texto

EdiçãoRevisão

Edição, projeto grá�co e direção de arte

Diagramação e arte �nal Pré-impressão e impressão

Flávia Borges PereiraAna Trevisan SerinoRachel Palmira Rodrigues Silva

Um legado de cidadania

Clarice CairesMirian IbañezMarco Polo HenriquesCamila FernandesRosania MazzuchelliArte do Tempo EditoraAgência A2 – Comunicação IntegradaPancrom

Fundação Mary Harriet Speers

Diretoria Executiva:Ítalo Francisco Curcio – PresidenteRui Anacleto Júnior – Vice-presidenteNelson Trigo – Diretor �nanceiro

Conselho Curador:Osni de Lima – Presidente Gerente Administrativo:Arnold Hermann Ferle Coordenadora de Parcerias:Ildemara Querina Bom�m Assistente Administrativo:Arialdo Germano

Quadro atual de colaboradores:José Fonseca Rodrigues, Maria Augusta Oliveira, Marta Disigant Duarte, Nanci Rose Vieira

O presente trabalho foi desenvolvido por ini-ciativa da atual Diretoria Executiva da Fundação Mary Harriet Speers, aprovado por unanimidade em reunião ordinária de seus membros e anuído pelo seu Conselho Curador, com o objetivo de registrar a importante data, alusiva aos 30 anos de existência desta instituição, fun-dada em 7 de outubro de 1982.

O conteúdo deste livro é o resultado de uma cuidadosa pesquisa histórica, feita por uma equipe de trabalho especializada da Tempo&Memória, que contou com a colaboração dos depoentes citados e dos membros da Diretoria Executiva da Fundação, do Conselho Curador e de seu corpo de funcionários.

Como documento histórico, esta obra se agre-gará a tantas outras de relevante importância, que registram o legado de pessoas imbuídas do princí-pio da solidariedade e amor ao próximo, como Dona Mary Speers, e �cará para as gerações vindouras como exemplo, pela destacada contribuição de uma das mais expressivas instituições do Terceiro Setor na cidade de São Paulo, a Fundação Mary Harriet Speers.

Com isto, �ca a nota de agradecimento a todos os que participaram direta e indiretamente na concre-tização deste sonho.

Ítalo Francisco CurcioDiretor Presidente

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