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Fronteiras da Psicanálise: afinal, quem será este novo paciente que se apresenta ? Beatriz da Motta Pacheco Tupinambá Lilia Cintra Leite Sylvia Salles Godoy de Souza Soares * * Membros Associados da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

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Fronteiras da Psicanálise:

afinal, quem será este novo paciente que se apresenta ? Beatriz da Motta Pacheco Tupinambá Lilia Cintra Leite Sylvia Salles Godoy de Souza Soares∗

∗ Membros Associados da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

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ÍNDICE

Parte 1 -I- Introdução. -II- Fundamentação Teórica. -III- O Desafio: na Instituição. Parte 2 - Algumas notas sobre o método psicanalítico na experiência de grupo. Parte 3 - Delineando um campo de trabalho. O lugar e o papel, possíveis, da psicanálise na instituição. O grupo na instituição, no seu sentido vertical e horizontal. I - Metodologia: A Instituição. O Pedido. A Proposta. Foco do Trabalho. Composição dos Grupos. II- - Da Experiência. Parte 4 - Considerações Finais.

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PARTE 1 �����������

I – INTRODUÇÃO �

A idéia de escrever este trabalho, surgiu diante de um desafio que se nos apresentou no tumultuado início de um novo século. No mundo, os acontecimentos se sucediam, deixando uma marca de caos e perplexidade. A crise na Cultura, isto é, no acervo dos conhecimentos acumulados nos últimos 2000 anos, só para dar um parâmetro, —a cultura judaica cristã —pressionava no sentido de exigir mudanças cada vez mais rápidas e uma enorme capacidade de adaptação de toda a sociedade, tanto do ponto de vista individual como de suas instituições. Urgia mudar e quem não o fizesse (individuo ou instituição) corria o risco de ser atropelado pela história e ficar imobilizado na beira do caminho “olhando o tempo passar”. Na SBPSP, cria-se na Diretoria de Cultura e Comunidade, o Setor III, como uma das respostas necessárias, às novas demandas da sociedade, assinalando que nossa instituição aceitava o desafio. Quem se lembra de um extraordinário filme com Jean Paul Belmondo que se intitulava “Pierrot le fou”2 onde o personagem central do filme, Ferdinand, é de fato um louco, mas louco de amor por Marianne. Ela o chama de Pierrot e ele a corrige numa repetição insistente durante o filme inteiro: “meu nome é Ferdinand”. Ele a segue numa corrida desvairada até o mar, até a morte, em plena luz do dia, numa cena antológica. Ele é o precursor dos homens bomba que hoje nos apavoram. O filme faz um retrato da violência do mundo, através de constantes referencias à brutalidade e falta de escrúpulos. Conta a estória de um amor infeliz,

1 Analista Didata da SBPSP – Artigo “Implosão na Cultura”, publicado no jornal Folha de São Paulo, em 26/09/2001. 2 Godard, Jean Luc (1965): Pierrot le fou (O demônio das onze horas).

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escrita como um poema obscuro num mundo desagregado pelo ódio e a insanidade. O filme também questiona o comportamento misterioso e incompreensível do ser humano, na figura de uma mulher. No final, Ferdinand, enrola sua cabeça ---- sabendo que aquele era o seu ponto vulnerável --- em cartuchos de pólvora, e ascende o pavio. A câmara e o espectador se afastam para assistir a explosão e as chamas, para depois a paisagem mediterrânea voltar à sua calma silenciosa. Era cinema, era arte, uma licença poética, sobre o desespero e o suicídio. Pierrot, mata-se sozinho. Hoje, os suicidas levam consigo centenas e até milhares de seus semelhantes, sentem-se heróis e o mundo se enche de medo e espanto.

E a Psicanálise? E nós psicanalistas, em meio a tantas transformações e incertezas, como abordar este mundo novo que desafia qualquer previsibilidade e nos tira as referências, que até aqui pensamos que nos resguardavam? Mas do que? Encastelados, numa metáfora das torres, (Twin Towers) onde acreditávamos estar protegidos do cotidiano que víamos se movimentando como formiguinhas lá em baixo, talvez não nos demos conta de quanto e com que rapidez o mundo estava mudando. Em que momento deu-se a mudança de qualidade não saberíamos dizer. Aconteceu que as torres ruíram, “latu sensu,” soterrando junto grande parte das nossas crenças e esperanças. Se um dia ousamos pensar que éramos invulneráveis, estava aí a história afirmando o contrário. Não foi só o perfil de uma cidade que mudou, mas também algo de muito profundo dentro de nós. Não nos restaram muitas alternativas. Tínhamos que repensar nosso papel, nossa responsabilidade e nossa função enquanto seres sociais. A Psicanálise, enquanto instituição, está fazendo o seu esforço no sentido de acolher a diversidade que a situação impõe, sem abrir mão das especificidades que a caracterizam.

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Como disse o Príncipe di Salina3, em meio ao tumulto da unificação da Itália, assistindo à derrocada da sua classe social, a aristocracia, “devemos ceder para não modificar”. Afinal, temos nas mãos um instrumento de refinada sensibilidade: nossa formação analítica. De maneira nenhuma pretendemos abdicar e encostar como ferro velho este precioso instrumento. O fato de não sabermos bem o que fazer, não justifica que cruzemos os braços. Continuaremos como chegamos até aqui: através de erro e acerto.

3 Lampedusa, Giuseppe in “Il Gattopardo”.

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,,����)81'$0(17$d®2��7(Ð5,&$� Freud sempre viu o homem inserido no seu meio social. Seu interesse pela antropologia, pelos problemas da cultura o fascinaram desde muito jovem. Sua primeira abordagem dos fatos sociais, traduzidos no problema da religião, data de 1907, quando publicou “Atos obsessivos e práticas religiosas”, onde descreve a neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma obsessão universal. “Totem e Tabu” (1912-13) representa na realidade a primeira tentativa de Freud para aplicar a visão e as descobertas da psicanálise a alguns problemas não resolvidos da psicologia social. �

Entretanto, foi na década de 20 que seu trabalho sofreu uma mudança significativa. Publicou em 1927 “O futuro de uma Ilusão” que marca o inicio de uma série de estudos que se tornarão uma das suas principais preocupações, pelo resto de sua vida: os problemas e os fenômenos sociais. �����������������������������������������������������������������

Desta série de estudos, os mais importantes foram: “O Mal Estar na civilização” (1930), “Porque a Guerra?” (1933), carta aberta dirigida a Einstein, e finalmente “Moisés e o Monoteísmo” em que começou a trabalhar a partir de 1933 tendo sido publicado em 1939. No capítulo I de “O Futuro de uma Ilusão” Freud coloca uma questão, que setenta e cinco anos depois, talvez possa ser parcialmente respondida. Diz ele: “...quando uma civilização específica já dura há um largo período, saímos em busca das suas origens e procuramos entender ao longo de que caminho ela se desenvolveu. Dirigimos então o nosso olhar para outra direção e indagamos qual o destino que a espera e quais as transformações que está fadada a experimentar.” * · �

Ao fim da Segunda Guerra o mundo tinha mudado de maneira drástica. A destruição de Hiroshima e Nagasaki marcou a entrada da humanidade na era atômica. Nunca mais seríamos os mesmos. Estávamos fadados a sofrer um medo telúrico, global, ninguém mais estava a salvo. A destruição podia nos alcançar em qualquer ponto do planeta, sem aviso ou razão. O Homem estava vulnerável e só diante de si mesmo. Foi quando um psicanalista de grande sensibilidade e inteligência, dando-se conta das novas necessidades e do que era possível fazer em tais circunstâncias, realizou os trabalhos pioneiros de estudos com grupos e instituições. Muito jovem, conhecera o horror e o sofrimento, como combatente na Primeira Guerra Mundial. Chamava-se Wilfred R. Bion. Bion mostra como é difícil para o ser humano relacionar-se com um outro, numa tarefa conjunta, de forma harmônica e realista. Sendo que o homem é um ser

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social, ele não pode se desenvolver e progredir sem a colaboração de outros seres humanos. Por outro lado, em função da complexidade da sua natureza psíquica e emocional, sabemos como é difícil progredir com outros seres humanos. O dilema é que ele precisa estabelecer uma cooperação eficiente nas tarefas da vida. A compreensão desse dilema e das tentativas de resolvê-lo, para se defender das intensas ansiedades que ele desperta, é a chave para podermos compreender e ajudar instituições e seus membros a resolver o dilema de forma a que possam funcionar melhor, tornando-se mais eficientes e operacionais. “As instituições sociais surgem para satisfazer as necessidades humanas e a partir daí, tornam-se realidades externas, relativamente independentes dos indivíduos, mas que entretanto, afetam a sua estrutura e modificam a sua realidade interna. Fenichel aponta dois aspectos importantes na prática psicanalítica institucional:

1) As instituições, uma vez estabelecidas, tornam-se resistentes e muito difíceis de se modificar nos seus elementos essenciais.

2) As instituições, porém, modificam a estrutura de personalidade de seus membros, de maneira temporária ou permanente, de tal forma que para mudar o individuo, tenhamos que primeiramente mudar a instituição.”4

Isto pode nos parecer paradoxal, mas na realidade é o parâmetro que define a dificuldade com a qual a psicanálise deve se defrontar, face às profundas transformações por que passa a sociedade assim chamada “globalizada”. Transformações essas que abalaram os fundamentos primordiais da Cultura, trazendo no seu bojo a quebra do nosso mundo referencial, criando novas e insuspeitadas necessidades. A tecnologia transformou a sociedade em todos os seus aspectos: ético, econômico, sociológico, psicológico e político. Isto representa hoje o grande desafio da Psicanálise, sua possibilidade de sobrevivência e sua inserção no século XXI. III- O DESAFIO: NA INSTITUIÇÃO Temos como ponto de partida, a nossa convicção na existência do inconsciente. Isto nos habilita a compreender as manifestações da mente inconsciente, no seu conteúdo e na sua dinâmica, quando estamos trabalhando com grupos. Podemos também reconhecer suas manifestações na própria instituição, pois ela apresentará elementos significativos originados de situações tanto externas quanto internas, através da interação de seus membros. Sabemos todos, por dever de ofício, que a realidade externa, numa instituição, estimula ansiedades poderosas, que têm a ver com as fantasias inconscientes do 4 Lyth, Isabel Menzies (1988): Uma perspectiva Psicanalítica nas Instituições Sociais, in: Melanie Klein Hoje, vol.

II, Imago Editora, Rio de Janeiro, p. 307.

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indivíduo. Na prática institucional esta compreensão é de grande utilidade para nos orientar sobre a natureza dos conflitos que surgem no transcurso do nosso trabalho. Somente com a compreensão correta sobre a natureza das diversas situações, é que podemos ajudar os grupos a se desenvolverem. Quando há um erro no diagnóstico da natureza real do problema, os “remédios” tornam-se ineficazes, deixando o problema nuclear virtualmente intocado e o trabalho fadado ao fracasso. Outros fatores devem ser levados em conta, que serão considerados e analisados a seguir.

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PARTE 2 – ALGUMAS NOTAS SOBRE O MÉTODO PSICANALÍTICO NA EXPERIÊNCIA DE GRUPO. A psicanálise, enquanto um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento da psique humana, constitui-se num acervo único, com capacidade para alcançar e compreender uma multiplicidade de situações de vida, aonde predominam as relações humanas. Também sabemos, que a existência do homem é pautada pelo paradoxo: de constituir-se num ser solitário, mas que só se realiza em grupo e através do grupo. Para melhor fundamentar nossa reflexão, faremos algumas breves referências sobre as teorias psicanalíticas de grupo. Grimberg5, citando Freud, nos lembra que é necessário um casal para dar origem ao bebê e cuidar de seu desenvolvimento. E ainda, que o ser humano só se desenvolve ao ser cuidado por outros, com os quais estabelece vínculos afetivos estruturantes, que lhe permitirão, ou não, desenvolver suas capacidades mentais simbólicas. Melanie Klein6, que alcançou uma profunda compreensão da vida psíquica, enfatiza a importância das primeiras relações objetais na formação da psique do bebê. E afirma, que é do contato com o grupo de origem, que surgem ansiedades e defesas que o indivíduo constrói e que vão se repetindo vida afora.. Bion7, chama atenção para o fato de que a sociedade, tal como o indivíduo, pode não querer tratar suas aflições por meios psicológicos, até que seja levada a fazê-lo, pela compreensão de que, pelo menos alguns de seus sofrimentos são psicológicos na origem. Bion8 acompanha Freud9, sinalizando para a presença do fenômeno de uma mente grupal, que funciona como uma unidade, como um todo. Observando-se por essa ótica, temos uma configuração grupal com novos significados. Odilon de Mello Franco10 amplia o conceito, quando afirma: “Por ‘Instituição’ quero me referir, não a uma estrutura organizacional, mas a uma mentalidade, a um conjunto de relações e fantasias estabelecidas, que subjazem a um comportamento de grupo.” Roberto Damatta11, mencionando Herder, resume de forma poética: “para os seres humanos, pertencer é tão importante como comer ou respirar”. A partir desses fundamentos, nos foi possível ir tecendo um fio condutor para nos orientar, e podermos nos aproximar de conteúdos inconscientes, fantasias, e das

5 Grinberg et al: Introdução às Idéias de Bion, 1973. 6 Klein, M. –Notas sobre alguns Mecanismos Esquizóides, 1946. 7 Bion, W. Experiências com Grupos, 1959. 8 Bion, ibid. 9 Freud, S. Psicologia de Grupo e Análise do Ego,1921. 10 Mello Franco Filho, O. Fundamentos Teóricos e Técnicos do Enquadre na Formação Analítica in Jornal de

Psicanálise,33 vol 60-61: 179-184, dez.2000. 11 Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 17/01/2002.

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relações objetais que regem as relações de um indivíduo consigo mesmo e com seus semelhantes. Considerando-se sobretudo, que é no viver das relações afetivas, que o homem alcança sua real dimensão simbólica, base das relações humanas, e que o diferencia dos outros seres da natureza. Nosso trabalho ancorou-se portanto na aplicação do método analítico, utilizando a escuta e a observação: elementos de reflexão. PARTE 3 DELINEANDO UM CAMPO DE TRABALHO. I- -Da Metodologia.12 A partir de questões que dizem respeito a uma possível constelação Psicanálise/Instituição/Educação, apresentaremos uma reflexão sobre as questões teóricas e técnicas, que destacaram-se no interior do diálogo com a própria pesquisa, e nortearam o desenvolvimento do nosso trabalho. Antes de mais nada, para situar o leitor, traçaremos um breve histórico, sobre a entidade onde realizamos o trabalho. A Instituição. Trata-se de um Educandário com mais de 60 anos de existência, que atende hoje, cerca de 1300 crianças com idade entre 7 e 18 anos. Deste total entre 130 e 140 meninos, por serem “órfãos sociais”, vivem em tempo integral no próprio Educandário, que se encarrega de sua educação e cuidados. Os meninos abrigados são distribuídos em número de 15, em 8 casas, que eles denominam “lares”. A instituição, que também dá assistência à comunidade que mora na região, localiza-se num terreno de 9 alqueires, e constitui-se numa grande estrutura, que inclui escola pública de 1o e 2o graus, vários cursos profissionalizantes, entre outros serviços de suporte e com vistas à instalação do Projeto Guri13. Historicamente, a instituição veio sendo conduzida de forma autoritária. Foi instaurada por uma entidade religiosa católica. Posteriormente sua direção passou para mãos de militares, para em seguida retornar aos primeiros. Atualmente, além das mudanças político/ideológicas que vêm ocorrendo, não só nessa instituição em particular, como no mundo todo, um outro fator vem contribuindo para um certo desarrazoamento. O Educandário em seus primórdios, era localizado numa chácara da periferia, o que de certa forma os mantinha num regime de “proteção” natural. Hoje, com o crescimento gigantesco da cidade, o centro urbano foi se avizinhando,

12 Utilizamos o termo Metodologia, no sentido exposto por Maria Isaura Pereira de Queiroz, que engloba tanto as teorias quanto as técnicas de pesquisa. In Queiroz, M. I. P. :“Variações sobre a técnica do gravador no registro da informação viva.”. São Paulo, CERU E.F.F.L.C.H.,1983. 13 Trata-se de um projeto com a finalidade de desenvolver a cidadania e a auto estima de crianças e jovens (de 8 à 18

anos) de baixa renda, através da música.

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trazendo consigo todos os inconvenientes e riscos de abrirem-se as comportas: contato com drogas, tráfico, violência, etc. Na proposta de renovar seu papel social, o Educandário, respondendo ao convite feito pelo ECA, (Estatuto da Criança e do Adolescente) vem introduzindo a idéia de transformação do enfoque anterior, a caridade, um fim em si mesmo, para que a passagem das crianças no Educandário, constitua-se num caminho, num processo. Com o propósito de transformar o papel do abandonado, do excluído, em participante, mudanças vêm-se fazendo necessárias, tanto no corpo diretivo quanto em outros estratos.

O Pedido. Ainda que a direção tenha articulado uma equipe de profissionais especializada para dar assistência às crianças, ela recorreu à demanda de uma escuta psicanalítica, por considerarem que não tinham recursos para atender às pressões e necessidades do pessoal técnico. Para isso encaminharam ao Setor III da Sociedade de Psicanálise, um pedido de atendimento para as pessoas envolvidas diretamente em cuidar dos meninos abrigados. É sobre a gestão desse setor, que desenvolveu-se nosso trabalho, em grupo; mais especificamente para trabalhar com o desnível que foi surgindo entre os antigos –laristas- e os novos educadores. Pormenorizando, os “laristas” são pessoas de baixa renda, com nível de escolaridade elementar. Moram com suas próprias famílias e com os meninos abrigados, como se fossem “pais adotivos” o que, por vezes, traz dificuldades em distinguir a vida pessoal da vida de trabalho. (As casas, são separadas umas das outras, às vezes bem distantes, de modo que os laristas têm pouco contato entre si, o que favorece um certo grau de isolamento e pouca comunicação). Atualmente eles dividem suas atribuições com os educadores, que têm no mínimo 2O gráu, que residem fora dos muros da instituição, e que, sendo profissionais da área, são contratados com objetivos melhor definidos, sujeitos a outras leis trabalhistas. O grupo de educadores/laristas, mesmo tendo reuniões semanais com a equipe profissional que os dirige, estava sentindo-se sem uma retaguarda e um espaço, onde pudessem levar seus graves problemas com as crianças, relacionados à disciplina, limites de comportamento, etc. Nosso trabalho centrou-se portanto, no atendimento em grupo dos educadores/laristas, -“grupo chave”- que faz o elo entre os meninos e a “chefia”, tendo como alvo, um aprimoramento de suas capacidades, para melhor atender as crianças abrigadas nos lares. A Proposta do Trabalho. Na tentativa de criar um enquadre para o contexto institucional vale salientar, algumas peculiaridades que envolveram nosso trabalho, para preservar o vértice psicanalítico:

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1o – A partir de uma experiência compartilhada, não perder de vista a especificidade de uma escuta, que transcende os níveis do verbal, do manifesto. 2o – Conservar a essência do método, que sustenta fundamentos básicos da psicanálise: o conceito de inconsciente e a presença do campo transferencial. Mesmo que o manejo da transferência no acontecer do grupo, não tenha sido o foco do nosso trabalho, vale ressaltar sua utilidade inestimável, porquanto se constitui no próprio fazer psicanalítico. Função das analistas: No primeiro momento aguardar as expectativas deles e como receberam o convite para participarem do grupo. Em seguida, oferecer uma escuta ativa, decodificar, esclarecer, mediar, etc.; e, através da própria experiência reconhecer e acolher a angústia que vivem, decorrente da fase de transição. Por fim, dar subsídios, para que a partir de suas própria reflexões, pudessem descobrir uma função e uma identidade Foco do trabalho:. Nossa preocupação voltou-se para uma escuta analítica dos problemas e da emergência dos sintomas, com enfoque especial nos entraves das relações de trabalho: 1- No sentido horizontal, com seus pares 2- No sentido vertical, com os meninos e superiores. Sem qualquer traçado definido a priori, nossa proposta foi: ao dirigir um olhar perscrutador para as relações entre os diversos participantes entre si, entre eles e suas funções, e com as analistas, dar espaço para inter-locução, favorecendo o emergir espontâneo de suas questões. Ao longo do tempo, buscando decodificar uma cultura institucional e de grupo, a especificidade do nosso trabalho foi definindo-se, no sentido de criar um espaço que pudesse conter as angústias das pessoas que exercem as funções de educar e cuidar, as quais nem sempre se encontram atendidas. Constituir um lugar que abrisse perspectivas e novas possibilidades. Um espaço de continência para o fluir de uma carga emocional e afetiva que caracteriza, permeia e envolve a natureza das relações particularmente atribuladas nesse segmento da população, para que, por fim, o próprio grupo viesse a descobrir suas potencialidades, enquanto grupo, e assim construir uma nova perspectiva de funcionamento. Composição dos grupos. Formaram-se dois grupos (A e B) de 10 pessoas cada um, que se alternaram quinzenalmente, durante um semestre, num total de 12 encontros. Nossa idéia inicial era de formar duas duplas de analistas, e que cada uma acompanharia o mesmo grupo. Entretanto apresentaram-se apenas três analistas, as quais, para fazer

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frente ao projeto, montaram um calendário seguindo uma seqüência, na qual fariam um alternância das duplas, entre elas. Se por um lado fez necessário lidar com a vacância, por outro, propiciou o contato com todos os participantes. DA EXPERIÊNCIA. Após alguns encontros com a direção, iniciamos nosso trabalho, in locu, em virtude da impossibilidade deles comparecerem à sede da Sociedade: pela distância e exigüidade de tempo. Para ilustrar, apresentaremos alguns recortes14 dos encontros com os grupos, entremeados de alguns comentários, cujo histórico e dinâmica, possibilitou-nos os alicerces deste trabalho. Em nosso primeiro encontro, com o grupo A, compareceram 9 pessoas. Mesmo durante a apresentação, já começaram a falar a respeito de um menino que consideram “psicótico”. Uma das laristas que mora com o marido e 3 filhos disse “que tem medo do menino, porque ele é violento”. Sente-se ameaçada pela intrusão dele no meio de sua família e tem medo que seu filho revide. Uma ex-larista que atualmente mora fora (educadora), opõe-se, dizendo que tudo depende da maneira como se trata os meninos, enfatizando “a importância dos vínculos” e arrematando “embora ele se manifeste dessa forma ele a “ama”! Começa a surgir uma certa divergência entre os que moram no Educandário e os que só trabalham lá. Aos poucos vão relatando “a dificuldade em conciliar trabalho e moradia. O trânsito constante entre um e outro e a ausência de fronteiras entre os meninos e a própria família, acaba por minar a possibilidade de manter uma certa privacidade”. Depois de enunciarem as vantagens e desvantagens de uma condição, -moradia de graça e falta de privacidade- e da outra, -autonomia pagar aluguel, condução- começaram a falar sobre as “mudanças que têm trazido benefícios, (número menor de abrigados por lar) mas também têm trazido complicações”. Se de um lado a linha “militar” autoritária era nociva o extremo oposto, a frouxidão das regras e costumes, inviabiliza a educação dos meninos. Num determinado momento os homens levantaram-se para tomar um café e tiveram um momento de certa cumplicidade, o que poderia ser um indício de compor-se um grupo. Falou-se também que as diferenças sociais precisariam ser respeitadas, porque aqueles que obtiveram benesses da instituição, (meninos) sentiram-se depois como estranhos no ninho. A dinâmica do grupo transcorreu amena, as pessoas revelaram ter conhecimento e experiência de um grupo de escuta, mas, queriam saber: Qual o nosso objetivo ali? Haveria continuidade, e/ou tínhamos algum alvo? O que eles ganhariam com isso? Parecia que estavam lá porque a diretoria mandou e não porque soubessem de suas necessidades. A desconfiança presente talvez se devesse ao fato de não havermos nos colocado diante de uma técnica clara, ou um objetivo concreto

14 Obs: As letras em itálico são fragmentos das falas -Ipsis verbis - e as em negrito, para enfatizar os temas.

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Colocada a proposta de nossos encontros foi esclarecido que durante o processo iríamos definindo melhor as necessidades. Ao final, houve um certo desafio, como para testar nossas intenções: “se estávamos a serviço da “chefia”, ou do grupo?” O encontro com o grupo B, contou com a presença de todos os inscritos. Após as apresentações, uma das participantes queria saber qual seria o modo de procedermos porque em outra ocasião, haviam proposto um método no qual as pessoas se tocavam, às apalpadelas, e que se fosse assim ela não gostaria de participar. Outra pessoa diz que eles já tinham seminários para desenvolver técnicas de como tratar os meninos... A conversa flui em torno das mudanças na Instituição e algumas pessoas apontam para as diferenças. Os mais antigos, que trabalhavam há mais tempo, observaram que as mudanças têm sido benéficas. Os mais novos chegaram com as mudanças! Outra questão levantada foi o exercício da autoridade. De forma geral, a maioria destacava o respeito como fator essencial. Uma das pessoas que ficara em silêncio chama a atenção de uma das analistas, que apontou para o fato. Ao começarem a falar sobre a forma de interação, aquela que se calara, uma educadora, pedagoga, diz: “agora vou falar: quando cheguei aqui, a senhora (falava dirigindo-se a companheira ao seu lado) me tratou bem, mas depois não sei porque, foi áspera comigo, me tratou friamente.” A senhora, a larista, tenta se desculpar, mas finalmente revela; “as insatisfações são geradas pelas diferenças salariais”. O grupo estava num movimento de sondagem. Pareceu-nos que os homens lidavam com mais facilidade com certos problemas do que as mulheres. O grupo, de forma uníssona, afirmava que não achava justo que fazendo o mesmo serviço recebessem menos. Fato é, que reconhecem as diferenças de nível de escolaridade, mas ainda assim consideram injusto. O espaço de conversa foi sendo preenchido pelas reivindicações, de forma tal que puderam expressar seu descontentamento e suas angústias. Ao final foi discutida a validade do grupo e eles se mostraram bastante motivados para desenvolver o trabalho, visto ser aquele um espaço, onde poderiam, como em nenhum outro, discutir as próprias dificuldades. Os próximos encontros, foram pautados por sérias questões tendo como pano de fundo a ausência, o abandono, a adoção, sendo que mostravam-se consternados por crianças que “tinham uma história muito triste...” Ao emergir a questão da sexualidade, os educadores bastante cautelosamente colocaram que há casos de homossexualismo, estupro mas que felizmente no momento eles estão podendo “namorar meninas de fora o que dá um cunho de normalidade”, embora também se preocupem com uma possível gravidez. Foi destaque também, a falta de estímulo e das expectativas frustradas dos meninos, porque a instituição não abre as portas para outras oportunidades, quando eles saem para o mundo. Pareceu a uma das analistas que a instituição funcionava como uma espécie de Hospital-Dia, onde eles atendiam uma população particularmente carente,

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prejudicada, e o quanto essa tarefa lhes parecia árdua. Foi apontado, que se as crianças viessem de lares bem constituídos provavelmente não estariam lá. Quanto às poucas chances, que lhes minava as forças, foi mostrado que a situação deles, nesse sentido, não era muito diferente da maioria dos brasileiros que tinham que se haver com a situação de esvaziamento no mercado de trabalho. Não podem esperar tanto! Esse e outros fatos chamaram a atenção da outra analista, para a dificuldade de se separarem da infância, de como a passagem para a maturidade envolve responsabilidades. Em algumas ocasiões o grupo se mostrava deprimido, em outros, sentiam-se revigorados, e mencionavam o número de meninos com talentos, que valeria a pena serem desenvolvidos, tais como o interesse por aprender, dom para desenhar e o quanto eles, os educadores se sentiam gratificados por isso. No decorrer do processo, foi havendo uma redução na presença, cada qual apresentando justificativas diversas: “estava havendo um curso no mesmo horário, etc., etc..” Frente a esse fato, questionou-se da necessidade ou não da existência do grupo e do interesse das pessoas. Uma delas afirmava “estar colhendo benefícios, e estar havendo uma maior aproximação entre eles”. Pareceu a uma das analistas que estava havendo um movimento em dois sentidos: ameaça de evasão seja por parte deles próprios, seja da nossa parte, embora com reflexos diferentes em cada membro da equipe; e, uma tentativa de salvar o grupo. Quando foi apontado que talvez estivessem falando isso para agradar, (até com sentido de preservar o espaço) houve uma reação: “eles não estavam ali para puxar o saco e que isso não era característica sua”. O clima foi-se desanuviando à medida que puderam perceber a oportunidade de haver uma conversa franca. Em síntese, que a finalidade do grupo era essa: falar, serem ouvidos, mas sobretudo, que o diálogo pudesse acontecer entre eles e também conosco. No encontro seguinte, quando as analistas chegaram, encontraram tudo deserto: não havia ninguém nos pátios, as portas das salas fechadas, inclusive o acesso às salas superiores, onde atendíamos, estava com as grades abaixadas. O clima “era” de luto, de completo recolhimento. Por fim, elas foram informadas por uma pessoa, que mostrava-se surpresa de que elas não tivessem sido avisadas, porque não estava havendo atividades naquele dia. Mesmo assim um dos membros do grupo apareceu e houve sessão. Seu relato à respeito de um dos educadores que havia sido agredido por um menino, foi pungente. Dirigindo um foco de luz para aquele quadro, as analistas puderam dar sentido àquela sensação de profunda depressão e medo, bem com ao clima de perplexidade que tomou conta de todos. A gravidade da agressão tinha deixado suas marcas que mais tarde vieram a se manifestar, revelando o quanto eles podiam ser solidários, quando eram atacados pelos meninos e/ou sentindo-se destratados pela diretoria. Havíamos chegado na metade do tempo de nossa proposta de trabalho. Constatando-se o declínio de presenças, aparentemente em função de mudança de

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salas e de atividades sobre-postas, que poderiam estar inviabilizando a presença deles, a equipe levantou uma série de questões, incluindo a validade da demanda. A questão foi discutida também com o psicólogo da instituição, mas sobretudo foi alvo das nossas reflexões. Este fator merece um intervalo na seqüência de nossa apresentação, para salientar um momento de mudança na direção do trabalho. A começar, por uma reconsideração do enquadre, que num primeiro momento apenas foi comunicado verbalmente. A experiência nos mostrou que havia um “furo” e conseqüentemente percebeu-se que não havia registro sobre as condições dos encontros. Esquecimentos, resistências, ou o que? Seria somente uma questão de registro das datas, ou ausência de um registro interno? Fazendo uma nova tentativa, foi afixado nas casas/lares, a agenda impressa com os dias de escala de cada grupo, não sem levar em consideração que as ausências podiam ser reveladoras de aspectos ainda insondáveis. Repensando os obstáculos, talvez concretos, de comparecimento, foi sugerido que poderiam, se quisessem, vir em outro grupo, em outro dia. Danielle Quinodoz15, em seu artigo sobre a função do setting analítico como instrumento de contenção, nos propõe olhar mais atentamente para possíveis relações do enquadre com as identificações impostas por um “sistema autoritário”, tanto no que se refere ao paciente quanto ao analista. Questionando a importância e o significado do setting, ela sustenta o quanto sua interpretação pode ser variável de um analista para outro. Em seu ponto de vista, trata-se de um “todo complexo de condições necessárias para gerar uma específica relação psíquico/afetiva entre o analista e o paciente, na qual o processo possa estabelecer-se”. Acrescenta, “que o fato de colocar-se regras e padrões, ajuda a emersão da tridimensionalidade: analista/paciente/relação, e que qualquer violação ou exceção, revela mecanismos psíquicos do paciente”. Em nosso caso particular, pensamos, que a nossa mobilidade, de certa forma Pôde ser um modelo diferente daquele anteriormente estabelecido, que oscilava entre estar frente a uma autoridade indiscutível e/ou a infração (o boicote). O grupo, reflexo da cara da instituição reproduzia conosco o que havia introjetado (um sistema rígido). Na verdade, até o momento, não havia um grupo. Era um aglomerado de pessoas/ilhas. Elementos esparsos de um grupo inexistente, com responsabilidades expressas, mas difusas. Um tanto cada um por si, e Deus por todos, sujeitos a uma voz de comando. Afinal, quem comparecia às sessões? Eram fantasmas ou fantoches? Que responsabilidade lhes era devida? A partir desse momento, abriram-se novas perspectivas e o destino do grupo tomou novo rumo: o material que vinham apresentando de forma superficial e projetada nos meninos –a violência, a revolta e tudo mais-, foi-se depurando para adentrar num estrato mais profundo do processo. O grupo começa a esboçar um projeto de existência própria. Quando parecia que estava para acabar surge o desejo de continuar! 15 Quinodoz, D., The Psychoanalytic Setting as The Instrument of the Container Function. Int. J. Psycho-

Anal.(1992) 73, 627.

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“A crise desmonta o discurso tradicional, largamente vigente..., e revela como todas as instituições e conquistas modernas, atribuídas exclusivamente ao desenho e a reestruturação do Estado, à economia e à esfera política, podem sair pela culatra -quando a sociedade não tem uma rede institucional capaz de socializar seus membros ou um sistema de crenças e de enredos coletivos que os faça ter consciência de pertencer a uma totalidade inclusiva.” Roberto Damatta16 A ruptura de campo17, ao iluminar as regras do campo rompido, trouxe à tona a colisão das regras até então seguidas, com outras regras possíveis. Inicia-se um novo ciclo. O movimento do grupo ilustra ad litteram, nossas hipóteses iniciais: o funcionamento do grupo em si mesmo, no sentido horizontal; e, num sentido vertical, sua inserção na instituição. No encontro subseqüente, a conversa iniciou-se pela adequação da sala, do horário e da mobilidade das pessoas de poderem comparecer na medida de suas possibilidades. Surgiram algumas escusas, e veio à tona a questão da responsabilidade: “porque quem pediu o grupo de escuta fomos “nós” e justificativas pessoais todos teríamos”. Após algumas colocações, pareceu-nos que apresentavam-se dois blocos. As ‘laristas’ queixando-se das dificuldades de limites: “quando um casal trabalha junto, mesmo que haja um horário definido para cada um, acaba havendo uma intromissão de atribuições. Além de considerarem haver injustiças, pois quando falta vigilante para o período da noite, eles têm que cobrir o horário e não são devidamente recompensados”. Uma das laristas faz um depoimento da situação crítica que está vivendo. O marido foi aquele que havia sido agredido pelo menino. Mas o pior de tudo diz: “é ser chamad,a na frente de todo mundo na reunião com os dirigentes, de incompetente e que não soubemos dar conta do recado”. A gente se sente insegura, fragilizada. Quando viemos para cá, foi um paraíso, um lugar verde, espaço...; mas agora as coisas mudaram. Está uma situação onde os meninos fazem tudo o que querem e não acontece nada. Mas, se houver qualquer reação da nossa parte estamos no olho da rua.” Uma das educadoras fala: Nós vamos à reunião e ficamos retraídos, outros, podendo nem vão, mas acho que a gente precisava se unir e falar o que pensa. Sabemos que os psicólogos daqui também são empregados, eles fazem o que podem, também têm que prestar contas. Há um investimento muito grande de dinheiro aqui e todos de um jeito ou outro estão sujeitos a uma ordem.” O grupo em nome de seu porta voz, tenta se reorganizar, e propõe, em seus termos, também ser responsável, pelas coisas que ocorrem. Enfatizam a necessidade e utilidade da “psicanálise” assim por eles definida. Uma larista retoma, dizendo 16 Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 17/01/2002. 17 Herrmann, F. O Divã a Passeio. P.17.

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que foi feliz aquele que na semana passada tinha tido a sessão só para ele. Que ela também queria! .Foi assinalado: que “mesmo estando na presença das colegas de trabalho, ela tinha tido um momento de atenção especial não só nossa, mas de todo grupo.” Ao encerrar foi feito um pedido: “para que se houvesse uma impossibilidade de comparecerem, que nos avisassem, pois que ao mesmo tempo que podíamos entender as dificuldades deles de chegarem até ali, também nós, enfrentávamos trânsito, e, como elas também fazíamos um esforço para que esse encontro pudesse acontecer.” Nesse segmento é possível reconhecer-se o próprio grupo num movimento de integração, no qual também pudemos nos sentir incluídas, exercendo a função analítica de continência, no sentido que Bion lhe confere. Assim como as pessoas sofrem as oscilações de estados de mente PS⇔D18 o grupo também vive momentos disruptivos e de integração. Defronte a nós apresenta-se o paciente: o grupo, com funções de acolhimento, cabendo a nós analistas a função de balizar as fronteiras. O grupo tendendo à organização, articula-se em torno de necessidades pessoais: afetos e emoções que geram problemas, permitindo vir à tona a violência, o medo de sansões e retaliações. Mas também vão mostrando-se aptos a fazerem uma interpretação tanto deles próprios quanto da Instituição. Alguma coisa nova estava acontecendo. Podiam ser solidários quando atacados pelos meninos e/ou desconsiderados pela diretoria. O movimento de ampararem-se uns aos outros para defenderem-se, parece que fortaleceu o grupo e lhes deu um objetivo comum, que seria descobrir a uniformidade da conduta mais adequada e compartilhar os encargos de disciplina. O episódio da agressão ressurge noutro momento. Atribuem ao fato do menino ser psicótico e medicado, e que o “larista” não reagiu porque se o fizesse estaria na rua”. Quando foi perguntado o que entendiam por psicótico, instalou-se um clima de desconfiança, como se estivéssemos fazendo uma argüição. Talvez, reflexo de uma situação pautada por certa indefinição face às mudanças que referem estar vivendo; situação constrangedora, de insegurança, minada pela presença de uma ameaça que ronda, sem que possam fazer nada. Queixam-se de uma inversão de valores: tudo para os meninos, que recebem sem precisar dar nada em troca nem responsabilidade nem gratidão, etc. Por exemplo, se um menino ultrapassa os limites, esbarrando as fronteiras do inadmissível, como violência, seja verbal ou corporal eles, os educadores, se vêm acuados frente ao impasse. As queixas não se dirigem a uma determinado alvo em particular, pois reconhecem que seus coordenadores, também estão sujeitos a uma organização, que em última análise tem que justificar o patrocínio; mas, especificamente ao funcionamento do sistema que ao afrouxar as “rédeas”, vem perdendo o controle das situações. Quando reportam-se ao antigo exercício de suas funções, sentem-se um tanto desorientados, mas por outro lado, comentam que o fato dos meninos terem

18 Bion, W.R.- Elementos de Psicanálise (1966).

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permissão para conviver com meninas e transitar para além dos muros da instituição, tem seus benefícios, pois, no tempo em que havia uma repressão mais severa, houve ocorrência de estupro, sevícia, entre eles. Durante a sessão, outras questões foram levantadas em relação aos aspectos afetivo/emocionais, que geram problemas. Nesse momento, houve uma aproximação entre os educadores e laristas, que num clima amistoso consideraram a importância tanto da presença masculina quanto feminina na formação dos meninos. De resto, nossa sondagem, foi percorrendo o terreno instável por onde perpassam as relações: da tensão entre o rigor, e a permissividade em excesso, anseiam por uma presença com mais autoridade; pois, quando falamos que nosso trabalho estava do meio para o fim, surpreenderam-se com a passagem do tempo e disseram: nós mesmos pedimos o grupo de escuta e como não comparecemos a todas as sessões! Talvez a questão seja mais de responsabilidade do que de autoridade! Mas nota-se que estão começando a perceber o que é sentir-se responsável. Percepção esta, antes desprovida de significado. Nos últimos encontros pudemos contar com uma freqüência média, o que interpretamos como um sinal verde para prosseguirmos. Para arrematar, citaremos ainda alguns diálogos significativos. Um educador, W., começa a sessão pedindo desculpas por ter faltado duas vezes seguidas: a 1a porque tinha ido levar os meninos para jogar futebol; e a 2a porque tinha sido sua “folga”! Comenta que o J. (psicólogo do Educandário) o havia interpelado, dizendo: “que tinham sido eles próprios que haviam pedido o grupo, e que pelo menos deveriam ter a consideração com as senhoras que vinham até lá para atendê-los”. Foi colocado que o grupo era uma atividade voluntária e que eles viriam se achassem útil... Ele não compreende e prossegue tentando explicar-se. Uma pessoa levanta-se para pegar um copo de água e outra, R., observa: “a água só é saborosa para quem tem sede. Eu acho que deveria ser assim: as senhoras têm o seu consultório e quem quisesse de verdade, iria lá...” Uma das analistas indaga: Conhecem o ditado? Já que Maomé não vai à montanha, a montanha...- R. completa:“...vai a Maomé”. -Analista: “Nossa proposta inicialmente foi de que vocês iriam, não aos consultórios, mas a Sociedade de Psicanálise, a quem foi feito o pedido; mas em nossa reunião com a coordenação do Educandário, concluímos que era inviável.” W. retoma: “E também não teria o grupo...”. R. diz: “cada vez que eu venho encontro pessoas diferentes; hoje era dia do meu marido, mas eu queria vir mesmo que ele viesse; mas ele falou já que você vai eu fico...” Ao incluirmo-nos no grupo como parte integrante dele, a conversa prossegue à respeito da viabilidade do grupo, da conveniência dos horários, etc, até o momento em que foi mostrado que a formação do grupo fazia parte do próprio processo de vida dele. Que o grupo não existe a prori, ou por determinação, mas pela própria presença das pessoas que estão ali num determinado momento. W. nota que naquele dia, estava presente uma analista diferente da que era esperada. (Por um impedimento de horários, havíamos feito uma permuta entre nós). Ele

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acrescenta: “O grupo nasce daqui mesmo, (fala apontando para o chão, no meio da sala) é como uma semente plantada nesse lugar. O tema é levado adiante, e eles vão se dando conta, de que o grupo só pode existir se as pessoas se responsabilizarem, não só cada um por si mesmo, mas essencialmente tomando para si a responsabilidade do grupo. Pelo reconhecimento de sua utilidade, na criação de um espaço, onde possam ter uma interlocução dos problemas que os afligem, e que não são poucos... O material surge, deixando entrever que parte de seu enclausuramento deve-se a uma persecutoriedade que ronda a instituição, porque, quando mostram ou dizem o que pensam, nem sempre chegam a um resultado satisfatório; o quanto se sentem isolados em seus lares e em suas funções, apesar de viverem numa “multidão” de pessoas... Finalmente, quando foi assinalado, que apesar de todas as dificuldades a média de presença no grupo era satisfatória, porque ninguém esperava 100%, o grupo se mostrou agradecido pelo reconhecimento, e uma pessoa afirma: “eu tenho consciência da minha participação e venho não porque seja obrigada, mas porque gosto e quero vir...” O grupo começava a dar os primeiros passos de sua existência, embora, sem reconhecer-se ainda como tal, dadas as diferenças, e a falta de identidade. Antes de mais nada o fator principal: nunca foram reconhecidos enquanto um grupo pela instituição, posto que esta, tendo em mente que o alvo são os meninos, não vislumbrava a idéia de sua importância. O processo vicioso instalara-se: não podiam reconhecer-se porque não eram reconhecidos. Hoje já falam da necessidade de cooperação entre eles porque senão os meninos manipulam a situação. Num dos últimos encontros, usando senso de humor, começam falando que não trouxeram paus, nem pedras..., para enfrentar o que iria acontecer ali! Um dos educadores muito articulado, fala sobre a necessidade de horizontes, de uma relação dialética, entre os limites e a expansão. Um outro mostra sua angústia, ao sentir-se desautorado pelos “fantasmas” que rondam a instituição. (Antigos laristas que exercem um poder, privilegiando-se dos vínculos com os meninos). Em um clima ameno, puderem expor suas dificuldades e necessidades. Valorizaram a equipe de apoio que lhes dá muita assistência e a oportunidade de trocarem idéias no grupo de psicanálise, que faz a mediação possível entre eles. Por fim foi marcado um encontro com a Diretoria do Educandário, na sede da Sociedade de Psicanálise, no qual procurou-se traçar um perfil dos principais aspectos levantados por nós durante nosso percurso naquela Instituição. Entre eles, a ambivalência do pedido, acentuada pela evidência de suas diferenças; a falta de identidade e reconhecimento do grupo de educadores/laristas; sobretudo, as angústias que emergiram nos encontros, em função de uma urgência de uma autoridade mais efetiva e transparente. Fatores estes, já mencionados no relato da

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experiência, que puderam ser percebidos por eles e que esperamos venham a ser úteis.

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PARTE 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao término desse trabalho, muitas coisas haviam mudado, sendo que desta rica experiência, pudemos formular algumas considerações, ainda que em caráter amplo, mas que nos parecem válidas para trabalhos em outras instituições, ou até em continuação no Educandário que atendemos. Consideramos que conseguimos atingir alguns objetivos, por observarmos que houve uma mudança significativa na relação entre eles. No início, a tendência era eles se verem como rivais. Havia uma grande competição e uma hostilidade mais ou menos “disfarçada”. Falta de comunicação, desconfiança e isolamento eram a conseqüência lógica deste “statu quo.” À medida que fomos clarificando os verdadeiros sentimentos, que não ousavam expressar, nem sequer pensar, novas configurações de vínculos puderam emergir, com a conseqüente possibilidade de serem solidários uns com os outros. E, à medida que caminhavam no sentido dessa descoberta, houve um “insight” na percepção do Outro, que deixando de ser um rival, por definição, foi transformando-se num possível colaborador, com o qual poderiam somar na troca de afetos, partilhar nos momentos de angústia, ajudarem-se mutuamente e aprender. Enfim, um passo em direção à solidariedade. Com isso, aumentou a sua auto estima, e passaram a sentir-se mais seguros, a partir do momento que o próprio grupo adquiriu a função de apoio e continente. Esse fator deu origem a um maior entrosamento afetivo, e em especial, a percepção de uma identidade de grupo que fortaleceu seu poder de “negociação”, ou seja, colocadas em conjunto, suas reivindicações tenderiam a ser mais acolhidas. Entretanto, outros obstáculos tiveram que ser vencidos. O enquadre, tão facilitador do nosso trabalho como psicanalistas, dificilmente pode ser mantido na instituição. Além das mudanças de sala, (ora grandes demais, ora menores mais aconchegantes, porém com aulas de percussão na sala vizinha) a rotatividade do próprio grupo, sempre composto com diferentes participantes, alterava a dinâmica, dando um rumo completamente diverso e muitas vezes surpreendente, no conteúdo dos encontros. �Partindo daí, o primeiro ponto a ressaltar, é o da importância e utilidade da Psicanálise nas instituições, de um modo geral e particularmente nas de ensino. Tomemos a própria origem da palavra latina: e-ducere, traduzindo: conduzir para fora. Aí vemos uma ponte de extensas possibilidades para nós, psicanalistas. Não passamos anos sendo treinados a conduzir para fora, aquilo que, quando reprimido no nosso inconsciente nos faz adoecer? Quando Quinodoz refere-se a tri-dimensionalidade, podemos interpretar que fala de forma alargada da relação possível entre três universos, onde coabitam diferentes experiências, que inevitavelmente afluem e refletem na formação profissional. Ao pensarmos na interação dessas diferenças entre nós como um micro cosmo representativo, pudemos ir-nos dando conta de estarmos diante da

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árdua tarefa de nos educar. Esse era o cerne da questão: a capacidade para o exercício de uma função auto educativa. Isto quer dizer que tínhamos que “conduzir para fora” os aspectos mais maduros e integrados de nós mesmas ao mesmo tempo em que exercíamos a função de continente das nossas próprias angústias e dos aspectos mais imaturos das nossas personalidades. Se assim não fosse, como iríamos trabalhar as diferenças no grupo alvo, se não suportássemos as nossas? Trata-se de um trabalho minucioso de aparar as arestas, de qualificar e legitimar o “outro”, mas sobretudo, de poder situar-se no grupo, ao mesmo tempo incluindo-se e distinguindo-se do todo. Propriedade esta por excelência da relação analítica. Ver o outro e a si mesmo, é inserir-se num universo, sem perder com isso sua singularidade. Não tivesse sido este um produto de transformações entre nós, dificilmente o trabalho com os educadores, poderia ter sido realizado. Para concluir, faz-se necessário acrescentar que de fato enfrentamos o desafio de nos amoldarmos, durante todo o processo, por e-ducere a nós mesmas. Pelo mesmo motivo, por tratar-se de três psicanalistas com diferentes apreensões, vamos oferecer diferentes finais, inerentes à singularidade das próprias impressões. Como numa novela, o leitor poderá escolher o final que melhor lhe aprouver.

“Honni y soit qui mal y pense.” Beatriz – Quando o intuito é conhecer e aprender, aceitar o desafio de novas experiências é gratificante e enriquecedor. O trabalho com os grupos foi mobilizador de muitas emoções e muito estimulante para um cem número de reflexões, tanto pessoais, como entre nós as analistas. Acredito que as repercussões disto, podem refletir de maneira benéfica no trabalho clínico interpessoal e confirmar o valor e enorme alcance da formação psicanalítica no contato e compreensão da situação dos indivíduos inseridos na realidade viva e complexa da nossa época.

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Lilia – O trabalho revelou-se muito gratificante, porque antes de tudo, aceitei o desafio com propósito na investigação. Estava interessada em verificar o alcance, validade e legitimidade da Psicanálise além das paredes secretas dos nossos consultórios. Em primeiro lugar, tivemos que nos adaptar às diferenças de estilo, de enfoques teóricos, de ordem de prioridades que se estabeleciam segundo a maneira de ver e ouvir de cada uma de nós. Sem dúvida, este foi um aporte muito enriquecedor no nosso trabalho. Tínhamos o mesmo afinco e responsabilidade, aprendemos a discutir e nos respeitar, aceitar o “outro” diferente de mim. Nesse sentido, o trabalho resultou extenso, porque permanecemos três cabeças autônomas, sem nos confundirmos. O trabalho, evidenciando as diferenças de estilo e enfoque, fala porém, de uma experiência única. Talvez este seja o “estilo” da SBPSP, que com tantos anos e tantas correntes de pensamento mantém-se indivisa, como a segunda maior Sociedade da América Latina. Quanto ao objeto da minha investigação, o resultado foi amplamente positivo. Sim, a Psicanálise, através dos psicanalistas, é válida, fora das quatro paredes do consultório. Pode e deve ser colocada também, a serviço da comunidade. De uma maneira geral, foi um trabalho muito gratificante, e gostaríamos de agradecer a todos que nos propiciaram esta oportunidade, pela confiança depositada. Sylvia – “Afinal, estamos procurando a psicanálise onde ela não parece estar, que é precisamente onde sua vocação a leva: sempre para o outro lado da cerca.”19 Levar em consideração a comunicação que pode desvendar a cultura e um código de leis próprios; oferecer ao grupo condições para transpor as fronteiras por onde transpiram semelhanças e diferenças; iluminar passagens do concreto (defesas) para um plano simbólico; conseguir suportar a angústia do que nos é estranho: artes do ofício! Mas pareceu-nos que a barreira que se ergue torna-se mais espessa quando encontramo-nos em terras do “estrangeiro”. Talvez por identificação projetiva, com o que nos ameaça... ! E, como um adendo à nossa primeira questão, o lugar e o papel possíveis da psicanálise na Instituição, ela revelou-se em sua inter-face: na impressão deixada pelo grupo em nós e vice versa. Da nossa parte, experimentamos uma sensação de havermos realizado algo sério e consistente, e de termos cravado uma marca; e na contrapartida, que eles haviam deixado em nós uma presença muito viva. Ou seja, criou-se um vínculo!

19 Herrmann, F. O divã a Passeio. p11.

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Ainda assim a sensação é dupla: de um lado, que de fato o trabalho atingiu seu propósito e chegou ao seu fim; e de outro, de estarmos apenas em seus primórdios. A semente foi plantada mas o caminho é longo, e o desafio continua à nossa frente...! Enfim, como diz o ditado: “Nul n’est prophete en son pays”, acreditamos ter sido possível deixar fluir aquilo que nos é próprio, ou seja, o exercício da função analítica, nas condições possíveis.

RESUMO Essa comunicação diz respeito a um trabalho que vem sendo realizado por nós, como uma contribuição ao setor de Parcerias e Convênios do Setor III da SBPSP, junto a educadores de uma instituição, um Educandário, que abriga menores carentes. Após alguns contatos com as pessoas responsáveis pela direção do Educandário, tivemos 12 encontros, em grupo, com os educadores dos meninos, in locu. Nossa proposta de trabalhar com grupo em instituições, partiu da idéia de repensar a psicanálise a um nível factível de consultoria e investigação. O transporte do enquadre para o contexto institucional, sem dúvida, bordeja fronteiras inexploradas, portanto instigantes Nosso embasamento, ancorou-se na aplicação do método psicanalítico, enquanto forma de escuta e observação, com suporte nos fundamentos de grupo de Bion, e outros. Como resultado de nossas observações, mencionaremos algumas situações que de certa forma foram conduzindo o percurso de nosso trabalho. Um dos pontos que se salientou foi que, ainda que estivéssemos atendendo a um pedido deles, havia uma grande desconfiança a respeito do que faríamos com o material: a serviço de quem estávamos? Esse fator foi gerando uma manifestação ambígua, composta de um lado, por um reconhecimento de suas necessidades e um desejo expresso de terem um lugar para depositarem suas angústias; e, por outro, a iminência de uma ameaça vaga que pairava no ar e que rondava o grupo. Podemos dizer que ficaram evidentes dois ciclos na história do grupo: um, enquanto expressão de consciência, que até por remetê-los a uma experiência anterior, lhes outorgava um certo conhecimento do que ali estavam fazendo; e outro, que veio se manifestando, a partir do próprio trabalho analítico, que favoreceu o afloramento de suas questões cruciais, que inclui necessariamente elementos mais primitivos como competição, rivalidade, ciúmes, inveja, etc. Partindo dessas referências procuramos desenvolver três pontos de vista: 1º O lugar e o papel, possíveis, da psicanálise na instituição. 2º Um olhar analítico à respeito da existência de um grupo na instituição, num sentido vertical: suas relações com os hierarquicamente superiores e os meninos . 3º O funcionamento do grupo em si mesmo, num sentido horizontal, com os seus pares. Em suma, essa apresentação tem o propósito de discutir e ampliar questões, a partir dessa experiência, para a possível aplicação do método em outras dimensões.

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