francisco gil castelo branco - conto romantico um figurino

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UM FIGURINO 12 Francisco Gil Castelo Branco 3 OFERECIDO À SRA. D. M... É um pequeno trabalho feito às pressas. Deveria talvez queimá-lo, não descobrindo em suas linhas descoradas nada, absolutamente nada que mereça prender a atenção de uma poetisa tão distinta como V. Exa. Contudo, ouso publicá-lo como prova de que sei obedecer às ordens de V. Exa, que o compreenderá e me perdoará as suas imperfeições. Ofereço-o igualmente às suas dignas íntimas... que nele encontrarão também um sinal de estima e reconhecimento, mas... sem dúvida perdi a aposta. 1 BRANCO, Francisco Gil Castelo. Um figurino. In: Revista LUX, Rio de Janeiro, 1874. 2 Atualização ortográfica e notas por Airton Sampaio, escritor e professor no Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí. Foram mantidas as grafias de certos nomes próprios, como Goytacazes. 3 Francisco Gil Castelo Branco nasceu em Livramento, no Piauí (hoje município de José de Freitas), no ano de 1848. Foi diplomata, romancista, jornalista e contista. Formou-se em Letras na França e residiu no Rio de Janeiro, onde foi colaborador de vários periódicos (Revista Lux, Gazeta Universal e Diário de Notícias), tendo sido cônsul-geral do Brasil em Assunção (Paraguai) e Marselha (França), onde faleceu em 1891. Dentre suas obras literárias, destacam-se “A Pérola do Lodo”, romance romântico, e “Um figurino”, conto publicado em forma de folhetim, ambos com data de 1874, além de “Ataliba, o vaqueiro” (1878), obra precursora da literatura da seca e que, segundo a crítica, foi o ponto máximo, em prosa, do Romantismo no Piauí.

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Page 1: Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurino

UM FIGURINO12

Francisco Gil Castelo Branco3

OFERECIDO À SRA. D. M...

É um pequeno trabalho feito às pressas. Deveria talvez queimá-lo, não descobrindo

em suas linhas descoradas nada, absolutamente nada que mereça prender a

atenção de uma poetisa tão distinta como V. Exa. Contudo, ouso publicá-lo como

prova de que sei obedecer às ordens de V. Exa, que o compreenderá e me perdoará

as suas imperfeições.

Ofereço-o igualmente às suas dignas íntimas... que nele encontrarão também um

sinal de estima e reconhecimento, mas... sem dúvida perdi a aposta.

1 BRANCO, Francisco Gil Castelo. Um figurino. In: Revista LUX, Rio de Janeiro, 1874.

2 Atualização ortográfica e notas por Airton Sampaio, escritor e professor no Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí. Foram mantidas as grafias de certos nomes próprios, como Goytacazes.

3 Francisco Gil Castelo Branco nasceu em Livramento, no Piauí (hoje município de José de Freitas), no ano de 1848. Foi diplomata, romancista, jornalista e contista. Formou-se em Letras na França e residiu no Rio de Janeiro, onde foi colaborador de vários periódicos (Revista Lux, Gazeta Universal e Diário de Notícias), tendo sido cônsul-geral do Brasil em Assunção (Paraguai) e Marselha (França), onde faleceu em 1891.Dentre suas obras literárias, destacam-se “A Pérola do Lodo”, romance romântico, e “Um figurino”, conto publicado em forma de folhetim, ambos com data de 1874, além de “Ataliba, o vaqueiro” (1878), obra precursora da literatura da seca e que, segundo a crítica, foi o ponto máximo, em prosa, do Romantismo no Piauí.

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CAPÍTULO I

A história de um figurino! Devo contá-la?

É página escrita com as cinzas de um charuto, página cujos caracteres

desaparecem ao mais ligeiro sopro de brisa!

É uma nota desafinada daquele tempo feliz em que nada turbava o meu

ânimo, senão a cobrança do hoteleiro Barbosa; época de sonhos dourados; onda

azul do meu Oceano de bonanças, balouça o teu fluxo e refluxo no bojo do meu

tinteiro; lança as minhas ideias no papel branco, como a vaga impelindo sobre as

areias da praia as esponjas que boiavam incertas!

Tragando a taça amargurada do presente, procuro as nuvens daquele

horizonte deslumbrante que cercava o meu passado — onde as sumiram elas?!

Lago de perfumes, onde navegava outrora minha barquinha com as velas enfunadas

de esperança — secaste!... Bosque copado, onde sonhei tanto! —as tuas folhas

tornaram-se amarelas, e caíram como caíram, uma por uma, todas as minhas

quimeras!

Parece que foi ontem...

Em uma tarde terna eu conversava com algumas moças, belas e espirituosas

que, afáveis, me prestam atenção.

Conversávamos; e sobre o quê? Qual o assunto que pode a mocidade trocar

entre si com maior interesse?

Dizem que as donzelas do nosso século cuidam de política, maçonaria,

literatura, e outros misteres de homens presumidos, não o sei; nunca as ouvi falar

senão de modas e amores — e têm razão!

Eis o seu idílio natural, tão natural como o gorjeio do sabiá; tã natural como a

harmonia da natureza; tão natural... Oh! meu Deus, seria bem triste o teu mundo, a

tua obra-prima seria incompleta se a mulher esquecesse que o amor é a sua

Page 3: Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurino

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missão! Quanto seria triste então a nossa passagem pela terra, que se mostraria

mais sombria do que a gaiola abandonada pela avezinha que fugiu, e canta além, na

floresta, o hino da sua liberdade, voando de galho em galho, lá no cedro gigante.

Dizei-o, velhos celibatários!

___________________________________________________________________

Conversávamos, portanto, sobre a influência do amor, e eu, insensato!,

tentava convencê-las de que o meu peito estava regelado; que eu encarava a beleza

com o mesmo indiferentismo com que olhava para um figurino, que estava na mesa

em que eu apoiava o braço.

No entanto, não mentia; dissimulava.

O meu coração, na verdade, cansado de lutar contra o abandono e a tradição,

tinha as fibras enfraquecidas pela dor; mas quem me dera encontrar um ente que o

agitasse de novo!

Clamo contigo, Chateaubriand: “É um grande mal para o homem alcançar mui

cedo o alvo dos seus desejos, e percorrer em alguns anos as ilusões de uma longa

vida!”

Aos vinte anos amei com todo o entusiasmo e... fui esquecido.! “Percorri o

mundo e nada encontrei que substituísse o que eu havia perdido” nas lágrimas que

verti, e perdi as últimas crenças nos prazeres de uma vida de insônias!

Quem me dera encontrar um ente que de novo agitasse o meu coração! E as

cãs e as rugas já se aproximam de mim com suas feições hediondas, e ninguém

escuta o meu apelo, e eu dissera às minhas amáveis interlocutoras que era

insensível; eu o dissera, e elas talvez o acreditassem! Talvez e, quando me despedi,

uma dessas moças, com o espírito sutil, com a malícia própria do seu delicado sexo,

com um sorriso sedutor, como o não tivera Eva, apresentou-me o figurino, dando-me

familiarmente esta lição de cortesia: "Leve-o; guarde-o, pois que ele constitui o

objeto da sua admiração!”

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Corei; aceitei o presente; pendurei-o com um broche vermelho à minha

cabeceira, e nunca me deitava sem lembrar-me do meu quadro, sem lhe dirigir urna

oração de zombarias, ferindo o poder da mulher, o que eu julgava ineficaz contra a

minha experiência! Loucura! O homem nunca é assaz experiente para amar

segundo o impulso dos seus caprichos! Vereis: pouco e pouco os traços, que

formavam o conjunto daquele desenho, gravaram-se em meu cérebro, como as

linhas tiradas pelo giz sobressaindo na lousa! Pouco e pouco me apaixonei por

aquela estampa de modas, que contemplava durante horas esquecidas, e

contemplava como nunca o fizera inglês algum perante a Madona de Rafael!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Em meus sonhos ela se mostrava

tentadora, e eu experimentava uma sensação estranha, sentindo as suas madeixas

roçarem docemente minha fronte; e, com o seio arfando sob essa impressão

dulcíssima, eu repetia em êxtase a linguagem de Michelet: “Um simples fio de

cabelo de mulher vale tanto, muitas vezes mais do que um mundo!"

Os seus olhos fascinavam-me então e, dominando o meu pensamento, como

pirilampo trilhando as trevas com as suas lanternas, transmitiam à minha alma urna

volúpia insaciável!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Em os meus momentos de spleen,

descobria-a embalando-se entre as espirais de fumaça que exalava o meu cigarro,

convidando-me para subir consigo às regiões etéreas!

Era um delírio! Eu via-a por toda a parte: Entre as espumas de champanhe,

também a distinguia nadando como uma sereia, seduzindo-me com o seu canto a

descer consigo para um abismo insondável de delícias!

Visão celeste, quanta aventura me alimentaste, e quanta amargura me fizeste

sofrer, transformando-te em realidade!

Quantas recordações, quantas! Mas o meu temperamento saltitante recusa

arrastá-las sobre queixumes, e dando, portanto, alguma elasticidade à crônica,

coloca-a de chofre entre os bastidores do seu teatro, que não foi outro nem menos

do que a cidade de Campos.

Conheceis?

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Célebre nas tradições dos Goytacazes; célebre atualmente pela importância

da sua lavoura sacarina, cujos mecanismos são os mais aperfeiçoados que

porventura existam entre nós, o seu nome retine pelo nosso Império, levando —

cunho e malha — como sinônimo de riqueza; e, fato singular!, mesmo nos círculos

ignorantes, ele é vantajosamente aceito ao longe, graças à exportação crescida dos

seus doces bem tacheados.

Campos, como todas as povoações brasileiras, que assaz mostram provir de

uma mesma origem e haverem sido levantadas em uma quadra de especulação e

atraso, tem um aspecto carregado e, se eu não retraísse a exageração, diria que as

suas ruas estreitas, tortuosas, escuras, mal calçadas, se assemelham à boca de

uma bruxa octogenária; porém, não; não acarreto sobre a minha corcunda esta

responsabilidade, que apago in limine, comparando a regularidade de sua

construção a uma caixa de música, cujos dentes quebrados, uns mais, outros

menos; uns enferrujados, outros perfeitos, funcionam sobre o cilindro, que gira

sempre com precisão. Esta é a sua fotografia microscópica; porque, se os casebres

esquisitos, mascarados de rótulas, bisnetas talvez de Badajoz, aqui ostentam a sua

ascendência, zombando do perpassar da civilização, elevam-se dentre eles, como o

rubro pendão gracioso da bromélia entre os raquíticos juncos dos brejos, soberbos

prédios, verdadeiros palacetes, que atraem o olhar pelo seu garboso pórtico,

aniquilando a triste lembrança que deixam as paredes úmidas e coradas de poeira

daqueles alçapões cosidos com teias de aranhas e prestes a desabarem de instante

a instante.

Contemplando essas carcaças — não me queiram mal pela franqueza —,

contemplando-as, fico frenético, mau, intolerante, herético e... confesso! Procuro em

mente urna prece fervorosa, que dedico às santas do meu calendário, suplicando-

lhes a caridade de abrasá-las em um incêndio!

Lisboa deve o seu aformoseamento ao terremoto que em l755 a desmoronou;

Campos se tornará uma linda cidade quando a abandonarem as suas antigualhas,

sem grandeza nem arquitetura.

É minha convicção, percorrendo o seu majestoso Paraíba, mais fértil do que o

decantado Nilo, e que rola em suas águas mais ouro do que nunca o arrastara o

Pactolo das lendas.

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Campos... Receio! — ainda dois minutos, e digamos que a índole dos seus

habitantes é dócil como o caldo dos seus famosos engenhos e, se porventura a

efervescência de uma política endiabrada, que felizmente caducou, os tornou

severos, desconfiados, algum tanto egoístas, mesmo insociáveis, o assobio dos

vapores, o rolar vertiginoso das locomotivas, formidáveis serpentes de Faraó, como

as denomina Figuier, bufando as camadas de fumo através das suas matas

preciosas, vão purificando, apagando essas dissidências fúteis, e restabelecendo a

sua nomeada de hospitaleira e jovial, corno a gentil camponesa que sempre

satisfeita, radiante de júbilo, conduzia o rebanho pelos prados floridos, tangendo o

pandeiro que entoava as suas cantigas, inspiradas falas endereçadas ao seu jovem

pastor, que lhe respondia d’além em flauta sonora, partindo pressuroso para abraçar

a sua amante sob uma moita tecida de trepadeiras silvestres e lianas... Campos, és

caluniada!

Que me importa se em teus restaurants a maledicência ociosa rufa a minha

insignificante reputação, se os teus filhos honestos me cerram a mão de amigo!

Que me importa se os teus salões se conservem fechados à minha

individualidade, se em teus hotéis encontro sempre quentes assados e vinhos

frescos!

Que me importa a falta daqueles prazeres mundanos, que se vendem além,

nas praças públicas, se encontro o trabalho!

Foste o berço dos meus enleios, nunca te esquecerei!

Ali ainda avisto, lavrada pelo corisco, a pobre palmeira, outrora tão vivente,

que guardava o ninho dos meus amores. Mas, invocando essas reminiscências,

assentemo-nos à sua triste sombra e revelemos os nossos segredos, baixinho! —

baixinho! — tão baixo que apenas nos ouça o compassado sussurro do regato

constante que ainda banha o seu tronco, ou o embate do vento que ainda brinca

entre as dobras do seu desbotado leque, como a loura criança com os seus róseos

dedos alisando os fios de prata da cabeleira do ancião, narrando-lhe ingenuamente

a história dos seus brinquedos. Assim, contemos a história do nosso figurino. É

tempo!

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CAPÍTULO II

A folhinha marcava glorioso dia para um dos subúrbios desta cidade, que o

aproveitava festejando o Espírito Santo, sem perder um minuto das horas que

voavam sobre o mostrador dos relógios. A influência muito prometia, sendo o seu

termômetro o cabeleireiro francês Mr. Hyppolite, que não descansava então; e, com

os sapatões alvacentos de poeira, airoso, carregando a lata cor de chocolate,

contendo os ferros da sua generosa profissão, as pomadas... o pó de arroz... . as

tesouras... os ganchos... e os alfinetes, atendia com exatidão aos chamados que lhe

provinham de todos os lados intra et extramuros; uns, querendo que ele fosse,

calcantibus pedis, frisar a senhorita; . outros, reclamando o monstruoso chinó, que

vicia a remendo como casco de fragata avariada; outros... e o bom francês, entre um

sapresti! e um sacrebleu! achava tempo para tudo, distribuindo-o com mais

facilidade do que a de um ministro da Fazenda, é verdade, porém, acrescentaremos,

em prejuízo às vezes de algum freguês, a quem barbeava com pouca atenção,

arrepiando, portanto, a sua pele no fio da navalha!

Sou indiscreto!

Também os boleiros, parafusados nas almofadas dos seus coches, como que

formando com eles uma única peça, apesar de alguma diferença haver entre os

seus corpos e os corpos das suas parelhas, magras mais do que o Rossinante de D.

Quixote — os boleiros estavam altivos em seus postos, onde não os alcançava

qualquer psiu! Tinham maior trabalho então do que um excelente empregado de

rendosa alfândega.

Os moleques não podiam ser enviados à rua porque esqueciam os recados,

esquecendo os estalos da palmatória pelos estalos das bombas que arrebentavam,

saudando o Santo lá perto da capelinha, e seguiam, com a pupila dilatada de inveja,

os tabuleiros enrebuçados de toalhas bordadas, que passavam às dezenas

procurando a mesma direção.

As velhas vestiam as suas capas solenes; fechavam todos os cantos da casa;

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empurravam o molho de chaves nas profundas algibeiras, penduravam a cruz de

ouro ao pescoço; persignavam-se em frente ao clássico oratório e, tocando as filhas

dois passos para a frente, transpirando, bufando, arrotando... e... marchavam na

pesada cadência de quem busca o caminho do céu, seguindo-lhes as pegadas um

bando de mulatinhas com as suas roliças contas de aljofares, chinelinhas de verniz

estalando nas calçadas com adelman, e os lencinhos de cambraia ensopados d

´água-de-colônia.

Diabinhas! — eram também acompanhadas em distância conveniente pelos

garotos destemidos.

Os caixeiros em seus trajes do casimira — bons maganos! — trilhavam o

mesmo plano, contentes, certos de alcançarem a vitória das conquistas, como

outros tantos Cruzados embarcando-se para Jerusalém.Quantas cativas não trariam

eles, vencidos os Sarracenos!

Os patrões, com os feltros escovados, botinas reluzentes, e bengalas comme

it faut, mostravam-se em grupos nessa mesma estrada, dissertando sobre as

transações comerciais, ou sobre o importante processo que me lavrou a

Sapientissima loja escocesa Zacatyog, a bem da fraternidade universal.

Belzebu no conselho dos demônios proferiu esta sentença: “Quanto a mim,

reinar é digno de ambição; é preferível reinar-se no inferno do que servir-se no céu!.”

…and in my choice

To reign is worth ambition, though is Hell!

Better to reign in Hell, than servo in Heaven!...

Este princípio do chefe renegado talvez angarie muitos adeptos naquele

recinto de luz embaciada, onde os poderosíssimos lords ingleses, com as suas

fachas de íris, e... Silêncio! perjuro plebeu! Eles são corajosos e... Cuidado com a

demissão da Inspetoria! Apre!

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___________________________________________________________________

Enfim, temendo a prolixidade, falaremos da concorrência que atraía a Sacra

Cerimônia, asseverando que a Casa Arthez & Vigné ficou sem um par de luvas

brancas: secas, manchadas, todas venderam, lastimando-se os seus colegas de não

terem contado com o caso para encomendá-las aos seus correspondentes no Rio.

Como incorreram neste descuido, pois ignoram que é aqui de bom-tom o uso da

luva branca de senhora, com qualquer toilette, em qualquer circunstância?

Causa-lhes reparo esta observação? O ganso é deste talhe, e cada terra com

o seu uso, cada roca com o seu fuso, canta o rifão; porém, na tarde de que nos

ocupamos, muitos fusos perderam as rocas, e muitas rocas perderam os fusos, que

convergiram todos para o Sacco. Para o Sacco?

Sim, e não se torça a interpretação da cousa; que apenas exprime agora o

nome da localidade onde se celebrava a festa do Espírito Santo, que foi admirada,

louvada e lembrada como sendo uma das mais pomposas que brilhou naquele sítio,

de há meio século para cá, o que ousamos afiançar porque assim o afiançavam as

beatas, em opinião redonda, opinião que os assistentes compartilhavam, não

constando nem da imprensa, nem das notícias particulares, que o Sr. Delegado de

Polícia houvesse feito ali uma única prisão. No entanto o Zé Bonito, que fora o

imperador, se comportara na altura de sua hierarquia, e não poupou a jeribita; corre

mesmo que os móveis da sua sala ficaram salpicados do cerveja da fábrica Teixcira

& Freitas, e algumas botijas enxugaram também daquela que tem a marca Areas &

C.

E não houve milagre!

Foi milagre!

Mas que pomposa festa!

Os altares da modesta igrejinha, tão modesta que as suas paredes

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imploravam aos fiéis uma lavagem de cal, os altares da igreja estavam decorados de

ganga escarlate, orlada de galão de prata, e em o seu frontispício ardiam doze

lamparinas de vidro em linha curva, o que nunca se vira anteriormente, bem como

os diletantes apreciavam um charivari interminável de quadrilhas, fandangos, polcas

e lunduns, que executavam em altíssimo palanque oito instrumentos brunidos. A

requinta estava insigne e o ofeleide retinia a distancia, rivalizando com o zabumba!

O império fazia-se igualmente notar, rodeado de ramos; e a folia, batalhão de

crianças trazendo a bandeira, salvas, colomba, cetro, etc — era escolhida,

perfeitamente luzida, estando os seus arqueiros — sem exceção! — com as calças

brancas bem engomadas, as jaquetinhas encarnadas bem talhadas, e os gorros de

lã com bolotas de retroz.

O manto do imperador do Espírito Santo era de cetim de mil réis ao metro, e

os seus calções — corre em cochicho! — foram cortados pelo hábil alfaiate Constant

Jeudy — somente, é pena! — as meias do altivo e espigado monarca eram de

algodão, e assaz largas para os seus mirrados caniços. Em compensação, o trono

estava dourado, e não se regateavam os bentinhos, que eram generosamente

distribuídos, sendo a razão de se ver todos os pelintras e meninas coquettes com as

asas do Espírito Santo, ou o seu olho milagroso, presos nas golas dos paletós e nas

fitas dos vestidos.

A praça e suas circunvizinhanças estavam atopetadas de cavalos selados,

carros puxados por bois, e cobertos de vistosas colchas de papagaios, etc.,

distinguindo-se, pendentes no interior dessas traquitanas, o espelhozinho de

mascate com a efígie de Garibaldi, o pente de búfalo, saias, moringas, balaios. e

outros trastes, indicando assaz que esses veículos incômodos, com as rodas ainda

enlameadas, chiando sobre os eixos, arrastaram da roça famílias apreciadoras

infalíveis do esplêndido fogo de artifício — como bacharelavam meus avós —

composto de quatro estrelas, um amolador, um judas, e um navio, tudo suspenso em

varas resistentes, onde também se prendia a curiosidade dessa boa gente, a quem

não faltavam os comentários, aguardando o momento supremo, assentada em

esteiras novas, chupando balas ou regalando-se de amendoins torrados, que

comprava nas quitandas, que se perdiam além, como o provava a carreira de

lampeõezinhos ou velas de sebo espetadas nos cantos das caixas de flandres

contendo a mercadoria, cujo aspecto tanto aguçava a gulodice dos gamenhos que,

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com a voz sussurrada, os retinham com a frase mais conhecida — Me dá um

vintém?

Vários botequins, improvisados com palhas de coqueiros, formavam divisões

e compartimentos reservados, onde os galans pagavam alguns bocks, ou cafés

temperados com rapadura, ou mesmo algum retalho de galinha endurecida, às suas

almisquentas namoradas que, assentadas em bancos de madeira pesada e servidas

em mesas da mesma marcenaria, julgavam-se todavia valiosas princesas do

Mongol.

Forte pouca vergonha!

Aqui, sobre um pano engordurento, ferve o jogo de cartas; acolá, descanta

um boçal trovador modinhas venenosas, com a toada de um violão rachado de tanto

carpir, em disputa com a viola ou cavaquinho brejeiro!

Os sinos dobram anunciando o fim da ladainha ou terço, ou reza equivalente,

que no interior da modesta capela grasnava o choro de capuchas assentadas nos

tijolos, com as pernas estendidas em forma de X quebrado pelo centro, e

esguichando cada qual mais alto, na crença provável de elevar melhor as suas

preces à mansão divina, remindo assim com prontidão os seus pecados, embora as

suas invocações fossem estropiadas em latim ou grego, formando, essa colocação

de sílabas esquisitas, calimburgos interessantíssimos que por certo fizeram S. Pedro

rir-se às gargalhadas, vertendo-os para a língua vernácula com dificuldades

inauditas, apesar da sua ciência divina. Estes, por exemplo, Salus infernorum —

Janua cavli—Kirie leison — que essas gargantas de trovão retiniam ao longe: — Sal

em-pé-de-moro — Joanna-sclla - cristél - é - são!

Em resumo, o leilão teve tantas jóias que assombrou ao próprio pregador da

festa: segredos, ceras enfeitadas, pombas, galos da Conchinchina, carneiros, um

cevado, um vitelo mesmo! figuravam entre as mil dádivas proclamadas às massas...

As fogueiras já estavam acesas, e alguns pretos velhos de ganho pitavam

tranquilamente ao lado delas em seus cachimbos de barro, rememorando as

passadas façanhas; os moleques, com os guinchos dissonantes, visavam a descida

das flechas dos foguetes que cortavam o ar; o povo emaranhava-se, escolhendo

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posição para apreciar o maravilhoso fogo de Bengala que ia arder; quando — levado

pela corrente da multidão, passando perto do adro, apercebi — oh! porque não foi

uma ilusão de óptica! — apercebi a encarnação do meu figurino! A linda mulher, que

eu amava em sonhos, estava ali, em frente de mim, a dois passos de mim, de mim

que a adorava sem conhecê-la, e que endoideci quase com o prazer de encontrá-la!

O seu vestido de seda verde cor de garrafa, como o do figurino, também as

suas tranças de um castanho alontrado,ondulando um labirinto de seduções; os

seus olhos, negros como a escuridão do caos, brilhantes como a estrela Vênus,

desenhavam-se numa curva de extrema pureza; as pestanas longas e acedadas

faziam sombra na alvura do seu semblante levemente tinto, como a pétala da rosa

nos seus últimos instantes de fragrância. O seu pescoço era torneado como o tem

somente a gazela, e branco como o floco de algodão prorrompendo o invólucro; os

seus lábios de nácar limitavam uma boca graciosa como a conchinha que se abre,

boca que encerrava uns dentes de pérola, e... enfim, “a graça estava em cada um

dos seus movimentos, o céu em seu olhar, e em cada gesto a dignidade e o amor!”

— "Grace was in all her steps. Heaven in her eye. In every gesture dignity and

love..."

O dúbio reflexo de uma lanterna batia sobre as suas feições angélicas,

formando uma auréola para a sua beleza incomparável. Uma exclamação partiu do

meu peito, assustando-a; e, sem dúvida, eu tomaria essa mulher como visão

sobrenatural se não ouvisse a sua voz melodiosa responder a uma pergunta trivial

que lhe propusera figura exótica e rubicunda que, tendo suspenso sob o braço o

volumoso chapéu de sol, cujo cabo bem se prestaria às funções de muleta — sisuda

e cortês oferecia uma pitada da sua esmaltada tabaqueira de bispo ao círculo que

lhe prestava reverência.

Este tipo burlesco eu já conhecia de muito e merecia a sua consideração,

porém nunca me passaria pela ideia que semelhante tronco gerasse uma prenda tão

delicada.

São caprichos da natureza; e quem não tem deparado com extravagâncias

idênticas? Quem não sabe que a célebre rosa de Jericó expandia os seus perfumes

em terreno ingrato e estéril? Quantas vezes o gênio artístico curva a sua altivez,

repleto de entusiasmo, colhendo sobre as ásperas escamas da rocha uma folha

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aveludada, cujos matizes riquíssimos são combinados com tanta harmonia e graça

que nunca pincel algum conseguiria reproduzi-los?

É sobre a casca repulsiva que arrebenta a parasita resplandecente e formosa;

é sobre o galho seco que o colibri de plumagem deslumbrante suspende o seu ninho

e agita as suas asas furta-cores! Assim também D. Amália d’Amarante, a mais bela

das moças, era filha do Patrocas, o mais imperfeito dos homens. Que me importava

já a sua fealdade, com a qual tanto eu antipatizava? Procurei, e consegui, sem

dificuldade alguma, frequentar a sua casa, procurando aproximar-me daquela

mulher que adorei sonhando e pela qual perderia a vida se ela desprezasse esta

afeição desmedida que lhe era consagrada.

Eu mendigava um sorriso dos seus lábios sem indagar dos perigos, e para

conquistá-lo sentia animar-me maior coragem do que a de Pescecola afrontando os

abismos de Carybdes, para merecer a mão do ente amado. Também o que não

empreenderia eu para ser digno do seu afeto? E como chegaria a obtê-lo?

Parecem retinir em meus ouvidos as gargalhadas dos pilantras que, pesando

a minha ingenuidade, declinam-me os títulos de tolo, pateta, e concluem — tenho

pejo de lavrar a sentença — concluem chamando-me — inocente — na essência do

adjetivo. Na verdade, sempre fui tão acanhado perante as moças que nem mesmo

seria capaz de lhes conceder um beijo, se mo suplicassem!

Nunca, nunca guardei firmeza ao contato de uma fímbria de vestido, o que

sempre produziu choque mais forte em meu sistema nervoso do que se ele

experimentasse o roçar da cauda mortal do peixe elétrico do rio Mearim! Nunca,

nunca resisti às chamas de um olhar de... donzela, devo acrescentar, porque as

velhas nenhuma ascendência exercem sobre as minhas cordas sensíveis.

Nenhuma, e podem submeter-me à análise!

Contudo, apesar da originalidade da minha compleição, não fui tão parvo

como se poderá julgar, porque em curto espaço de tempo eu cativara a confiança do

bravo tenente-coronel, discorrendo com loquacidade invejável sobre a Bahia, sua

terra natal, cujo aspecto, formando um anfiteatro, assemelhando-se a um presepe,

banhado pelas águas azuladas de um golfo extenso, onde outrora nadavam as

baleias, era tema irrevogável da nossa conversação, tema que eu estudava

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diariamente, em todas as fases, para ali desenvolvê-lo em formas poéticas antes da

chávena de chá, bebida da sua predileção; inúmeras vezes ouvi-o queixar-se

amargamente de uma associação de beneficência que, restringindo das despesas,

dera um baile de caridade sem oferecer a bandeja de água choca, segundo os

costumes coloniais.

Ele era antes de tudo homem de estômago; não aceitava ideia alguma

generosa se porventura ela não acariciasse o seu tubo digestivo! Era um desses

bípedes qualificados nesta máxima do Evangelho: Para os pobres de espírito, o

reino do céu!

Também eu decantava o passeio da capital da sua província, Mulata Velha,

como a denominam. A igreja da Conceição da Praia, a Soledade, o Convento de S.

Francisco, a romaria à celebre capela do Bonfim entravam igualmente com nosso

catálogo de palestras intermináveis.

E a festa de 2 de Julho! — festa em que a população inteira, estudantes,

negociantes, todos marchando unidos, vestidos de branco, com fitas auriverdes a

tiracolo e flores nos chapéus do Chile, entusiasmados, arrastam carros de papelão

contendo dois manequins representando um caboclo e uma cabocla que, entre uma

algazarra infernal de fanfarras, sinos, cornetas, tambores, assovios, estalos de

foguetes. rinchos de animais, e outras notas perdidas... marcham em triunfo pelas

ruas da cidade até ao túmulo do general Labatut. É’ o aniversário da independência

da ex-capital do Império; é o dia de maior alegria naquela gloriosa terra, e também...

é o dia de maior namoro!

Revendo estes costumes, que são sagrados para um baiano, eu enfreava a

vigilância de Patrocas, e achava brecha para atirar a minha setinha sobre o seio de

D. Amália, que nos ouvia com atenção, sem todavia intervir no nosso diálogo.

Contudo, nem sempre o jogo me corria bem porque, se iludimos o marido, a bruxa

da sua costela, a respeitabilíssima senhora D. Quitéria, ali estava alerta, como

sentinela avançada, com a vista acesa, os ouvidos escovados, acompanhando os

meus movimentos mais sutis.

Quantas vezes estive prestes a renunciar a esta empresa arriscada! Mas

nunca pude dominar-me. Creio mais fácil escalar uma fortaleza do que fazer-se uma

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declaração de amor nos nossos salões, onde o papel principal das senhoras

solteiras é o de comparsa: escutar, calar, gesticular e retirar-se. Bom dia, boa noite,

passou bem? são as únicas expressões que pronunciam com franqueza, e ai delas

se não seguem à risca o programa!. . Uma faísca jorra da careta enferrujada da

mamãe, reprimindo a ousadia, e o janota não se assenta mais nas molas das suas

cadeiras... Atrevido! Salta fora!

É preciso tática, paciência, hipocrisia, para levar-se água ao moinho... . . Foi o

que fiz a respeito de D. Quitéria. Custou-me, é verdade; porém atinei com a ponta do

fio do seu novelo! Ela era fluminense, e ficou verdadeiramente minha amiga,

asseverando-lhe eu que Paris é mais triste do que o Rio de Janeiro; que Nápoles e

Constantinopla, com suas baías tão citadas, são dois canjirões à vista da bela

Guanabara; que Londres é um deserto para quem gozou do movimento da rua do

Ouvidor, e que a água do aqueduto de Lisboa é péssima para quem matara a sede

com a da Carioca...

Quanto a D. Amália... marquemos aqui uma fermata; porque as lágrimas

rolam pelo meu semblante e caem ardentes, apagando a data do meu namoro: 1 de

abril de 1870.

Não posso passar além: os suspiros, os soluços, as palpitações... Ah!

desfaleço...

CAPÍTULO III

O mais doce momento que marca a nossa existência; o momento que nunca

mais se apagará da nossa memória é aquele em que dois olhares se cruzam,

lançando um sobre o outro expressões ardentes de linguagem misteriosa, revelando

o poema — imenso em uma só palavra — Amor!

Como as raízes das plantas sorvendo da terra o suco precioso que se

transforma em seiva, a qual, por sua vez, passando através da hástea e dos ramos,

dá vida às folhas e às flores, de que brotam os frutos sazonados pelo sol — assim

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também se germina a paixão, agitando em nossas artérias o sangue generoso que

se cristaliza em o coração, alimentando este sentimento sublime, sem o qual a

existência seria um degredo terrível, um lugar de trevas, “um zimbório negro,

medonho, cheio de pesares e obscuridade, onde a paz e o repouso nunca poderiam

habitar e a esperança jamais alcançar!”

— Amor! Torrente de fogo

Que as almas nutre e devora!

T. DE MELLO

Amor! — A sua linguagem purifica-se de lágrimas, como os vapores caindo

em benéficas gotas de orvalho; e como as nuvens, aglomerando-se e trocando as

suas faíscas elétricas, confundem-se em estrepitoso encontro; assim, em sorrisos

ela se transmite, rápida como a corrente magnética, firme como a nota harmoniosa

da natureza.

Ai! dos namorados se não fossem auxiliados por esse dom inapreciável —

como se fariam entender em os nossos salões brasileiros, onde a donzela não tem

liberdade de pensamento e apenas a tudo responde por monossílabos insípidos!

Os velhos! Os velhos — malditos velhos! — alerta, maliciosos intolerantes,

observam-na com escrúpulo.

Foi o que me sucedeu a respeito de D. Amália.

Vários meses nos correspondemos por sinais cabalísticos permutados

durante as gargalhadas do tenente-coronel Patrocas, que felizmente as

“encadeava”, prolongadas e sucessivas, com as suas anedotas baianas. Eu

principiava todavia a sentir necessidade de expandir-me; este gênero de namoro

acabrunhava-me; parecia que eu tinha o coração em estufa, ou antes em uma

caixinha onde saltitava como a “agulha de marear” determinando os pontos

cardeais. O seu “norte” era o semblante radioso de D. Amália.

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Porém... malditos velhos! que esquecem os seus dias de mocidade, e em

tudo, com a vista “empanada” de cataratas, distinguem abismos ou interesses!

Têm razão! dirão os filósofos. Enganam-se, replicarão os dândis. — A

contrariedade provoca a luta, a luta aguça os sentidos, inventa a astúcia, supera os

obstáculos, envenena as crenças, a castidade d’alma; e, apagando o prisma, que

dourava o futuro da virgem, deixa em troca dele, no seu leito nupcial, a túnica do

indiferentismo e o véu da discórdia!

Em um baile — não sei como —, aos sons dos instrumentos, alucinado pela

sua beleza, revelei a Amália o segredo que havia muito ela conhecia, o segredo que

havia muito ela aceitara, o segredo que a cada instante ela esperava ouvir dos meus

lábios.

Revelei-o; desde então, renegando os meus princípios, abandonando a

repugnância e asco que sempre dediquei a esse gênero de correspondência

secreta, em voga entre os namorados da nossa sociedade, parece-me impossivel!,

paguei a uma escrava da casa da minha adorada para lhe entregar os meus

bilhetinhos perfumados e outras bagatelas equivalentes, que lhe diziam o que me

era vedado expor em os salões de seus pais, com sinceridade maior e mais

comedida. Chamei uma escrava para minha confidente! Oh! Horror dos horrores!

Chamei a ignorância, a estupidez, para intérprete dos meus sentimentos mais

elevados! Ainda coro de vergonha e humilhação.

Usei deste expediente; e, confesso a minha miséria, usei-o em doses

crescidas, escrevendo diariamente muitas cartas a D. Amália.

Se em um momento de desespero eu não as houvesse queimado, talvez

agora pudesse publicá-las, formando um grosso volume, e por certo seriam lidas

com igual interesse àqueles que as pessoas sensíveis encontram saboreando as de

João Jacques Rousseau.

Sem dúvida a minha fraseologia não era apurada como a do célebre filósofo

francês; eu não as escrevi com o estro de Saint Preux; porém verti para o papel o

entusiasmo da mocidade arrebatada para um mundo de ilusões.

Eu era natural, desprendendo-me de toda a grandeza d´alma a minha paixão

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desmedida, paixão tão ardente quanto a do professor de Julie; louca quanto a de

Werther à sua Carlota, imensa como a de Romeu a Julieta!

Não imortalizei Amália como Petrarca à sua Laura; não tive urna lírica sublime

para decantar o seu nome como Dante o do Beatriz; nem consegui urna coroa de

glória, que me desse um raio para iluminá-lo através da escuridão dos séculos,

como Camões o da sua Catarina; não pude chorar esses dias venturosos, como

Dirceu separando-se da sua Marília; mas, como eles, entes privilegiados, como eles,

também amei! Tanto quanto eles amaram suas deusas, amei também D. Amália, e

amei-a talvez com mais fervor, porque a amei nas crenças dos meus vinte anos?!

Por que não perdi estas recordações amargas na febre da loucura ou no silêncio de

um túmulo?!

Tive um rival, o alferes Pacheco de Sousa: homem ignorante, soberbo,

vaidoso, rico, também se propôs candidato ao ídolo das minhas adorações.

É verdade que D. Amália o desprezava. Mostrando-me ciumento desse

indivíduo, ela respondeu-me:

— Crês que tenho péssimo gosto, o que não me é lisonjeiro. Não tenhas receio, o

alferes Pacheco é um... bicho, que falia sem gramática, nem oportunidade; saca dos

pés a botina em reuniões de cerimônia; escarra sobre o tapete como marinheiro que

masca; palita os dentes com alarido no fim de cada prato, que devora como tigre,

espalhando pela toalha parte do seu conteúdo; assoa-se no guardanapo; fuma como

chinês; conta com ufania a barbaridade com que castiga os seus escravos ao mais

leve pretexto; julga conveniente ridicularizar as mulheres; arrota sempre os títulos

descohecidos de sua familia, oriunda dos “Deuses”, segundo a sua expressão

habitual, apesar de seu avô haver sido vendilhão; enfim, acho-o atrasado, arrogante,

e... é urna estampa que serviria talvez para “corretor”, ou o que imaginares de pior,

levando em conta o seu nariz arrebitado, a sua cabeleira arrepiada em um todo

raquítico, e as unhas aguçadas como as de um abutre... Meu pai é extremoso,

minha mãe nunca me contrariou; estou certa não terei outro marido senão o da

minha escolha, e esta escolha sabes que recaiu em ti.

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Amália era uma moça espirituosa, instruída; não como geralmente se

costuma aquilatar as donzelas que tocam quadrilhas de “Offenbach”, quebram os

ouvidos alheios com alguma canção de Alcazar completamente aleijada, ou mutilam

recitativos extravagantes, que não compreendem, incapazes de tomarem sem erro

um rol de roupa suja; mas, em contrapeso da balança, dançam valsas inglesas e

tagarelam sem importância sobre os romances de Alexandre Dumas, Paulo de Kock

e... não cito um autor nacional, temendo discussões. Não, D. Amália não era desse

número; inteligente, romântica, dotada de uma natureza exaltada e perscrutadora,

ela entregara-se ao estudo, lutando contra a solidão dos seus vastos aposentos

claustrais, e pouco aperfeiçoara o gosto e adquirira grande soma de conhecimentos.

Era instruída, muito instruída; mas não aprendera a decifrar a ambição de seus pais;

iludia-se.

Eu iludia-me igualmente! Levado pelo acolhimento familiar que me dava

Patrocas, que eu confundia com uma amizade extremada, escrevi-lhe pedindo a

mão de Amália.

O velho veio logo à minha casa; e tão alegre estava que julguei ter “vento à

bolina”.

— Então quereis a mão de minha filha?, disse-me ele assentando-se, e sorvendo

uma formidável pitada, talvez a maior que jamais eu o vira arrancar da sua

primorosa boceta.

Quantos indícios de bonança! Ganhei! ganhei! cochichava com os meus

botões e, animado pela aparência, respondi-lhe com o sangue-frio de uma diplomata

em cumprimentos.

— É verdade, meu tenente-coronel; a mão de sua filha é o mais rico tesouro a que

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aspiro.

Patrocas fixou-me com olhos de lince e... maldição! descoseu um gargalhada

satânica, uma dessas gargalhadas zombeteiras, que parecem intermináveis, ferindo

como a lâmina aguda de um estilete.

Fiquei lívido, estático como coluna de mausoléu. O velho “fungou” uma

segunda pitada e, com ar grave, porém bondoso, acrescentou:

— Sois um bom rapaz, e eu sou deveras vosso amigo; porérn não refletis desejando

a mão de Amália. Ela está comprometida. Paciência, homem! Paciência! Este

negócio ficará entre nós, que seremos sempre os mesmos camaradas, não é

verdade? Amália em breve será esposa do alferes Pacheco e...

Eu parecia submerso em um pesadelo pungente, e este nome despertou-me,

como o escalpelo chamando à vida o corpo regelado de um ente que, sofrendo de

catalepsia, já estava considerado cadáver sobre o mármore, em algum anfiteatro de

antigas escolas; e, com voz cavernosa, abafada na dor, vexame, cólera, redargui-lhe

com esta pergunta:

— É um gracejo, tenente-coronel?

— É sério.

— Enganai-vos. Tomai o meu conselho, e ficai certo das minhas palavras.

Continuaremos as nossas partidas de “sollo” e... não façais maus bofes perdendo

esta vasa; vereis que tenho razão.

Tomando uma outra pitada, ele tisnava-me o rosto com estes insultos, com

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tanta calma, como se me rendesse as maiores finezas. Não pude conter o meu

desespero.

— Considerais-me um especulador?

Ele calou-se.

— Sr. Patrocas, D. Amália detesta o alferes Pacheco, e ama-me; não realizareis,

pois, os vossos bárbaros intentos.

— E as provas?

— As provas, ei-las; e, tirando de uma gaveta um bauzinho que continha a

correspondência de Amália, apresentei-lha.

Eu delirava!

Patrocas, examinando essas cartas, ficou por seu turno pálido como a

porcelana do Japão, e em tom convulsivo, estridente, adiantou-se para mim com os

punhos fechados, proferindo estas palavras injuriosas:

— Sois um infame mentiroso!

— Miserável! — repliquei insensivelmente, levantando uma cadeira; ele imitou-me,

porém um poder oculto susteve os nossos braços, que se abaixaram, deitando por

terra os instrurnentos de agressão. Encaramo-nos como duas hienas prestes a

dilacerarem-se; meus olhos umedeceram-se; ele retirou-se, dizendo:

— Desisti de vosso plano de ambição, senhor; retirai-vos de Campos em oito dias,

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pelo próximo vapor, ou sereis desgraçado!

Caí em meu sofá soluçando como a criança que pela primeira vez se separou

do lar doméstico, onde ficaram seus pais, seus irmãozinhos, os seus brinquedos, as

recordações do berço! Chorei, chorei muito; e, depois ajuntando as cartas dc Amália,

as quais Patrocas deixara esparsas no chão, beijei-as; e, dominado não sei por que

pensamento absurdo,queimei-as! As chamas, enroscando esse montão de papel

que crepitava, enegrecia-se, pulverizava-se, pareciam também devorar a minha

alma em um fogo mais veemente do que as labaredas que alimentam as forjas do

inferno...

Decorria o prazo fatal; em vão tentei ver Amália, ou comunicar-lhe a minha

posição. Joaquina, a escrava que me servia em semelhantes circunstâncias, havia

desaparecido. Eu persistia!

Na oitava noite depois da ameaça de Patrocas, eu voltava de um café, onde

fora procurar debalde distrair o meu espírito abatido. O tempo era medonho; o trovão

estremecia as vidraças dos edifícios, que pareciam vacilar sobre os alicerces, e seus

tetos eram iluminados de instante a instante pelos coriscos que dir-se-ia incendiá-

los; a chuva derramava-se em catadupas.

Eu aproximava-me da minha casa quando, dobrando uma esquina, fui

assaltado por cinco vultos que, silenciosos, principiaram a espancar-me, como se

batessem com varinhas de junco os cachos de arroz em um paiol. Em vão bradei

socorro; as vozes da tempestade abafaram os meus gritos de agonia; defendi-me;

feri com a chave da porta na face o chefe desses assassinos, reconhecendo nele o

alferes Pacheco, que vergou à impetuosidade do golpe; porém a minha coragem

assanhou ainda mais a barbaridade dos meus inimigos, que me deixaram

inanimado, provavelmente considerando-me cadáver...

Fiquei na verdade em péssimo estado: o meu corpo estava coberto de chagas

profundas; perdi por alguns dias o uso da razão; uma febre constante e devoradora

absorvia o resto das minhas forças; os médicos desenganaram-me; o povo

interessava-se por mim, porém a polícia... a polícia tudo ignorava!

Page 23: Francisco Gil Castelo Branco - Conto Romantico Um Figurino

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Um mês depois eu estava livre de perigo; e, quer em meus desvarios, quer

durante a convalescença, nunca, nunca esqueci o nome de Amália; nunca maldisse

de seu pai, mas também não se apagou dos meus sentidos aquela figura sinistra,

que fora a primeira em derramar o meu sangue; e sequioso de vingança lembrava-

me sempre do alferes Pacheco com tanto ódio quanto idolatrava a mulher que ele

me roubava, empregando a vilania, a emboscada, o crime! Esquecê-lo seria

possível? Despertei uma manhã possuído dessas ideias sombrias, e meditava em

tal assunto quando percebi cair em meu quarto um jornal que seu distribuidor aí

introduzira por baixo da janela.

Saí da cama em busca dessa folha; e, maldição!, percorrendo as suas

colunas deparei com um artigo pomposo anunciando para o dia seguinte o

casamento de D. Amália d’Amarante com o fazendeiro, alferes Pacheco de Sousa!

Esses períodos que li me produziram o desfecho de pesadelo terrível, cujo efeito

não sei descrever! O médico mais tarde surpreendeu-se da transformação moral em

que me encontrou, cuja origem eu lhe ocultei. O meu plano estava formado; eu

aguardava a noite para realizá-lo.

Com que ansiedade não a esperei! quanto não me custou ela a chegar!

quanto não me pareceu vagarosa a marcha dos ponteiros do meu relógio, que

fixamente eu encarava sobre o “guéridon”! com que sensação não recebi os dúbios

reflexos da madrugada coados através das frestas, empalidecendo as paredes do

meu aposento! com que prazer selvagem não ouvi o primeiro dobrar do sino da

matriz chamando os fiéis para a missa! Esse toque imponente já me achou de pé,

vestido de preto como o condenado que deve subir os degraus do patíbulo. Corri

para a igreja, ainda invadida dos misteriosos ecos da solidão; penetrei

cautelosarnente pelos corredores até alcançar o seu altar-mor; ocultei-me ali, por

baixo dessas tábuas forradas de damasco e rendas, que sustêm a ara sagrada;

assentei-me sobre um esquife; ouvi o murmúrio dos lábios das turbas suplicando a

Deus paz e conforto; ouvi as orações do sacerdote, que cabiam sobre a minha

cabeça; ouvi o sacristão vibrar a campa, o padre elevar a hóstia, o povo ajoelhar-se

implorando a clemência do Filho de Deus e... insensível, persisti em o meu negro

propósito, conservando-me inabalável, assentado no esquife, cerrando entre os

punhos um revólver carregado com seis cápsulas.

A dor corrosiva apagara do meu seio todos os preceitos humanos, reduzindo-

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me à condição do canibal faminto, que espreita o momento de dilacerar a vítima

imbele! O sopro da vingança alimentava os meus debilitados membros gastos pela

moléstia e desespero. A crise da loucura ditava as minhas ações.

O casamento de Pacheco, contra o hábito geral, deveria efetuar-se às 9 horas

da manhã, e eu queria assistir a ele; queria... matar esses noivos venturosos... e

suicidar-me! Que alienação!

Ei-los, enfim, que entram na igreja; a cerimônia principia com todas as

pompas próprias da fortuna vaidosa; vão receber a benção sacerdotal quando... qual

espectro medonho, erguendo-se de um túmulo, eu surjo do meu esconderijo com o

revólver em punho, apontando para Pacheco... Houve uma rápida confusão entre os

assistentes; um suspiro magoado exalou-se do seio de Amália.

Meu Deus! como ela estava bela com as suas roupas de noiva, ou antes com

a sua túnica de mártir!

Desmaiei...

Recuperei o uso das minhas faculdades em um hospital, em um quarto

gradeado de ferro, onde me haviam encerrado como doido furioso! O que não

conseguirão os homens do dinheiro!

Graças a empenhos valiosos rompi esta situação ridícula, sujeitando-me

todavia a partir de Campos.

Parti; durante três anos errei pelas grandes capitais, não poupando nem a

minha saúde, nem a minha pequena fortuna. Nos hotéis, levando urna vida

licenciosa, tentara debalde afogar a lembrança amarga desse amor funesto. As

rugas prematuras sulcaram a minha fronte; os meus cabelos pratearam-se; o meu

coração forrou-se de uma camada de gelo. As mulheres de vida fácil presavam-me,

porque eu desprezava os seus afagos, que no entanto comprava com generosidade.

Era um verdadeiro Jacques Rolla; e, como ele, quando percebi que a minha bolsa

murchava como murchara o meu seio, lembrei-me de um gatilho de pistola para

cortar a minha miserável existência, e extrair o último suspiro proferindo urna

maldição à sociedade, colando os lábios, frios pelo hálito da morte, contra os lábios

da desgraçada filha dos lupanares que arrancasse da minha mão de cadáver a

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minha última peça de ouro, reservada para o meu transporte ao hospital.

Talvez ela, mulher perdida, tirasse ainda do seu indiferentismo uma lágrima

que rolasse sobre o meu lívido semblante. Quem sabe!

Aproximava-se o momento decisivo de cumprir este cálculo quando recebi

uma carta de Campos anunciando a morte de um amigo que me legara a sua

fortuna, assaz considerável para dar-me mais alguns anos do desregrarnento. Corri

a buscá-la...

Urna noite, apeara-me em uma fazenda, quatro léguas distante daquela para

onde me chamavam os meus interesses, e aí pedira hospitalidade. Pouco depois,

um pajem conduzia-me à sala de jantar para tomar alguma refeição; oh! surpresa!

essa casa pertencia a D. Amália de Amarante, que ali se achava.

Ela reconheceu-me, corou, e... Como estava transformada! Cercada de dois

filhinhos, ensinando-lhes a rezar; excessivamente gorda, com os seus mimosos

pezinhos perdidos em um chinelão “de capoeiro”; com as lindas madeixas

negligenciadas, atadas em coque; vestida com uma “bata” de chita escura, tendo em

roda do pescoço um xale rajado de arabescos disformes; Amália, a poética Amália,

que eu tanto adorara e por quem tanto padecera, era agora o protótipo da pesada

matrona romana, da excelente mãe de família portuguesa.

Amália! lindo botão de rosa, tornaste-te flor descorada e bojuda, dando o teu

néctar aos insetos repulsivos, à vespa inoportuna, ao besouro zangão! Amália!

A sua presença despertara as fibras do meu coração; e, preguiçosas como

essas rodas de relógios que há muito arrastam mal e caprichosamente os ponteiros

e de repente os tangem, e a campa principia a vibrar sem interrupção, assim elas se

agitaram, e uma nova quadra de vida as viera afinar. Perderam as ilusões, que as

paralisaram.

Regressando à cidade, sacudi a poeira de uma mala, que desde a minha

desventura ficara fechada no canto do quarto de um amigo, que a conservara

fielmente. Ela encerrava o FIGURINO, retrato perfeito de Amália; quis vê-lo, para

melhor comparar e apreciar essa alteração.

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Oh ! desgraça! Esse quadro também experimentara a zombaria cruel do

tempo; coberto de mofo, roído pelas baratas, desfeito pela umidade, o que restava

dele? Nada; nada, senão as cores dúbias do vestido; os seus traços provocavam a

irrisão! Deitei-o para o lado, e vim para a mesa redigir um anúncio para a LUX !,

pondo em loteria o meu coração, valendo cada bilhete 500 em moedas novas de

níquel. Juro que ele reverdeceu e ainda é digno de qualquer moça que seja bela,

como era bela D. Amália d’Amarante, bela como era belo o meu FIGURINO!

Comprai bilhetes, minhas senhoras; comprai, porém cuidado com os papais!

Não colhi a herança que me trouxera a estas ribas; ela submergiu-me em um

intrincado labirinto de acrimoniosas demandas, às quais renunciei em troca da paz

de espírito; em compensação, adquiri o hábito do trabalho, e... que decepção!

Recordo-me que a LUX! não aceita anúncios e propagandas... Estou logrado, tanto

melhor; porque não me seria difícil deparar com um segundo Patrocas, encadernado

em maior orgulho e ambição...

Farwel! farweI! farwel!

F. GIL

Campos, 10 de dezembro de 1874.