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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women‟s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X FUNCIONO, LOGO EXISTO? - A DEFICIÊNCIA COMO FICÇÃO Marco Antônio Gavério 1 Resumo: Desde meados do século XX, movimentos políticos e teóricos passaram a gestar outros sentidos identitários para o conceito de deficiência para além daqueles que indicavam falhas e defeitos organicamente delimitados exclusivamente nos corpos dos indivíduos. Tais mobilizações políticas em torno da redefinição da deficiência como um construto social operou, fundamentalmente, no nível comunitariamente imaginado das relações e interações sociais e corporais. Assim, a ideia de deficiência que vem sendo produzida contemporaneamente não está isenta de materializações e nomeações controversas. Neste trabalho proponho uma incursão em algumas semânticas teóricas do termo 'ficção' para explorar como a deficiência pode ser pensada e produzida para além de um processo dicotômico entre natureza e cultura, indivíduo e sociedade. Como argumento para análise focalizo determinados discursos que se referem à corporalidade e comportamentos de pessoas 'normais' que buscam transformar-se voluntariamente em deficientes. Para explorar essas questões parto de uma análise cultural aleijada da obra de ficção científica de Max Barry chamada Homem-Maquina que narra a transformação voluntária de um cientista em um híbrido organo-mecânico. A leitura desta obra sob uma perspectiva criticamente deficiente possibilita extrapolar certas rigidezes do debate socioantropológico sobre realidade fundamentalmente orgânica e funcional em torno dos corpos humanos. Palavras-chave: disability studies; teoria crip; ficção; corporalidades dissidentes 1 A nova biônica e a possibilidade de um mundo livre de deficientes Em 2014, o professor de biomecatrônica da Harvard-MIT, Hugh Herr, causou frisson na comunidade científica e tecnológica internacional ao apresentar e demonstrar o uso de sua nova invenção. Em sua palestra ao TED Talk 2 , Herr, ele mesmo um amputado duplo, aparece utilizando as mais novas próteses biônicas com ligação neurológica inventadas por ele e sua equipe do Biomechatronics Group 3 . Nessa apresentação, o pesquisador surpreende sua plateia ao andar de um lado para o outro sob suas novas próteses. Em cada uma de suas pernas, logo abaixo do joelho, as peças se encaixavam e formavam uma figura extremamente híbrida. As próteses em cinza grafite possuíam um desenho futurístico onde os pésse apresentavam com plataformas articuladas que sustentavam e davam movimento ao usuário. A surpresa dos espectadores parecia ser exatamente o 1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. 2 A palestra intitulada ‘A nova biônica que nos permite, correr, escalar e dançar’ pode ser acessada aqui: < https://www.ted.com/talks/hugh_herr_the_new_bionics_that_let_us_run_climb_and_dance > 3 The Biomechatronics Group é um dos 20 grupos de pesquisa constituintes do MIT Media Lab. Para mais informações, acessar o site < http://biomech.media.mit.edu/#/about/ >

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th

Women‟s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

FUNCIONO, LOGO EXISTO? - A DEFICIÊNCIA COMO FICÇÃO

Marco Antônio Gavério1

Resumo: Desde meados do século XX, movimentos políticos e teóricos passaram a gestar outros

sentidos identitários para o conceito de deficiência para além daqueles que indicavam falhas e

defeitos organicamente delimitados exclusivamente nos corpos dos indivíduos. Tais mobilizações

políticas em torno da redefinição da deficiência como um construto social operou,

fundamentalmente, no nível comunitariamente imaginado das relações e interações sociais e

corporais. Assim, a ideia de deficiência que vem sendo produzida contemporaneamente não está

isenta de materializações e nomeações controversas. Neste trabalho proponho uma incursão em

algumas semânticas teóricas do termo 'ficção' para explorar como a deficiência pode ser pensada e

produzida para além de um processo dicotômico entre natureza e cultura, indivíduo e sociedade.

Como argumento para análise focalizo determinados discursos que se referem à corporalidade e

comportamentos de pessoas 'normais' que buscam transformar-se voluntariamente em deficientes.

Para explorar essas questões parto de uma análise cultural aleijada da obra de ficção científica de

Max Barry chamada Homem-Maquina que narra a transformação voluntária de um cientista em um

híbrido organo-mecânico. A leitura desta obra sob uma perspectiva criticamente deficiente

possibilita extrapolar certas rigidezes do debate socioantropológico sobre realidade

fundamentalmente orgânica e funcional em torno dos corpos humanos.

Palavras-chave: disability studies; teoria crip; ficção; corporalidades dissidentes

1 – A nova biônica e a possibilidade de um mundo livre de deficientes

Em 2014, o professor de biomecatrônica da Harvard-MIT, Hugh Herr, causou frisson na

comunidade científica e tecnológica internacional ao apresentar e demonstrar o uso de sua nova

invenção. Em sua palestra ao TED Talk2, Herr, ele mesmo um amputado duplo, aparece utilizando

as mais novas próteses biônicas com ligação neurológica inventadas por ele e sua equipe do

Biomechatronics Group3.

Nessa apresentação, o pesquisador surpreende sua plateia ao andar de um lado para o outro

sob suas novas próteses. Em cada uma de suas pernas, logo abaixo do joelho, as peças se

encaixavam e formavam uma figura extremamente híbrida. As próteses em cinza grafite possuíam

um desenho futurístico onde os “pés” se apresentavam com plataformas articuladas que

sustentavam e davam movimento ao usuário. A surpresa dos espectadores parecia ser exatamente o

1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

2 A palestra intitulada ‘A nova biônica que nos permite, correr, escalar e dançar’ pode ser acessada aqui: <

https://www.ted.com/talks/hugh_herr_the_new_bionics_that_let_us_run_climb_and_dance > 3 The Biomechatronics Group é um dos 20 grupos de pesquisa constituintes do MIT Media Lab. Para mais informações,

acessar o site < http://biomech.media.mit.edu/#/about/ >

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efeito esperado por Herr e tem como causa o fato das novas próteses neurobiônicas emularem

perfeitamente o andar humano organicamente bípede.

Embasando sua fala em um viés de completa integração futura entre o corpo humano e as

tecnologias biônicas, a proposta de Herr se resume na eliminação da incapacidade [disability]. Hugh

Herr relembra como a “biônica redefiniu sua corporalidade (phisicality)” após ter amputado, em

1982, suas duas pernas devido ao efeito de um acidente de alpinismo. O cientista conta um pouco

de sua história para dar sentido ao seu projeto de inovações biomecânicas:

A tecnologia havia eliminado minha deficiência e me permitido uma nova

proeza em escaladas. Como jovem, imaginei o mundo futuro onde tanto

avanço tecnológico pudesse livrar o mundo da deficiência, um mundo onde

implantes neurais permitiriam ao cego enxergar, um mundo no qual o

paralítico pudesse andar através dos exoesqueletos do corpo. Infelizmente,

devido às deficiências na tecnologia, há um excesso de deficientes no

mundo.

De fato, o fim das deficiências, ou incapacidades, parece ser o mote que produz iniciativas

especializadas como as de Hugh Herr e sua equipe de bioengenharia. Herr relembra de sua

impotência enquanto um jovem amputado para exaltar como a tecnologia eliminou sua deficiência

através de modificações diretamente corporais. Implantes internos e externos acoplados no corpo

humano seriam a própria possibilidade de potência humana, a própria possibilidade de eliminar as

nossas limitações.

A fala de Herr nos deixa muitas dúvidas sobre o que exatamente ele chama de deficiência. Em

certos momentos a deficiência aparece como algo inerente a todos os seres humanos, e nesse

sentido o corpo orgânico é o que constitui nossa humanidade devido à partilha de uma fragilidade

natural. Em outros pontos, existem brechas para um entendimento de que as deficiências são efeitos

do próprio mundo sem tecnologias o bastante, ou com tecnologias precárias, para complementar a

natureza humana.

Propostas como a mencionada aqui não são raras quanto ao sentido, quase literal, de

eliminação das deficiências\incapacidades humanas4. Ao mesmo tempo em que delimitam um ponto

ótimo, ou seja, a busca pela total funcionalidade dos corpos humanos em sua relação com o mundo,

esses discursos e práticas tecnocientíficas propõe uma hibridação entre humanidade e artificialidade

4 Alison Kafer, em seu livro Feminist, Queer, Crip (2013), faz uma boa discussão sobre os usos das tecnologias

biomédicas e informáticas com relação aos corpos deficientes. Basicamente a autora argumenta que os manejos dessas tecnologias propõem a superação\eliminação das deficiências humanas. Contudo, paradoxalmente, esta eliminação, ou esse upgrade, como diz Paula Sibila (2005), não se dá fora dos próprios parâmetros que conformam essas tecnologias que visam melhorar ou superar a humanidade. Nesse sentido, para uma boa discussão sobre o impacto subjetivo e político de sempre querer estar “bem”, ver PUAR, 2011.

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que estremece a própria ideia do que é humano, inumano ou subhumano (SIBILIA, 2005). Assim

como estremece as próprias considerações do que é tecnológico e artificial.

A inovação da tecnologia criada sobre a liderança científica e moral de Hugh Herr está

exatamente na ideia de escamotear as possíveis debilidade humanas, traduzidas e metaforizadas no

não enxergar ou andar, através da intervenção biônica no corpo. Dessa forma, o que essa tecnologia

garante não é uma simples substituição da mecânica dos movimentos orgânicos humanos por uma

mecânica artificial de mobilidade.

O que efetivamente a tecnologia do Biomechatronics Group garante é a própria naturalidade

da biomecânica orgânica humana através de próteses capazes de emular, exatamente, essas funções

(AARON, et al 2006). Em suma, a proposta de Herr é equalizar o desejo do indivíduo de ultrapassar

determinados limites corporais com as reais possibilidades para tal, acoplando de maneira natural

dispositivos biônicos nesse processo. Nas palavras de Herr: "A biônica não se trata só de tornar as

pessoas mais fortes e rápidas. Nossa expressão e nossa humanidade podem ser incorporadas à

eletromecânica".

2 – A ficção, a ciência e o corpo humano como obstáculo

No livro Homem-Máquina (2011), do autor norte americano Max Barry, encontramos uma

interessante ficção científica a respeito da obsolescência do corpo humano e suas emoções. Na

verdade, a trama do romance ficcional cientifico versa sobre o quanto podemos nos desvencilhar de

nosso organismo e o quanto isso custa àqueles que buscam, ou necessitam de, um corpo para além

de sua própria natureza.

A figura central do livro é a personagem Charles Neumann. Um cientista e engenheiro

mecatrônico com sérios problemas de sociabilidade e extremamente dependente das tecnologias

digitais. Neumann é chefe do laboratório de inovações tecnológicas da empresa privada "Futuro

Melhor" e coordena um grupo de estagiários em projetos científicos da companhia. Neumann

sempre se sentiu deslocado em seu ambiente de trabalho justamente por considerar que seus

conhecimentos em tecnologias mecânicas, eletrônicas e digitais nunca fora exatamente absorvido

pela empresa, aliás, Neumann, demorou a entender o que a própria companhia fazia. Ao longo do

livro vamos percebendo que a Futuro Melhor é um complexo empresarial e que suas estruturas e

aspirações nunca são totalmente conhecidas e estáveis. O próprio Neumann passou muito tempo

sem conhecer a estrutura total da empresa ou falar com seus superiores, "a turma da gerência".

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As coisas mudam radicalmente na vida de Charles Neumann quando ele, após um descuido

enquanto estava preocupado em achar seu celular, acaba se envolvendo em um incidente em um dos

laboratórios da Futuro Melhor. Neumann ficou tão extasiado ao ter encontrado seu celular em uma

sala de experimentos, desaparecido durante todo um dia, que não percebeu ter deixado sua perna no

espaço de um grampo mecânico que fazia cortes em grandes pedaços de metal. Quando conseguiu

pegar seu celular, Neumann acionou a máquina sem querer e o grampo se pôs a funcionar. Tudo

acontece muito rápido, os assistentes não conseguem interromper o processo externamente, muito

menos Neumann. Charles acorda em um hospital. Havia recuperado seu celular, mas havia

decepado quase completamente uma de suas pernas.

É a partir desse incidente que há uma mudança radical na vida da personagem central e onde,

na trama, conhecemos outras personagens fundamentais a todo enredo do livro. É o caso da

especialista em prótese Lola Shanks, por quem Neumann se apaixona, e da mediadora de riscos e

conflitos da Futuro Melhor, Cassandra Cautery. É interessante notar certos neologismos usados pelo

autor na construção dos nomes de algumas personagens, como no caso de Charles e de Cassandra.

Charles Neumann vem de "new man" (novo homem) e Cassandra Cautery de "cauterizar". Esses

neologismos vão ficando mais nítidos em significância conforme vamos adentrando em pontos

específicos da narrativa literária e conhecendo melhor as posições das personagens na história.

Após seu acidente, Neumann passa alguns dias no hospital para se recuperar da amputação

involuntária. Uma rede de cuidados se estabelece perante a personagem: as enfermeiras atenciosas,

o fisioterapeuta 'motivador', a médica preocupada e inflexível, a gerente de riscos de sua empresa e

a especialista em próteses 'atrapalhada'.

Neumann é apresentado às possibilidades protéticas trazidas por Lola Shanks para substituir

sua perna perdida. Neumann se impressiona com a simplicidade das próteses. Elas não pareciam

nada funcionais se comparadas às possibilidades tecnológicas dominadas por seu conhecimento

mecatrônico. Então, quando Neumann volta ao trabalho na Futuro Melhor, ele tem a ideia de

construir uma nova prótese utilizando a tecnologia da empresa.

Dotando de pistões, GPS e Wi-Fi, a intenção de Charles é construir uma perna biônica

autossuficiente, se baseando em uma ideia de que se nossos membros soubessem exatamente o que

fazer, através de uma simbiose químico-neural, gastaríamos menos energia e a utilizaríamos em

outras atividades. É com essa experiência que Charles Neumann começa a ver seu corpo orgânico

como obsoleto, como um obstáculo. Em um momento, diz a personagem: "olhei para minha perna,

a boa. Quer dizer. Não exatamente "boa". Aquela que eu tinha desde o nascimento. Levantei a calça

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e virei a perna para um lado e para o outro. Era gorda, fraca e comum. Quanto mais eu olhava para

ela, mais me incomodava" (BARRY, 2011, p. 41).

É no decorrer de suas pesquisas para construir sua prótese biônica inteligente que Neumann,

voluntariamente, decepa a perna que lhe restara e se livra do obstáculo que o proibia de continuar

seu desejo pelo upgrade de seu corpo. Charles é tratado como louco, colocado sob observação

psiquiátrica e fica isolado durante um tempo no hospital enquanto se recuperava de sua segunda

amputação. Entretanto, é a Gerente de Crises da Futuro Melhor, Cassandra Cautery, que oferece a

proteção da empresa para Charles. Desde que ele continuasse a desenvolver mais tecnologias

biônicas em sigilo na companhia, Neumann poderia continuar no papel de cientista excêntrico que

serve de cobaia para si mesmo. Com o aval da empresa e protegido nas instalações da companhia do

mundo que o considerava louco, Neumann conclui a construção de seu par de pernas biônicas e

inteligentes, as Contornos.

O desejo de experimentação tecnológica só aumentou em Charles Neumann. Suas equipes

trabalhavam livremente no desenvolvimento de Óculos e Lentes Z, que ampliavam a resolução e a

captura de detalhes dos olhos humanos. Mas Neumann só pensava em criar partes biônicas para seu

corpo. Um braço começou a ser esboçado pelo cientista. Essa obsessão começou a preocupar

Cassandra Cautery, temendo que Neumann armasse outra situação para cortar voluntariamente mais

uma parte de si. Ao mesmo tempo, a possibilidade de Charles se auto modificar era o que lhe

motivava a produzir tecnologias que poderiam virar produtos comerciais patenteados pela Futuro

Melhor. Cautery sabia disso. Era seu papel transformar as inovações de Neumann e suas equipes em

melhorias corporais que pudessem ser colocadas no mercado. Que principalmente pudessem ser

comercializadas como inovações ao mundo bélico das defesas nacionais e das empresas de

segurança. É nesse ponto que a deficiência de Lola Shanks entra como forma de Cautery fazer

Neumann seguir as normas da empresa como deveria qualquer funcionário.

Charles e Lola se apaixonam ao longo da trama Homem-Máquina. Contudo, é uma relação

que acontece em meio a muitas perturbações corporais. Em um teste com as Contornos, Neumann

entrou em curto-circuito eletroquímico com as próteses inteligentes interconectadas com seu corpo.

As Contornos faziam o que queriam e levaram Charles aonde estava Lola, que nesse momento

estava proibida de falar com o cientista. Cautery acionou a segurança da Futuro Melhor temendo

que Neumann estivesse fugindo com as próteses da empresa. Em um conflito muito bagunçado

entre Charles sob as Contornos descontroladas e a segurança da companhia, Lola é atingida no peito

por um projetil de choque não letal vindo do grupo de seguranças que tentavam conter Neumann.

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É nesse momento que descobrimos que Shanks também é uma ciborgue (HARAWAY, 1985).

Charles pensara que Lola morrera no conflito. Ao chegar na Futuro Melhor, Neumann descobre que

Lola está sob os cuidados da empresa e recebe de Cautery a notícia de que Shanks possui um

coração artificial feito de aço. Lola nasceu com um defeito congênito em seu coração e por isso seus

pais faliram por bancarem seu tratamento. O próprio pai de Lola, como forma de juntar dinheiro

para um novo coração para a filha, passou a mutilar voluntariamente partes de si como se fossem

„acidentes de trabalho‟. As partes perdidas rendiam indenizações e iam para uma poupança que só

seu pai e Lola sabiam. A história de Shanks acaba com a morte de seu pai e com ela juntando suas

economias em busca de um novo coração, o coração de aço agora comprometido pelo tiro.

Assim, a história de Homem-Máquina parte para seu desfecho. Cautery, chantageando

Neumann com a própria condição debilitada de sua amada Shanks, o obriga a continuar criando

peças e partes do corpo Melhores para a própria Futuro Melhor, sob a ameaça dele não ser mais

permitido de continuar construindo um novo coração para Lola. Em meio a algumas reviravoltas,

Neumann acaba tendo todo seu corpo transformado em uma máquina biônica de guerra. Tendo

somente seu cérebro preservado, todas as funções corporais de Neumann eram controladas pelos

seus estagiários sob o comando de Cassandra Cautery. Após o confronto com um dos seguranças

modificados pela Futuro Melhor, que supostamente havia sequestrado Lola Shanks, Charles

Neumann tem todo seu corpo biônico destruído, tendo somente seu cérebro-consciência

preservados.

3 – O Paradoxo dos Desejos pela Deficiência

O livro Homem-Máquina chamou minha atenção exatamente no ponto em que Charles

Neumann decide amputar sua perna saudável visando se livrar completamente de um obstáculo ao

desenvolvimento tecnológico. Quando li o livro de Barry estava submerso em um universo de

pesquisa que abordava exatamente a busca voluntária de pessoas por mudanças corporais

consideradas deficiências. Indivíduos que buscam amputar uma parte de si mesmo, que buscam

perder um de seus sentidos ou paralisar-se atualmente são concebidos por certa literatura científica

como pessoas que estão em discordância com sua própria identidade corporal.

Tais indivíduos não se sentem bem consigo mesmos a partir de como se percebem na

estrutura de seus corpos. Na verdade, eles almejam ter uma estrutura corporal correspondente com

sua identidade física e sensorial, isto é, eles buscam se sentir completos, ou íntegros, a partir da

incompletude ou desintegração de sua totalidade corporal. Não necessariamente esses indivíduos se

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reconhecem sob a insígnia do termo 'pessoa com deficiência' somente por buscarem uma amputação

ou formas de usarem legitimamente uma cadeira de rodas. Entretanto, muitos deles se reconhecem

como pessoas com um tipo específico de transtorno psicossomático, chamado Transtorno Da

Identidade Da Integridade Corporal, TIIC (Bodily Identity Integrity Disorder, BIID). Efetivamente,

os indivíduos que se reconhecem sob esse transtorno não têm como objetivo emular uma

corporalidade ou uma identidade politicamente deficiente. A vontade de retirar voluntariamente

uma parte de seu próprio corpo acaba sendo um fim em si mesmo para essas pessoas, uma vez que

se sentir incompleto em um corpo completo se torna um grande sofrimento e a transformação

corporal uma grande obsessão.

Por outro lado, em confluência com essa categoria clínica, existe uma outra categoria que

identifica indivíduos que também buscam romper com a integralidade de seus corpos e funções

corporais. Esses indivíduos se denominam Transableds ou, em uma tradução livre, Transficientes e

se distinguem dos indivíduos com TIIC em dois pontos. Os Transficientes não se reconhecem como

possuindo um transtorno, ou quadro patológico psicossomático e efetivamente tem como objetivo a

transição corporal para um estado deficiente (disabled). O termo Transabled significa propriamente

o processo de transição de um indivíduo que se reconhece com um corpo abled (apto, capaz, válido)

para um disabled (inapto, incapaz, inválido). A ideia de transição corporal como um processo de

adequação entre o self, o eu, e o corpo do indivíduo é nitidamente trazida pelos Transficientes como

análoga aos processos reconhecidos como transexualização. Portanto, para os Transficientes,

amputar uma perna em um processo cirúrgico não é considerado como um tratamento ao

sofrimento, como advogado no caso das pessoas que se identificam sob a ideia de um transtorno

psicossomático da integridade corporal; para os Transficientes o que importa é, através de uma

intervenção cirúrgica, produzir uma nova identidade demarcada pelo próprio processo de transição

corporal.

Algo muito interessante de ter percebido ao longo de minha pesquisa de mestrado

(GAVÉRIO, 2017) foram os modos com que certo 'discurso sobre deficiência' se acoplam a

determinadas materialidades ou construções corporais, sem exatamente produzir uma ponderação

político-identitária deficiente, digamos assim. Como mencionei, a literatura médico-científica é

dominante na produção autorizada sobre o desejo das pessoas em retirar ou danificar partes

saudáveis de seus corpos. Se posso generalizar com fins demonstrativos aqui nesse ensaio, na

epistemologia biomédica, um indivíduo incapaz (disabled) é aquele que possui a união de um corpo

com alguma lesão (impairment) e questões disfuncionais no ambiente em que se encontra.

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Entretanto, nessa mesma epistemologia, a lesão pode muito bem ser considerada ela mesma a

própria deficiência/incapacidade (disability) do indivíduo. Em suma, para as pesquisas biomédicas

sobre deficiência, o corpo orgânico, biológico, é o vetor em que as

incapacidades/deficiências/lesões podem ser observadas como desvios do modo em que os corpos

devem aparentar-se, se comportar e funcionar. Assim, a desvantagem social (handicap) do

indivíduo está em seu próprio corpo que necessita de alguma forma tecnológica de intervenção para

atingir um estado de funcionalidade (normalidade).

Segundo Lennard J. Davis (1995), 'discurso sobre deficiência' não é um discurso que exalta

especificamente discussões críticas sobre a ontologia e as epistemologias científicas que

historicamente constituíram as semânticas modernas e contemporâneas sobre deficiência. São

exatamente as múltiplas possibilidades constitutivas que vieram historicamente modulando os usos

e disputas políticas em torno da noção de deficiência que formaram a própria ideia de um 'discurso'

sobre ela. É com essa categoria analítica que conseguimos aglutinar, na ideia teórica de um 'desejo

pela deficiência', indivíduos que possuem as mesmas vontades de modificação corporal, porém com

motivações distintas e até mesmo conflitante com as propostas identitárias dos movimentos de

reconhecimento das pessoas com deficiência.

Assim, o que chamou muito a atenção de médicos, psicólogos e psiquiatras durante um bom

tempo foi a vontade muito comum observada em alguns indivíduos em amputar partes, ou

completamente, os membros inferiores. Desde a primeira publicação científica, em 1977, sobre

pessoas que desejavam a deficiência, até a literatura produzida no início dos anos 2000, havia um

aparente consenso em equalizar a ideia desse desejo a uma única e exclusiva vontade de se amputar

membros considerados saudáveis. Nesse sentido, dentro da literatura científica que analisei na

pesquisa de mestrado, a figura física da pessoa deficiente devido a uma amputação foi duplamente

incitada como 1) representação material e discursiva de um corpo legitimamente deficiente e

incapaz e 2) como a única fonte de desejo e projeção identitária daqueles que desejavam se tornar

deficientes. Em resumo, os indivíduos que buscavam uma amputação voluntária foram tratados com

desconfiança sobre sua sanidade, na literatura científica, exatamente por quê se considerou que

esses indivíduos almejavam somente a resolução narcisista e cruel de um desejo baseado em uma

figura incapaz e impotente, pois incompleta: a pessoa amputada.

Se, a partir disso, voltarmos à história do pesquisador Hugh Herr e da personagem de Max

Barry, Charles Neumann, temos a mesma noção de representação das deficiências humanas a partir

da figura física do amputado. Essa figura traz nitidamente a percepção de um corpo em que se falta

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algo. A diferença dessas duas histórias de transformações corporais tecnocientíficas com as

histórias de transição corporal que me deparei ao longo do mestrado é que as primeiras, cada qual a

sua maneira, buscam a eliminação ou a superação das deficiências humanas através do uso

intensivo de próteses e implantes tecnológicos. Já as transformações corporais que podem ser

definidas como conduzidas por um desejo pela deficiência operam na exata produção de corpos

„incapazes‟.

Entretanto, a deficiência, a incapacidade ou a disfunção são necessárias à própria produção de

corporalidades mais capazes e mais eficientes funcionalmente falando. Herr utilizou seus

conhecimentos e passou a investir em inovações biônicas em próteses após ter se tornado um

amputado por acidente. Já Charles Neumann viu exatamente na deficiência, na falta de suas pernas,

uma etapa de transição à uma vida sem obstáculo, isto é, sem um corpo orgânico flácido e composto

por fluidos. Em poucas palavras, esses exemplos deixam mais explicita que a condição de

visibilidade da deficiência, ou daquilo que se considera falho, muitas vezes, é seu próprio

„desaparecimento‟. Nesse sentido, a deficiência serve como metáfora propulsora da superação

tecnocientífica dos limites humanos.

4 – Desintegrar e Reacoplar

Um dos maiores paradoxos para uma estreita noção do que é o debate sociocultural em torno

da deficiência, é quando confrontamos o seguinte eixo de questões: de um lado a inevitável finitude

do ser humano e sua decadência anatomofisiológica; de outro a possibilidade de expandir nosso

período de vigor físico, cognitivo e sensorial com auxílio das novas tecnologias médicas e

informáticas.

O Sociólogo britânico Alan Roulstone (2016) chama a atenção para um jogo de forças típico

das teorizações entre deficiência e tecnologia. Por um lado se considera que a tecnologia aplicada é

a grande solução para todas as disfuncionalidades corporais humanas, o que proveria de imediato a

possibilidade de igualdade social para pessoas deficientes; por outro lado as soluções tecnológicas

são vistas como formas de esconder as reais causas da deficiência, as estruturas sociais, colocando

ênfase no conserto individual como forma de 'inclusão' e, assim, fazendo desaparecer a própria

deficiência.

Conforme Roulstone (2016), ambas visões são espectros opostos de uma discussão que, na

verdade, possui inúmeras nuances. Inclusive podemos partir da questão: onde começa o

naturalmente humano e onde acaba o naturalmente tecnológico? Donna Haraway nos lembra que

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what counts as human and as nonhuman is not given by definition, but

only by relation, by engagement in situated, worldly encounters, where

boundaries take shape and categories sediment. If feminist, antiracist,

multicultural science studies - not to mention technoscience - have

taught us anything, it is that what counts as human is not, and should

not be, self­evident. The same thing should be true of machines, and

of nonmachine, nonhuman entities in general, whatever they are.

(HARAWAY, 1994, p. 64)5

Paula Sibilia, em O Homem Pós-Orgânico (2005), discute a emergência histórica da

concepção de que a tecnologia é concebida como forma de contraponto à obsolescência constitutiva

do organismo humano. Sem conseguir adentrar em detalhes à obra da pesquisadora, Sibilia mostra

que ao longo do século XVIII a dimensão „Homem-Máquina‟ dava sentido a todas as

transformações capitalistas da sociedade europeia pré-industrial. Nesta dimensão o orgânico e o

tecnológico se relacionam através de determinados limites, onde um pode, em extremos, anular o

outro. Sibilia correlaciona essa dimensão à figura do Titan Prometeu. Já a partir do fim do século

XIX, com extensão ao longo do século XX, a figura de prometeu entrará em disputa com a metáfora

Fáustica, em que o organismo humano se vê possibilitado de superar seus próprios limites físicos,

sensoriais e vitais com as evoluções e desenvolvimentos tecnológicos; não só o corpo pode se

acoplar as máquinas, mas o próprio organismo se torna substituível pela própria possibilidade de se

tornar tecnologia e informação.

O romance Homem-Máquina está nessa interação entre o desejo de se tornar máquina até o

ponto em que isso tragicamente acontece. Após ter perdido completamente seu corpo biônico e

quase ter sido considerado morto, os antigos estagiários de Charles Neumann conseguem preservar

seu cérebro e mantê-lo vivo artificialmente. Seis anos após o incidente com a Futuro Melhor,

Neumann acorda e descobre inacreditavelmente que Lola estava viva e que nada mais restava dele

além de sua consciência digitalizada em uma caixa preta com uma câmera no lugar de olhos.

Neumann demora a entender sua situação e só se conforta quando Lola lhe explica que a caixa pode

ser acoplada com outras tecnologias e mantida em completa atualização. O romance termina com

Lola Shanks dando um braço novo de presente para Charles Neumann.

Esse arremate da história ressoa o seu exato início. Em uma espécie de recordação do

narrador onisciente, que está em um aparente futuro com relação ao tempo da história, Neumann

5 Citado por SHILDRICK, 1996, p. 5-6. Entretanto, esta autora extrapola a fala de Haraway ao considerer que “those

boundaries are never finally secured, not because the claims of the excluded may become too insistent to resist, but because exclusion itself is incomplete. As Derrida has shown, the uncontested belief in full self-presence at the heart of the logos, cannot be maintened even by the violent hierarchy of the binary […] The monster is always within” (p.6).

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declara sua completa admiração por máquinas desde a infância: “Quando criança, eu queria ser um

trem. Não percebia que isso era incomum [...] O que eu gostava era de fingir que meu corpo era

composto por 200 toneladas de aço, impossível de ser parado. De imaginar que eu era feito de

pistões, válvulas e compressores hidráulicos” (BARRY, 2011, p, 8).

Dessa forma, acredito muito que o romance tangencia tanto as discussões de uma fusão entre

corpos orgânicos e maquínicos quanto a total projeção de que nossa consciência/existência possa

ser completamente digitalizada. Assim, podemos pensar no tema da consciência/inteligência ser

comparada a um software. Segundo Sibilia (2005), o teste de Turing, para definir se uma

inteligência artificial é 'verdadeira', depende da falha em identificar a origem não humana do

pensamento. Somente quando o homem supostamente falha em identificar o limite da máquina com

o humano é que, paradoxalmente, a máquina pode ser considerada, em essência (inteligência),

humana. Em outras palavras, o teste é bem-sucedido quando a variável controle, os humanos,

falham em reconhecer a origem de sua própria essência. O argumento de Turing é que a inteligência

não depende somente de bases materiais orgânicas.

Essa dimensão da inteligência artificial ou da transformação da consciência humana em algo

digital e independente de uma base orgânica para seu desenvolvimento tem emergido fortemente no

cinema dos últimos anos. Filmes como Avatar (2009), Transcendence: A Revolução (2014),

Ex_Machina: Instinto Artificial (2015) e Chappie (2015) modulam exatamente essa tensão: quais os

limites do reconhecimento de uma consciência autêntica e autônoma? Em todos esses filmes o

corpo orgânico é o limite em que as consciências se sobrepõe. Neles também encontramos a

confusão entre organismo biológico e mecânico/digital e a possibilidade de supera-la através da

captura da consciência e capacidade de transferi-la caso seu recipiente se „quebre‟. A

existência/consciência nesses filmes se transforma em informações codificadas capazes de interação

e comunicação mediada. Algo semelhante ao que acontece com Neumann e suas pernas biônicas

inteligentes, as Contornos.

Penso que a questão não seja o ponto em que o ser humano é considerado limitado. A

deficiência pode ser interpretada como uma metáfora central que sintetiza toda uma suposta

realidade dos impedimentos físicos, cognitivos e sensoriais humanos. Um dos problemas é que

somente determinados modos de existir ou de viver são considerados a base material em que

supostamente a metáfora da limitação humana se assentaria. O que penso mais interessante de se

questionar agora são os modos em que estamos tentando superar essas limitações. Ou seja, o modo

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como usamos determinadas projeções de futuro onde a falta de limites do ser humano depende de

determinadas contenções de vidas indesejáveis que já existem no presente.

Então, o problema não é somente o modo como pessoas que possuem deficiências são

oprimidas por um discurso metafórico que homogeniza as diferenças corporais que caracterizam o

lastro material em que se assenta a representação identitária, mas também o modo em que essa

opressão depende da própria ideia de que a deficiência é algo a ser extinguido. Talvez seja mais

interessante problematizar e analisar os modos em que propomos fazer o ser humano ilimitado.

Referências

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Journal of the American Academy of Orthopaedic Surgeons, Volume 14, Number 10, 2006. pp.

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I Function Therefore Am I? - Disability As A Fiction Abstract: From the middle of the twentieth century, political and theoretical movements began to

generate other identitarian meanings for the concept of disability in objection to those indicating

defects organically delimited exclusively in the individual bodies. Such political mobilizations

around the redefinition of disability as a social construct operate, fundamentally, at the community

level imagined of social and bodily relations and interactions. Thus, the idea of disability that is

being produced contemporaneously is not exempt from controversial materializations and

designation. In this work I propose an incursion into some theoretical semantics of the term 'fiction'

to explore how disability can be thought and produced in addition to a dichotomous process

between nature and culture, individual and society. As an argument for analysis, I focus on certain

discourses that refer to the corporeality and behaviors of 'normal' people who seek to voluntarily

become disabled. To explore these issues I start with a cultural analysis of Max Barry's sci-fi work

called Machine-Man which chronicles the voluntary transformation of a scientist into an organo-

mechanical hybrid. Reading this work from a critically disabled perspective makes it possible to

extrapolate certain rigidities of the socio-anthropological debate about fundamentally organic and

functional reality around human bodies.

.

Keywords: disability studies; crip theory; fiction; dissident corporealities